CETICISMO ENXOVALHADO PELO PRECONCEITO
GEORGE SIMON BOOLE
O MAIOR MAL DA SOCIEDADE
CETICISMO
EDUCAÇÃO
FILOSOFIA
PAREIDOLIA - O QUE É E PORQUE NOS ENGANA
OS CAMINHOS DA EDUCAÇÃO INCLUSIVA
O APRISIONAMENTO NA COMUNICAÇÃO
NATUREZA HUMANA
OPERANDO O COMPORTAMENTO
PEDAGOGIA
O SONO
SELEÇÃO NATURAL
ALGUMAS PALAVRAS SOBRE AUTONOMIA
RESENHAS
NÃO ENTRE EM PÂNICO!
Revista Livre Pensamento – Número 3 Índice - Página 1
31/03/2012
Editorial Carta ao Leitor O Leitor Escreve Dicas do Leitor
Página 04 Página 05 Página 05
Matérias
Ceticismo Enxovalhado pelo Preconceito
Página 07
Uma análise sobre acontecimentos recentes no meio cético, onde houve um show de preconceito.
Por José Geraldo Gouvêa
George Simon Boole
Página 13
Um texto sobre George Simon Boole e sua álgebra, a famosa “algebra booleana”.
Por Daniel Bohn Donada
O maior mal da sociedade
Uma análise sobre o maior mal da sociedade, o preconceito, assim como seus causadores: dentre eles, principalmente o medo
Por Mário César Mancinelli de Araújo
Página 17
Revista Livre Pensamento – Número 3 Índice - Página 2
31/03/2011
Colunas
Ceticismo
Página 21
Pareidolia - O que é e porque nos engana Por Mário César Mancinelli de Araújo
Educação
Página 25
Os caminhos da Educação Inclusiva Por Wagner Kirmse Caldas
Filosofia
Página 29
O APRISIONAMENTO NA COMUNICAÇÃO - A crença nas palavras e o abismo total entre as consciências Por Eder Juno N. Terra
Natureza Humana
Página 38
O Sono
Por Felipe Carvalho Novaes
Operando o Comportamento
Página 42
SELEÇÃO NATURAL - Como se desenvolve o repertório comportamental humano? Por Marcos Adilson Rodrigues Júnior
Pedagogia
Página 44
Algumas Palavras Sobre Autonomia Por Kelly R. Conde
Resenhas NÃO ENTRE EM PÂNICO!
Página 48 Por Devanil Junior
Humor Criacionismo - Mais estúpido, impossível!
Página 52 Por Mário César Mancinelli de Araújo
Gerais
Ser Humano
Página 54
O Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova (1932)
Dicas para a Internet
Sites recomendados, sites úteis e blogs que fazem parte do Projeto Livres Pensadores
Página 68
Editorial - Carta ao Leitor, O Leitor Escreve e Dicas do Leitor
Caro leitor,
Carta ao Leitor A cada dia vemos mais acontecimentos que parecem nos levar na direção de uma teocracia: como se não bastasse toda a movimentação de religiosos contra a descriminalização do aborto, ainda vemos leis sendo aprovadas, as quais, por exemplo, impõem que se “ore o Pai Nosso” em escolas; vemos programas religiosos em mais de um canal da TV, os quais, por serem concessão do Estado, deveriam ser laicos; vemos acordos sendo assinados entre o Brasil e o Vaticano; e, para complicar, vemos uma presidente como refém de uma bancada religiosa, a qual não deveria sequer existir. Felizmente, também vemos ações acertadas sendo tomadas, como o fato da justiça gaúcha mandar tirar os crucifixos das repartições públicas, ou o fato do MPF estar tentando retirar a frase “Deus seja louvado” das cédulas de Real (leia sobre isto aqui e aqui).
Assim, mais do que nunca, esta é a hora de agirmos em favor do laicismo de nosso Estado. Agir escrevendo e publicando textos e/ou vídeos a respeito, falando a respeito, fazendo passeatas e o que mais estiver ao nosso alcance. E, devido ao laicismo ser um dos valores centrais da Organização Livres Pensadores, esta também é uma luta nossa. Esta luta não é fácil, nem nunca será, pois para muitos um Estado verdadeiramente laico não é interessante, ou pode ser até mesmo prejudicial: principalmente para aqueles que vivem (e fazem de seu ganha-pão) da pregação do ódio e do preconceito, assim como de tirar dinheiro de pessoas pobres e ignorantes. Falamos principalmente do clero cristão, sejam protestantes (os quais incluem os neo pentecostais), sejam católicos. Ainda assim, a luta é necessária e, para vencê-la, todos devemos nos envolver.
Atenciosamente,
Mário César Mancinelli de Araújo e Jeronimo Freitas, Presidente e vice-presidente da Organização Livres Pensadores.
Revista Livre Pensamento - Número 3
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Editorial - Carta ao Leitor, O Leitor Escreve e Dicas do Leitor
O Leitor Escreve
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Dicas do Leitor
Se você conhece um site, blog, tumblr, ou outro e quer enviar sua dica aos leitores da Revista Livre Pensamento, escreva para revista@livrespensadores.org com o título “dica do leitor”. Não se esqueça de colocar seu nome e de onde você é (cidade e estado, além do país caso você viva no exterior).
Revista Livre Pensamento - Número 3
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Matérias - Autor: José Geraldo Gouvêa
Ceticismo Enxovalhado pelo Preconceito
O uso do termo “cético” tem sido muito banalizado. Não me admira que alguns reajam com horror diante das opiniões expressas por outros que se definem por esse termo. Sou uma de tais pessoas, desde que detectei que o “movimento ateu” estava inflado por um número expressivo de participantes que deveriam ser descritos em termos depreciativos, pois desonram as categorias em que pretendiam inscrever-se.
Por fim, o próprio “movimento ateu” se prejudica por pessoas que desonram o ateísmo, quando reduzem-no à mera “crença na inexistência” de um conceito que sequer pôde ser definido de maneira coerente pelos seus proponentes, e desonram o agnosticismo quando o empregam como se fosse a concessão do benefício da dúvida quanto à existência de uma divindade curiosamente parecida com o Velho Barbudo do Céu.
Pode parecer exagerado dizer tal coisa, mas há pessoas assim. Pessoas que dão um mau nome ao ceticismo porque o definem de forma ideológica, ou porque aderem de forma irrefletida a ideologias, crenças, tradições ou opiniões. Um cético não deveria ser uma pessoa desapegada de tais vícios, aberta ao novo, disposta a experimentar para descobrir? Que tipo de cético é esse que só aceita discutir certos temas se for dentro de seus termos? Que tipo senão um pseudo-cético?
Esta crise de identidade é resultante do crescimento: todo movimento sofre um processo tal quando começa a ganhar corpo. Existe uma diferença significativa entre crescer, inflar e inchar.3
Também a filosofia sofre tais agressões. Indivíduos fortemente opinativos, mas desembasados, empregam falácias e rejeitam correções. Montam sistemas ideológicos que afirmam ser sólidos, mas cuja solidez se mantém através da censura ao contraditório. Olavo de Carvalho é mais filósofo do que certos próceres da filosofia cética que estão “embengados”1 no “movimento ateu”.2 1 “Embengar”, no falar mineiro do interior, é o ato de fazer um bezerro estranho mamar em uma vaca que perdeu sua cria — o que geralmente se faz usando o couro do bezerro morto sobre as costas de um outro qualquer. A vaca iludida continua dando seu leite ao rebento que não lhe pertence, o que certamente é ótimo para o pecuarista. O “movimento ateu” possui embengados vários tipos de indivíduos que não lhe pertencem, ou não deveriam pertencer, mas que ocupam tais espaços pela falta de quadros. Mas esta amamentação, embora confortante para a vaca iludida, que segue ignorando que não tem uma cria, acaba sendo-lhe adversa, evolutivamente, porque se prolonga lactando, quando poderia preparar-se para gestar outra cria sua. O espaço ocupado pelos “embengados” no “movimento ateu” poderia ser melhor ocupado por pessoas realmente comprometidas com as ideias legítimas de um movimento contestatório a “isto que está aí”. 2 A locução “movimento ateu” vem entre aspas não por ironia, mas para indicar informalidade. Não há um “movimento ateu”, ou coisa que o valha, mas entidades, formais ou não, que representam ou dizem representar segmentos da sociedade integrados por ateus. Como estas entidades compreendem a parte visível do ateísmo, opto por abordá-las, informalmente, como um todo, sem, no entanto, sugerir que estejam deliberadamente relacionadas, assim como se costuma dizer “movimento roqueiro” para designar intérpretes, compositores, produtores, selos, eventos, críticos e fãs do referido gênero musical.
É evidente que o “movimento ateu” tem crescido muito. Há uma pluralidade cada vez maior de lideranças, entidades, associações, encontros, iniciativas etc. Multiplicam-se os blog’s céticos na internet, as revistas céticas, os eventos céticos. Agnósticos e ateus, que sobreviveram à Operação Cavalo de Troia tentada pelos teístas travestidos como se fossem os primeiros, parecem estar cooperando cada vez mais. Por fora, bela 3 ������������������������������������������������������ Muitas coisas que se tornaram maiores nos últimos tempos: a população do mundo, os seios das mulheres famosas, a quantidade de páginas dos best-sellers, o ano letivo, a quantidade de membros de certos partidos. Mas nem todas as coisas que aumentaram de tamanho cresceram de fato. Há uma diferença entre crescer, inflar e inchar. Uma diferença que nem sempre se vê por fora, mas que tem uma importância enorme para se prever o futuro próximo (ou distante) daquilo de que falamos. Crescer envolve aumento de substância. O seio da mulher cresce quando ela amamenta porque ele passa a ter conteúdo, um livro cresce à medida em que lhe acrescentamos páginas que vale a pena ler, um partido cresce quando ganha afiliados capazes de dar-lhe força. Mas olhando por fora é comum achar que algo que está maior terá crescido. Sem saber o que há por dentro, o aumento de tamanho pode nos iludir que há algum significado. Uma coisa infla quando apenas sua forma aumenta, mas por dentro existe um grande vazio de conteúdo. Assim aumentam os peitos das modelos, cheios de próteses de silicone. Assim aumenta a população do mundo, com pessoas que não o tornam um lugar melhor. Assim se tornam maiores os livros, cheios de páginas que nada dizem. Assim aumentam o ano letivo, sem que seja melhor usado o dia letivo. E uma coisa incha quando se corrompe, quando se enche de putrefação, de inflamação, de perversão da natureza original do que anteriormente era. Um corpo incha com tumores, um partido incha com adesistas, um livro incha quando os acréscimos, em vez de meramente nada dizer, dizem coisas que destroem o valor do resto. Devemos estar atentos para que o fruto de nosso trabalho cresça, em vez de meramente inflar ou inchar. Algo que cresce pode ser dividido, mas algo que inflou estoura e se perde quando tentamos cortar e algo que inchou, quando tocado, pode expelir um fedorento carnegão que contamina a tudo em volta.
Revista Livre Pensamento - Número 3
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Matérias - Autor: José Geraldo Gouvêa viola. Ocorre, porém, que nem todo esse volume de conteúdo contribui para o crescimento. Há coisas neste todo que desvirtuam o resto. Natural que isso ocorra, visto que não parece haver quantidade suficiente de pessoas capazes de produzir conteúdo de qualidade para alimentar isto tudo. E nem sempre o conteúdo de qualidade tem audiência. Um dos vídeos virais mais vistos da história da internet foi o 2Girls1Cup. O leitor deve estar se perguntando o que isto tem a ver com a foto desse caminhão aí abaixo. Aparentemente nada, confesso. Mas quando eu tiver estabelecido a conexão, você terá uma experiência limitada do conceito do Shit Brix.
um motorista absolutamente boçal e antissocial estaciona o seu carro em local obviamente proibido, às vezes atrapalhando o trânsito, ele deixa o pisca-alerta ligado. Talvez como confissão de que ele sabe que ali não deveria estacionar. Ele está perto e, quando o guarda vem para multar, se é que vem, ele aparece com a desculpa de que tinha só dado um pulinho “ali” e não demorava. O argumentador “irônico” comete as maiores grosserias e quando as pessoas se ofendem, caso não consiga ironizar também os protestos, usa a explicação coringa de que só estava sendo “sarcástico” e este é seu “estilo” de “provocar”. Então pede desculpas como se mudasse tudo. A ironia, nas mãos de alguém sem senso de humor, se torna apenas grosseria. Item que absolutamente não está em falta no mundo de hoje.4
Certas coisas me espantam. Mas eu já disse no começo que poucas coisas me espantam mais que um cético preconceituoso. São coisas que absolutamente não se casam. Como pode alguém que se diz “cético” aderir a preconceitos, especialmente, note bem, especialmente, a preconceitos que têm origem na religião?
Os “irônicos” tem um papel a desempenhar. Tal como os palhaços do circo servem para atrair a atenção das crianças, que não estariam interessadas em moças de biquíni voando em trapézios, os “irônicos” têm a função de fornecer a ração diária de auto-estima de que precisam os imaturos. Para as lideranças, O “cético” espragmáticas, isso perneará dizennão é nenhum do que não é desserviço. Tal um preconceito, como o circo premas uma opinião cisa de seu parefletida, que, lhaço, os moviapenas casualmentos precisam mente, confere de sua tropa de com oito séculos choque ideológide discriminação ca para engrossar e bullying contra fileiras. Por isso, certa minoria. O os movimentos “cético” ignoranImagem: Álbum de Justin McWilliams mais sofisticados te não conhece as raízes dos próprios preconceitos — e é por isso que acabam em algum momento aceitando a colaboração do tacape de um bárbaro em sua Caverna do Dragão. não consegue entendê-los como tal. Na cabeça confusa do “padawan” que se vê mestre, não há problema em fazer generalizações de culturas ou comportamentos inteiros, rejeitar pessoas que usam a mão “errada”, gostam do sexo “errado” ou se vestem de modo “errado”. Desde que tais generalizações sejam feitas com “ironia”. Na internet, “ironia” é o pisca-alerta da barbeiragem argumentativa. Quando
Tudo isto, que acima disse, serve de ambientação para 4 Trata-se do estilo consagrado pelos brucutus da imprensa semifascista, o estilo Diogo Mainardi e Reinaldo Azevedo, para quem “liberdade de expressão” é o direito de atacar insistentemente a honra de pessoas públicas com acusações dúbias ou difamações, até ser processado e posar de Líbero Badaró para uma plateia que nem sabe quem foi esse cara (uma dica: alguém que merece ser mais lembrado).
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Matérias - Autor: José Geraldo Gouvêa um comentário importante que entendo ser necessário nesta fase do “movimento ateu” brasileiro. Um comentário pertinente sobre a necessidade de começarmos a policiar o que escrevemos. Não me refiro a uma autocensura ideológica, mas a uma elementar revisão no quesito qualidade. Um dos problemas relacionados à publicação independente (potencializada através da internet) é justamente a falta de uma revisão prévia para detectar erros ortográficos e absurdos argumentativos. Infelizmente, parece haver pouco trabalho editorial no “movimento ateu.”
curiosamente também jurista. Acho importante esclarecer isso para que meus comentários não sejam interpretados como uma reação dos que apoiam a censura ao dicionário.
Com o habitual desfile de provocações agressivas, rajadas verbais que beiram a chulice ou chafurdam nela e um festival de argumentos primários, o autor se propõe a questionar a ação movida pelo MPF usando o ridículo como principal arma. O artigo começa com uma grosseria ignominiosa, mas não inominável: “Se tem duas coisas que realmente infinitas é a ignorância Se houvesse em quantidade suficiente, não teria sido boçal das pessoas e a estúpida ideia que querer apapublicado, no www.ceticismo.net, um texto de autoria recer.” Nesta oração tão curta, provavelmente há mais de seu colunista “André” no qual, à parte um lingua- problemas, gramaticais e lógicos, do que seria aceitájar agressivo totalmente descabido, os leitores foram vel em alguém que se diz “cético”. Além da lamentável brindados com uma dose explícita de preconceito ra- falha de concordância entre o sujeito e o verbo (“duas cial. Mas, como assim? Cético com preconceito racial? coisas … é”) existe uma falácia ainda mais elementar: Pode isso, Arnaldo? A regra não é clara? acusar a priori as pessoas envolvidas no processo de serem ignorantes boçais e estúpidos que só querem O tal “André” parece ser um colunista regular do www. aparecer. Seria interessante os procuradores do MPF ceticismo.net. Lá, pude encontrar vários outros artigos lerem isso e tomarem nota. Será útil quando, futuraseus, sempre com títulos “irônicos” como Pesquisado- mente, o “movimento ateu” precisar recorrer a esses res ainda enchem o saco (sic) com túmulo que dizem ignorantes bestiais e estúpidos que só querem apareprovar que Jesus Ressuscitou ou, ainda mais cômico, cer.5 Salém revisitado: Hóstia da lata (sic) faz senhoras surtarem e atacarem padre. Não precisei ler as duas As palavras procuram intimidar: uma pessoa pouco peças para julgar o seu autor: a primeira carrega no confiante não teria coragem de discordar e enfrentar o título a marca da vulgaridade e a segunda trata como dilema de, possivelmente, também ser boçal ignorante verdadeiro um episódio que logo se descobriu ser um ou um estúpido que só quer aparecer. Uma análise lóboato. E, assim, o “André” cometeu erro semelhante gica do texto já poderia parar nessa frase. Porque não ao caso da “enfermeira crente fanática” que tentou há muito que se possa esperar de quem começa um matar um tal Guilherme Kempoviki, cuja história, uma comentário com um ad hominem desse tamanho. mentira deslavada inventada por um mitômano (que certamente deve ter suas razões psicológicas, psiquiá- Em seguida, o autor, ainda lutando contra os verbos e tricas ou psicodélicas), ganhou quase ares de cruzada perdendo, detecta no episódio “um acicate a qualquer no blog Bule Voador, órgão oficial da “Liga Humanista meio, veículo e/ou instrumento de educação, ensino e Secular” brasileira (LiHS) antes de ser dinamitado por aprendizagem.” É verdade que o precedente jurídico, uma reação blogueira (essa sim cética), da qual humil- se aberto, apontará para uma redução da liberdade de expressão, inclusive com autocensura prévia, mesmo demente eu fiz parte. em relação a temas incontroversos, como o relato de Pois tal autor, com as credenciais acima estabelecidas, fatos históricos acontecidos. É verdade, mas o caso meteu-se a comentar o recente caso do processo mo- ainda sequer foi julgado, não há nenhum livro ainda vido pelo Ministério Público Federal, na cidade mineira sendo queimado na praça. A reação de “André” podede Uberlândia, por iniciativa de um cidadão de etnia ria ser chamada de “histérica” se fosse uma “Andreia”. cigana, que se sentiu ofendido por duas das oito acepções do vocábulo “cigano” no Dicionário Houaiss, pu- Acho curioso que o autor diga não ter partido, quando parte para afirmar, no parágrafo a seguir, que “o caso blicado pela Editora Objetiva. tem início num governo tosco, autocrático e inimigo de Acho importante ressaltar que considero a ação um qualquer manifestação que vise a educação e cultura.” absurdo, uma tentativa de cerceamento do conheci- Certamente a crase não foi feita para humilhar ninmento, algo quase equivalente à queima dos arquivos A ironia também pode ser usada contra o “irônico”, não é sobre a escravidão, levada a efeito por Rui Barbosa, 5 preciso ter medo.
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Matérias - Autor: José Geraldo Gouvêa guém, mas eu não entendo como alguém que não tem partido encontra razões para criticar o governo com tanta virulência. Isso me soa como alguém que “não torce para futebol” mas tem um ódio exacerbado do Flamengo. Tal posicionamento só não parece tão absurdo quanto é porque o “movimento ateu”, integrado por pessoas que supostamente não seguem nenhuma religião, tem uma necessidade recorrente de atacar com todas as armas possíveis o cristianismo, mas estes valentes pouco ou nada falam contra o islamismo ou contra as religiões afro.6 Claro que este governo merece críticas, e críticas acerbas, mas me causa surpresa que o autor “sem partido” termine o parágrafo dizendo que é uma sorte ainda termos políticos que pensam, e mencione Álvaro Dias, líder da oposição a esse governo “tosco, autoritário e inimigo”.
básicas sobre o sistema político nacional, mas devidamente carregado de preconceitos. Desinformado e preconceituoso: eis este “cético”.
Aos que possam me achar injusto ou “caga-regra” por apontar, “pedantemente”, os erros de português cometidos pelo “André”, gostaria de lembrar que isso é justíssimo, visto que o autor mesmo se coloca numa posição superior aos que escrevem “de qualquer jeito”, a ponto de criticar violentamente os que pregam a tolerância contra os erros. Como eu acredito que os erros têm de ser analisados em seu contexto, em vez de apressadamente condenados e ridicularizados, prova velmente o “André” me acha um idiota. Acho curioso que alguém que enche a boca para falar cobras e lagartos do Criacionismo por ser “pseudo científico” tenha a cara limpa para desconsiderar toda a Linguística ao Mais grave, porém, do que mentir sobre sua inclinação aderir ao discurso obscurantista dos que criticaram o política (embora ele talvez não seja mesmo filiado a livro em questão.7 Mas já que o autor optou por seguir nenhum partido e talvez até anule o voto) é ignorar o Professor Pasquale em vez de pessoas que entendem que o Ministério Público não está de nenhuma forma de povo e de língua,8 por experiência e por diploma, subordinado ao governo Poder Executivo, ou a qual- não deverá se opor ao modo como abordarei os erros quer outro dos poderes, diga-se de passagem. “André” que comete. Com a medida que medirdes sereis mesugere que existe uma relação entre o ato de um Pro- dido. curador do Ministério Público e o atual governo federal, o que é mais ou menos que culpar o judiciário por Este “cético” e “apartidário” autor manifesta todo o uma arbitrariedade cometida por um prefeito. Ignora seu humanismo no quinto parágrafo, que eu só não como funciona a hierarquia entre os poderes da Repú- qualifico devidamente por não querer incorrer tão blica e chega a uma conclusão equivocada, municiado cedo na Lei de Godwin. A pérola é tão perfeita e digna por seus conhecimentos inexistentes ou incorretos. de nota que só posso mesmo citá-la: Este é o nível do colunista “irônico”. O problema está no verbete cigano (você sabe… aquele pessoal cuja cultura passou por gerações No mesmo parágrafo, o autor relembra o episódio ree influenciou impérios e sociedades com seus cente de um livro didático que tolerava o padrão colojumentos mais coloridos e enfeitados que quial. Ao fazê-lo, revela-se não apenas uma vez mais jumentos de ciganos). desinformado, pois o livro não preconizava que se deve escrever “de qualquer jeito”, mas também incoeQuando li esta afirmação eu simpatizei imediatamenrente: “não posso esquecer do caso em que um idiota te com o desconhecido cigano que recorreu ao MPF achou que deveríamos escrever de qualquer jeito pois em Uberlândia. O autor, acostumado a usar a ironia era preconceito linguístico.” A baixa qualidade da re“cortante” para decepar ideias de que discorda, aqui dação do autor, super evidenciada até mesmo nesta resolveu usá-la para atacar todo um povo, negandofrase truncada, mais do que nos erros de concordânlhe o direito à dignidade por causa das características cia verbal, é o motivo pelo qual iniciei este texto ob7 ����������������������������������������������������� A Linguística é uma ciência humana estabelecida soliservando que parece não haver uma oferta suficiente damente há mais de dois séculos. Começou com os estudos dos de conteúdo de qualidade para alimentar os blog’s e filólogos alemães sobre as línguas da Índia, estabelecendo uma sites do “movimento ateu” brasileiro. Este colunista é relação entre elas, o latim e o grego, passou por nomes como Ferum exemplo: incapaz de redigir em um português co- dinand Saussurre, Edward Sapir, Noam Chomsky e outros. O Professor Pasquale Cipro Neto pertence a uma longa erente, cheio de erros de sintaxe, ignorante de coisas 8 6 No primeiro caso, talvez porque os cristãos que tanto odeiam assimilam melhor as críticas do que os muçulmanos e no segundo, porque não querem enfrentar a acusação de racismo por criticarem uma religião “oprimida”, embora ainda seja apenas uma religião, digna de tratamento igual ao de todas as outras.
linhagem de gramáticos normativos “carranças”, que pretendem ensinar o povo a falar “certo”. Tal como ele, existiram outros no passado, como Napoleão Mendes de Almeida, e uma rápida coletânea de frases extraídas da obra de tais indivíduos recomenda que os ignoremos. Para mais informações, leiam Preconceito Linguístico: O Que É e Como se Faz, de Marcos Bagno.
