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SAúDE MATERNO-INFANTIL: UM QUADRO DE ABANDONO RISCOS E DESIGUALDADES

Kátia Silveira da Silva Márcia Lázaro de Carvalho

Atualmente é bastante frequente lermos nos jornais manchetes que dizem respeito à saúde da população brasileira São denúncias sobre a ameaça de epidemias, sobre a falência dos hospitais públicos, sobre casos de morte onde são responsabilizados os médicos e as instituições que prestaram assistência, sobre o preço abusivo dos medicamentos etc. As manifestações dos movimentos sociais contra a fome, a miséria e contra a destruição ambiental também estão relacionadas à saúde, no seu contexto mais geral.

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Não é preciso ser um especialista para suspeitar ou concluir que a saúde do povo brasileiro vai de mal a pior.

Aliás, seríamos ingênuos se pensássemos que essa realidade é igual para todos.

Quando observamos o quadro de saúde dos cidadãos brasileiros, identificamos grandes contrastes entre as camadas sociais de poder aquisitivo mais elevado e as camadas mais pobres, tanto no que se refere à sua expectativa de vida quanto em relação às doenças que os atingem.

Vivemos uma situação bastante complexa pois, semelhante aos países desenvolvidos, temos como principais causas de morte as doenças cardiovasculares (como o infarto), as causas violentas e o câncer. Porém, população convive ainda com a malária, a febre amarela, a diarréia e a desnutrição, doenças que desde o início deste século já apresentavam baixa incidência nos países do Primeiro Mundo.

Ao abordarmos questões ligadas à saúde matemo-infantil, os contrastes advindos das desigualdades soQuamh seu moço, nasceu meu rebento não era o momento dek rebentar já foi nascendo com cara de fome e eu não tinha nem nome pra lhe dar'' Chico Buarque

ciais aparecem de maneira muito clara. O estado de saúde em um grupo de crianças é afetado por muitos fatores imediatos: as condições de saúde de suas mães, a alimentação que recebem durante a gestação, as condições de saneamento e habitação e a disponibilidade de assistência médica de boa qualidade. Esses fatores, no entanto, não se distribuem ao acaso dentro da população; eles são fortemente influenciados pela formação sócioeconômica que determina o perfil de classes sociais. A gestante não escolhe o serviço de saúde onde nascerá seu bebê e, infelizmente, em muitos casos, isso vai dr::terminar em última instância a sobrl'.vida de seu filho!

A discussão sobre as causas de morte de mães e crianças menores de um ano deve ser vista como uma contribuição no sentido de garantir a Vida, ou pelo menos o seu começo, e evitar mortes desnecessárias. Nada mais ligado à Vida que o momento do nascimento, que é crítico e decisivo na evolução do indivíduo.

Justamente nesse momento singular, em que a Vida chega e precisa ser acolhida, quando a mulher necessita de segurança, ela se divide entre vários sentimentos, dentre eles, a angústia pelo risco que o parto possa trazer para sua saúde e a do bebê.

Quanto ao bebê - além do trauma inevitável do próprio nascimento-, ele tem que enfrentar uma série de provas para conseguir sobreviver. Algumas questões já são determinadas antes mesmo dele nascer como, por exemplo, as influências das condições sociais sobre o nascimento de uma criança com baixo peso, isto é, peso menor que 2.5(X)g. E outras dependem da maneira pela qual se dá o nascimento e da qualidade dos cuidados de saúde que lhe são dispensados nesse momento.

O peso ao nascer é considerado o principal determinante da mortalidade perinatal (a que ocorre entre o final da gestação e a primeira semana de vida) e, apesar de ser um fator dito "biológico'', reflete a capacidade reprcdutiva da mãe. Essa, por sua vez, é um indicador de suas condições de vida (saúde e nutrição).

Nos países desenvolvidos, o uso de te.enologias comple·"1S e a disponibilidade de recursos permitiram lidar melhor com os recém-natos de baixo peso. Enquanto isso, no nosso meio, além dessa tecnologia ser disponível apenas de forma seletiva, não conseguimos resolver questões muito simples como o adequado acompanhamento ao trabalho de parto e a correta indicação da cesariana Não são oferecidas a estes recém-natos as condições necessárias à sua sobrevivência, como cuidados intensivos de que

KÁTIA SILVEIRA DA SILVA - Epidemiologista da Fiocruz e da Secretaria Estadual de Saúde; mestranda da Escola Nacional de Saúde Pública.

MÁRCIA LÁZARO DE CARVALHO - Pesquisadora epidemiologista da Escola Nacional de Saúde Pública; mestre em Saúde Pública.

"muitas vezes essas crianças necessitam devido à sua imaturi'dade. Além disso, convivemos com um grande número de óbitos de crianças que nascem com peso adequado e que, teoricamente, teriam todas as chances de sobreviver!

