CONTOS DE UMA VIDA
“As histórias que ouvi ainda rondam o meu imaginário. Nem precisam ser verdade, bastaram me fazerem crer”.
José Geraldo de Faria Março de 2016
CONTOS Mãe de Ouro Mula se Cabeça Existe O Retorno Sopa de Pedra 300 a Saga do Ki-Suco Assombração da Estrada Saudosa Infância com Cícero Um Defunto Estranho Os Viajantes As Três Missas de Natal
Mãe de Ouro
Mula sem cabeça existe!
Dona Maria era benzedeira de ar nos olhos e de boca torta de congestão. À noitinha colhia três ramos de arruda e três dentes de alho pra colocar na garrafa cheia d’água e assim, poder fazer a benzedeira no dia seguinte ou outro dia que fosse de sol. Era muito interessante, quando ela punha a garrafa cheia d’água com a arruda e o alho na cabeça da pessoa e começava a rezar, borbulhas de ar começavam a surgir dentro da garrafa e só parava quando a pessoa ficava boa. Eu mesmo vi isso várias vezes.
Assim que terminou o segundo turno na fabrica de botões, já passava das onze da noite, Jeremias foi para o vestiário trocar de roupa antes de ir embora pra casa. Saindo pelo portão da fábrica, tirou alguns dedinhos de prosa com seu Nicolau o vigia e, logo depois, pegou o caminho de casa.
Mas nesse dia tudo deu errado. Dona Maria teve um dia cheio e se atrasou na colheita da arruda e do alho. Já era tarde da noite quando foi pro quintal. Neste tempo o Areão era roça, pasto e bambuzal cobriam a paisagem. Mesmo no escuro, Dona Maria pelejava tentando enxergar os pés de arruda e a horta de alho, quando um zunido passou por seus ouvidos e um arrepio subiu-lhe pelos cotovelos e braços. Dona Maria olhou pra cima no céu e vê uma enorme bola de fogo passar bem diante dos seus olhos, como um raio vermelho alaranjado de imenso clarão. Dona Maria com as pernas moles senta no chão. Olhando aquilo fica assombrada pensando no que podia ser. Seu José seu pai era tropeiro e sempre contava estórias das coisas que ele via nas noites das pastagens que percorria. Bola de fogo assim devia ser mãe-de-ouro. Mas isso não é hora pensar nessas coisas, pensa Dona Maria, que se levanta bem de pressa com as mãos cheias de arruda e alho, tudo meio misturado e corre pra dentro. Dona Maria ficou assombrada e levou uns três dias pra esquecer o assunto e chamar o padrinho Celestino pra benzer. Eu acredito nas histórias de Dona Maria, afinal, ela me contava tudo isso antes da gente dormir.
Era noite quente, de céu limpo e de lua cheia. Descendo a estradinha de Tremembé pareando a Ponte Seca, Jeremias olhava adiante o longo muro caiado de branco, que se destacava da escuridão, pois naquela época, não havia postes de luz. De repente, Jeremias leva um susto e para. Olhando para o final muro percebe um enorme cavalo preto sem cabeça. O bicho estava parado a uns 30 metros lá na frente. Meu Deus o que é aquilo? A rua vazia, aquela clarão da lua, só grilo cantando. É mula sem cabeça! Será que é, será que não é? Jeremias segue caminhando meio que de lado sabe? Na espreita, vai que é, e de lado, é mais fácil de virar e correr. O animal era enorme e conforme Jeremias se aproximava ficava mais arrepiado. Já quase sem coragem, Jeremias mudou de lado e foi pro outro lado da estrada e sem tirar o olho do bicho e, não é que não era! Olhando por outro lado, Jeremias percebeu um enorme buraco no muro por onde o cavalo enfiava a cabeça pra dentro do terreno e pastava. É que o clarão da lua no muro branco e a escuridão em volta, dava a impressão que o bicho só tinha corpo. Que alivio! Era só canseira do trabalho e imaginação, segue pensando Jeremias. Mas bem que eu podia jurar que era!