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Matérias - Autor: José Geraldo Gouvêa peculiares de sua cultura. Se você pertence a um povo que enfeita jumentos então você não é digno de respeito. Não sei o que o autor diria se visse como se pinta caminhão no subcontinente indiano. E aqui você deve ter entendido porque, raios, eu coloquei aquela figura no começo do artigo. Os ciganos emigraram da Índia para a Europa no século XVI, aproveitando as facilidades trazidas pelo domínio turco de todo o Oriente Médio. Acredita-se que pertenciam a castas baixas da sociedade hindu (a pele escura e o fato de serem artífices indicam isso). Tendo emigrado da Índia, é natural que ainda tenham resquícios da cultura de lá. Na língua romani, no modo de vestir-se, no gosto para enfeitar suas tendas e carros. Imagino que os ciganos devem sentir algo de familiar na foto daquele caminhão. Mas para o “André”, o fato de os ciganos gostarem de enfeitar seus jumentos é algo que lhes denigre, que lhes diminui. Posso imaginar perfeitamente como deve se sentir alguém de etnia cigana que leia esse parágrafo, embora não possa sentir a mesma coisa exatamente, pois não sou cigano e não tenho a ousadia besta de dizer que dói tanto em mim quanto neles. Posso imaginar porque já passei por algo análogo, quando me ridicularizaram por estar calçando botinas, tal e qual um mineiro de estereótipo. Sim, existem mineiros que calçam botinas, tal como há paulistas, baianos, gaúchos e até fluminenses. Basta que se saia dos grandes centros para ir ao interior, em lugares onde você não pisaria com um sapato esporte fino. Se alguém imaginou que o fato de eu estar calçado de botinas naquele dia era algo que me diminuía enquanto pessoa, o André imagina que o fato de ciganos enfeitarem seus jumentos é algo que os torna menos dignos.
se tira “negro” e coloca no lugar “cigano”, “boliviano”, “nordestino”, etc. Racismo é o preconceito dos outros, o meu preconceito é justificado plenamente e com base em argumentos sólidos, que remontam a Kierkgaard, Hildegard, Heidegger, Heineken, Nietzsche e Niemand. E, se não leu esses caras, como você ousa duvidar do que estou dizendo? Eu acuso o “André” de racismo contra o povo cigano ao deixar subentendido que os povos devam ser julgados pela relevância de seu papel na História do mundo como um todo e que os ciganos, por não terem deixado realizações tão visíveis quanto outros povos, seriam menos dignos de respeito enquanto cultura e — pior — enquanto indivíduos. Será que somente os indivíduos pertencentes a povos que deixaram grandes marcas na história humana são dignos de respeito? Eu acuso o “André” de racismo contra o povo cigano por afirmar textualmente “Sério que ciganos têm nação, Cléber? Eles têm patrimônio cultural ONDE, Cléber?” Entre as muitas formas de ignorância manifestadas por “André”, encontra-se a ignorância do sentido dos termos “nação” e “patrimônio cultural”. Mas, pior do que isso, a desqualificação brandida por “André” contra os ciganos evoca, perigosamente, outras que foram feitas no passado, contra ameríndios, africanos, judeus, irlandeses e muitos outros. Eu acuso o “André” de racismo contra o povo cigano por negar que eles tenham o direito de ser considerados como um povo com o mesmo argumento através do qual os antissemitas negavam a identidade dos judeus antes da criação do Estado de Israel.9
Eu acuso o “André” de racismo contra todos os povos nômades de todas as épocas, que não deixaram em lugar algum um patrimônio cultural que possa ser visiParece-me evidente que o “André” que escreveu este tado turisticamente. Acuso-o de racismo contra todos texto não é cético o bastante para investigar a origem os povos não dotados de escrita, a quem até bem rede suas opiniões preconcebidas contra o povo cigano. centemente a própria historiografia negava a humaniEle não sabe por que os ciganos enfeitam os seus ju- dade. Acuso-o de condicionar a dignidade da pessoa mentos, ou finge que não sabe para poder fornecer humana à relevância de realizações passadas, que nem sua braçada de capim para consumo de leitores que foram produzidas pelos atuais membros dos povos e apreciam esse gênero de colunismo “irônico”. nem foram, em muitos casos, produzidas para servir ao povo, mas aos caprichos de tiranos obcecados com Eu acuso o “André” de racismo contra o povo cigano a glória póstuma. ao ridicularizar sua identidade e rebaixar sua cidadania 9 Não estou emitindo qualquer juízo de valor sobre a através da zombaria de suas características culturais. validade ou a justiça da criação do Estado de Israel, embora eu Se ele dissesse “sabe os negros… aquele pessoal cuja deva esclarecer que acredito que ela foi justa e necessária, além cultura passou por gerações e influenciou impérios e de ter sido feita de acordo com as normas do direito internacional sociedades com sua música sensual e seu rebolado” e cumpridos todos os rituais, de forma análoga ao acontecido em ninguém teria dúvidas do caráter racista da afirmação. outros casos de guerras. Porém, para os fins deste artigo, tudo que Mas para muita gente deixa de ser racismo quando importa é que houve uma mudança no status dos judeus após a criação de Israel, e esse é o argumento que está sendo alinhavado.
Revista Livre Pensamento - Número 3
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Matérias - Autor: José Geraldo Gouvêa Mas para impedir que as minhas acusações sejam vistas como interpretação incoerente de coisas ditas apenas nas entrelinhas, segue uma transcrição ipsis litteris, de um trecho que quase se poderia ter extraído do Mein Kampf. Ciganos: Não possuem escrita própria, não possuem livros, panfletos, poemas, nem nada. Sua música é pobre, sua cultura baseia-se em… em quê? O Tarot [sic] não foi inventado por eles. Quiromancia já era praticada na China, Egito e Babilônia. Onde está sua cultura? Onde estão as características desse povo? Andar vagueando por aí? Nem isso fazem mais. Ficar pedindo dinheiro na rua ou fazendo “adivinhações”? Judeus possuem escrita própria, reinventaram mitos, criando uma teologia toda particular, trabalhando o Mythos e o Logos (recomendo a leitura de “Bíblia, uma biografia”, da Karen Armstrong). Qual é a cultura cigana? Andar com vestidos velhos, descalços e lendo mãos nas ruas? Literatura? Pintura? Não? Ora bolas! A visão preconceituosa de “André” considera que somente são dignos de respeito os povos que realizaram um mesmo processo histórico, o do estado-nação ocidental e/ou que através dele, ou de estrutura análoga, construíram uma identidade constante, manifesta em obras arquitetônicas e literárias ou através de tradições estáveis. Esta é uma visão racista, totalmente superada em ciências sociais.10 Esta é uma visão que ignora que certos povos nunca tiveram a oportunidade de consolidar-se em estados — caso, inclusive, dos ciganos, que foram escravizados na Europa praticamente desde que lá chegaram, principalmente no Leste Europeu. Ignora que os povos, por serem conjuntos de indivíduos, podem, tal como estes, fazer opções diferentes, condicionadas não apenas pelas opiniões predominantes no grupo, mas também pelo meio (não há pirâmides na Mesopotâmia porque lá não havia pedras, a navegação não foi inventada pelos mongóis porque estes não tinham acesso ao mar) e pela pressão da interação com outros, mais “adiantados” na formação do estado. Considerar como inferiores os povos que não chegaram a consolidar civilizações ou estados é uma aborda10 Existe, porém, uma corrente de “céticos” que considera que todas as ciências sociais são um embuste esquerdista, uma conspiração para converter o mundo ao “comunismo”. Esse tipo de “ceticismo” vê na simples análise de certos fenômenos sociais um indício de pecado original “comunista” e se fecham aos fatos e às análises.
gem “darwinista”11 das culturas humanas, que procura medi-las com base em suas realizações materiais, tal como o capitalismo mede seu valor enquanto indivíduo pelo saldo bancário. Mas o que mais me espanta é que tal lixo racista — carregado de falácias, de ironia grosseira e de valores arraigados de retórica fascistoide — seja publicado em um site que se intitula “Ceticismo”, por alguém que há um bom tempo parece ter conquistado um palanque lá. Ou redefiniram “ceticismo” enquanto eu estava dormindo, ou há algo muito mais errado do que supunha no “movimento ateu”. Por que o www.ceticismo.net dá guarida a um discurso racista? Que tipo de associação existe entre “céticos” e racistas? Enquanto não há nenhuma manifestação da parte do www.ceticismo.net a respeito deste caso, vou imaginar que aqueles céticos que ali se congregam pertencem a uma outra categoria, diferente da minha, uma categoria que não vê problemas em reivindicar o ceticismo mesmo sem abandonar as prisões mentais em que seus cérebros e egos foram nutridos. 11 ���������������������������������������������������� Estou intencionalmente empregando o termo “darwinista” no sentido pejorativo que ele adquiriu na boca dos criacionistas, justamente para estabelecer uma analogia entre o discurso rígido destes céticos de direita que rejeitam as ciências sociais e a retórica inflamada (e curiosamente também “irônica”) dos criacionistas que pretendem desqualificar ciências das quais nada sabem, ou fingem nada saber.
Sobre o Autor: José Geraldo Gouvêa é é licenciado em História pelas Faculdades Integradas de Cataguases (MG) e pósgraduado (MBA) em Desenvolvimento Regional Sustentável pela Universidade Federal de Lavras (MG)/Inepad. Também é ficcionista e poeta amador, tendo publicado pela Editora Multifoco (RJ) o romance Praia do Sossego (2011). Mantém um blogue literário (letraseletricas.blogspot.com) e um sobre assuntos céticos e políticos (arapucas-libertárias.blogspot.com). Nascido e educado debaixo de uma ditadura, sabe muito bem o valor que tem a liberdade democrática e suas grandes inspirações foram Fernando Pessoa, Eça de Queirós e Guimarães Rosa. Blog: http://arapucas-libertarias.blogspot.com.br/
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Matérias - Autor: Daniel Bohn Donada
George Simon Boole
Matemático britânico, George Simon Boole nasceu em Lincoln em 2 de Novembro de 1815. Era filho de um sapateiro, não tendo assim condições financeiras para obter um grau elevado em termos de educação. Mas a sua determinação o levaria a ultrapassar esse obstáculo. Enquanto criança, estudou na Escola Primária Lincoln e depois em uma Escola Comercial. George Boole de início interessou-se por línguas, tendo aulas particulares de Latim com um livreiro local. Aos doze anos de idade, já conseguia traduzir um poema lírico em Latim, do poeta Horácio, demonstrando assim enormes capacidades. Aos 16 anos, já era professor assistente e quatro anos mais tarde, acabaria por fundar a sua própria escola, isto em 1835. Já há algum tempo, Boole estudava matemática sozinho, embora seu pai o tivesse estimulado quando era novo ao dar-lhe um ensaio de construção de instrumentos ópticos. Os trabalhos de Laplace e Lagrange foram alvos dos estudos de Boole, que recebeu encorajamento de Duncan Gregory, editor de um jornal matemático, para estudar em Cambridge. Contudo, não abandonaria seus pais, que necessitavam dos seus cuidados. Em 1844, lançou um trabalho sobre a aplicação de métodos al-
gébricos para a solução de equações diferenciais, recebendo uma medalha de ouro da Royal Society. A análise matemática da lógica foi outro dos seus trabalhos, publicado em 1847, que divulgou as ideias que tinha da lógica simbólica; assim, a lógica apresentada por Aristóteles pode ser representada por equações algébricas. Boole disse inclusive: “Nós não necessitamos mais de associar Lógica e Metafísica, mas sim Lógica e Matemática”. Boole tornou-se rapidamente conhecido, e o seu trabalho e ideias reconhecidos por todos os matemáticos britânicos, e não só. 1840 foi o ano em que foi eleito para ocupar o lugar de professor principal de matemática na Irlanda, no Queen´s College, em Cork. E seria ali que Boole iria permanecer para o resto da vida. Uma investigação sobre as leis do pensamento seria, em 1854, a sua nova publicação, onde estão cimentadas as teorias da lógica e das probabilidades. Ele conseguiu aquilo que é conhecido como Álgebra de Boole, ou Álgebra Booleana, pois abordou a lógica de forma a reduzí-la a uma álgebra simples, inserindo a lógica na matemática.
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Matérias - Autor: Daniel Bohn Donada Boole casou em 1855 com Mary Everest. Em 1857, foi eleito membro da Royal Society e recebeu honras e reconhecimento das universidades de Dublin e Oxford. Um trabalho sobre Equações Diferenciais, em 1859, e, em 1860, sobre cálculo de diferenças finitas, e outro sobre Métodos Gerais nas Probabilidades, foram alvo da investigação de Boole. Publicou muitos trabalhos, e foi o primeiro a investigar a propriedade básica dos números, tal como a propriedade distributiva.
divulgadas em 1938 no trabalho “Uma Análise Simbólica de Relés e Circuitos de Comutação”.
Definição da Álgebra de Boole:
A álgebra de Boole é um sistema matemático composto por operadores, regras, postulados e teoremas. Usa Do seu casamento, com Mary Everest, teve cinco filhas. funções e variáveis, como na álgebra convencional, Boole viria a falecer em 1864, com apenas 49 anos de que podem assumir apenas um dentre dois valores, idade, vitima de pneumonia. Hoje em dia, a Álgebra zero (0) ou um (1). de Boole é aplicada na construção dos computadores, sendo uma das razões fundamentais da revolução que A álgebra booleana trabalha com dois operadores, o os computadores estão a ter no mundo de hoje, aplica- operador AND, simbolizado por (.) e o operador OR, se igualmente à pesquisa de inteligência artificial e na simbolizado por (+). O operador AND é conhecido ligação dos telefones, entre muitas outras aplicações. como produto lógico e o operador OR é conhecido como soma lógica. Os mesmos correspondem, respecBoole foi, e continua sendo, considerado pelos coletivamente, às operações de interseção e união da teogas de profissão, e por todos aqueles que se dedicam ria dos conjuntos. à matemática, um homem genial. A lei especial da Lógica de Boole diz que x em relação à y = x. Para isso ser verdade, x = 1 ou x = 0. Sendo assim, a Lógica de Boole tem de utilizar um sistema binário. Operadores da Álgebra Booleana Em praticamente todas as linguagens de programação existe, em homenagem a Boole, um tipo de dado chamado boolean, booleano em uma tradução livre para o português, que trabalha com dados lógicos, de valor verdadeiro ou falso (true ou false), equivalentes ao 1 e ao 0, respectivamente.
As variáveis booleanas serão representadas por letras maiúsculas, A, B, C,... e as funções pela notação f (A,B,C,D,...)
Hoje, George Boole é considerado o pai da eletrônica digital.
Álgebra de Boole A Álgebra de Boole é aplicável ao projeto dos circuitos lógicos e funciona baseada em princípios da lógica formal, uma área de estudo da filosofia. Um dos pioneiros no estudo da lógica formal foi Aristóteles (384-322 a.C.), que publicou um tratado sobre o tema, denominado “De Interpretatione”. Boole percebeu que poderia estabelecer um conjunto de símbolos matemáticos para substituir certas afirmativas da lógica formal. Publicou suas conclusões em 1854, no trabalho “Uma Análise Matemática da Lógica”. Claude B. Shannon mostrou (em sua tese de mestrado no MIT) que o trabalho de Boole poderia ser utilizado para descrever a operação de sistemas de comutação telefônica. As observações de Shannon foram
Operadores Booleanos Fundamentais Operador AND (Interseção) Definição: A operação lógica AND entre duas ou mais variáveis apresenta resultado 1 se, e somente se, todas as variáveis estiverem no estado lógico 1.
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Matérias - Autor: Daniel Bohn Donada
Operadores Booleanos Secundários Símbolo Lógico:
Operador NAND (Interseção Inversa) Definição: A operação lógica NAND entre duas ou mais variáveis apresenta resultado 0 se, e somente se, todas as variáveis estiverem no estado lógico 1. O resultado de uma operação lógica NAND também é alcançado aplicando-se a operação lógica NOT ao resultado de uma operação lógica AND.
Tabela Verdade:
Operador OR (União)
Símbolo Lógico:
Definição: A operação lógica OR entre duas ou mais variáveis apresenta resultado 1 se pelo menos uma das variáveis estiver no estado lógico 1 Tabela Verdade: Símbolo Lógico:
Operador NOR (União Inversa) Tabela Verdade:
Operador NOT (Inversor ou Negação) Definição: A operação de complementação de uma variável é implementada através da troca do valor lógico da referida variável. É o equivalente, na matemática, à multiplicação de um número por um negativo (-1).
Definição: A operação lógica NOR entre duas ou mais variáveis apresenta resultado 1 se, e somente se, todas as variáveis estiverem no estado lógico 0. O resultado de uma operação lógica NOR também é alcançado aplicando-se a operação lógica NOT ao resultado de uma operação lógica OR.
Símbolo Lógico:
Tabela Verdade: Símbolo Lógico: Operador XOR (OR Exclusivo) Tabela Verdade:
Definição: A operação lógica XOR entre duas variáveis A e B apresenta resultado 1 se uma, e somente uma, das duas variáveis estiver no estado lógico 1. Ou seja, se as duas variáveis estiverem em estados lógicos diferentes.
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Matérias - Autor: Daniel Bohn Donada
Símbolo Lógico:
Tabela Verdade:
Teoremas da Álgebra de Boole Operador XNOR (OR Exclusivo Inverso) Definição: A operação lógica XNOR entre duas variáveis A e B apresenta resultado 1 se, e somente se, as duas variáveis estiverem no mesmo estado lógico. O resultado de uma operação lógica XNOR também é alcançado aplicando-se a operação lógica NOT ao resultado de uma operação lógica XOR.
Símbolo Lógico:
Tabela Verdade:
Postulados da Álgebra de Boole
Sobre o Autor:
O significado dos postulados pode ser entendido facilmente se fizermos a associação com a teoria dos conjuntos.
Daniel Bohn Donada é desenvolvedor de sistemas, ateu, cético e defende a disseminação do conhecimento, o livre pensamento, a educação ética e secularista, o respeito mútuo entre as pessoas e a méritocracia. Gosta de ciências em geral, de se divertir e estar com a família e os amigos. Canal do Youtube: http://www.youtube.com/danielbdrpg
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Matérias - Autor: Mário César Mancinelli de Araújo
O maior mal da sociedade
Há diversos males em nossa sociedade, os quais são sempre (ou, ao menos, na grande maioria das vezes) resultado de escolhas pessoais. Como exemplos disto, eu poderia citar a religião, que gera preconceito, autoritarismo, sentimento anti-ciência (que pode prejudicar a muitos - vide o caso do estudo de células tronco, onde a religião quis se meter), etc. Poderia citar também as ideologias, sejam elas religiosas ou não, pelas quais as pessoas se dispõem a matar e morrer, que também geram preconceitos e assim por diante. Isto sem falar do egoísmo extremo e muitos outros. Mas há um deles que, por mais que possa ser gerado por qualquer um dos itens que citei acima, funciona de forma independente: o preconceito.
Sim, dogmas religiosos geram preconceito. Sim, dogmas ideológicos também o geram. O egoísmo, em si, também (“essa pessoa é pobre por não trabalhar”, por exemplo). Mas o preconceito também pode surgir mesmo sem isto tudo. Mesmo ateus têm preconceito. Mesmo livres pensadores, que formam suas opiniões a partir da ciência, da lógica e da razão (jamais se deixando influenciar por tradição, autoridade ou dogma), podem apresentar preconceitos.
para atrasar o avanço da sociedade. Isto sem falar que a sociedade também perde membros (mortos, hospitalizados, presos, etc.) que, em outras circunstâncias, poderiam estar auxiliando o avanço da mesma.
Isto tudo porque preconceitos têm base, sempre, no medo. Principalmente o medo do desconhecido, mas também de punições no pós-morte, de reações em cascata (falácia da ladeira escorregadia), etc. E o preconceito gera um mal a toda a sociedade: a minoria alvo do preconceito tem seus direitos diminuídos, gera discussões intermináveis entre esta minoria e a maioria opressora, muitas vezes com participação daqueles que defendem esta minoria. Isto sem falar em casos de Alguns preconceitos já foram razoavelmente (não toviolência física, onde pessoas são hospitalizadas, en- talmente) superados, como o racismo, ou a ideia de que mulheres não devam trabalhar. Isto é, apesar de quanto outras acabam presas. ainda existirem pessoas que carregam tais preconceiIsto prejudica a sociedade como um todo, não ape- tos, elas não são mais apoiadas por uma maioria da nas a esta maioria, pois tais discussões servem apenas sociedade. t
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Matérias - Autor: Mário César Mancinelli de Araújo
Ainda acontecem crimes de ódio direcionado a negros e a mulheres (por trabalharem fora), mas acontecem em número muito menor. O que acontece muito é a violência contra mulheres, desferidas por seus próprios maridos, devido ao sexo: este ponto, infelizmente, ainda estamos longe de superar. A liberdade sexual feminina ainda não é totalmente respeitada, apesar de a coisa ter melhorado muito da década de 30 para cá, quando a decisão sobre com quem elas casariam ainda era dos pais. A criação da Lei Maria da Penha ajudou muito nestes casos, mas ainda está longe de resolver. Pode parecer estranho eu colocar casos de violência doméstica como fruto do preconceito, contudo é isto mesmo. Eles são fruto do machismo, que faz com que homens vejam mulheres como inferiores e até mesmo como objeto de sua propriedade. Ainda podem haver casos de homens com a sexualidade mal resolvida: estes teriam preconceito contra si mesmos e bateriam em suas esposas por pura frustração.