Percentual de óbitos femininos por causas relacionadas à gravidez, parto e puerpério (matemos) por região, em relação ao total de óbitos femininos entre 15 e 49 anos, Brasil - 1988 proporciooar-lhes um traREGIÃO NºDE Nº DE ÓBITOS ENTRE 15/49 ANOS tamento especial. Mesmo isso não seria suficiente sem que se melhorasse a atenção em todos os níveis, tanto nos serviços básicos como naqueles de maior complexidade.

ÓBITOS MATERNOS Norte 199 2.589 7,7% Nordeste 473 12.176 3,9% Sudeste 49 27.369 2,7% Sul 215 8.295 2,6% Centro-Oeste 23 3.670 3,4% Brasil 1.759 54.099 3,3% Fonte: Estatística de Mortalidade - Ministério da Saúde.

No entanto, com a polf ti ca do governo de res-

Assim, as causas de óbito dos que morrem no primeiro mês de vida (óbitos neonatais) relletem esse quadro. Mais da metade deles é devido a causas que poderiam ser consideradas reduzíveis apenas com um adequado controle da gravidez e uma adequada atenção ao parto, aliados a diagnóstico e tratamento precoces a, por exemplo, transtornos hipertensivos da mãe, problemas que surgem devido a demora no trabalho de parto, entre outros. Enquanto isso, nos países desenvolvidos, metade das mortes perinatais se dá por malformações congênitas, prematuridade e insuficiência placentária.

A utilização inadequada do parto cesáreo e a falta de indicação quando necessário são situações onde as consequências negativas para a saúde de mãe e filho aparecem de maneira gritante. Já é sabido que os nossos índices de realização de cesárea estão muito acima do que seria recomendado. Eles dependem muito mais da faixa de renda da mãe do que de indicações médicas, sendo mais comum a sua realização naquelas de renda mais elevada. A orientação para cesárea varia com o tipo de hospital (se público ou privado), tem como freqüente "indicação" a "ligadura das trompas", é realizada com data previamente marcada pelo médico e deixa de ser feita quando realmente é necessária para proteger a vida da mãe e do bebê. Assim, acaba por tomar-se muitas vezes uma cirurgia perigosa que expõe mãe e filho a riscos desnecessários, tais como a infecção hospitalar.

Quanto à mãe, as estatísticas oficiais registram apenas 50% do número real de mortes que ocorrem durante a gravidez, parto ou pósparto, devido ao preenchimento incorreto das declarações de óbito. Estima-se que, no Brasil, ocorram cerca de 156 mortes maternas para cada 100 mil crianças que nascem vivas, embora os dados oficiais registrem apenas uma média de 72 óbitos para o mesmo número de nascimentos. Nenhuma região do Brasil apresenta um índice menor que uma morte para cada mil nascimentos. Na Região Norte, este número chega a ser 5 vezes maior. O percentual de mortes maternas em relação ao total de óbitos femininos entre 15 e 49 anos difere segundo as regiões geográficas, demonstrando também uma heterogeneidade entre elas (ver tabela). Estes dados não levam em conta aquelas mortes decorrentes da gravidez indesejada que não chegam aos dados oficiais -, embora seja um problema real. Esta situação é totalmente inadmissível quando as principais causas de morte são relacionadas à hipertensão arterial, hemorragia e infecção, patologias evitáveis com o conhecimento técnico-científico existente.

Portanto, a ocorrência de um óbito matemo não deve ser encarada como uma fatalidade. Devem ser realizadas investigações e definidas as responsabilidades para que as possíveis falhas possam ser corrigidas.

Todos os esforços devem ser feitos para identificar os grupos de risco para a mortalidade perinatal e materna, alocando-se recursos humanos e materiais no sentido de prevenir estas mortes através da captação das gestantes de risco para tringir os gastos públicos na Saúde, as maternidades públicas vêm sendo desestruturadas e o Estado vem diluindo a sua responsabilidade pela prestação de assistência à saúde da população com os demais prestadores desse serviço, como o setor privado. O repasse das limitadas parcelas do orçamento sofre critérios políticos, levando a atrasos que, dentro de uma conjuntura inflacionária, comprometem a sua utilização. Conseqüentemente a esta política, temos assistido a um real sucateamento da rede pública, onde faltam desde instrumentos básicos nos serviços de prénatal, como aparelhos de verificar a pressão arterial, até leitos obstétricos, obrigando a mulher a uma verdadeira , peregrinação em busca de uma vaga para ter seu filho.

A situação no setor privado conveniado é também bastante precária, ficando a população exposta a serviços onde faltam medicamentos, anestesistas, preparo dos profissionais e condições mínimas de atenção à mulher e à criança. Esta precariedade atinge principalmente as mulheres mais pobres, que têm nos serviços públicos e na rede conveniada suas alternativas de assistência. E é justamente este grupo que necessita muitas vezes de um cuidado especial, já que nele são mais freqüente situações que possam conduzir a um risco maior para a mãe e para o bebê. No entanto, paradoxalmente, este acesso lhe é socialmente negado.

Neste quadro de abandono, ser mãe, sem pôr em risco a sua vida e a de seu filho, é para a população de menor poder aquisitivo um direito ainda a ser conquistado! D

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