O Retorno
Sopa de Pedra
Quando chegou sua hora derradeira e o fim do seu ciclo, o anjo de luz já sabia demais. Sua consciência infinitamente abrangente hesitou em abrir mão de tudo o que havia conquistado com seu ego iluminado. Não parecia ser justo adiar o trabalho dos filhos do fogo. Voltar à essência era impensável, já que nas profundezas do incriado havia uma possibilidade infinita de ser pai e mãe de milhões de emanações. Então os anjos da luz e do fogo resolvem pela emancipação orgulhosa, desobedeceram para não abrir mão de suas conquistas e desfazerse do ego iluminado, cheio de ciência divina e de amor concedidos. Os anjos de luz e de fogo mergulham então nas profundezas do incriado e ali tentam se estabelecer como senhores do homem, mas, não há outra fonte de vida senão o Altíssimo. O rompimento com a luz desencadeia uma legião de sombras que se precipitam dentro da inconsciência, fugindo para fora de si mesmo e para dentro dos elementos. Ainda, por força da reparação misericordiosa do Altíssimo, um grande estrondo geometrizou o cosmos e forjou a densidade das eras e dos elementos, até que os filhos pródigos aprendam a multiplicar seus talentos e voltem a trilhar o caminho de volta e pelo que parece, até inchar-se de tanta ciência e filosofia, tentados pelo superego iluminado, o homem sentir-se-á o senhor de si, desejando retardar seu envelhecimento e a sua própria morte. Assim, estará novamente a um passo do mesmo tropeço, que ha muito tempo nos tem feito girar e girar na eterna roda da existência.
O dia foi longo e a tarde surgia. Nassif parou para montar sua tenda e dormir e estava com poucos mantimentos na bolsa. Então armou sua tenda, acendeu uma pequena fogueira, pegou o velho caldeirão, um pouco de água que ainda lhe restava, alguns cereais, uma pequena pedra e pôs tudo para ferver. Era o que iria comer. Ao anoitecer, outro mercador que também seguia a rota da seda passou por ali e reconhecendo Nassif, resolve lhe fazer companhia. - "Salaam Aleikum” irmão chegou mais um. O que você está cozinhando? –“Alaikum As-Salaam”... Ah! Seja bem vindo irmão Said, estou fazendo uma antiga receita de sopa de pedras, apenas me faltam alguns ingredientes. Você tem um pedaço de carne ai? Sim tenho, pegue vamos adicionar a sopa. Assim, entrou a noite e mais um beduíno passou por ali a junto aos outros acampou. Boa noite irmãos, o que teremos para comer? - Teremos sopa de pedra, responde Nassif e Said. E isso é bom, pergunta o recém chegado. - Sim muito bom responde Nassif, mas pode ficar melhor, pois nos faltam alguns ingredientes. Você tem especiarias? - Tenho sim, tome, coloque ai as cebolas, o cominho o sal. E assim todos comeram e se deliciaram com a tradicional sopa de pedra de Nassif, que de pedra não tinha nada e cuja tradição, havia começado bem ali.
300 A Saga do Ki-Suco
Assombração da Estrada
Quando eu era adolescente, sempre me convidavam pra ir naqueles bailinhos que a gente fazia em casa lembra-se? Afastávamos os sofás da sala ou limpávamos a garagem pra conseguir o maior espaço possível, afinal, o som ia rolar. Com a gente era sempre aos sábados.
Bem na curva da estrada, havia uma assombração junto à touceira de bambus gigantes. Toda vez que alguém por ali passava ela se manifestava rangendo seus dentes em sons estridentes, uma coisa de arrepiar os cabelos. Já havia se tornado uma história bem famosa, principalmente para as pessoas que por ali passaram. Na verdade, poucas vítimas voltavam por ali e evitavam um novo encontro com a assustadora criatura.