Hoje, o que está mais em evidência são crimes contra homossexuais. Não são poucos os casos de agressões (como os ocorridos na Av. Paulista) ou mesmo de assassinato, motivados exclusivamente pela sexualidade da vítima. Casos de agressões contra ateus ou pessoas de religiões mais exóticas, em nosso país, ao menos não são tão noticiados, caso ocorram (e não duvido que ocorram).
O medo como causador Sempre que falamos sobre preconceito aparecem palavras terminadas em “fobia”. Xenofobia, homofobia, bifobia, lesbofobia, ateofobia, etc. Mas, afinal, o que seria uma “fobia”? Segundo a Wikipedia: Fobia (do Grego φόβος “medo”), em linguagem comum, é o temor ou aversão exagerada ante situações, objetos, animais ou lugares. Assim, a associação entre preconceito e medo é evidente e é exatamente assim que estas fobias que citei acima são definidas. Veja o exemplo da xenofobia, da Wikipedia: Xenofobia (do grego ξένος, translit. xénos: “estrangeiro”; e φόβος, translit. phóbos: “medo.”) é o medo irracional, aversão ou a profunda antipatia em relação aos estrangeiros, a desconfiança em relação a pessoas estranhas ao meio daquele que as julga ou que vêm de fora do seu país.
O próprio racismo, apesar de não ter o sufixo “fobia”, se encaixa perfeitamente nisto, pois é um medo ou aversão a pessoas negras. Isto inclui, até mesmo, aquele medo que muitas pessoas sentem ao estarem
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Matérias - Autor: Mário César Mancinelli de Araújo andando na rua à noite e ver um negro vindo pela mesma calçada: “droga, vou ser assaltado” (como se todo negro fosse assaltante, ou se apenas negros o fossem.) Não posso afirmar que todo preconceito seja, necessariamente, uma fobia, nem que não seja, até porque não encontrei fontes afirmando um ou outro. Tão pouco que toda fobia seja um preconceito: diversas fobias são, na verdade, transtornos de ansiedade com a características especiais, que só se manifestam em situações particulares. Exemplo seria a acrofobia, que é o
medo de altura. Ainda assim, diria que o medo pode, no mínimo, ser um grave complicador dos preconceitos, sendo responsável por medos de reações em cascata (as quais, quando usadas como argumento, recaem na falácia da ladeira escorregadia). Exemplo disto vemos naqueles que lutam contra a conquista de direitos pelos LGBT, que usam argumentos como “se o PLC 122 for aprovado, cairemos numa ditadura gay”, o que, obviamente, é falso.
Isto demonstra o tamanho do medo que as pessoas “Apenas pense sobre a tragédia de entêm, ao ponto de despencarem em uma ladeira escorsinar as crianças a não duvidar!” regadia, criando consequências absurdas para coisas - Clarence Darrow tão simples quanto a conquista de direitos por uma Assim, para resolver este problema teremos de trilhar minoria. por dois diferentes caminhos simultaneamente:
Como resolver este problema? Muitas vezes, o preconceito é gerado pelo medo do desconhecido (no caso da xenofobia, por exemplo), em outros é devido simplesmente à ignorância (desconhecimento) das pessoas, o que faz com que elas adiram a ideias dogmáticas, sejam elas religiosas ou ideológicas, etc. Ou seja, o conhecimento (ou a falta dele) tem um grande papel. “Quando se é alfabetizado cientificamente, o mundo parece diferente à sua vista, e essa compreensão lhe dá poder.” - Neil deGrasse Tyson Esta citação de Neil deGrasse Tyson diz muito aqui. O conhecimento científico inspira nas pessoas a curiosidade: ao invés de ter medo do desconhecido, a pessoa passa a procurá-lo exatamente para entendê-lo, conhecê-lo. Isto já elimina boa parte dos preconceitos. E, neste ponto, a educação de base tem um papel primordial, pois muitas vezes é na escola que temos nosso primeiro contato com este conhecimento, além de muitos outros. E, como todos sabem, infelizmente a educação de base, pública, vai de mal a pior no Brasil.
1. Cobrar dos governantes que melhorem a qualidade da educação pública de base 2. E lutar para conscientizar a população É exatamente por isto que a militância (seja LGBT, feminista, atéia, etc.) é tão importante. Devemos militar para cobrar dos governantes, como dito no item 1, e militar para conscientizar a população. Sem isto a coisa não melhorará tão cedo. Sobre o Autor: Mário César Mancinelli de Araújo é um apaixonado por ciências em geral, que adora pesquisar a ufologia (com uma visão científica/cética). É formando em Ciência da Computação e pretende fazer mestrado em Inteligência Artificial. Pretende ainda se formar em astronomia ou astrobiologia. Blog: agloriousdawn.livrespensadores.org Canal do Youtube: http://www.youtube.com/AGloriousDawnLP
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Ceticismo Colunas - Ceticismo
Pareidolia - O que é e porque nos engana
Nesta edição da Revista Livre Pensamento, vamos falar sobre um fenômeno que tem um nome bastante estranho, mas que é, no fim, algo bastante simples de se entender. O fenômeno é a pareidolia. Antes de mais nada, vejamos a descrição resumida que a Wikipedia nos fornece deste fenômeno:
O termo pareidolia descreve um fenômeno psicológico que envolve um vago e aleatório estímulo (em geral uma imagem ou som) sendo percebido como algo distinto e significativo. Exemplos comuns incluem imagens de animais ou faces em nuvens, em janelas de vidro e em mensagens ocultas em músicas executadas do contrário. A palavra vem do grego para - junto de, ao lado de - e eidolon - imagem, figura, forma. Pareidolia é um tipo de apofenia. Aqui aparece mais um nome bastante estranho: apofenia. Vejamos, também, o que significa esta palavra, segundo a Wikipedia: Apofenia é um termo proposto em 1959 por Klaus Conrad para o fenômeno cognitivo de percepção de padrões ou conexões em dados aleatórios. É um importante fator na criação de crenças supersticiosas, da crença no paranormal e em ilusão de ótica. Inicialmente descrita como sintoma de psicose, a apofenia ocorre, no entanto, em indivíduos perfeitamente saudáveis mentalmente. Do ponto de vista da estatística, é um Erro de tipo I, ou seja, tirar conclusões de dados inconclusivos. Em um exame, pode levar a um resultado falso positivo. Psicologicamente, é um exemplo de viés cognitivo. Ocorrências de apofenia frequentemente são investidas de significado religioso e/ou paranormal, ocasionalmente ganhando atenção da mídia como a impressão de ver Jesus em uma torrada. No teste projetivo de manchas Rorschach, a apofenia é estimulada com o objetivo de identificar padrões significativos na vida do indivíduo que ele projeta sobre a mancha. Basicamente, então, a apofenia é a experiência de perceber padrões e significados em coisas aleatórias, com
nenhum significado real. É, realmente, o nome dado pelo processo que nossa mente faz ao olhar para o caos e procurar sentidos. A pareidolia é, em si, exatamente isto, e é este o motivo pelo qual diz-se que ela é “um tipo de apofenia”. A diferença básica é que a apofenia vai além do que é explicado pela pareidolia para englobar outros tipos de padrões, como até mesmo aqueles que acontecem por pura coincidência. Veja este exemplo, retirado também da Wikipedia: Imagine que o Brasil esteja jogando na Copa do Mundo, e após 4 jogos obteve-se os seguintes placares: 2x2, 3x1, 4x0, 2x2. Alguém com apofenia poderia ver uma relação ente os placares e deduzir que a soma de cada um dos jogos do Brasil sempre dá 4, e pressupor que a soma do placar do próximo jogo também será 4. O problema é que este vínculo não existe e o placar foi apenas coincidência. O exemplo acima é bastante simples, e pode não seduzir ninguém a acreditar. É mais comum pessoas se sentirem atraídos por casos onde há complexidade na forma de se encontrar o vínculo apofênico, muitas vezes usando operações matemáticas de mais alto grau. Pode-se usar o quadrado dos números, raizes da soma, produtórios, sequência de Fibonacci, etc. Assim, a pareidolia se prende aos fenômenos visuais e auditivos, apenas. Neste ponto, você pode estar se perguntando qual o motivo de nossa mente fazer todo este trabalho, de tentar encontrar padrões no caos. Mas isto, na verdade, é muito mais simples do que você pode imaginar. Imagine o seguinte cenário: Você liga seu computador (não importa se roda Windows ou Linux), deixa que ele seja inicializado até que o desktop apareça. Então você pede que sua avó, que nunca mexeu num computador, se sente diante do seu PC e pede para que ela abra o navegador Firefox, por exemplo. A pergunta que lhe faço é: ela conseguiria? Provavelmente ela simplesmente olhasse para você com cara
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Colunas - Ceticismo de raiva, cuspisse em seu pé e saísse ralhando. Correto? Ainda assim, imagine que ela tope isto: depois de muitas tentativas, talvez ela até conseguisse abrir o navegador, mesmo fazendo tudo sozinha.
havia algo que se parecia muito com uma face humana, que ficou conhecido como A Face de Marte. O que foi entendido por muitos como uma estrutura artificial, algo que teria sido construído por alguma civilização extraterrestre, que teria vivido em Marte, ou que teria Contudo, a questão interessante não é esta, mas sim passado por ali. Algo como a Esfinge, do Egito. o motivo pelo qual ela não conseguiria fazer isto imediatamente. E é bem simples: ela não está agindo em Pois bem, veja as duas imagens abaixo. uma realidade natural, mas sim em uma realidade criada pelo homem. Uma realidade bem diferente daquela na qual evoluímos (por mais que os desenvolvedores de software tentem deixar as interfaces o mais amigáveis possível). Então, respondendo a questão anterior (sobre qual o motivo de nossa mente fazer todo este trabalho, de tentar encontrar padrões no caos), é que isto foi vantajoso em nossa evolução como espécie. Tivemos, primeiro, que diferenciar qual alimento era bom e nutritivo, daquele que era venenoso. Depois, aprender a escolher os melhores frutos a se colher (aqueles que não estivessem com bichos, por exemplo), ou qual seria a caça mais fácil de se pegar. Isto chegando até mesmo ao ponto de bebês que reconhecem e interagem com seus pais: há, sei lá, 150 mil anos atrás um bebê que interagia, sorrindo de volta para os pais, por exemplo, tinha maiores chances de conquistar a afeição de seus pais e, portanto, ser criado com sucesso. Isto garantia que a genética dos bebês, cuja mente faz todo este trabalho, fosse passada à frente, enquanto que a genética dos bebês cuja mente não fazia este trabalho não fosse. Contudo, conforme nossa civilização avançou, criando a filosofia e, depois, a ciência, estes mesmos nossos sentidos foram exigidos para outras tarefas. Tarefas as quais, diga-se de passagem, nunca haviam sido necessárias antes e, portanto, para as quais não estávamos preparados. Por isto, é normal que ocorram erros e são justamente estes erros que chamamos de pareidolia.
A imagem número 1 é a famosa face marciana. A foto número 2... Também é da face marciana, apenas girada em 180 graus. Para você, continua sendo uma face? Pois é, nem para mim. A questão aqui é: a imagem número 1 contém ou não uma face? Claro que sim. Você reconhece isto, eu também. Contudo, isto não significa que tal face realmente exista em Marte - e, de fato, não existe. Novas fotos foram tiradas posteriormente daquele mesmo local, comprovando que aquela figura não passava de pareidolia. Em outras palavras, era apenas um monte comum que, devido à iluminação do sol no momento em que a foto foi tirada, assim como à baixa resolução da câmera, acabou gerando uma imagem com aparência de uma face humana. Veja abaixo uma foto mais recente deste mesmo monte, tirado pela Mars Orbiter Camera (MOC), da sonda Mars Global Surveyor (MGS), em 2001.
Acho que ficará mais fácil de entender como a pareidolia se dá através de exemplos, e é por este motivo que passo a eles neste ponto.
Exemplos de Pareidolia Face em Marte A famosa Face em Marte é uma controvérsia que nas- Por óbvio, a controvérsia ainda não acabou. Talvez só ceu em julho de 1976, com uma das fotos tiradas pela acabe quando uma foto colorida e de alta resolução for sonda Viking 1 Orbiter. Nessa imagem em particular, tirada desta formação, ou talvez nem assim. Revista Livre Pensamento - Número 3
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Colunas - Ceticismo
Santos ou Deidades em Objetos Por mais absurdo que pareça, uma moradora do estado americano da Flórida, chamada Diane Duyser, conseguiu vender para um cassino um sanduíche que ela tinha feito há 10 anos pela bagatela de 28 mil dólares. A questão é que em um dos pães do sanduíche tem o que, para muitos, é a imagem de Virgem Maria. Veja a imagem abaixo.
Em uma outra história, um rapaz de 22 anos da Inglaterra estava enchendo a cara com alguns colegas em uma noite, quando ficou com fome. Então ele pegou algumas tiras de bacon, as colocou na frigideira e simplesmente esqueceu. Ele pegou no sono e só acordou quando o cheiro de queimado atingiu a casa inteira. Vejam o resultado abaixo.
E assim vai. Há potencialmente milhares de histórias como estas. O mais incrível é que tudo isto não passa de pareidolia. Realmente parecem ter faces humanas nestes objetos, os quais pessoas religiosas identificam com figuras de sua crença (Jesus Cristo, Virgem Maria, algum santo, anjo, etc). Mas, de fato, não passam da nossa mente procurando por padrões no caos: se as imagens tivessem sido vistas por outros ângulos, talvez jamais teriam sido identificadas da forma que foram.
Enfim... Não há nada de “sagrado” nestas imagens. Nem Virgem Maria está no pão do sanduíche de queijo, nem Jesus está na frigideira queimada. São apenas manchas que, devido à forma como nosso cérebro funciona, nos lembram rostos humanos. Isto sem falar na pareidolia auditiva. Um exemplo claro disto é o que acontece nas ditas “investigações paranormais”.
Figura 1 - Imagem de divulgação do programa “Ghost Hunters” “Caçadores de Fantasmas”, em português - do canal SyFy, antigo SciFi.
O que eles costumam fazer é ir até locais “possivelmente assombrados” com pequenos gravadores de som, apertam o botão de gravação (Rec) e, então, passam a fazer perguntas (como se realmente existisse alguém ali para responder). Depois pegam o que foi gravado e “analisam” (ouvem o áudio, para ver se encontram algo, digamos, diferente). Tais trechos de áudio “diferentes” são usados, posteriormente, como “evidência” de que há algo paranormal - ou não - naquele local. O problema é que tais trechos de áudio diferentes, tais “vozes do além”, na maioria das vezes, não são nada além de pareidolia auditiva. Para quem já assistiu ao programa (e recomendo que assistam pelo menos uma vez - nem que seja para rir das aberrações que eles fazem durante a “investigação”), tais trechos de áudio poderiam ter sido gerados por qualquer coisa, desde barulho feito pelas roupas deles ao se mover a barulhos do piso e coisas do tipo. Mesmo as melhores “vozes” que eles gravam são facilmente explicados por caixas de som muito bem escondidas, por exemplo.
Teste de Rorschach Aqui algo interessantíssimo sobre a pareidolia visual. É que a interpretação do que as pessoas veem em manchas talvez digam muito mais sobre as próprias pesso-
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Colunas - Ceticismo as do que sobre as manchas em si. Segundo a Wikipedia: O teste de Rorschach é uma técnica de avaliação psicológica pictórica, comumente denominada de teste projetivo, ou mais recentemente de método de auto-expressão. Foi desenvolvido pelo psiquiatra suíço Hermann Rorschach. O teste consiste em dar respostas sobre com o que se parecem as dez pranchas com manchas de tinta simétricas. A partir das respostas, procura-se obter um quadro amplo da dinâmica psicológica do indivíduo. O teste de Rorschach é amplamente utilizado em vários países. Uma das manchas de tinta simétricas poderia se parecer com esta:
Veja, o teste de Rorschach é controvertido e não é minha intenção aqui defendê-lo. O importante aqui é destacar este trecho do artigo da Wikipedia sobre o tema: O teste de Rorschach, como todos os testes projetivos, baseia-se na chamada hipótese projetiva. De acordo com essa hipótese, a pessoa a ser testada, ao procurar organizar uma informação ambígua (ou seja, sem um significado claro, como as pranchas do teste de Rorschach), projeta aspectos de sua própria personalidade. O intérprete (ou seja, o psicólogo que aplica o teste) teria assim a possibilidade de, trabalhando por assim dizer “de trás para frente”, reconstruir os aspectos da personalidade que levaram às respostas dadas. Eu não sei se concordo com tal hipótese, mas uma coisa sei: tais manchas costumam revelar mais sobre a própria pessoa, mais especificamente sobre as crenças pessoais da pessoa, do que sobre a mancha em si. Algo que se encaixa perfeitamente aqui é o caso de
pessoas que, ao querer analisar fotos relacionadas à ufologia, dão zoom excessivo nas imagens até não sobrar mais nada além de manchas e, então, passam a querer dizer o que cada mancha é.
Conclusão Nosso mundo moderno criou simbologias e significados excessivos para as coisas. Estamos dependendo mais do que se interpreta, do que o que as coisas realmente são. É por isso mesmo que, por exemplo, os símbolos passaram a ser padronizados ao redor do mundo. Exemplos são os sinais de trânsito, ou os símbolos de banheiro masculino ou feminino, etc. Ainda temos logomarcas de empresas, ícones em computadores e tudo isto tem sobrecarregado nossa mente. Para piorar, começaram a surgir teorias da conspiração em torno de tais coisas, dizendo que uma certa empresa ou grupo quer “dominar o mundo” e coisas deste tipo. As pessoas começam a prestar atenção demais em detalhes que, muitas vezes, não têm qualquer significado. Não apenas isto, mas nosso cérebro também nos prega peças, enxergando coisas onde elas não existem, ao procurar ordem no caos. Nossos sentidos estão sendo exigidos para tarefas às quais não estão adaptados, tarefas bem diferentes daquelas às quais eles foram exigidos durante nossa evolução como espécie, o que acaba, naturalmente, gerando erros. Assim, devemos tomar muito cuidado antes de fazer afirmações baseando-se apenas naquilo que achamos estar vendo. Afinal, como já disse o sábio Carl Sagan... “Com dados — Carl Sagan
insuficientes
é
fácil
errar.”
Sobre o Autor: Mário César Mancinelli de Araújo é um apaixonado por ciências em geral, que adora pesquisar a ufologia (com uma visão científica/cética). É formando em Ciência da Computação e pretende fazer mestrado em Inteligência Artificial. Pretende ainda se formar em astronomia ou astrobiologia. Blog: agloriousdawn.livrespensadores.org Canal do Youtube: http://www.youtube.com/AGloriousDawnLP
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Educação Colunas - Educação
Os caminhos da Educação Inclusiva
A Constituição Federal, os documentos internacionais, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação e alguns Decretos justificaram o crescimento dos olhares sobre a educação inclusiva, bem como a ampliação de sua oferta, a partir do momento em que trazem em seu texto referências aos direitos das pessoas com deficiência no que tange à educação.
As necessidades básicas de aprendizagem das pessoas portadoras de deficiências requerem atenção especial. É preciso tomar medidas que garantam a igualdade de acesso à educação aos portadores de todo e qualquer tipo de deficiência, como parte integrante do sistema educativo. (DECLARAÇÃO DE JONTIEM, 1990)
A Constituição Federal, em seu Art. 208, inciso III, traz que:
Nesse ponto, uma “atenção especial” é voltada para os portadores de deficiências. Entender isso como direito de igualdade foi um grande passo na busca de uma sociedade mais igualitária. Foi um passo inicial, visto que as especificidades não foram contempladas; apenas foi dito que o aceso deveria ser garantido a “todo e qualquer tipo de deficiência”, mas parece óbvio que cada tipo de deficiência necessita de ações exclusivas, pois a especificidade de uma pessoa surda é diferente da de uma pessoa cega.
“O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de: III - atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino;” É perceptível que esse texto implica em educação inclusiva, à medida em que indica que o aluno com necessidade especial deverá ter seu “atendimento educacional especializado” realizado na rede regular de ensino, em detrimento aos centros especializados. Ressaltamos que o texto não exclui, porém, a educação especial, à medida que indica que a oferta deve ser “preferencialmente” na rede regular. No tocante aos documentos internacionais, temos que entre os dias 5 e 9 de março de 1990, em Jontiem, na Tailândia, ocorreu a Conferência Mundial sobre Educação para Todos: Satisfação das Necessidades Básicas de Aprendizagem, na qual foram aprovados a DECLARAÇÃO MUNDIAL SOBRE EDUCAÇÃO PARA TODOS e o PLANO DE AÇÃO PARA SATISFAZER AS NECESSIDADES BÁSICAS DE APRENDIZAGEM.
Já no PLANO DE AÇÃO, no item terceiro, temos o seguinte trecho: Muitas pessoas se vêem privadas da igualdade de acesso à educação por razões de raça, sexo, língua, deficiência, origem étnica ou convicções políticas. Além disso, elevadas percentagens de evasão escolar e resultados de aprendizagem medíocres são problemas detectados igualmente em todo o mundo. Estas considerações bem gerais ilustram a necessidade de uma ação decisiva em grande escala, com objetivos e metas claramente definidos. (DECLARAÇÃO DE JONTIEM, 1990)
É mencionada no Plano de Ação da Declaração de Jontiem a privação do direito de igualdade ao acesso à educação de muitas pessoas, todas com suas especiNessa conferência, alguns assuntos foram tratados, ficidades, e vemos pontuar que o portador de deficipois era – e ainda é – preocupante o quadro em que se ência está incluído num grupo de pessoas no qual a encontrava a educação mundial, mergulhada em défidiversidade passa desde a etnia, a cultura, a posição cits escolares e em meio a um quadro sombrio, como social e as convicções políticas. Colocá-los no mesmo dívida externa de vários países, explosão populacional, grupo tende a fixar um olhar de igualdade entre as parguerras e tantas outras mazelas. Os tópicos que tanticularidades, quando, na verdade, não há igualdade. genciam nosso estudo são aqueles voltados às pessoas OS OBJETIVOS E METAS do PLANO DE AÇÃO trazem no portadoras de deficiência1, no item 5 do ARTIGO 3 seu item cinco a seguinte escrita: UNIVERZALIZAR O ACESSO À EDUCAÇÃO E PROMOVER A EQUIDADE, temos que: Objetivos intermediários podem ser formulados como metas específicas dentro dos planos nacionais e estaduais de desenvolvimento da educa1 ���������������������������������������������� Esse é o termo presente na Declaração de Jonção. De modo geral, essas metas: tiem, por isso será mantido enquanto dela falarmos. Revista Livre Pensamento - Número 3 Página 25
Colunas - Educação (i) indicam, em relação aos critérios de avaliação, ganhos e resultados esperados em um determinado lapso de tempo; (ii) definem as categorias prioritárias (por exemplo, os pobres, os portadores de deficiências); (DECLARAÇÃO DE JONTIEM, 1990) Note que, nos objetivos intermediários, encontramos os portadores de deficiências como uma categoria prioritária de ação, na busca da inclusão dessas pessoas no âmbito escolar. No item oito da mesma seção, temos: Cada país poderá estabelecer suas próprias metas para a década de 1990, em consonância às dimensões propostas a seguir: 1. Expansão dos cuidados básicos e atividades de desenvolvimento infantil, incluídas aí as intervenções da família e da comunidade, direcionadas especialmente às crianças pobres, desassistidas e portadoras de deficiências; (DECLARAÇÃO DE JONTIEM, 1990) Outra vez, as crianças portadoras de deficiência são colocadas no mesmo grau de prioridade que as crianças pobres e as desassistidas. Quatro anos depois, a Conferência Mundial de Educação Especial, realizada na cidade de Salamanca, entre os dias 7 e 10 de junho de 1994, trouxe uma grande contribuição para a Educação de pessoas com Necessidades Especiais. Nessa reunião, foi redigida a “Declaração de Salamanca” (toda como um marco na educação inclusiva), a qual trata da “Educação para Todos”, reitera o direito fundamental da criança à educação e, para este estudo, trouxe em especial a reafirmação da Estrutura de Ação em Educação Especial: O princípio que orienta esta Estrutura é o de que escolas deveriam acomodar todas as crianças independentemente de suas condições físicas, intelectuais, sociais, emocionais, lingüísticas ou outras. Aquelas deveriam incluir crianças deficientes e superdotadas, crianças de rua e que trabalham, crianças de origem remota ou de população nômade, crianças pertencentes a minorias lingüísticas, étnicas ou culturais, e crianças de outros grupos desavantajados ou marginalizados. (DECLARAÇÃO DE SALAMANCA, 1994) Nessa exposição, a Declaração engloba todos os grupos possíveis no espaço escolar. Ela lança um grande desafio, que é a inclusão de pessoas de características
diferentes, necessidades diferentes, culturas diferentes num mesmo espaço físico. Além de exigir para essa ação uma grande quebra de paradigmas, lança-se o desafio da integração, aceitação, tolerância e cumplicidade entre pares tão heterogêneos. Esse emaranhado de rizomas traz condições que são desafios para as escolas, a saber: Tais condições geram uma variedade de diferentes desafios aos sistemas escolares. No contexto desta Estrutura, o termo “necessidades educacionais especiais” refere-se a todas aquelas crianças ou jovens cujas necessidades educacionais especiais se originam em função de deficiências ou dificuldades de aprendizagem. Muitas crianças experimentam dificuldades de aprendizagem e, portanto possuem necessidades educacionais especiais em algum ponto durante a sua escolarização. Escolas devem buscar formas de educar tais crianças bem-sucedidamente, incluindo aquelas que possuam desvantagens severas. (DECLARAÇÃO DE SALAMANCA, 1994) A Declaração também define aquilo que ela chama de “necessidades educacionais especiais”, envolvendo dentro desse conceito todas as crianças e jovens que tenham alguma necessidade educacional especial oriunda de deficiência ou não. Muitas vezes, relacionamos o termo “necessidades educacionais especiais” às pessoas com deficiência. A Declaração demonstra que não é só a esses que o termo deve englobar, ela também trata daquelas que, por uma razão ou outra, apresentam dificuldade de aprendizado: Existe um consenso emergente de que crianças e jovens com necessidades educacionais especiais devam ser incluídas em arranjos educacionais feitos para a maioria das crianças. Isto levou ao conceito de escola inclusiva. O desafio que confronta a escola inclusiva é no que diz respeito ao desenvolvimento de uma pedagogia centrada na criança e capaz de bem-sucedidamente educar todas as crianças, incluindo aquelas que possuam desvantagens severas. O mérito de tais escolas não reside somente no fato de que elas sejam capazes de prover uma educação de alta qualidade a todas as crianças: o estabelecimento de tais escolas é um passo crucial no sentido de modificar atitudes discriminatórias, de criar comunidades acolhedoras e de desenvolver uma sociedade inclusiva. (DECLARAÇÃO DE SALAMANCA, 1994) Partindo dessa Declaração, fica notado que é dever do
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Colunas - Educação Estado garantir o acesso dos indivíduos com Necessidades Educacionais Especiais ao ambiente escolar, mas não somente a inclusão da pessoa na escola; além disso, proporcionar que ao aluno sejam dados os meios de aquisição do conhecimento mediante o reconhecimento e providência que atendam sua necessidade específica.
de Adultos (1997) e na Conferência Internacional sobre o Trabalho Infantil (1997). O desafio, agora, é cumprir os compromissos firmados.
A ideia de trazer os indivíduos com Necessidades Educacionais Especiais para arranjos educacionais em que está a maioria das pessoas é uma forma de inclusão, pois distancia o ato do protecionismo e da valorização Seguindo esse movimento mundial e os tratados que o da diferença, trazendo o aluno para perto de uma soBrasil assinou, a LDB 9.394/96 trouxe várias questões ciedade e diminuindo essas distâncias conceituais. que reconheciam o direito das pessoas com deficiência à educação em escola regular, em seu Art. 58 nos diz: Em 2008, a Secretaria de Educação Especial (SEESP), publicou a Política nacional de educação especial na Art. 58. Entende-se por educação especial, para perspectiva da educação inclusiva, a qual trazia em os efeitos desta Lei, a modalidade de educação seu meio a seguinte redação: escolar, oferecida preferencialmente na rede reConsideram-se alunos com deficiência àqueles gular de ensino, para educandos portadores de que têm impedimentos de longo prazo, de nanecessidades especiais. tureza física, mental, intelectual e sensorial, que § 1º Haverá, quando necessário, serviços de apoio em interação com diversas barreiras podem ter especializado, na escola regular, para atender às restringida sua participação plena e efetiva na peculiaridades da clientela de educação especial. escola e na sociedade. Os alunos com transtornos globais do desenvolvimento são aqueles que § 2º O atendimento educacional será feito em apresentam alterações qualitativas das interações classes, escolas ou serviços especializados, semsociais recíprocas e na comunicação, um repertópre que, em função das condições específicas dos rio de interesses e atividades restrito, estereotialunos, não for possível a sua integração nas claspado e repetitivo. Incluem-se nesse grupo alunos ses comuns de ensino regular. com autismo, síndromes do espectro do autismo e psicose infantil. Alunos com altas habilidades/ § 3º A oferta de educação especial, dever constisuperdotação demonstram potencial elevado em tucional do Estado, tem início na faixa etária de qualquer uma das seguintes áreas isoladas ou zero a seis anos, durante a educação infantil. combinadas: intelectual, acadêmica, liderança, psicomotricidade e artes. Também apresentam Nesse sentido, a escolarização da pessoa com deficiênelevada criatividade, grande envolvimento na cia deve ser garantida pelo Estado. aprendizagem e realização de tarefas em áreas de Internacionalmente, essas garantias foram reforçadas seu interesse. Dentre os transtornos funcionais pela Cúpula Mundial de Educação, reunidas em Dakar específicos estão: dislexia, disortografia, discalcuem abril de 2000, e manifestadas na DECLARAÇÃO DE lia, transtorno de atenção e hiperatividade, entre DAKAR, em seu item quatro: outros. (BRASIL, 2008, p. 15) Acolhemos os compromissos pela educação bási- Dessa forma, tal Política estabeleceu quem são as pesca feitos pela comunidade internacional ao longo soas que tem direito ao Atendimento Educacional Esdos anos 90, especialmente na Cúpula Mundial pecializado, o qual: pelas Crianças (1990), na Conferência do Meio Ambiente e Desenvolvimento (1992), na Confe[...] identifica, elabora e organiza recursos perência Mundial de Direitos Humanos (1993), na dagógicos e de acessibilidade que eliminem as Conferência Mundial sobre Necessidades Espebarreiras para a plena participação dos alunos ciais da Educação: Acesso e Qualidade (1994), na considerando suas necessidades específicas. As Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Social atividades desenvolvidas no atendimento edu(1995), na Quarta Conferência Mundial da Mucacional especializado diferenciam-se daquelas lher (1995), no Encontro Intermediário do Fórum realizadas na sala de aula comum, não sendo Consultivo Internacional de Educação para Todos substitutivas à escolarização. Esse atendimento (1996), na Conferência Internacional de Educação complementa e/ou suplementa a formação dos Revista Livre Pensamento - Número 3
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Colunas - Educação alunos com vistas à autonomia e independência na escola e fora dela. [...] Ao longo de todo o processo de escolarização, esse atendimento deve estar articulado com a proposta pedagógica do ensino comum. (BRASIL, 2008, p. 16) A forma como o Estado deveria lidar com o Atendimento Educacional Especializado foi disposta a partir do Decreto nº 6.571, de 17 de setembro de 2008, o qual trazia em seu Art. 1º: Art. 1o A União prestará apoio técnico e financeiro aos sistemas públicos de ensino dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, na forma deste Decreto, com a finalidade de ampliar a oferta do atendimento educacional especializado aos alunos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação, matriculados na rede pública de ensino regular. Porém, tal Decreto foi revogado e substituído pelo Decreto nº 7.611, de 17 de novembro de 2011, onde o texto acima sofreu uma alteração, aparecendo, agora, no Art. 5º, com a seguinte redação: Art. 5o A União prestará apoio técnico e financeiro aos sistemas públicos de ensino dos Estados, Municípios e Distrito Federal, e a instituições comunitárias, confessionais ou filantrópicas sem fins lucrativos, com a finalidade de ampliar a oferta do atendimento educacional especializado aos estudantes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação, matriculados na rede pública de ensino regular. Nesse mesmo Decreto, uma mudança significativa é notada no tocante à oferta do Atendimento Educacional Especializado o qual, anteriormente, foi conduzido a ser ofertado em escolas regulares. No Art. 8, que altera o Art. 14 do Decreto 6.253/07, aparece o seguinte texto:
classes comuns ou em classes especiais de escolas regulares, e em escolas especiais ou especializadas. Desta forma, o novo decreto permite que escolas especiais ofertem a Educação, ou seja, que sejam espaços segregados de escolarização regulamentados por lei. Isso significa que elas poderão substituir a escolarização em classes comuns de escolas regulares, fato já superado no nosso país. Além disso, poderão receber duplamente pela matrícula do aluno na escola especial e no AEE. A força motriz da inclusão (a dupla matrícula no Fundeb) tornou-se, agora, a força motriz da exclusão. Assim, o Decreto 7.611/11, autoriza que Escolas Especiais ofereçam Educação, segregando os espaços da escolarização amparados por este Decreto. Assim, o ensino em classes comuns das escolas regulares, pode ser substituído por espaços de segregação, fato que vinha sendo superado nos últimos tempos. Não obstante, tais Escolas poderão receber duas vezes pela matrícula do aluno, somando a escola especial e o AEE. Isso pode fazer com que pareça que a exclusão passa a ser patrocinada pelo Estado. Agora, caminhos estranhos se abrem nessa direção. Só o tempo dirá se viveremos um retrocesso patrocinado ou se o processo de inclusão continuará seu caminho de crescimento em direção à igualdade entre as pessoas, no que tange o acesso à educação.
Sobre o Autor: Wagner Kirmse Caldas é Professor Federal de Ensino Superior (Informática e Educação Inclusiva), Bacharel em Sistemas de Informações, Mestre e Doutorando em Educação na área de Práticas Educacionais Inclusivas.
Art. 14. Admitir-se-á, para efeito da distribuição dos recursos do FUNDEB, o cômputo das matrículas efetivadas na educação especial oferecida por instituições comunitárias, confessionais ou filantrópicas sem fins lucrativos, com atuação exclusiva na educação especial, conveniadas com o Poder Executivo competente. § 1o Serão consideradas, para a educação especial, as matrículas na rede regular de ensino, em
Blog: bardoateu.blogspot.com
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Filosofia Colunas - Filosofia
O APRISIONAMENTO NA COMUNICAÇÃO
A crença nas palavras e o abismo total entre as consciências
“Foi a linguagem que criou o homem e não o homem a linguagem, desde que se acrescente que o hominídea criou a linguagem.” (Edgar Morin) Desde os primórdios, as pessoas vêm acreditando que se comunicam e tendo a forte convicção de compartilhar experiências de vida, entender o outro e serem entendidas – simplesmente no ato de pensar e falar. Mas suspeito que muito do que assinala-se tenha passado despercebido, ou nunca tenha sido visto. Não pretendo descobrir o que supostamente esteja oculto sob a linguagem, mas abrir os olhos para ver e desvendar como ela funciona e acontece na comunicação. Olhando por uma perspectiva multidimensional, existe um caminho complexo e profundo, um abismo, entre uma realidade e outra. A natureza da comunicação e linguagem surge, como o naturalista Charles Darwin pôde observar, através da expressão das emoções no homem e nos animais. Denominando-a de linguagem das emoções, Darwin pôde perceber que estas não são meramente ocasionais, mas são constituídas todas através de linguagem. A essência da linguagem é biológica. A seleção natural é econômica, só sobrevive e se mantém aquilo que se adapta ao ambiente com perfeito êxito. Assim, é esta capacidade inata que a seleção natural proporcionou desde aos animais inferiores até a nós, seres humanos - transmitir linguagem e sermos compreendidos – mesmo que seja de forma bem pri-
mitiva. Esta capacidade inata da expressão humana, ou linguagem das emoções, é a essência de toda a linguagem que transborda no homem. A origem da comunicação é imprecisa, mas através de induções, imagina-se que os homens primitivos começam a comunicarse através de gritos ou grunhidos, como fazem os animais, ou talvez por gestos e comandos, ou ainda pela combinação desses todos. Percebendo a capacidade próxima à nossa de falar, de alguns animais, imaginamos que os sons usados como linguagem eram imitações de sons da natureza, como o cantar do pássaro e o trovão. Mas ainda, nada impede que se pense também que o homem primitivo usasse sons produzidos pelas mãos e os pés, e não só pela boca, pedras ou troncos ocos. Pesquisas antropológicas mostram que a capacidade de comunicação entre os membros de uma mesma tribo por meio da linguagem foi de uma importância crucial no desenvolvimento do homem. Especialmente, os movimentos expressivos da face e do corpo foram determinantes para o aumento do poder da linguagem. No entanto, não há subsídios para saber se algum músculo tenha sido desenvolvido em benefício da expressão.
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Colunas - Filosofia Como observa o antropólogo Edgar Morin, a organização social proporcionada a nós, seres humanos, pela linguagem, criou condições para a nossa evolução biológica e cultural. Independente da origem da comunicação, a história nos mostra que os homens encontraram a forma de associar um determinado som ou gesto a um certo objeto ou ação. Assim nasce o signo. A natureza da linguagem é antes de tudo um signo. Um signo é qualquer coisa que conduz alguma outra coisa a referir-se a um objeto ao qual ela mesma se refere de modo idêntico. É qualquer coisa que busque representar outra. Charles Sanders Peirce, pai da semiótica (estudo dos signos/imagens), definiu bem, de forma geral, os tipos de signo:
Estudos de antropologia se embasando na biologia mostram que, o que provavelmente possibilitaram o surgimento da linguagem (organizada) foram uma caixa craniana com aptidões acústicas, um cérebro capaz O ícone é um signo que mantém uma relação de de organizar a linguagem, complexidade crescente proximidade sensorial com o signo, representação com um ambiente e organização social requerendo do objeto - pintura, fotografia, o desenho de um cada vez mais comunicações (a necessidade de falar) e homem. Também possuiria o caráter que o torna uma mútua relação e interação entre essas ordens de significante, mesmo que seu objeto não existisse, fenômenos. tal como um risco feito a lápis representando uma Morin denomina Call System o modo como nos comulinha geométrica. (Peirce, Charles S.). nicávamos inicialmente através de uma linguagem primitiva. O Call System já não era capaz de inventar noO índice é um signo que de repente perderia seu vos sons que pudessem diferenciar-se uns dos outros caráter que o torna um signo se seu objeto fosse fazendo com que houvesse a necessidade e criando removido, mas que não perderia esse caráter se uma brecha para um tipo de linguagem mais complenão houvesse interpretante. Tal é o caso de um xa. Assim surge a gramática - indispensável e o grande molde com um buraco de bala como signo de um impulso para a evolução da comunicação. A gramática tiro, pois sem o tiro não teria havido buraco; po- não passa de um tipo de linguagem (signo simbólico). rém, nele existe um buraco, quer tenha alguém ou Gramática é o conjunto de regras de combinação nenão a capacidade de atribuí-lo a um tiro. (Peirce, cessárias para dar-nos um repertório de signos, que teCharles S.). O signo indicial indica alguma coisa - oricamente poderíamos combinar de infinitos modos. acontecido. Como observa Diaz Bordenave, se cada pessoa combinasse seus signos a seu modo seria impossível nos coUm símbolo se constitui em um signo simples- municarmos uns com os outros. Seria como se cada um mente. Não possui natureza alguma por si só, falasse uma língua diferente e tentasse se comunicar. podendo somente ser usado e compreendido Graças à gramátiatravés de regras e convenções. Tal é a palavra, ca, o significado e como uma palavra, está ligada a seu objeto por já não depende uma convenção de que deve ser assim entendi- só dos signos, do sem que necessariamente ocorra uma ação mas também da qualquer que poderia estabelecer uma conexão estrutura de sua factual entre signo e objeto. (Peirce, Charles S.). apresentação. Perderia o caráter que o torna um signo se não Com a posse de houvesse algo para significar, ou um interpretante repertórios de a par das regras. O signo simbólico possibilita o signos, e de resurgimento da linguagem organizada. gras para comRevista Livre Pensamento - Número 3
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Colunas - Filosofia biná-los, o homem inventou a linguagem organizada. Podemos dizer que a linguagem é para a inteligência o que a roda é para os pés, pois lhes permite deslocar-se de uma coisa para outra com desenvoltura e rapidez, envolvendo-se cada vez menos. (Mcluhan).
introduziram a Teoria Matemática, que foi aceita por grande parte dos Médias (estudiosos e profissionais da comunicação social).
Também chamada de Teoria da Informação, a Teoria Matemática concebe a comunicação como uma transParece haver poucas dúvidas de que a primeira forma missão de sinais. De acordo com seus criadores é deorganizada de comunicação humana foi a linguagem signada como um modelo matemático para permitir oral, quer acompanhada ou não pela linguagem ges- a transmissão de um conjunto de informações quantual. No entanto, a linguagem oral sofre de duas sérias tificáveis de um lugar para outro. No entanto, Isaac limitações: a falta de permanência e a falta de alcance. Epstein observou que essa teoria foi formulada com o Daí talvez o fato de que os homens primitivos tenham destino a auxiliar a solução de certos problemas de otiapelado a modos de fixar seus signos através de dese- mização do custo da transmissão de sinais, e pensada nhos – que mais tarde transformou-se na linguagem no homem algo precioso se perde. escrita. Parece que nos comunicar faz parte da nossa Nesta teoria, do lado do emissor há um processo de identidade - humana. Lembrando que, codificação, que transmite uma informação através de “... aquele que fala ou que escreve é primeiramen- um canal (linguagem), por um meio (como é transmitite mudo, inclinado para o que quer significar, para do) em um determinado contexto para o receptor, que o que vai dizer, e de repente a onda de palavras decodifica a informação. O único fator que pode intervem em seu socorro a esse silêncio e dá a ele um ferir na comunicação é o ruído externo – a linguagem equivalente tão justo, tão capaz de devolver ao numa freqüência baixa demais para escutar, erros na próprio escritor o seu pensamento quando ele o transmissão da informação ou um contexto não espetiver esquecido”. (Merleau-Ponty). Esta é a magia cificado. da comunicação. Mais tarde, a Escola de Palo Alto faz crítica à Teoria da A palavra comunicação vem do latim communis, co- Informação, discordando de tal modelo teórico que só mum, dando ideia de comunidade. Esse conceito preza se importa com o ruído externo. Isaac Epstein mostra o fato de as pessoas poderem entender umas às ou- que essa junção de emissor, mensagem e receptor só tras, expressando pensamentos, unindo o que estava funciona em modelos em que sabe-se as regras do isolado na mente de cada um para toda a comunidade. jogo, compartilhado por ambos os lados. As significaÉ fazer com que aquilo que é meu passe a pertencer a ções do código só existem na mente dos homens, o outro – pôr em comum. Mas ainda melhor, poderíamos que é desconsiderado pela Teoria Matemática. É atradizer que é a transmissão de signos. E esta atribuição vés dele que surge o sentido e vida ao processo no qual de significados a determinados signos é precisamente se envolveram o emissor e o receptor. Porém, não é ele a base da comunicação em geral e da linguagem em que deve dar o sentido, deve haver um contrato social. Na ausência desse contrato, torna-se um processo particular. invisível e perigoso, em que só se compreende o que O filósofo Aristóteles, dizem por que se sabe antecipadamente o sentido e só pelo que se sabe, foi o se compreende o que já sabia. Acaba-se por haver dois primeiro homem a dar sujeitos pensantes, fechados sobre suas significações, importância ao estudo e entre eles havendo mensagens que circulam, mas sistemático da comu- que não contêm nada. Assim, é somente ocasião para nicação ao teorizar o cada um prestar atenção ao que já sabia. primeiro modelo de comunicação, afirmando É necessário elucidar que nem tudo que é considerado a necessidade de três comunicação realmente comunica – essência do terelementos: emissor, mo. Particularmente, nem precisa. Desde que se tenha mensagem e receptor. consciência do que se pretende com a comunicação. Mais tarde, a teoriza- Crê-se que há um envolvimento puro entre o que é ção Aristotélica foi re- dito e o que é compreendido, quando não há. pensada por ����������� C. E. Shannon e W. Weaver, que Proponho um modelo de quando a comunicação realRevista Livre Pensamento - Número 3
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Colunas - Filosofia mente é compartilhada, obviamente apenas aplica-se quando o emissor pretende que sua mensagem seja compreendida tal como ela foi transmitida. Modelo de comunicação real: EMISSOR X + (ENVIA) MENSAGEM A RECEPTOR Y = (RECEBE) MENSAGEM A
Não estou me referindo, no caso do Emissor X, em discordar ou duvidar da veracidade da mensagem do Receptor Y. O que busco é o cuidado que não se é devidamente tomado, que leva o Receptor Y a receber MENSAGENS B, embora o Emissor X tenha transmitido a MENSAGEM A. Sem interferência externa alguma. Este tipo de abordagem não traz problemas a todos os tipos de signos. Um signo icônico pode ser comunicado, já que a sua natureza se constitui simplesmente na sua forma. Não há problemas na comunicação desde que ambos, emissor e receptor, conheçam a sua forma. Caso contrário, não há comunicação, e nem possibilidade para enganos de ambas as partes – já que não terão referencial algum para se equivocarem. Um signo indicial também pode ser comunicado, no entanto depende do conhecimento da pessoa. Não é um probleO filósofo Ludwig Wittgenstein conhece a importância ma de linguagem, mas deve-se ter cuidado e sempre da elucidação da linguagem e da palavra como tal. Perelucidar o fato indicial ao invés de crer-se no que ele cebe que, indica. É possível apenas um problema de consciência, não de linguagem. Mesmo que exista a crença do in“...a linguagem engendra ela mesma superstições terpretante em relação ao acontecido, sem evidência das quais é preciso desfazer-se. É preciso um esnenhuma, e assim, o receptor e o emissor possam acaclarecimento que permita neutralizar os efeitos bar por discordar, sempre será possível elucidar-se o enfeitiçadores da linguagem sobre o pensamento, signo indicial e nele se compartilharem. ao contrário, não querer descobrir o que supostamente esteja oculto sob a linguagem, mas abrir Já o signo simbólico, para ser comunicado, faz necesos olhos para ver e desvendar como ela funciona. sário o estabelecimento de regras e convenções. Não (Wittgenstein). há nada que o conhecimento físico possa ajudar, já que o símbolo não possui natureza alguma e pode parecer perfeitamente adaptado a qualquer signo. É só uma questão de linguagem - abstração. Tanto na escrita quanto na fala. Saussure observa que é uma grande ilusão considerar um termo simplesmente como a união de um certo som com um certo conceito. Definilo assim seria isolá-lo do sistema do qual faz parte, já que em casos como este, signos simbólicos, se transmite a ideia de valor, que é completamente relativa. É necessário jogar com as regras que o outro joga, e não usar a nossa própria regra – indiferente às significações das mediações escolhidas pelo outro. Eis que surge o problema da crença nas palavras e o abismo total entre as duas consciências. Revista Livre Pensamento - Número 3
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Colunas - Filosofia Há muito tempo os pensadores que estudam a filosofia da linguagem se perderam na busca por uma essência da própria palavra, como se de fato ela que concebesse o significado ao objeto ou coisa – esquecendo-se de que ela apenas o nomeia. Assim, segundo Wittgenstein, não nos cabe, portanto, nos indagar sobre os significados puros para nenhum tipo de palavra, mas sobre suas funções práticas.
petição? Pense numa criança que bate bola na parede. A brincadeira? Pense no jogo chamado paciência. A sorte? Pense no xadrez. A habilidade física? Pense no jogo de damas. (Wittgenstein).