Mas um desses sábados foi diferente. Muito diferente. O Odair "maluco" convidou a turma pra ir dançar na casa dele, ou melhor, na chácara onde ele morava. O pessoal ficou entusiasmado, pois a gente nunca tinha curtido um som “rural”, tema que acabou transformando o fato em piadinha de adolescente. E assim foi. Já no sábado, eu e mais três colegas de escola estávamos a caminho do baile, quando passamos em frente de um depósito de doces. O Valter era sem dúvida nenhuma o cara mais bagunceiro da turma, cismou em pular o portão do depósito pra “pegar emprestados” alguns doces que as vezes ficavam do lado de fora. E nem se passou pela nossa cabeça oca o porquê daqueles doces estarem do lado de fora, bons é que não deveriam estar. Mas mesmo sem o juízo perfeito, Valter pega uma caixa qualquer muito rapidamente e joga por cima do portão, fugindo do cachorro. Nós pegamos a caixa e correremos muito até chegar a chácara do Odair. Já era noite quando lá chegamos. Na verdade, a casa do Odair era bem simples, o quintal era grande, mas de terra batida, com um grande poço d’água bem no meio. Os pais do “anfitrião” tinham saído e iriam demorar; isso explicava como o local tinha sido reservado com tanta facilidade. Aos poucos a turma foi chegando e com eles, já sabe né, cerveja, vodka e por ai vai. A certa altura da festa já tava todo mundo tontinho. - E a caixa Valter! Cadê a caixa de doces? Vamos distribuir pra moçada. Ao abrir a caixa, adivinha? Era uma caixa de Ki-suco de morango. Caramba! O que vamos fazer com 300 saquinhos de ki-suco. Odair, o dono da casa e já tonto de tanta birita, teve uma brilhante idéia. – Espera ai pessoa que eu já volto. Odair entra na casa e pega dois sacos de cinco quilos de açúcar, e dizia. – Gente! Já que o refrigerante acabou, vamos tomar Ki-suco de balde. E então começamos a rasgar, saquinho por saquinho e jogar dentro do poço e em seguida, jogamos os dois sacos de açúcar. Quando a gente puxava corda do poço, o balde trazia aquela água rosa sabor de morango aguado, mas que importa, a “bagunça” era tanta que tudo era festa e diversão. E assim foi até o fim da noite e do baile. Na segunda-feira, o pessoal esperava por Odair na escola para ver com que cara ele apareceria, mas pra nossa decepção ele não foi à aula. A gente até podia imaginar o porquê.
Eu mesmo já fui vitima. Certo dia bem à tardinha, quase noite, passava por ali com os balaios de milho colhidos junto com meu avô. Ele mesmo desconfiava dessa história de fantasma, mas também não ligava muito. Mas neste dia, quase noite, o cavalo que eu puxava parou. Empacou no lugar e não saia. O animal começou a relinchar e não parava mais. Quase perdi as rédeas do bicho e o milho quase se foi todo ao chão. Fiquei apavorado, não sabia se corria ou se segurava as rédeas do cavalo. O grunhido vinha da mata como o ranger de portas, medonho. Graças a Deus o totó resolveu andar e segui puxando o milho bem rápido, pra dizer a verdade correndo. Chegando ao sítio contei tudo pro meu avô e ele riu. - “Seus bobo, o ceis vê coisa que num ixisti”. Mas eu suava frio e tremia tanto que mal podia falar, então, só de raiva, o velho pegou a bolsa e a espingarda, subiu no cavalo me olhou e disse: - Hoje eu pego essa tar de sombração. Não pude acreditar em tamanha coragem. Não é que o velho foi mesmo naquela escuridão, se embrenhou na mata e sumiu por horas. Jantei e me deitei esperando o vô e nada dele chegar. Dormi. Um barulho de arrasto e acordei, já era de manhazinha. Meu avô voltava gritando bem alto pra todo mundo escutar. – Matei, matei a assombração vem vê. Pulei da cama e fui correndo pro quintal encontrar com o vô e dei de cara com ele puxando dois enormes bambus. – Ué vô, cadê a assombração que o senhor matou? - Tão aqui! Mostrando os bambus enormes. Como assim vô? Perguntei confuso. – Cheguei lá na curva da estrada meu fio e fiquei esperano a tar de ssombração e nadica dela. Num falei seus bobo. O vento começou a soprá, soprá e os bambu começo a se esfrega um no otro e rangia assim...nhééé, nhéééé. Num pensei duas veis, entrei no bambuzar e matei a danada com o facão. Cortei os bambu. Bem, o tempo passou, cresci e meu avô já morreu. Muita gente foi embora pra cidade e dizem que a fazenda ficou vazia, sem graça e sem assunto pra uma boa prosa noturna. Também pudera, nem uma boa assombração existe mais por aquelas paradas.
Saudosa Infância com Cícero
Um Defunto Estranho
Hoje recebi a triste noticia da morte de Cícero. Quando crianças, Cícero e eu brincávamos soltos pelas ruas do Areão entretidos com as pipas, figurinhas, os campos de futebol e as bolinhas de gude. Luisa e eu subíamos pela Padre Fisher e passávamos na casa de Cícero todas as manhãs para irmos à Escola. A gente voltava sempre junto e quando ele não almoçava comigo era eu que comia lá. Cícero era meu melhor amigo. Certa manhã quando acordei mamãe me disse: - A família de Cícero vai se mudar hoje. Não acreditei. A tristeza me desolou. Irei ficar sem o amigo de todas as horas e de todas as coisas. Cícero então nem se fala, era uma tristeza só. Como é que a agente não sabia disso? No fim da tarde, na hora da mudança eu não já não vi mais Cícero. De longe eu olhava aquela grande agitação em sua casa, alguns homens carregando coisas para dentro de um velho caminhão. Era verdade mesmo, Cícero iria embora. Aliás, ele já tinha ido para a nova casa um pouco antes do almoço, com a irmã e sua mãe e eu ainda estava vindo da escola. Cícero faltou nesse dia. Triste desencontro. Quase à noitinha, o caminhão de mudança já ia saindo de vagar em uma tristeza lenta. Seu Pedro pai de Cícero me acenava com as mãos dando-me um adeus sem palavras e eu, sem coragem de me despedir tamanha era a tristeza. Depois disso foram se trinta anos. Soube que os pais de Cícero já não eram mais vivos. Soube também que Cícero havia se casado e em seguida separou-se da esposa e que não tiveram filhos. Certa vez eu vi Cícero junto às barracas do Mercado Municipal de Taubaté. Sim era Cícero, um pouco mais gordo e com o rosto mais calejado mas, sim, era ele. Para minha surpresa e tristeza Cícero parecia embriagado e maltrapilho, aparentemente morando nas ruas. O que se passou na vida de Cícero? Porque havia chegado nessa situação? O que estaria fazendo para sobreviver? Eu estava passando de ônibus pela rua cheia e bem movimentada e não pude parar, foi tudo muito rápido. Talvez devesse ter parado um pouco e ir ao encontro do meu saudoso amigo de infância, lhe dirigir algumas palavras de amparo, mas a oportunidade passou e eu não mais o vi e, dessa vez, nunca mais. Confesso que fiquei deprimido e me senti mal por vários dias, até as ocupações de a vida me fazerem esquecer esse triste episódio, com certo remorso pela fria distância que o tempo já havia colocado entre nós. Afinal, a vida havia passado. Hoje recebi a triste notícia da morte de Cícero. A noite em meu quarto, uma breve oração e chorei. Chorei muito. Não somente pela notícia da morte de Cícero, mas pela morte da nossa feliz a saudosa infância.