E tal é o resultado desta consideração: vemos uma rede complicada de semelhanças que se envolvem e se cruzam mutuamente. Alguns traços que são comuns para uns, desaparecem para outros. E assim surgem Santo Agostinho parecia compreender esta faceta, e mais outros e desaparecem outros, e assim por diante afirmou que ela deve servir para o entendimento de - sem limite algum. um construtor A com um ajudante B. Exatamente o que Wittgenstein propõe quando diz que não é fina- O que ainda é um jogo e o que não é mais? E uma planlidade das palavras despertar representações; falar ta? O que é a palavra “bom”? Você dirá que não sabe o algo, denominar algo é semelhante a colocar uma eti- que é um jogo enquanto não puder dar uma definição queta numa coisa, nas palavras do filósofo. As lingua- essencial exata? Obviamente não. Então qual é a esgens consistem apenas de comandos, e isto não deve sência do que chamamos de jogos? Como captamos o nos perturbar. Não há necessidade de elas serem com- espírito de algo? A resposta pode estar na observação pletas. Pois, com quantas casas ou ruas, uma cidade de Wittgenstein quando admira de que se possa saber algo e não se possa dizer. Não existe essência na pacomeça a ser cidade? lavra “jogo”, já que na verdade ela é apenas um signo Os problemas filosóficos nascem quando a linguagem simbólico (foi inventado, não possui um ícone) - tanto entra de férias. Wittgenstein então propõe os “Jogos escrito, quanto falado. O que possui uma essência é a de Linguagem”. Nesta teoria, as palavras não passam linguagem. de um instrumento de linguagem, em que se dá a cada palavra um papel no nosso jogo. Podemos dizer que E a essência da linguagem é a regra. quem fala cifra seu pensamento, como se o substituCertas proposições nos parecem estar elucidadas por ísse por um arranjo sonoro ou visível. No entanto, é falta de cuidado. Por exemplo, a proposição “Moisés necessário saber ler a partir das regras de quem escrenão existiu” pode significar diferentes coisas. Pode veu a cifra. significar que os israelitas não tiveram nenhum chefe Os jogos de linguagem são capazes de resumir orações quando deixaram o Egito, ou não existiu nenhum hointeiras apenas em palavras, inclusive há culturas em mem que tivesse realizado tudo o que a Bíblia narra de que a própria gramática não diz tudo, apenas pensa. Moisés. Ou, como observa Russel, o homem que viveu Por exemplo, aquele que pensa “Traga-me uma lajota” naquele tempo, naquele lugar e naquela época. dizendo apenas “Lajota”, pronunciaria interiormente a Já outras proposições pedem para ser elucidadas. frase inteira. Traduz aquela simples palavra para seu Quando alguém nos diz “N não existiu” perguntamos significado – que foi antes, brevemente convencionaautomaticamente: “O que você que dizer? Você quer lizado - para que quando um homem diz “Lajota!” ele dizer que...ou que...?” etc. Se utilizo o nome “N” sem esteja querendo que realmente leve uma lajota até ele. uma significação rígida – virtual – não há capacidade Tudo é uma questão de agir de acordo com a função para que o outro possa compreender, ou sequer socombinada. As palavras devem ser utilizadas tal como frer um mal entendido. O problema é que tudo aquilo uma ferramenta pelos operários – para satisfazer uma que pode ser “virtual” se torna falso a partir do monecessidade. mento que não está mais no presente. Daí a razão da Utilizemos da elucidação extensiva de Wittgenstein denominação do termo “virtual”, que busca sempre se para caminharmos em busca da essência de uma pa- atualizar. lavra para compreender a necessidade do jogo de linÉ um problema tratarmos tudo de forma virtualizada guagem: considerando-a atualizada. O erro de comunicação O que é o termo “jogo”? O que é um “jogo”? Quais será freqüente e invisível com a ausência de uma elucidação extensiva. Assim, nos jogos de linguagem, as são os traços em comum? regras são os indicadores de direção. Mas, como deterO uso de bolas? Pense nos jogos de cartas. A com- minar a regra do jogo de linguagem que o outro joga Revista Livre Pensamento - Número 3
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Colunas - Filosofia se ele próprio a ignora? Isto porque, durante o jogo, a cada jogada as pessoas se comportam segundo determinadas regras. Bom, ainda às vezes paira alguma dúvida. A elucidação é inexata, mas isso não quer dizer que seja inútil. O próprio termo exatidão precisa ser elucidado: “Você deve chegar pontualmente para almoçar; você sabe que o almoço começa exatamente à 1 hora”. O ideal de exatidão se dá de acordo com o relógio neste caso. (Wittgenstein). Não sabemos até que seja estabelecida uma regra. Um jogo é jogado segundo uma regra determinada. Mas como o observador distingue entre um erro de quem joga e uma jogada certa? Há para isso, indícios do comportamento dos jogadores. Aprende-se o jogo observando como o outro joga. Então, deve-se elucidar as palavras sempre que se for participar do jogo da linguagem? E durante o jogo? Só quando se quiser comunicar. O maior dos erros na comunicação é que nos servimos sempre daquilo que a memória diz, como se fosse a arbitragem suprema e inapelável. (Wittgenstein). Existe uma teoria que pode nos ajudar a entender melhor a razão do que foi proposto até aqui. Esta teoria parece-nos enigmática e paradoxal, pois o que ela diz é que comunica quando não comunicamos, não comunica quando comunicamos. Idealizada por Ciro Marcondes Filho, o “face a face”, como é conhecida, é um procedimento ritualizado, teatral, um sistema em que as pessoas formalizam sua face exterior e procuram por meio da fala e dos signos convencionalizados manterem uma cena de representação. Pouca coisa informativa é efetivamente passada nessa forma de comunicação, apesar desta cena do ritual ser sustentada e comunicada com perfeição, mas vazia. É uma forma de comunicação que prima por outras ligações, não exatamente relacionadas com a informação, isto é, relacionadas ao novo. A virtualização é a comunicação. O motivo desse tipo de comunicação nasce de uma consequência sócio-antropológica: o simulacro.
O termo “simulacro” é utilizado por Jean Baudrillard para explicar o fenômeno de homogeneização da sociedade. É um espaço-tempo de toda uma simulação operacional da vida social de toda uma estrutura de habitat e de tráfego. (Jean Baudrillard). É o modelo de toda uma forma de socialização controlada, todas as funções dispersas do corpo e da vida social são ritualizadas para se sociabilizar: no trabalho, tempos livres, alimentação, higiene, transportes, média, cultura, são todos circuitos integrados. Durante toda a existência do homem no mundo, ou a maior parte dela, foi marcada pela luta pela sobrevivência. Esse ser quase nunca podia gozar de paz, seja diante às necessidades mais primitivas de alimentação, proteção e sobrevivência até a rejeição social. De repente, se cogita a possibilidade desse ser não ter mais a incerteza do amanhã. Não se faz mais necessária a preocupação em adaptarse a um ambiente incerto e às vezes inalcançável. Agora, o ambiente adapta-se à pessoa, sim, não há mais a necessidade de se preocupar com coisa alguma, pois está tudo pronto. Basta seguir determinadas regras, rituais, convenções sociais – um padrão de sucesso. A felicidade agora é comprada de forma indireta – viva de tal modo, use determinadas roupas, acredite em determinado padrão de beleza, ande na linha. O simulacro é uma estrutura habitat onde você compra seu bem-estar. Segundo Guy Debord, não importa mais quem você é, mas sim o que você parece que é, e para parecer é necessário ter, em última instante parecer ter – ter o que o simulacro vende. Assim, esse parecer, juntamente com todas as convenções que são de sua natureza, leva as pessoas a não verem propósito algum no conteúdo da comunicação, já que tudo é virtualizado, e ao mesmo tempo saberem que realmente a mensagem não importa, mas sim a moldura que carrega felicidade ritualizada. Como observa Guillaume, esse tipo de comunicação repousa naquilo que lhe é contrário, a diferença, a separação dos seres. Para Marcondes, este ambiente foi inventado pelo homem e é possuidor de inteligência,
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Colunas - Filosofia seu mecanismo serve para neutralizar as informações, para relativizá-las, para domesticá-las e adaptá-las ao universo de compreensão e racionalidade interno da comunidade. Ao contrário dos animais que precisam se adaptar a um ambiente que passa por influências externas e readaptativas, a comunidade não é um sistema de troca aberto da mesma forma.
cinema como o seu meio sendo a própria mensagem capaz de transmitir conteúdo, mediante a técnica cinematográfica, que traz uma proximidade que pensa o próprio meio como arma do pensamento.
Para Deleuze, o pensar já nos parece fazer cinema. Um filme é um recorte do imaginário que, tanto para McLuhan quanto para Deleuze, abre as portas da imaNa comunicação face a face o discurso oral é ginação e produz situações da realidade. A arte ciapenas um componente do ritual das práticas co- nematográfica como arma do pensamento, a câmera tidianas. O sermão do padre, o discurso do líder como análogo, ou extensão, não somente do olho, mas comunitário, a retórica do diretor da escola são do cérebro. A percepção se transformando em ação. falas tautológicas – nada dizem – e fazem parte de um ritual maior, o da coesão e da resistência às ameaças de ruptura. Fala-se pela linguagem “indicial”, que não tem mal entendido, que é unívoca pela sua própria forma de se apresentar. Aqui não há paradoxos, daí seu caráter enfadonho para os que buscam o novo e o confortante para quem está em busca de segurança e imutabilidade. (MARCONDES FILHO, Ciro).
Nessa comunicação automática, é pelos atos que se conhece os atores, o meio é a mensagem. Como vê Mcluhan, a luz elétrica não tem conteúdo, mas tem a informação, que é seu próprio meio. E pouca diferença faz que ela seja usada para uma intervenção cirúrgica no cérebro ou para uma partida noturna de beisebol. Assim é a comunicação deste homem. A mensagem não é mais o conteúdo, como costumavam dizer as pessoas ao perguntarem sobre o que significava um quadro ou do que se tratava. Nunca se lembravam de perguntar do que tratava uma melodia, uma casa ou um vestido. Esta configuração se tornou tão dominante que as teorias educacionais passaram a lançar mão dela em lugar de operar com “problemas” particulares de aritmética, a abordagem estrutural agora segue as linhas de força do campo dos números - passamos a ver crianças meditando sobre a teoria dos números. Na contramão de todo o engrandecimento do meio e o vazio da mensagem, está o meio onde o conteúdo pode ser transmitido através do próprio meio: o audiovisual. O meio do audiovisual está na forma, não são necessárias mediações. A sua mensagem é transmitida sem a necessidade de convenção ou regra alguma. Diferentemente do surgimento do cubismo, que substitui o “ponto de vista” pela estética de uma tela colorida, o cinema, segundo Gilles Deleuze, passeia pelos caminhos tal como a filosofia. Traz ao homem a possibilidade de uma sala de aula sem paredes. (McLuhan). Deleuze fala ainda sobre a superioridade majestosa do
Como pensa Heidegger, o homem sabe pensar na medida em que tem a possibilidade de pensar, mas esse possível ainda não garante que sejamos capazes de pensar. (DELEUZE, Gilles). É como se o cinema nos dissesse através da sua mensagem sem linguagem, ou seja, inescapável: “Vocês não podem escapar do choque que desperta o pensador em vocês!” O choque sobre o qual Deleuze fala tem um efeito sobre o espírito, ele o força a pensar, e a pensar o Todo. O todo precisamente só pode ser pensado, pois é representação indireta do tempo que decorre do movimento. (DELEUZE, Gilles). Através do objeto/movimento que Deleuze considera a imagem (icônica) do objeto, se dá a montagem que é ao mesmo tempo a montagem no pensamento através de um processo intelectual (já que no cinema não há mediações). Ou seja, todo o contexto no qual irão ser definidos os valores de determinada imagem vão ser definidos pelo próprio cinema. (DELEUZE).
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Colunas - Filosofia No cinema, não se vê nem se ouve, mas se sente. Perguntar o que é o cinema será perguntar o que é o pensamento, percebe Gilles Deleuze na sua conclusão sobre a sétima arte. Mesmo no audiovisual existe um tautismo (neologismo com autismo e tautologia) na comunicação como “repetição imperturbável do mesmo” (MARCONDES FILHO, Ciro), em que as formas de comunicação entram numa espiral delirante e tautológica. A sociedade diz “eu sou a comunicação”. Este é um problema de consciência, que este tipo de meio, audiovisual, sofre por não ter nenhum tipo de compromisso com nenhuma sociabilidade, adaptante e adaptada. É uma questão apenas de uma comunicação vertical, não existe feedback. A partir de sua subjetividade, o receptor da mensagem dá o sentido de acordo com suas experiências, embora Deleuze observe que após o recebimento de toda a mensagem direta – choque - do cinema, a reflexão se atualiza com a nova experiência recém codificada. t
Este poder pode ser chamado de alteridade. Neste tipo de comunicação, também não é a mensagem que importa, nem mesmo o meio. A importância está na transformação. Essa teoria busca causar algum tipo de impacto no receptor, seja ele qual for. As informações ou mensagens não são direcionadas ou voltadas à transmissão do mesmo signo transmitido. Não acredita-se nesta possibilidade, mas considera-se de bom tamanho modificar o outro. Transmite-se um signo já imaginando uma interpretação subjetiva e reflexiva. Assim, este tipo de comunicação é totalmente incerto e ao mesmo tempo relativo. Acontece assim: Emissor X Fala Mensagem A à Receptor Y Fala Mensagem B Emissor X Decodifica Mensagem C à Receptor Y Decodifica Mensagem D
O que importa é que o receptor se transforme. Ou seja, nenhum deles pôde compartilhar seus pensamentos. O essencial é que o receptor após a comunicação não saia com o mesmo pensamento, argumento que possuía anteriormente. Neste tipo de comunicação, alteridade, toda a essência da etnologia é indiferente ao seu real significado, supostamente, de fazer comum uma mensagem entre duas pessoas. Fazendo referência a Nietzsche, podemos pensar que,
para chegarmos às vísceras da comunicação, há a necessidade de estar além do bem e do mal: Deve colocar-se para além do bem e do mal – e ter debaixo de si a ilusão do juízo moral. (...) Não há fatos morais. O juízo moral tem em comum com o religioso crer em realidades que não o são. A moral é unicamente uma interpretação de certos fenômenos; mais estritamente uma falsa interpretação. O juízo moral, tal como o religioso, pertence a um estádio da ignorância em que até falta o conceito do real, a distinção entre o real e o imaginário; de modo que a “verdade”, no sobredito estádio, designa simplesmente coisas que hoje chamamos “imaginações“ (alucinações, fantasias). O juízo moral jamais deve, pois, tomar-se à letra: enquanto tal contém sempre só contrasenso. Mas conserva um valor inestimável como semiótica, porque revela, pelo menos ao doutro, as mais valiosas realidades das civilizações e interioridades que não sabiam o bastante para a si mesmas se “compreenderem”. A moral é somente uma linguagem de signos, simples sintomatologia: importa saber de que se trata para daí tirar utilidade. (NIETZSCHE). Como observa Maurice Merleau-Ponty, acredita-se que vemos as coisas mesmas, o mundo é aquilo que vemos – fórmulas desse gênero exprimem uma fé comum ao homem natural (MERLEAU-PONTY, Maurice), desde que abre os olhos remete-se em uma camada profunda de opiniões mudas, implícitas na nossa vida. Mas essa fé tem isso de estranho: se procurarmos articulá-la numa tese ou num enunciado, se perguntarmos o que é este nós, o que é este ver e o que é esta coisa ou este mundo, penetramos num labirinto de dificuldades e contradições. Santo Agostinho já dizia do tempo, que este é perfeitamente familiar a cada um, mas que nenhum de nós o pode explicar aos outros. Assim, para que possamos nos relacionar verdadeiramente com um “outro”, é necessário que antes possamos compartilhar o mesmo mundo que enxergamos. Como Wittgenstein pôde perceber, há a necessidade de uma percepção “pura” – livre dos mais odiosos e mesquinhos pensamentos – livre de valores e vontades, tal como o super-homem de Nietzsche. Quando crianças, percebemos o mundo antes mesmo de entender o que é a palavra “pensar”, ou ao menos o que é uma palavra, ou ainda o que é pensar. Projetamos nossos sonhos nas coisas, pensamentos nos
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Colunas - Filosofia outros, formando com eles um bloco de vida comum, onde as perspectivas de cada um ainda não se distinguem (MERLEAU-PONTY). Ou seja, perceber algo não tem inicialmente relação real com o pensamento. Mais tarde é quando o pensamento interfere, distorce a percepção. A nossa percepção nos dá a fé num mundo, que nos leva à convicção de irmos às coisas. Mas a compreensão filosófica do mundo sacode-os para a sabedoria de que cada ser habita a sua própria ilha, não havendo transição de uma à outra, sendo mesmo de se admirar que concordem algumas vezes sobre uma coisa qualquer. Precisamos ter essa percepção do outro e o abismo que nos afasta do mesmo, caso contrário, poderemos sim nos comunicar, mas nunca nos entendermos. A comunicação transforma-nos em testemunhas de um mundo único. (MERLEAUPONTY). Quando fantasiamos o nosso próprio mundo e comunicamos algo do mesmo, o outro compreende como sendo algo de seu mundo, diante das regras e leis naturais que enxerga, também fantasiosamente. Existe uma dificuldade em transmitir aquilo que é subjetivo, que não se pode apontar. Mas trata-a como se pudesse ser compartilhada. Como observa Wittgenstein, utiliza-se a sua própria significação por vê-la como realidade. Ignora-se o fato de que não compartilhamos o mesmo mundo que as outras pessoas. Os valores não são apenas abstrações para elas, são o mundo delas, sua realidade. Desta forma, não é possível um jogo de linguagem para que possam se entender. É um problema de consciência. Por vivermos na idéia, acreditamos, e já vemos nela. (WITTGENSTEIN, Ludwig). Durante todo o texto, o mais combatido foi a superstição, a fé, e o analfabetismo, a falta de cuidado que reside na linguagem, na comunicação e nos valores. Antes de mais nada, é necessário revoltar-nos contra a linguagem dada. Elucidar uma linguagem antes da linguagem, se opor às crendices mágicas que colocam a palavra Sol no Sol. Considerar as palavras a partir de
um jogo de linguagem, assim elucidando as mediações para que não nos levem a mal entendidos invisíveis. Faz-se necessário que sejamos verdadeiramente responsáveis pelo que falamos e escutamos, elucidando sem preguiça e falta de atenção. E para finalizar, a importância de se estar além do bem o do mal está em que possamos ir além de nos comunicar, mas nos entendermos – compartilharmos o mesmo mundo, e sendo assim o mundo mesmo. Muitas das confusões com as quais nos ocupamos nascem quando a linguagem, por assim dizer, caminha no vazio, não quando trabalha. (Wittgenstein). Pode ser exemplificado com as “trombadas cronológicas” de que fala Ciro Marcondes Filho entre pessoas que habitam o mesmo ambiente (pais, filhos, colegas), que, em vista de seus diferentes padrões de referência, estariam ancorados em momentos diferentes da história cultural e das ideias, vendo, assim, cada um a seu modo, “mundos diferentes”. Para pessoas leigas no assunto, a comunicação é uma aparência. Não se encontra na linguagem nada além do que nós mesmos colocamos nelas. A comunicação é um ritual, e tudo aquilo que lhe é caro é perdido neste abismo. Sobre o Autor: Eder Juno N. Terra, 23 anos, é jornalista, pós-graduando em Cinema e Vídeo, graduando em Física-Biológica e músico. Autor do blog CCAL e integrante do Projeto Livres Pensadores, tem uma visão secular, e é contrário a qualquer tipo de fé, valor, crença, moral, ideologia, doutrina, religiosidade, cientificismo ou filosofia de vida. Blog: criandocondicoesaliberdade.blogspot.com
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O Sono
“Se o sono não possui nenhuma função absolutamente vital para o nosso organismo, então esse é o maior erro que o processo de evolução cometeu” – Allan Rechtschaffen University of Chicago Sleep Laboratory Smithsonian, November 1978 *
Dormir tarde - ou talvez nem dormir - hoje é considerado algo bem rotineiro e normal. Especialmente os mais jovens, agem como se o sono fosse algo dispensável, de menor importância. Especialmente nesse período de festas (Natal, Ano Novo e Carnaval), as pessoas mostram um pronunciado desprezo por esse compromisso que temos com nosso próprio corpo. A privação de sono pode não causar nenhum problema explícito em curto prazo, mas à longo prazo a história é outra, e quem cultiva o hábito de ignorar o sono está cometendo um grande erro. Estudos mostram que a privação de sono está relacionada a uma série de problemas de curto e longo prazo, e, ainda, predisposições para certos transtornos psiquiátricos sérios, como o Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT), depressão e outros. Já ouvi diversas vezes amigos meus falando coisas como: “Quando morrer vou ter muito tempo pra dormir”, “Dormir é para os fracos”, “A vida é muito curta para desperdiçarmos dormindo”, “Não sou preguiçoso”, e o clássico, sintético e popular “Pra que dormir?”. Quem fala esse tipo de coisa não sabe a besteira que está falando. Obviamente que uma vez ou outra vale a pena ir dormir mais tarde por causa de uma festa, um programa na TV, um compromisso acadêmico ou de trabalho. Isso faz parte da vida, principalmente da vida no século XXI. Parece ser mais um protocolo do estilo Carpe Diem, que nossa sociedade deturpou de um modo fenomenal e catastrófico. Em nome do “viva cada dia como se fosse o último”, estamos nos tornando cada vez mais ansiosos, desmemoriados, im-
pulsivos, cansados e deprimidos. A essa altura, alguém deve estar pensando (como, de fato, já ouvi pessoas falarem) “Ah, mas eu nunca passei mal, nunca tive nenhum problema por dormir pouco”. A grande questão é que, não raramente, nós sofremos as conseqüências de nossos atos inconseqüentes no futuro, quando já até esquecemos de certas coisas que fizemos na juventude - ou talvez você esteja tão acostumado com os efeitos negativos da privação de sono que talvez já ache que faz parte de seu desempenho normal. Mas em relação ao sono, não é preciso ir muito longe. Estudos mostram que a falta de horários mais ou menos fixos para dormir e acordar embaralha o nosso relógio biológico, causando uma série de desequilíbrios no nosso organismo. Os índices de transtornos relacionados ao humor (como depressão, transtorno bipolar e outros) e ansiedade também aumentam; isso sem contar com a nossa memória que é bastante prejudicada.