Que tristeza, o Prefeito Dr. Rodrigues Pedrosa morreu. Santa Rosa era uma cidadela tão pequena que mal tinha funerária, muito menos Padre. O VicePrefeito enviou o motorista Tomé e seu ajudante Zé Otávio até a cidade vizinha de Areias buscarem um caixão de Mogno, digno de se enterrar um Prefeito tão querido pelo povo. Areias não era tão longe, mas a estrada era uma tristeza, cheia de buracos e barrancos escorregadios. No caminho de volta, o tempo estava nublado e começa a chuviscar fino. Já era fim de tarde, quase noite, e o caminhãozinho de caçamba aberta trazia aquele imponente caixão marrom com alças douradas. Zé Otavio, o ajudante de motorista, olhou pra estrada e viu alguém acenando com a mão pedindo carona. – Nossa! É o Toninho da venda para pra ele Zé. Toninho nem acredita na sorte que teve. – Oi Zé, oi Tomé! Ta escurecendo e sai tarde da casa do meu primo. Vocês me levam pra Santa Rosa? - Sobe ai atrás Toninho, estamos levando um caixão pro enterro do Prefeito, mas tem espaço. Toninho subiu na caçamba feliz da vida pela carona. Já escurecia e começou uma chuvinha bem fina, daquela bem chata mesmo. Toninho estava se molhando muito e olhando para aquele caixão quentinho, bem fechado logo pensou. – Acho que não tem nada de mais me deitar lá dentro pra fugir da chuva. E assim fez, que até cochilou. Uns 5 km para chegar a Santa Rosa, o sereno engrossou. Na beira da estrada eis que surge outro sujeito pedindo carona, homem meio desconhecido, mas o motorista Tomé já havia visto ele por ali. Era algum morador daquelas casinhas que ficam ao pé da serra. Gente boa. O desconhecido aborda o motorista Tomé que lhe diz: - Sobe ai atrás com o “outro” meu amigo, dá se um jeito e a gente leva os dois. O homem sobe na caçamba do caminhão e dá de cara com aquele caixão sinistro, o “outro” que também seguia viagem, na verdade era Toninho que dormia dentro. Bem, pensou o homem: - Eu não mexo com ele e ele não mexe comigo e tá tudo certo, mas não tem jeito, ficou aquele clima de “sei lá”, entende? O caminhão seguia pela estrada, o homem estranho olhava o caixão com aquela cisma. Já era noitinha e estava escuro, quando Toninho desperta dentro do caixão, abre a tampa, olha fixo pro estranho e pergunta: - E ai meu amigo, já parou a chuva? O pobre do homem dá um berro, se levanta e pula do caminhão como um raio barranco abaixo. Assim é a vida, cheia de imprevisto. Lá vai Tomé e Zé Otávio de volta para Areias buscar outro caixão, afinal, o falecido Prefeito terá companhia de um defunto estranho.
Os Viajantes As Três Missas de Natal Certa vez adormecido em sonho, me via caminhando por ruas já percorridas da vida, descia uma ladeira de pedras cinza e ao chão, flores amarelas esparramadas. Nesse caminhar encontrei uma criança de semblante familiar que se dizia perdida. Senhor, senhor ela me dizia: - Me toma pelas mãos e me segue. Ela me pediu ajuda para percorrer de volta o caminho de onde viera, aliás, voltar para as origens é uma façanha que todos nós deveríamos retomar. Tomei a criança pelas mãos e saímos à procura de pistas, respostas, situações e acontecimentos que fizessem algum sentido à nossa busca. Um longo dia e um longo caminhar, sentado na grama verde, um menino brincava a sós, mergulhado em seus sonhos e brinquedos. Sua atenção não se desviava dos cavalinhos e soldadinhos de chumbo e não percebeu a nossa passagem. Menino, menino lhe chamei. Olha para nós e nos mostre como chegar onde queremos. - Sim meu senhor, responde o menino, que pega em minhas mãos. Seguimos juntos em nossa jornada e um jovem rapaz muito apressada corria atrás de nós e nos alcançou dizendo: - Sei aonde vão e irei junto também. Mas o jovem estava mais interessado em viver as possibilidades da vida do que ouvir as nossas dúvidas e indagações e em quase nada nos ajudou. Chegando à parte alta da cidade, encontramos um homem de cabelos grisalhos que vendia seus produtos em uma banca. Aproximamos. -Bom dia senhor procuramos por um caminho de volta, poderia nos ajudar? Sua lida era apressada, falava muito dos seus afazeres e conquistas das vantagens em adquirir experiências, que pouca atenção deu a nossa presença. Então compramos sua atenção, um saquinho de biscoitos bem crocantes e assim nos disse: - Por hoje está bom, posso fechar. Acompanho sua jornada e ver até onde queres chegar. Partimos em direção da parte baixa da cidade, descemos ao encontro de uma praça sossegada, onde um homem velho estava sentado num banco, alimentando os pombos e observando a passagem dos dias. Sem que falássemos nada, ele nos observou de longe e fez um gesto com a mão para que nos aproximássemos. Coisa interessante. Ele olhou para nós e disse o seguinte. – Estava esperando por vocês. Por nós, disse eu espantado. – Sim por vocês. Estava lhes esperando por toda a vida. Sempre venho aqui eu fico relembrando os fatos do passado. Revivo todos os momentos, meus anseios e desejos inacabados, quando não dava atenção às pequenas coisas, as coisas simples e aos verdadeiros amigos. Tudo passava muito rápido e sem perceber, já era outro dia, outra tarefa outro amigo. Porém hoje eu fiz diferente, voltei a minha infância e percorri detalhadamente todo o nosso caminho. Observei as fases da nossa vida e vi tudo àquilo que deixamos passar despercebido, até chegarmos aqui nesta nossa idade, para dizermos um ao outro, tudo aquilo que sempre soubemos, mas não fizemos. A felicidade está nas pequenas coisas e nas pequenas vitórias. No convívio das coisas e pessoas cotidianas. Vivemos muitas e grandes coisas, mas só vocês poderão resgatálas novamente e revivê-las por mim e em si mesmos. Sejam bem vindos ao lar! Viajantes das minhas lembranças.