Problemas de Memória
Um dos primeiros estudos sobre a influência da privação de sono na consolidação de memórias foi feito por Morris (et al. 1960), sugerindo um déficit na memória temporal (ou seja, quando os eventos ocorrem). Um dos mais rigorosos estudos recentes sobre o assunto corroborou os achados de Morris. Nesse mais recente, os participantes eram divididos em dois grupos: um era submetido a 36h de privação de sono e o outro era um grupo controle, que dormia normalmente. O primeiro grupo pontuou consideravelmente menos que o controle. Até mesmo os participantes que beberam café e, por isso, possuíam certa dose de cafeína
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Colunas - Natureza Humana no sangue, não conseguiram pontuar mais que o grupo controle, que não era privado do sono (Harrison and Horne, 2000).
rados. E os voluntários foram divididos, de novo, em dois grupos: privados de sono por 40 horas e um grupo controle, não-privado de sono.
Outro interessante estudo (Drummond et al. 2000) analisou o desempenho na aprendizagem verbal de um grupo que permaneceu 35h sem dormir, usando ressonância magnética funcional. As imagens mostraram - dentre outras coisas - que no grupo privado de sono houve uma ativação muito menor do lobo medial temporal em relação ao grupo controle. Nessa região do cérebro, encontra-se uma estrutura chamada hipocampo, que é responsável também por codificar a memória de trabalho e de curto prazo. Esses tipos de memórias lidam com as informações recentes com as quais o indivíduo está trabalhando, armazenando-as temporariamente e trabalhando com elas, para depois transferí-las para a memória de longo prazo, onde as informações poderão ser armazenas por toda a vida. Acontece que, sem um funcionamento normal do hipocampo, a memória de trabalho fica prejudicada, logo, há também algum déficit relacionado às memórias que vão para a memória de longo prazo. E mais interessante ainda, é que Drummond também viu que os indivíduos que não dormiram por 35h antes da tarefa, apresentavam uma ativação pronunciadamente maior do córtex pré-frontal, que é a região do cérebro responsável pelo raciocínio e ações voluntárias em geral. Isso significa que, na ausência de um evidente bom funcionamento da memória, o indivíduo passa a se esforçar mais para criar estratégias de memorização que cubram a necessidade criada pela má memorização natural, nem que seja um “simples” esforço para mobilizar recursos atencionais e facilitar o processo.
Como o gráfico anterior mostra, os indivíduos que dormiram tiveram melhor desempenho que os outros, que não dormiram antes da tarefa, com relação aos estímulos misturados. Em relação aos estímulos mostrados separadamente, foi observado que nos de cunho positivo, os que tiveram uma noite de sono normal tiveram um desempenho muito melhor. O mesmo serve para o caso dos estímulos negativos. Isso confirma a teoria da memória emocional (Phelps, 2004), ou seja, memórias de cunho emocional são gravadas privilegiadamente, independente de serem negativas ou positivas. Isso é confirmado pelo gráfico dos estímulos neutros também, que mostrou um pior desempenho da memória nos dois grupos, se comparado com os testes anteriores usando as emoções negativas e positivas separadamente.
Impacto Emocional nas Memórias
Por outro lado, outro ponto chama a atenção nos gráficos. Repare que a funcionalidade da memória dos voluntários do grupo controle (barra branca) não oscilou consideravelmente ao longo da exposição aos estímulos de diversas naturezas, porém, a memória dos indivíduos que não dormiram (barra preta) oscilou bastante. Em especial, perceba a diferença da barra preta nos gráficos relacionados à memória positiva e negativa. Houve uma eficiência muito maior na memorização dos estímulos de tipo negativo. Por que a memória de pessoas privadas de sono funciona melhor para estímulos de tipo negativo? O motivo específico para esse viés ainda não é conhecido pelo cientistas, mas o que está claro é que existe essa relação entre ausência de muitas horas de sono e privilégio em rememorar memórias negativas. Esse achado está de acordo com estudos que mostram distúrbios de sono em transtornos de humor, como depressão. Aliás, a privação de sono em si já é tida como um dos fatores que predispôem o indivíduo a desenvolver depressão e outros transtorno de humor (Shaffery et al. 2003; Buysse 2004). Esse experimento mostra que, no cotidiano, essas pessoas que dormem pouco podem dar mais privilégio às memórias negativas do dia, rememorando-as mais fácil e constantemente, o que seria um fator preditor de transtornos do humor; ou nem seja para tanto, porque só o fato de t
Em um estudo ainda não publicado - pelo menos não até 2009 - Walker pesquisou os efeitos da falta de noites de sono no processamento da memória emocional. Para isso, Walker submeteu voluntários a vários estímulos: neutros, negativos, positivos e todos mistu-
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Colunas - Natureza Humana ficarmos com uma lembrança ruim martelando na cabeça não é uma experiência muito agradável, mesmo que não seja desenvolvido algo patológico daí.
para temê-lo.
Esse caso pode ser explicado da seguinte forma: seu medo foi mais rápido do que você pôde perceber, o que é explicado pela ativação da amígdala, que age Pincelada na neurologia – como a amíg- sem nosso controle consciente. Mas quando tomamos consciência disso, podemos modular esse medo dala pode ajudar a explicar o caso porque nosso córtex pré-frontal (que está tentando racionalizar e modular a sensação de medo) possui conexões com a amígdala. No entanto, o que é observado em pacientes com transtornos e distúrbios relacionados ao sono, é que essa conexão entre as duas estruturas é muito fraca, o que lhes dá um controle menor das emoções (negativas, nesse caso) do que o que já temos comumente.
Não Durma e Seja Menos Criativo Umas das coisas mais concretas que se sabe a respeito desses casos é que a amígdala se encontra especialmente hiperativada em pessoas privadas do sono, e essa estrutura cerebral é fundamental na expressão das emoções, ja que ela é uma das responsáveis por secretar os hormônios e neurotransmissores envolvidos no processo. E as evidências mostram que, claro, a amígdala está ativada em situações negativas, afinal, é a secreção de hormônios dessa estrutura que permite que nos sintamos tristes, com medo e etc; o problema é que as pessoas com horas insuficientes de sono possuem uma ativação no mínimo 60% maior da estrutura (Yoo et al. 2007 a).
Se você estava achando complicado esses problemas relacionados à memória, saiba que a criatividade também é afetada. Mas, o que é criatividade? Uma maneira bem simples de definir: é a capacidade de reorganizar os conhecimentos que estão à sua disposição e, assim, criar algo novo. É a clássica analogia com os brinquedos de montar, estilo Lego. Vc pega algo construído com as pecinhas, desmonta e cria uma nova estrutura; isso é criatividade.
Não é de hoje que a relação entre sono e criatividade é feita. Um dos exemplos mais célebres é o de August Kekulé, que concebeu a estrutura do benzeno durante um sonho, em que visualizou o uroboro, a cobra mítica Outro interessante achado é que, nas condições acima, que persegue e come seu próprio rabo (Hubert, 1985). além dessa hiperativação da amígdala, temos ainda Agora, vamos aos dados. uma conexão mais fraca entre amígdala e córtex préfrontal. Normalmente, a nossa amígdala pode ser ati- Pesquisas mostram que existe um claro benefício para vada por algo que não passou pela nossa consciência, as habilidades cognitivas de resolução de problemas pelo nosso raciocínio, já que ela não faz parte do cór- e criatividade, quando são testados indivíduos que tex pré-frontal, camada evolutivamente mais recente tiveram sono REM (estágio do sono em que ocorrem e responsável pela possibilidade de sermos dotados os sonhos) durante a noite e os que não passaram por de racionalidade, consciência sem igual no mundo ani- esse estágio do sono. A vantagem chega a 30% a mais mal e outras coisas relacionadas ao comportamento (Walker et al. 2002). Segundo Fosse e seus colegas voluntário. Assim, através da ativação desse córtex, (2003), o sono REM seria tão importante porque é dupodemos exercer certo controle sobre a amígdala. A rante essa fase do sono que as memórias obtidas nas coisa acontece mais ou menos assim: últimas horas são solidificadas na memória, num viés semântico, ou seja, é nessa fase que estabelecemos as Se imagine vendo um leão no zoológico. Quando o conexões lógicas e explicativas entre uma informação bichano acorda e vem rugindo na sua direção, talvez e outra. Isso seria algo evidente através dos sonhos, você sinta medo, mas segundos depois - ou até minu- por exemplo, que ocorrem nesse período do sono e tos - você pode começar a dizer para si mesmo que na maioria das vezes produzem imagens dentro de um apesar do seu medo, o leão está devidamente preso contexto bem diferente dos da realidade própria das e você está a salvo dele, então não há motivo racional informações presentes. Essa seria uma consequência Revista Livre Pensamento - Número 3
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Colunas - Natureza Humana desse processo de reorganização e conexão de informações no nosso cérebro.
Harrison, Y., & Horne, J. A. (2000). Sleep loss and temporal memory. Q. J. Exp. Psychol., 53, 271–279.
Conclusão
Hubert, A. (1985). “Kekul´e von Stradonitz, Friedrich August.” New York: Macmillan.
A frase do início deste texto resume muito bem tudo o que foi dito ao longo do texto. Nosso organismo foi preparado para dormir por volta de 7 horas por noite, a fim de manter seu funcionamento saudável. Portanto, “desperdiçar” 7 das 24 horas que temos no dia provavelmente é algo que deve contribuir para o funcionamento vital do nosso corpo. Uma visão sintética de tudo que foi visto seria que pessoas que não são versadas na arte de dormir bem estão propensas a serem mais medrosas, tristes, desmemoriadas e cansadas - sem contar com essas características multiplicadas até chegarem à patologia de fato. Sei que é tentador passar algumas noites acordado, ou ir dormir tarde todo dia - afinal, todos sabemos muito bem que hoje é bem complicado trabalhar, estudar e ainda encontrar tempo para lazer. Mas, infelizmente, temos escolhas à fazer. Podemos desfrutar “ao máximo” da vida, dormindo 4 horas por noite e etc. Mas o fato é que se vivermos num ritmo acelerado a níveis que nosso corpo não foi preparado para ultrapassar, viveremos intensamente, mas por pouco tempo. Há quem diga que prefere viver intensamente por um curto tempo do que mornamente durante um longo tempo - geralmente ouço isso de fumantes jovens...vai entender o motivo pelo qual eles acham que fumar é algo tão excepcional assim. Eu já digo que viver intensamente não corresponde a expor nosso corpo a limites que nos farão tê-lo em boa forma por pouco tempo, mas a termos sim prazeres sensoriais e efêmeros, mas também a investir em outras atitudes relacionadas a bens duradouros. Como diz um velho ditado indiano: “Quando sentimos uma coceira, nos coçamos. Mas não ter coceira alguma é melhor que se coçar por muito tempo”.
Referências * retirado de Walker, M. P., The Role of Sleep in Cognition and Emotion, The Year in Cognitive Neuroscience 2009: Ann. N. Y. Acad. Sci. 1156: 168-197 (2009) - tradução minha.
Morris, G. O., Williams, H. L., & Lubin, A. (1960). Misperception and disorientation during sleep. Arch. Gen. Psychiatry, 2, 247–254. Phelps, E. A. (2004). Human emotion andmemory: interactions of the amygdala and hippocampal complex. Curr. Opin. Neurobiol., 14, 198–202. Shaffery, J., Hoffmann, R., & Armitage, R. (2003). The neurobiology of depression: perspectives from animal and human sleep studies. Neuroscientist, 9, 82–98. Yoo, S. S., Gujar, N., Hu, P., Jolesz, F. A., & Walker, M. P. (2007a). The human emotional brain without sleep – a prefrontal amygdala disconnect. Curr. Biol., 17, R877– R878. Walker, M. P., Liston, C., Hobson, J. A., & Stickgold, R. (2002). Cognitive flexibility across the sleep-wake cycle: REM-sleep enhancement of anagram problem solving. Brain Res. Cogn. Brain Res., 14, 317–324. Fosse, M. J., Fosse, R., Hobson, J. A., & Stickgold, R. J. (2003). Dreaming and episodic memory: a functional dissociation? J. Cogn. Neurosci., 15, 1–9. Sobre o Autor: Felipe Carvalho Novaes é um graduando em psicologia que quer seguir as áreas de psicologia evolucionista e/ou psicologia cognitiva e/ou neurociência mas que não deixa de ser fascinado pelo universo, natureza e pela história humana, o que o leva a ter um pé também na astronomia, cosmologia, filosofia e história. Dentro da psicologia, um de seus temas preferidos é o autismo (especialmente a síndrome de Asperger) e as expressões faciais, além de pesquisar sobre as raízes da psicopatia e da genialidade. Nerd de carteirinha, também é fã de um bom filme de ficção científica, de revistas em quadrinhos e de video game. Blog: nerdworkingbr.blogspot.com
Drummond, S. P., Brown, G. G., Gillin, J. C., Stricker, J. L.,Wong, E. C., et al. (2000). Altered brain response to verbal learning following sleep deprivation. Nature 403, 655–657. Revista Livre Pensamento - Número 3
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SELEÇÃO NATURAL
Como se desenvolve o repertório comportamental humano?
Parte 1 Filogênese
Escrevo esta série de artigos para os leitores que gostariam de entender melhor a forma como os analistas do comportamento entendem o desenvolvimento da personalidade, ações e subjetividades humanas. Começarei com a parte que os críticos dizem que não reconhecemos: a variável biológica.
As Variáveis Biológicas do Comportamento ou Filogenéticas Para isso, primeiramente, devo ser claro sobre nosso posicionamento Darwinista, ou seja, nossa explicação é totalmente compatível com estudos científicos acumulados, principalmente com a teoria da evolução por seleção natural em que: A) Acontece “Variação” em nível fisiológico e anatômico nos organismos devido: 1 – Ao processo de reprodução sexual que recombina o material genético dos pais em praticamente infinitas possibilidades. 2 – Às variáveis ambientais que provocam mutações no material genético a ser recombinado ( radiação, alimentação etc.) 3 – À formação natural de variação em função da recombinação de genes ser um processo complexo gerando assim “aleatoriedade” ou “caos” natural. B) Esse organismo então passa a se relacionar com seu meio ambiente mutável, agindo: 1 – Em relação ao próprio ambiente físico; 2 – Em relação a membros da mesma espécie; 3 – Em relação a membros de outras espécies; Assim, o exemplar que conseguir sobreviver até a idade reprodutiva, neste ambiente altamente competitivo, e se reproduzir, passará seus genes adiante em outro exemplar da mesma espécie, embora com o material recombinado como no primeiro nível. Esse mesmo ambiente em que o organismo está se relacionando tende a mudar devido a ‘n’ causas, como a ação dos organismos vivos sobre ele, mudanças astronômi-
cas como mudança do eixo Terrestre, mudanças metereológicas (secas, eras glaciais, inundações, mudanças climáticas etc.) e geológicas (terremotos, erupções vulcânicas, derivas continentais, formações de ilhas, a separação dos continentes etc.). Essas alterações tendem a agir selecionando determinadas características de organismos que melhor se adaptam ao novo sistema ambiental, aumentando assim a probabilidade destes exemplares sobreviverem (gerando a SELEÇÃO) e se reproduzirem, diminuindo assim a probabilidade dos menos adaptados de sobreviverem e se reproduzirem, levando à EXTINÇÃO. Resumidamente, dizemos que o ambiente seleciona os organismos mais adaptáveis, e extingue os menos adaptáveis. É um fenômeno tão incrível e difícil de observar porque acontece em gerações de organismo e não individualmente. Uma espécie, que antes era dominante, pode ser extinta em poucas gerações por uma variação de si mesma em um contexto ambiental. Este é o processo que deu origem a todas as espécies de organismos vivos deste Planeta, como plantas, animais, fungos, vírus, bactérias, eu e você. Ele é o responsável também por selecionar e transmitir os repertórios de sobrevivência mínimos para o organismo vivo, como comer, beber, respirar, movimentarse no espaço etc. Imagine só se precisássemos aprender a comer? Morreríamos certamente. Outra característica biológica que foi transmitida para a maioria dos organismos vivos, se não todos os existentes atualmente, é a capacidade de aprender novos padrões comportamentais em sua história única de vida, e não unicamente limitado a surgir por seleção natural. Não se sabe ao certo a partir de qual período geológico os organismos vivos passaram a aprender com as conseqüências de seus atos. De uma forma mais precisa, as mudanças ambientais idiossincráticas passaram a selecionar variações comportamentais de organismos vivos, que os ajudassem a sobreviver e chegar à idade
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Colunas - Operando o Comportamento reprodutiva. Mais que isso, a estrutura anatômica e fisiológica do organismo individual passou a ser alterada pela seleção ambiental, armazenando assim as mudanças que tornavam mais ou menos provável se relacionar de tal e tal forma com o ambiente físico, social e relacional (simbólico). Outra coisa extremamente importante que a seleção natural nos dá enquanto organismos vivos é a sensibilidade a certos eventos ambientais ou estímulos (SR+; SR-, P+, P-) que selecionam nosso comportamento, como comida, água, sexo, contato tátil, visual, olfativo e a sensibilidade a certos eventos que aumentam ou diminuem a eficácia dos estímulos ou Operações Motivadoras (MO). E, por fim, nossa capacidade simbólica (de estar sob controle de estímulos complexos) evoluiu juntamente com a linguagem. Antes de mais nada, porém, devemos reconhecer que hoje conhecemos outros mecanismos de evolução, que não a seleção natural, como a “epigenética” e a “exaptação”, e como isso influenciará nossa interpretação de como se forma o repertório comportamental de cada organismo vivo e de uma espécie além de sua cultura. De uma forma simples: Epigenética é a “pequena”, embora não inexistente, capacidade do DNA e do RNA de se alterarem não somente no processo recombinatório da reprodução, mas durante a própria vida do organismo, e a modificação ser transmitida para os descendentes deste mesmo organismo. Um exemplo disso são os roedores viciados em cocaína que, ao se reproduzirem, proporcionaram a seus filhos uma pré-disposição maior ao vício, que se viciam mais rapidamente do que eles próprios inicialmente. Já a Exaptação, ou Sprandel, é algum padrão anatomofisiológico-comportamental surgir por forma não de seleção direta, mas da soma de outras características que “coincidentemente” juntas formam este padrão que é então selecionado. Um exemplo de Exaptação são as asas de insetos como os besouros, que surgiram em um processo de seleção natural, supostamente para serem parte do sistema respiratório, mas que por acidente tornaram o besou ro mais “estável” quando uma rajada de vento inad vertidamente os “soprava” por ai. Com o tempo, essa estabilidade foi melhorando e, por fim, possibilitou os
primeiros vôos, que foram uma vantagem enorme so bre outros que não sabiam voar. E a seleção natural vem melhorando essa característica até hoje.
Conclusão da primeira Parte Vimos que a análise do comportamento reconhece os processos da evolução das espécies, que são Seleção Natural, Epigenética e Exaptação. Também vimos que o próprio comportamento e a predisposição para ser modificado pelas conseqüências são características selecionadas nesse nível anterior, são como garras, presas, asas, cérebro, pele etc. Um fato importante é que alguns comportamentos e predisposições são inatos, eles não precisam ser desenvolvidos (ou aprendidos) durante a história do organismo, mas já vem no pacote de características selecionadas e transmitidas, como o comportamento de manter contato com o mundo pelos órgãos dos sentidos, comer, beber, se movimentar, se afastar de situações que provavelmente causariam danos e morte ao organismo etc. Outro fato importante é que nossa capacidade de relacionar símbolos complexos (realizamos equivalência de estímulos, quadros relacionais) foram também selecionadas em um nível filogenético, juntamente com a evolução do comportamento verbal, não sendo o organismo “cru”, como se acreditava antigamente, e nem tão completo como os cognitivistas querem nos empurrar. De forma geral, a seleção natural nos dá uma base para o desenvolvimento do segundo nível de seleção chamado Ontogênese, que será trabalhado no próximo artigo.