Tonico era um menino que não tinha medo de nada. Não tinha medo da noite, nem de fantasmas, muito menos do diabo. Coroinha desde os nove, Tonico era membro do grupo de Jovens na Matriz de Nossa Senhora dos Amores, em sua pequena cidade natal, a pacata Areias. Tonico era muito devotado aos trabalhos da Igreja. Vangloriava-se por saber todas as rezas de praxe. A Ave Maria, O Pai Nosso, Glória ao Pai, Salve Rainha, Creio em Deus Pai, entre outras. Mesmo sendo um garoto muito religioso, Tonico ainda era criança. Brincava de vaqueiro e adorava nadar acompanhado do seu fiel amigo e companheiro de sacristia Teobaldo, no ribeirão da fazenda Esperança da Bocaina, Morro Frio, propriedade de um primo de seu pai, Sebastião Rodolfo. Mas Tonico tinha um sério defeito. Quando ficava nervoso ele falava aqueles palavrões bem cabeludos. O Padre já havia repreendido e aconselhado Tonico. - Meu filho, falar palavrões alegra ao diabo. Mas Tonico nem ligava, afinal, não tinha medo de nada mesmo, nem do dito cujo. Certa vez, Tonico e Teobaldo voltavam de uma boa tarde de domingo no ribeirão. Teobaldo resolveu pregar uma peça em Tonico. Apressou-se e correu na frente e desapareceu. Foi direto pra casa deixando o amigo sozinho. Tonico ficou muito irritado e começou a soltar aqueles palavrões bem cabeludos. Tonico estava passando por uma porteira xingando muito até que um corvo negro, muito feio mesmo, pousou em cima de um dos mourões da porteira e lhe disse: - Olá Tonico! Quer ser meu amigo. Tonico que não tinha medo logo respondeu: - Não sabia que os corvos falavam. Como é que você fala. O corvo lhe disse: - Na verdade eu sou o diabo Tonico. Você me chamou e eu estou aqui. Não sabe que eu adoro ouvir palavrões? Mas desta vez, Tonico percebeu que a coisa era bem séria e ficou com muito medo. Começo a rezar tudo o que sabia e sem parar, pra ver se espantava a coisa ruim. - Pai nosso que estais no Céu... E o diabo dizia: essa eu também sei! - Ave Maria cheia de Graça.... E o diabo: essa eu também já sei! - Salve Rainha... - Essa então eu sei decor, dizia o dito cujo. Tonico rezou tudo o que sabia e nada dava certo. O diabo queria mesmo ser seu amigo. Até que Tonico se lembrou de um conselho dado por sua avó, Dona Mocinha. – Meu filho, se você quiser proteção de todo o mal, assista as três missas de Natal. Tonico não tinha medo de nada, mas pelo sim e pelo não, sempre acompanhava sua avó nas três missas todo ano. Então Tonico não perdeu tempo, olhou firme para o corvo negro e disse: E nome das três missas de Natal eu te mando embora satanás. – Essa eu não sei Tonico, disse o corvo, que deu um grito de raiva e voou bem ligeiro, para nunca mais. Nota: "As três Missas do Natal distinguem-se pelos Evangelhos e pelo horário que lhes é peculiar. Com efeito, a primeira Missa deve ser celebrada à meia-noite de 24 para 25 de dezembro; a segunda, ao romper a aurora; e a terceira, já dia feito".