Sobre o Autor: Marcos Adilson Rodrigues Júnior é estudante do 8° Período do curso de Psicologia, Ateu, Cético, Pragmático e Behaviorista Radical. Acredita que a Ciência é a melhor forma que temos de obter conhecimento seguro e resultados satisfatórios para a espécie humana e o universo que a circunda. Blog: analisefuncional.livrespensadores.org
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Algumas Palavras Sobre Autonomia
À primeira vista, autonomia parece um conceito fácil que faz com que os pais – e/ou outros adultos que se de se entender. Na definição do dicionário Aurélio, é “a relacionam com a criança - criem uma espécie de háfaculdade de se governar por bito de dominação sobre ela. si mesmo”. Mas a realidade Esta dominação aparenta ser é que poucas pessoas consenecessária e natural, já que a guem adquirir essa capacicriança espera tudo de nós, dade, que só é alcançada em parecendo ser-nos dada como meio a um longo e cuidadoso posse, e isso acaba por gerar processo. uma postura autoritária. Como nos ensinou o educador Paulo Freire, ninguém é autônomo primeiro para depois decidir. A autonomia vai se constituindo com a experiência de várias, diversas, incontáveis decisões, que vão sendo tomadas dia a dia. Mas, durante os primeiros anos de vida, a criança está totalmente desprovida de qualquer tipo de poder, o
Mas esse estado de dependência das crianças pequenas, que parece recomendar uma atitude possessiva, deve ser entendido como uma fase passageira e, ao prolongar a autoridade assumida, o adulto está criando uma dependência. Segundo o filósofo René Descartes, a liberdade é
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Colunas - Pedagogia a mesma para todos, mas o poder não é. E, como a sição de poder, e é justamente em saber manter esse criança nasce completamente desprovida de poder, a equilíbrio que reside a sabedoria. liberdade não lhe faz sentido, pois não é possível nenhuma autonomia, nenhum domínio sobre si mesma ou sobre as decisões que lhe dizem respeito.
A relação entre pais e filhos apenas em pequena parte é instintiva, pois é uma relação humana, e esta condição (humana) envolve interesses, esperanças, desejos e sentimentos, e entre estes o desejo de que o filho seja livre e forte e, ao mesmo tempo, que ele dependa sempre dos pais (mais frequentemente das mães). Estes sentimentos somados ao poder que está nas mãos dos adultos os levam a assumir uma atitude extremamente autoritária em relação às crianças. O direito que é dado a si mesmo de comportar-se como o proprietário da verdade é intolerável, e isso frequentemente ocorre com os pais (ou mesmo outros adultos) ao falarem às (e não com) crianças. Quem escuta – a criança - não tem direito a resposta, não é considerado parte da situação - não existe ali. E é muito fácil convencer as crianças, porque é a autoridade, e não o raciocínio, que as persuade, o que nos lembra do limiar tênue entre autoridade e autoritarismo. Quem tem autoridade faz-se ouvir por deter conhecimento e ser respeitado por sua postura. Já o autoritarismo é a imposição, se é ouvido pela força. Por isso, aquele que tem autoridade não precisa ser autoritário e quem precisa ser autoritário, não tem autoridade. A autoridade está diretamente ligada a respeito, merecimento, e permite que os outros também tenham voz. Ao desconsiderar-se o outro, nasce o ser autoritário. Mas esse equilíbrio é difícil para quem detém uma po-
Estar no poder é confortável, e é difícil abrir mão desse trunfo. As contradições que se seguem a querer o bem-estar e liberdade do filho mas, ao mesmo tempo, querer que precise dos pais, acabam levando estes a transitarem sempre de um extremo ao outro, algumas vezes respeitando demais a liberdade da criança, outras não o suficiente. Como ressalta o filósofo Maurice Merleau-Ponty, há que se considerar ainda a pressão que fazemos pesar sobre a criança, que não é o que acreditamos que ela é, mas um reflexo do que queremos que ela seja, estando encarregada de realizar as esperanças não suas, mas de seus pais. E, desse modo, a criança nunca é respeitada, nem estimulada a ter autonomia, pois isso pressupõe que ela aja por si própria, pensando no melhor para si – e não no que quer que seus pais queiram. Por isso é tão importante que, em nossas relações com a criança, saibamos separar pouco a pouco o que vem de nós e o que é dela, cuidando para não vê-las como uma extensão de nós, mas como elas são. Não se deve respeitar todos os caprichos da criança, mas também não se pode considerar tudo como capricho. É preciso evitar que a conduta que se tem em relação à criança não seja ditada por situações antigas, ao invés de avaliar-se o presente. Não se podem admitir valores preestabelecidos antes de conhecermos a situação real da criança – estabelece-se o valor da
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Colunas - Pedagogia própria situação, que emerge quando esta acontece. Ninguém é sujeito da autonomia de ninguém, como disse Paulo Freire. Isso significa que não se pode conquistar a autonomia pelo ou para o outro, esta só pode ser construída por ele mesmo. Por outro lado, ninguém amadurece de repente, aos 25 anos. Nós vamos amadurecendo todo dia, ou não. A autonomia é um processo, um vir a ser, e é por isso que as situações de decisão e responsabilidade devem ser estimuladas.
Para se ter liberdade, é fundamental que a criança assuma decisões. É preferível reforçar o direito a decidir, mesmo não se acertando, ou não seguindo a decisão dos mais velhos. Assumir as consequências do ato de decidir é um passo fundamental para se adquirir responsabilidade. Estimular a autonomia é, por exemplo, desafiar o filho a fazer escolhas desde pequeno, como o melhor horário para fazer suas tarefas ou a melhor roupa para vestir, mas não só isso. É importante falar aos filhos que sua participação nos processos de decisão não é uma intromissão, mas um dever, pois é um meio de auxílio e apoio, mas não se deve decidir por eles. É preciso que haja humildade para aceitar o papel de auxiliar o filho, não mandar nele.
Nesse processo, é ainda preciso saber escutar. Escutando, aprendemos a falar com as crianças. Mas para isso, é preciso buscar falar com elas, e não a elas – embora às vezes isto também possa ser necessário. Deve-se escutar a indagação, a dúvida, o pensamento de quem escutou, e não apenas falar. Não ensinamos com discursos, mas com conversas, diálogos. Por fim, a história individual não é a única determinante de quem a criança será, como diz Merleau-Ponty. A história intra-individual – aprendizagem e internalização das regras sociais – e o meio em que está imediatamente inserido, além do mais abrangente contexto histórico–social, desempenham papel importante na formação do indivíduo. Mas o desenvolvimento da autonomia influencia todos os aspectos de sua vida, podendo mudar o modo como ela encarará os fatos.
Sobre a Autora: Kelly R. Conde, 22 anos, é formada em Ciências Contábeis, graduanda em Pedagogia e musicista. Autora do blog CCAL e integrante do Projeto Livres Pensadores, tem uma visão secular, e é contrária a qualquer tipo de fé, valor, crença, moral, ideologia, doutrina, religiosidade, cientificismo ou filosofia de vida. Blog: criandocondicoesaliberdade.blogspot.com
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Resenhas Colunas - Resenha de Livros
NÃO ENTRE EM PÂNICO!
É assim, com essas letras grandes e garrafais, que podemos resumir a obra de Douglas Adams. Um dos maiores clássicos da literatura de ficção científica, toda a série “O Guia do Mochileiro das Galáxias” possui obras essenciais para todos aqueles que um dia vão deixar a Terra ou que, simplesmente, querem uma fonte confiável sobre o universo.
O Guia do Mochileiro das Galáxias Ford Prefect é um extraterrestre de Betelegeuse que faz pesquisas de campo para coletar informações para o Guia, mas ficou ilhado aqui na Terra e tornou-se amigo de Arthur Dent, um inglês azarado que teve sua casa destruída para dar espaço a uma via e, graças à amizade de Ford, conseguiu escapar de outra destruição: a do planeta Terra, que foi destruído para dar espaço a uma... via espacial.
Para onde vamos? Onde vamos almoçar hoje? E ainda acham a grande resposta para o mistério da Vida, do Universo e tudo mais, uma resposta que deixa qualquer filósofo no chinelo. Para muitos, este é um dos melhores livros da série, pois é aqui que Douglas Adams coloca seu humor de forma genial. Mas não é apenas um livro de humor, ele é um dos autores mais perspicazes de nossos tempos, que deixa nossos problemas terrestres parecerem inúteis diante o Universo. Carl Sagan faz isso com o fascínio, Douglas Adams com o humor.
O Restaurante no Fim do Universo
A história mostra a busca do legendário planeta de Magrathea, e a resposta para as maiores perguntas do universo: De onde viemos? Por que estamos aqui? Revista Livre Pensamento - Número 3
Depois de uma aventura pelo espaço, chegou a hora de comer e onde é que fica o restaurante mais próximo? No fim do universo, onde podemos devorar um suculento bife de boi que se oferece para ser comido, acompanhada com uma Dinamite Pangaláctica, para assistir ao maior evento de todos: o fim do universo numa explosão fatal. Página 48
Colunas - Resenha de Livros Continuando suas aventuras pelo universo com Ford Prefect; Zaphod Beeblebrox, ex-presidente da galáxia que é procurado pela polícia interplanetária; Trillian, uma outra humana que conseguiu fugir da Terra com Zaphod depois de uma festa; e o grande robô maníacodepressivo Marvin, um dos melhores personagens da história. “A bordo da nave Coração de Ouro, Dent e seus amigos partem em busca de um lugar para comer. Depois de fazerem a mais estranha refeição de suas vidas, eles seguem pelo espaço para encontrar o homem que rege o universo e acabam por desvendar a questão sobre a Vida, o Universo e tudo mais.” Até aqui, Douglas Adams mantém o humor nonsense, a sua ironia e criatividade como no primeiro livro, fazendo desta uma obra incrível da série, que além de nos fazer pensar, nos faz rir, e muito.
A Vida, O Universo e Tudo Mais Neste livro, Douglas Adams, em minha opinião, começa a perder a linha da série. Ainda em minha opinião, é o menos melhor dos cinco livros, pois os personagens estão separados, e não há tanto carisma e comédia neles quando não estão juntos.
tudo mais”
Até Mais, e Obrigado Pelos Peixes Esse não é um livro ruim, mas ele muda totalmente o foco da série. Deixa de ser cômico para se tornar um romance. “Depois de viajar pelo universo, ver o aniquilamento da Terra, participar de guerras interestelares e conhecer as mais extraordinárias criaturas, Arthur está de volta ao seu planeta. Tudo parece igual, mas ele descobre que algo muito estranho aconteceu na sua ausência. Curioso com o fato e apaixonado por uma garota tão estranha quanto o que quer que tenha acontecido, ele parte em busca de uma explicação.” Em “Até mais, e obrigado pelos peixes”, Douglas nos faz refletir de maneira poética a respeito do sentido da vida, nos levando a reflexões incríveis. O nome do livro é por causa dos golfinhos. Para quem não sabe, eles são os segundos animais mais inteligentes da Terra, perdendo apenas, obviamente, para os ratos (e os chimpanzés?). Eles tentaram avisar os humanos que a Terra seria destruída pelos Vogons, ficaram pulando, felizes em seus oceanos, apenas tentando dizer: Até mais, e obrigado pelos peixes.
“Arthur Dent ficou cinco anos abandonado na Terra Pré-Histórica. Mesmo depois de tanto tempo, ele ainda acordava todas as manhãs com um grito de horror por estar preso àquela monótona e assustadora rotina.
Praticamente Inofensiva
Talvez Arthur Dent até preferisse continuar isolado em sua caverna escura, úmida e fedorenta a encarar a próxima aventura para a qual seria forçosamente arrastado: salvar o Universo dos temíveis robôs xenófobos do planeta Krikkit (KriKKit?)
13 anos depois do lançamento do primeiro livro do “Guia do Mochileiro das Galáxias”, Douglas Adams lançou “Praticamente Inofensiva”, que uns tratam como uma continuação da série, e outros como um título independente que apenas utiliza os mesmos personagens.
Usando o planeta Krikkit como paródia da nossa sociedade e das guerras raciais, Adams cria uma história divertida, inteligente e repleta dos mais inusitados significados sobe a vida, o Universo e
É nesse incrível livro que Adams retorna a genialidade que marcou os primeiros livros. Estando numa época diferente, tanto politicamente, quanto culturalmente
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Colunas - Resenha de Livros e tecnologicamente, vários acontecimentos da década de 80 e início da de 90 influenciaram nos rumos da narrativa. “Depois de muitos anos, Arthur Dent, Tricia McMillan e Ford Prefect se reencontram. Mas o que deveria ser uma festejada reunião de velhos amigos se transforma numa terrível confusão que põe em risco a vida de todos.” É aqui que surgem dois personagens incríveis: Um robô que é totalmente o oposto de Marvin, feliz e otimista até enjoar, e outra que vocês terão que ler para descobrir, é uma surpresa muito agradável. Adams fechou a série de maneira sensacional. Hoje, mais de 30 anos depois do lançamento da série que iria mudar os rumos da ficção científica no mundo, incentivando a criação de filmes como “Homens de Preto” e o desenho “Futurama”, podemos dizer que essa é a maior obra de ficção científica da história. Não só porque nos leva a situações inesperadas no universo, mas porque faz isso de maneira cômica e nos leva a uma reflexão sobre o destino da humanidade. Mas leve a série o conselho principal de toda a série: Não entre em pânico.
Sobre o Autor: Devanil Junior frequenta o curso de Astronomia na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É vlogueiro de assuntos variados, entre eles, ciência em geral e Astronomia. É da geração em que o interesse por ciência surge na ficção científica como Guerra dos Mundos e a série The Universe do History Channel. Mesmo assim, é fã declarado de Carl Sagan, a principal fonte de inspiração para seguir a carreira. Blog: http://devanil.com/
“Não é o bastante ver que um jardim é bonito sem ter que acreditar também que há fadas escondidas nele?” — Douglas Adams
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Humor Matérias - Autor:
Criacionismo
Mais estúpido, impossível!
Autor da Imagem: Mário César Mancinelli de Araújo Blog:
Detalhes: Imagem criada originalmente para ser publicada numa das páginas da Organização Livres Pensadores no Facebook: publicada na página do Projeto Livres Pensadores. Caso queira compartilhá-la em seu perfil do Facebook, a imagem encontra-se neste link. Revista Livre Pensamento - Número 3
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Ser Humano Ser Humano
O Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova (1932)
A Reconstrução Educacional no Brasil - cadear, dirigindo-as no mesmo sentido, todos os nossos esforços, sem unidade de plano e sem espírito de Ao Povo e Ao Governo
continuidade, não lograram ainda criar um sistema de Na hierarquia dos problemas nacionais, nenhum so- organização escolar, à altura das necessidades moderbreleva em importância e gravidade o da educação. nas e das necessidades do país. Tudo fragmentado e Nem mesmo os de caráter econômico lhe podem dis- desarticulado. A situação atual, criada pela sucessão putar a primazia nos planos de reconstrução nacional. periódica de reformas parciais e frequentemente arPois, se a evolução orgânica do sistema cultural de um bitrárias, lançadas sem solidez econômica e sem uma país depende de suas condições econômicas, é impos- visão global do problema, em todos seus aspectos, nos sível desenvolver as forças econômicas ou de produ- deixa antes a impressão desoladora de construções ção, sem o preparo intensivo das forças culturais e o isoladas, algumas já em ruína, outras abandonadas em desenvolvimento das aptidões à invenção e à iniciati- seus alicerces, e as melhores, ainda não em termos de va que são os fatores fundamentais do acréscimo de serem despojadas de seus andaimes... riqueza de uma sociedade. No entanto, se depois de 43 anos de regime republicano, se der um balanço ao Onde se tem de procurar a causa principal desse estaestado atual da educação pública, no Brasil, se verifi- do antes de inorganização do que de desorganização cará que, dissociadas sempre as reformas econômicas do aparelho escolar, é na falta, em quase todos os plae educacionais, que era indispensável entrelaçar e en- nos e iniciativas, da determinação dos fins de educaRevista Livre Pensamento - Número 3
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Ser Humano ção (aspecto filosófico e social) e da aplicação (aspecto técnico) dos métodos científicos aos problemas de educação. Ou, em poucas palavras, na falta de espírito filosófico e científico, na resolução dos problemas da administração escolar. Esse empirismo grosseiro, que tem presidido ao estudo dos problemas pedagógicos, postos e discutidos numa atmosfera de horizontes estreitos, tem as suas origens na ausência total de uma cultura universitária e na formação meramente literária de nossa cultura. Nunca chegamos a possuir uma “cultura própria”, nem mesmo uma “cultura geral” que nos convencesse da “existência de um problema sobre objetivos e fins da educação”. Não se podia encontrar, por isto, unidade e continuidade de pensamento em planos de reformas, nos quais as instituições escolares, esparsas, não traziam, para atraí-las e orientá-las para uma direção, o pólo magnético de uma concepção da vida, nem se submetiam, na sua organização e no seu funcionamento, a medidas objetivas com que o tratamento científico dos problemas da administração escolar nos ajuda a descobrir, à luz dos fins estabelecidos, os processos mais eficazes para a realização da obra educacional.
desenvolveram sob o impulso dos trabalhos científicos na administração dos serviços escolares.
Movimento de renovação educacional
À luz dessas verdades e sob a inspiração de novos ideais de educação, é que se gerou, no Brasil, o movimento de reconstrução educacional, com que, reagindo contra o empirismo dominante, pretendeu um grupo de educadores, nestes últimos doze anos, transferir do terreno administrativo para os planos político-sociais a solução dos problemas escolares. Não foram ataques injustos que abalaram o prestígio das instituições antigas; foram essas instituições criações artificiais ou deformadas pelo egoísmo e pela rotina, a que serviram de abrigo, que tornaram inevitáveis os ataques contra elas. De fato, porque os nossos métodos de educação haviam de continuar a ser tão prodigiosamente rotineiros, enquanto no México, no Uruguai, na Argentina e no Chile, para só falar na América espanhola, já se operavam transformações profundas no aparelho educacional, reorganizado em novas bases e em ordem a finalidades lucidamente descortinadas? Porque os nossos programas se haviam ainda de fixar nos quadros de Certo, um educador pode bem ser um filósofo e deve segregação social, em que os encerrou a república, há ter a sua filosofia de educação; mas, trabalhando cien- 43 anos, enquanto nossos meios de locomoção e os tificamente nesse terreno, ele deve estar tão interes- processos de indústria centuplicaram de eficácia, em sado na determinação dos fins de educação, quanto pouco mais de um quartel de século? Porque a escola também dos meios de realizá-los. O físico e o químico havia de permanecer, entre nós, isolada do ambiente, não terão necessidade de saber o que está e se pas- como uma instituição enquistada no meio social, sem sa além da janela do seu laboratório. Mas o educador, meios de influir sobre ele, quando, por toda a parte, como o sociólogo, tem necessidade de uma cultura rompendo a barreira das tradições, a ação educativa já múltipla e bem diversa; as alturas e as profundidades desbordava a escola, articulando-se com as outras insda vida humana e da vida social não devem estender- tituições sociais, para estender o seu raio de influência se além do seu raio visual; ele deve ter o conhecimen- e de ação? to dos homens e da sociedade em cada uma de suas fases, para perceber, além do aparente e do efêmero, Embora, a princípio, sem diretrizes definidas, esse mo“o jogo poderoso das grandes leis que dominam a evo- vimento francamente renovador inaugurou uma série lução social”, e a posição que tem a escola, e a fun- fecunda de combates de idéias, agitando o ambiente ção que representa, na diversidade e pluralidade das para as primeiras reformas impelidas para urna nova forças sociais que cooperam na obra da civilização. Se direção. Multiplicaram-se as associações e iniciativas têm essa cultura geral, que lhe permite organizar uma escolares, em que esses debates testemunhavam a doutrina de vida e ampliar o seu horizonte mental, po- curiosidade dos espíritos, pondo em circulação novas derá ver o problema educacional em conjunto, de um idéias e transmitindo aspirações novas com um caloroponto de vista mais largo, para subordinar o proble- so entusiasmo. Já se despertava a consciência de que, ma pedagógico ou dos métodos ao problema filosófico para dominar a obra educacional, em toda a sua exou dos fins da educação; se tem um espírito científico, tensão, é preciso possuir, em alto grau, o hábito de se empregará os métodos comuns a todo gênero de in- prender, sobre bases sólidas e largas, a um conjunto vestigação científica, podendo recorrer a técnicas mais de idéias abstratas e de princípios gerais, com que posou menos elaboradas e dominar a situação, realizando samos armar um ângulo de observação, para vermos experiências e medindo os resultados de toda e qual- mais claro e mais longe e desvendarmos, através da quer modificação nos processos e nas técnicas, que se complexidade tremenda dos problemas sociais, horiRevista Livre Pensamento - Número 3
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Ser Humano zontes mais vastos. Os trabalhos científicos no ramo da educação já nos faziam sentir, em toda a sua força reconstrutora, o axioma de que se pode ser tão científico no estudo e na resolução dos problemas educativos, como nos da engenharia e das finanças. Não tardaram a surgir, no Distrito Federal e em três ou quatro Estados as reformas e, com elas, as realizações, com espírito científico, e inspiradas por um ideal que, modelado à imagem da vida, já lhe refletia a complexidade. Contra ou a favor, todo o mundo se agitou. Esse movimento é hoje uma idéia em marcha, apoiando-se sobre duas forças que se completam: a força das idéias e a irradiação dos fatos.
nós não tenha adeptos”, segundo já observou Alberto Torres, princípios e idéias não passam, entre nós, de “bandeira de discussão, ornatos de polêmica ou simples meio de êxito pessoal ou político”. Ilustrados, as vezes, e eruditos, mas raramente cultos, não assimilamos bastante as idéias para se tornarem um núcleo de convicções ou um sistema de doutrina, capaz de nos impelir à ação em que costumam desencadear-se aqueles “que pensaram sua vida e viveram seu pensamento”. A interpenetração profunda que já se estabeleceu, em esforços constantes, entre as nossas idéias e convicções e a nossa vida de educadores, em qualquer setor ou linha de ataque em que tivemos de desenvolver a nossa atividade já denuncia, porém, a fidelidade e o vigor com que caminhamos para a obra de reconsDiretrizes que se esclarecem trução educacional, sem estadear a segurança de um Mas, com essa campanha, de que tivemos a iniciativa e triunfo fácil, mas com a serena confiança na vitória assumimos a responsabilidade, e com a qual se incuti- definitiva de nossos ideais de educação. Em lugar desra, por todas as formas, no magistério, o espírito novo, sas reformas parciais, que se sucederam, na sua quase o gosto da crítica e do debate e a consciência da neces- totalidade, na estreiteza crônica de tentativas empísidade de um aperfeiçoamento constante, ainda não ricas, o nosso programa concretiza uma nova política se podia considerar inteiramente aberto o caminho educacional, que nos preparará, por etapas, a grande às grandes reformas educacionais. É certo que, com a reforma, em que palpitará, com o ritmo acelerado dos efervescência intelectual que produziu no professora- organismos novos, o músculo central da estrutura podo, se abriu, de uma vez, a escola a esses ares, a cujo lítica e social da nação. oxigênio se forma a nova geração de educadores e se Em cada uma das reformas anteriores, em que imvivificou o espírito nesse fecundo movimento renova- pressiona vivamente a falta de uma visão global do dor no campo da educação pública, nos últimos anos. A problema educativo, a força inspiradora ou a energia maioria dos espíritos, tanto da velha como da nova ge- estimulante mudou apenas de forma, dando soluções ração ainda se arrastam, porém, sem convicções, atra- diferentes aos problemas particulares. Nenhuma anvés de um labirinto de idéias vagas, fora de seu alcan- tes desse movimento renovador penetrou o âmago ce, e certamente, acima de sua experiência; e, porque da questão, alterando os caracteres gerais e os traços manejam palavras, com que já se familiarizaram, ima- salientes das reformas que o precederam. Nós assistíaginam muitos que possuem as idéias claras, o que lhes mos à aurora de uma verdadeira renovação educaciotira o desejo de adquiri-las... Era preciso, pois, imprimir nal, quando a revolução estalou. Já tínhamos chegado uma direção cada vez mais firme a esse movimento já então, na campanha escolar, ao ponto decisivo e climaagora nacional, que arrastou consigo os educadores de térico, ou se o quiserdes, à linha de divisão das águas. mais destaque, e levá-lo a seu ponto culminante com Mas, a educação que, no final de contas, se resume uma noção clara e definida de suas aspirações e suas logicamente numa reforma social, não pode, ao meresponsabilidades. Aos que tomaram posição na van- nos em grande proporção, realizar-se senão pela ação guarda da campanha de renovação educacional, cabia extensa e intensiva da escola sobre o indivíduo e deso dever de formular, em documento público, as bases te sobre si mesmo nem produzir-se, do ponto de vise diretrizes do movimento que souberam provocar, de- ta das influências exteriores, senão por uma evolução finindo, perante o público e o governo, a posição que contínua, favorecida e estimulada por todas as forças conquistaram e vêm mantendo desde o início das hos- organizadas de cultura e de educação. As surpresas e tilidades contra a escola tradicional. os golpes de teatro são impotentes para modificarem
Reformas e a Reforma Se não há país “onde a opinião se divida em maior número de cores, e se não se encontra teoria que entre
o estado psicológico e moral de um povo. É preciso, porém, atacar essa obra, por um plano integral, para que ela não se arrisque um dia a ficar no estado fragmentário, semelhante a essas muralhas pelágicas, inacabadas, cujos blocos enormes, esparsos ao longe so-
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Ser Humano bre o solo, testemunham gigantes que os levantaram, A educação nova, alargando a sua finalidade para além e que a morte surpreendeu antes do cortamento de dos limites das classes, assume, com uma feição mais seus esforços... humana, a sua verdadeira função social, preparandose para formar “a hierarquia democrática” pela “hierarquia das capacidades”, recrutadas em todos os gruFinalidades da educação pos sociais, a que se abrem as mesmas oportunidades Toda a educação varia sempre em função de uma “con- de educação. Ela tem, por objeto, organizar e desencepção da vida”, refletindo, em cada época, a filosofia volver os meios de ação durável com o fim de “dirigir o predominante que é determinada, a seu turno, pela desenvolvimento natural e integral do ser humano em estrutura da sociedade. E’ evidente que as diferentes cada uma das etapas de seu crescimento”, de acordo camadas e grupos (classes) de uma sociedade dada com uma certa concepção do mundo. terão respectivamente opiniões diferentes sobre a “concepção do mundo”, que convém fazer adotar ao educando e sobre o que é necessário considerar como “qualidade socialmente útil”. O fim da educação não é, como bem observou G. Davy, “desenvolver de maneira anárquica as tendências dominantes do educando; se o mestre intervém para transformar, isto implica nele a representação de um certo ideal à imagem do qual se esforça por modelar os jovens espíritos”. Esse ideal e aspiração dos adultos toma-se mesmo mais fácil de apreender exatamente quando assistimos à sua transmissão pela obra educacional, isto é, pelo trabalho a que a sociedade se entrega para educar os seus filhos. A questão primordial das finalidades da educação gira, pois, em torno de uma concepção da vida, de um ideal, a que devem conformar-se os educandos, e que uns consideram abstrato e absoluto, e outros, concreto e relativo, variável no tempo e no espaço. Mas, o exame, num longo olhar para o passado, da evolução da educação através das diferentes civilizações, nos ensina que o “conteúdo real desse ideal” variou sempre de acordo com a estrutura e as tendências sociais da época, extraindo a sua vitalidade, como a sua força inspiradora, da própria natureza da realidade social. Ora, se a educação está intimamente vinculada à filosofia de cada época, que lhe define o caráter, rasgando sempre novas perspectivas ao pensamento pedagógico, a educação nova não pode deixar de ser uma reação categórica, intencional e sistemática contra a velha estrutura do serviço educacional, artificial e verbalista, montada para uma concepção vencida. Desprendendo-se dos interesses de classes, a que ela tem servido, a educação perde o “sentido aristológico”, para usar a expressão de Ernesto Nelson, deixa de constituir um privilégio determinado pela condição econômica e social do indivíduo, para assumir um “caráter biológico”, com que ela se organiza para a coletividade em geral, reconhecendo a todo o indivíduo o direito a ser educado até onde o permitam as suas aptidões naturais, independente de razões de ordem econômica e social.
A diversidade de conceitos da vida provém, em parte, das diferenças de classes e, em parte, da variedade de conteúdo na noção de “qualidade socialmente útil”, conforme o ângulo visual de cada uma das classes ou grupos sociais. A educação nova que, certamente pragmática, se propõe ao fim de servir não aos interesses de classes, mas aos interesses do indivíduo, e que se funda sobre o princípio da vinculação da escola com o meio social, tem o seu ideal condicionado pela vida social atual, mas profundamente humano, de solidariedade, de serviço social e cooperação. A escola tradicional, instalada para uma concepção burguesa, vinha mantendo o indivíduo na sua autonomia isolada e estéril, resultante da doutrina do individualismo libertário, que teve aliás o seu papel na formação das democracias e sem cujo assalto não se teriam quebrado os quadros rígidos da vida social. A escola socializada, reconstituída sobre a base da atividade e da produção, em que se considera o trabalho como a melhor maneira de estudar a realidade em geral (aquisição ativa da cultura) e a melhor maneira de estudar o trabalho em si mesmo, como fundamento da sociedade humana, se organizou para remontar a corrente e restabelecer, entre os homens, o espírito de disciplina, solidariedade e cooperação, por uma profunda obra social que ultrapassa largamente o quadro estreito dos interesses de classes.
Valores mutáveis e valores permanentes Mas, por menos que pareça, nessa concepção educacional, cujo embrião já se disse ter-se gerado no seio das usinas e de que se impregnam a carne e o sangue de tudo que seja objeto da ação educativa, não se rompeu nem está a pique de romper-se o equilíbrio entre os valores mutáveis e os valores permanentes da vida humana. Onde, ao contrário, se assegurará melhor esse equilíbrio é no novo sistema de educação, que, longe de se propor a fins particulares de determinados grupos sociais, às tendências ou preocupações de
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Ser Humano classes, os subordina aos fins fundamentais e gerais que assinala a natureza nas suas funções biológicas. É certo que é preciso fazer homens, antes de fazer instrumentos de produção. Mas, o trabalho que foi sempre a maior escola de formação da personalidade moral, não é apenas o método que realiza o acréscimo da produção social, é o único método susceptível de fazer homens cultivados e úteis sob todos os aspectos. O trabalho, a solidariedade social e a cooperação, em que repousa a ampla utilidade das experiências; a consciência social que nos leva a compreender as necessidades do indivíduo através das da comunidade, e o espírito de justiça, de renúncia e de disciplina, não são, aliás, grandes “valores permanentes” que elevam a alma, enobrecem o coração e fortificam a vontade, dando expressão e valor à vida humana? Um vício das escolas espiritualistas, já o ponderou Jules Simon, é o “desdém pela multidão”. Quer-se raciocinar entre si e refletir entre si. Evita de experimentar a sorte de todas as aristocracias que se estiolam no isolamento. Se se quer servir à humanidade, é preciso estar em comunhão com ela... Certo, a doutrina de educação, que se apoia no respeito da personalidade humana, considerada não mais como meio, mas como fim em si mesmo, não poderia ser acusada de tentar, com a escola do trabalho, fazer do homem uma máquina, um instrumento exclusivamente apropriado a ganhar o salário e a produzir um resultado material num tempo dado. “A alma tem uma potência de milhões de cavalos, que levanta mais peso do que o vapor. Se todas as verdades matemáticas se perdessem, escreveu Lamartine, defendendo a causa da educação integral, o mundo industrial, o mundo material, sofreria sem duvida um detrimento imenso e um dano irreparável; mas, se o homem perdesse uma só das suas verdades morais, seria o próprio homem, seria a humanidade inteira que pereceria”. Mas, a escola socializada não se organizou como um meio essencialmente social senão para transferir do plano da abstração ao da vida escolar em todas as suas manifestações, vivendo-as intensamente, essas virtudes e verdades morais, que contribuem para harmonizar os interesses individuais e os interesses coletivos. “Nós não somos antes homens e depois seres sociais, lembra-nos a voz insuspeita de Paul Bureau; somos seres sociais, por isto mesmo que somos homens, e a verdade está antes em que não há ato, pensamento, desejo, atitude, resolução, que tenham em nós sós seu princípio e seu termo e que realizem em nós somente a totalidade de seus efeitos”.
O Estado em face da educação a) A educação, uma função essencialmente pública Mas, do direito de cada indivíduo à sua educação integral, decorre logicamente para o Estado que o reconhece e o proclama, o dever de considerar a educação, na variedade de seus graus e manifestações, como uma função social e eminentemente pública, que ele é chamado a realizar, com a cooperação de todas as instituições sociais. A educação que é uma das funções de que a família se vem despojando em proveito da sociedade política, rompeu os quadros do comunismo familiar e dos grupos específicos (instituições privadas), para se incorporar definitivamente entre as funções essenciais e primordiais do Estado. Esta restrição progressiva das atribuições da família, - que também deixou de ser “um centro de produção” para ser apenas um “centro de consumo”, em face da nova concorrência dos grupos profissionais, nascidos precisamente em vista da proteção de interesses especializados”, - fazendo-a perder constantemente em extensão, não lhe tirou a “função específica”, dentro do “foco interior”, embora cada vez mais estreito, em que ela se confinou. Ela é ainda o “quadro natural que sustenta socialmente o indivíduo, como o meio moral em que se disciplinam as tendências, onde nascem, começam a desenvolverse e continuam a entreter-se as suas aspirações para o ideal”. Por isto, o Estado, longe de prescindir da família, deve assentar o trabalho da educação no apoio que ela dá à escola e na colaboração efetiva entre pais e professores, entre os quais, nessa obra profundamente social, tem o dever de restabelecer a confiança e estreitar as relações, associando e pondo a serviço da obra comum essas duas forças sociais - a família e a escola, que operavam de todo indiferentes, senão em direções diversas e ás vezes opostas. b) A questão da escola única Assentado o princípio do direito biológico de cada indivíduo à sua educação integral, cabe evidentemente ao Estado a organização dos meios de o tornar efetivo, por um plano geral de educação, de estrutura orgânica, que torne a escola acessível, em todos os seus graus, aos cidadãos a quem a estrutura social do país mantém em condições de inferioridade econômica para obter o máximo de desenvolvimento de acordo com as suas aptidões vitais. Chega-se, por esta forma, ao princípio da escola para todos, “escola comum ou única”, que, tomado a rigor, só não ficará na contingência de sofrer quaisquer restrições, em países em que as
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Ser Humano reformas pedagógicas estão intimamente ligadas com a reconstrução fundamental das relações sociais. Em nosso regime político, o Estado não poderá, de certo, impedir que, graças à organização de escolas privadas de tipos diferentes, as classes mais privilegiadas assegurem a seus filhos uma educação de classe determinada; mas está no dever indeclinável de não admitir, dentro do sistema escolar do Estado, quaisquer classes ou escolas, a que só tenha acesso uma minoria, por um privilegio exclusivamente econômico. Afastada a idéia do monopólio da educação pelo Estado num país, em que o Estado, pela sua situação financeira não está ainda em condições de assumir a sua responsabilidade exclusiva, e em que, portanto, se torna necessário estimular, sob sua vigilância as instituições privadas idôneas, a “escola única” se entenderá, entre nós, não como “uma conscrição precoce”, arrolando, da escola infantil à universidade, todos os brasileiros, e submetendo-os durante o maior tempo possível a uma formação idêntica, para ramificações posteriores em vista de destinos diversos, mas antes como a escola oficial, única, em que todas as crianças, de 7 a 15, todas ao menos que, nessa idade, sejam confiadas pelos pais à escola pública, tenham uma educação comum, igual para todos.
dade moderna em que o industrialismo e o desejo de exploração humana sacrificam e violentam a criança e o jovem”, cuja educação é freqüentemente impedida ou mutilada pela ignorância dos pais ou responsáveis e pelas contingências econômicas. A escola unificada não permite ainda, entre alunos de um e outro sexo outras separações que não sejam as que aconselham as suas aptidões psicológicas e profissionais, estabelecendo em todas as instituições “a educação em comum” ou coeducação, que, pondo-os no mesmo pé de igualdade e envolvendo todo o processo educacional, torna mais econômica a organização da obra escolar e mais fácil a sua graduação.
A função educacional a) A unidade da função educacional
A consciência desses princípios fundamentais da laicidade, gratuidade e obrigatoriedade, consagrados na legislação universal, já penetrou profundamente os espíritos, como condições essenciais à organização de um regime escolar, lançado, em harmonia com os direitos do indivíduo, sobre as bases da unificação do ensino, com todas as suas conseqüências. De fato, se a c) A laicidade, gratuidade, obrigatoriedade e co- educação se propõe, antes de tudo, a desenvolver ao máximo a capacidade vital do ser humano, deve ser educação considerada “uma só” a função educacional, cujos diA laicidade, gratuidade, obrigatoriedade e coeducação ferentes graus estão destinados a servir às diferentes são outros tantos princípios em que assenta a escola fases de seu crescimento, “que são partes orgânicas unificada e que decorrem tanto da subordinação à fi- de um todo que biologicamente deve ser levado à sua nalidade biológica da educação de todos os fins par- completa formação”. Nenhum outro princípio poderia ticulares e parciais (de classes, grupos ou crenças), oferecer ao panorama das instituições escolares perscomo do reconhecimento do direito biológico que pectivas mais largas, mais salutares e mais fecundas cada ser humano tem à educação. A laicidade, que em conseqüências do que esse que decorre logicacoloca o ambiente escolar acima de crenças e dispu- mente da finalidade biológica da educação. A seleção tas religiosas, alheio a todo o dogmatismo sectário, dos alunos nas suas aptidões naturais, a supressão de subtrai o educando, respeitando-lhe a integridade da instituições criadoras de diferenças sobre base econôpersonalidade em formação, à pressão perturbadora mica, a incorporação dos estudos do magistério à unida escola quando utilizada como instrumento de pro- versidade, a equiparação de mestres e professores em paganda de seitas e doutrinas. A gratuidade extensiva remuneração e trabalho, a correlação e a continuidade a todas as instituições oficiais de educação é um prin- do ensino em todos os seus graus e a reação contra cípio igualitário que torna a educação, em qualquer de tudo que lhe quebra a coerência interna e a unidade seus graus, acessível não a uma minoria, por um privi- vital, constituem o programa de uma política educaciolégio econômico, mas a todos os cidadãos que tenham nal, fundada sobre a aplicação do princípio unificador vontade e estejam em condições de recebê-la. Aliás o que modifica profundamente a estrutura intima e a orEstado não pode tornar o ensino obrigatório, sem tor- ganização dos elementos constitutivos do ensino e dos ná-lo gratuito. A obrigatoriedade que, por falta de es- sistemas escolares. colas, ainda não passou do papel, nem em relação ao ensino primário, e se deve estender progressivamente b) A autonomia da função educacional até uma idade conciliável com o trabalho produtor, isto é, até aos 18 anos, é mais necessária ainda “na socie- Mas, subordinada a educação pública a interesses Revista Livre Pensamento - Número 3
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Ser Humano transitórios, caprichos pessoais ou apetites de partidos, será impossível ao Estado realizar a imensa tarefa que se propõe da formação integral das novas gerações. Não há sistema escolar cuja unidade e eficácia não estejam constantemente ameaçadas, senão reduzidas e anuladas, quando o Estado não o soube ou não o quis acautelar contra o assalto de poderes estranhos, capazes de impor à educação fins inteiramente contrários aos fins gerais que assinala a natureza em suas funções biológicas. Toda a impotência manifesta do sistema escolar atual e a insuficiência das soluções dadas às questões de caráter educativo não provam senão o desastre irreparável que resulta, para a educação pública, de influencias e intervenções estranhas que conseguiram sujeita-la a seus ideais secundários e interesses subalternos. Dai decorre a necessidade de uma ampla autonomia técnica, administrativa e econômica, com que os técnicos e educadores, que têm a responsabilidade e devem ter, por isto, a direção e administração da função educacional, tenham assegurados os meios materiais para poderem realizá-la. Esses meios, porém, não podem reduzir-se às verbas que, nos orçamentos, são consignadas a esse serviço público e, por isto, sujeitas às crises dos erários do Estado ou às oscilações” do interesse dos governos pela educação. A autonomia econômica não se poderá realizar, a não ser pela instituição de um “fundo especial ou escolar”, que, constituído de patrimônios, impostos e rendas próprias, seja administrado e aplicado exclusivamente no desenvolvimento da obra educacional, pelos próprios órgãos do ensino, incumbidos de sua direção. c) A descentralização A organização da educação brasileira unitária sobre a base e os princípios do Estado, no espírito da verdadeira comunidade popular e no cuidado da unidade nacional, não implica um centralismo estéril e odioso, ao qual se opõem as condições geográficas do país e a necessidade de adaptação crescente da escola aos interesses e às exigências regionais. Unidade não significa uniformidade. A unidade pressupõe multiplicidade. Por menos que pareça, à primeira vista, não é, pois, na centralização, mas na aplicação da doutrina federativa e descentralizadora, que teremos de buscar o meio de levar a cabo, em toda a República, uma obra metódica e coordenada, de acordo com um plano comum, de completa eficiência, tanto em intensidade como em extensão. À União, na capital, e aos estados, nos seus respectivos territórios, é que deve competir a educação em todos os graus, dentro dos princípios ge-
rais fixados na nova constituição, que deve conter, com a definição de atribuições e deveres, os fundamentos da educação nacional. Ao governo central, pelo Ministério da Educação, caberá vigiar sobre a obediência a esses princípios, fazendo executar as orientações e os rumos gerais da função educacional, estabelecidos na carta constitucional e em leis ordinárias, socorrendo onde haja deficiência de meios, facilitando o intercâmbio pedagógico e cultural dos Estados e intensificando por todas as formas as suas relações espirituais. A unidade educativa, - essa obra imensa que a União terá de realizar sob pena de perecer como nacionalidade, se manifestará então como uma força viva, um espírito comum, um estado de ânimo nacional, nesse regime livre de intercâmbio, solidariedade e cooperação que, levando os Estados a evitar todo desperdício nas suas despesas escolares afim de produzir os maiores resultados com as menores despesas, abrirá margem a uma sucessão ininterrupta de esforços fecundos em criações e iniciativas.
O processo educativo O conceito e os fundamentos da educação nova O desenvolvimento das ciências lançou as bases das doutrinas da nova educação, ajustando à finalidade fundamental e aos ideais que ela deve prosseguir os processos apropriados para realizá-los. A extensão e a riqueza que atualmente alcança por toda a parte o estudo científico e experimental da educação, a libertaram do empirismo, dando-lhe um caráter e um espírito nitidamente científico e organizando, em corpo de doutrina, numa série fecunda de pesquisas e experiências, os princípios da educação nova, pressentidos e às vezes formulados em rasgos de síntese, pela intuição luminosa de seus precursores. A nova doutrina, que não considera a função educacional como uma função de superposição ou de acréscimo, segundo a qual o educando é “modelado exteriormente” (escola tradicional), mas uma função complexa de ações e reações em que o espírito cresce de “dentro para fora”, substitui o mecanismo pela vida (atividade funcional) e transfere para a criança e para o respeito de sua personalidade o eixo da escola e o centro de gravidade do problema da educação. Considerando os processos mentais, como “funções vitais” e não como “processos em si mesmos”, ela os subordina à vida, como meio de utilizá-la e de satisfazer as suas múltiplas necessidades materiais e espirituais. A escola, vista desse ângulo novo que nos dá o conceito funcional da educação, deve oferecer à criança um meio vivo e natural, “fa-
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Ser Humano vorável ao intercâmbio de reações e experiências”, em que ela, vivendo a sua vida própria, generosa e bela de criança, seja levada “ao trabalho e à ação por meios naturais que a vida suscita quando o trabalho e a ação convém aos seus interesses e às suas necessidades”. Nessa nova concepção da escola, que é uma reação contra as tendências exclusivamente passivas, intelectualistas e verbalistas da escola tradicional, a atividade que está na base de todos os seus trabalhos, é a atividade espontânea, alegre e fecunda, dirigida à satisfação das necessidades do próprio indivíduo. Na verdadeira educação funcional deve estar, pois, sempre presente, como elemento essencial e inerente à sua própria natureza, o problema não só da correspondência entre os graus do ensino e as etapas da evolução intelectual fixadas sobre a base dos interesses, como também da adaptação da atividade educativa às necessidades psicobiológicas do momento. O que distingue da escola tradicional a escola nova, não é, de fato, a predominância dos trabalhos de base manual e corporal, mas a presença, em todas as suas atividades, do fator psicobiológico do interesse, que é a primeira condição de uma atividade espontânea e o estímulo constante ao educando (criança, adolescente ou jovem) a buscar todos os recursos ao seu alcance, “graças à força de atração das necessidades profundamente sentidas”. É certo que, deslocando-se por esta forma, para a criança e para os seus interesses, móveis e transitórios, a fonte de inspiração das atividades escolares, quebra-se a ordem que apresentavam os programas tradicionais, do ponto de vista da lógica formal dos adultos, para os pôr de acordo com a “lógica psicológica”, isto é, com a lógica que se baseia na natureza e no funcionamento do espírito infantil.
com o ambiente e com a vida ativa que os rodeia, para que eles possam, desta forma, possuí-la, apreciá-la e senti-la de acordo com as aptidões e possibilidades. “A vida da sociedade, observou Paulsen, se modifica em função da sua economia, e a energia individual e coletiva se manifesta pela sua produção material”. A escola nova, que tem de obedecer a esta lei, deve ser reorganizada de maneira que o trabalho seja seu elemento formador, favorecendo a expansão das energias criadoras do educando, procurando estimular-lhe o próprio esforço como o elemento mais eficiente em sua educação e preparando-o, com o trabalho em grupos e todas as atividades pedagógicas e sociais, para fazê-lo penetrar na corrente do progresso material e espiritual da sociedade de que proveio e em que vai viver e lutar.
Plano de reconstrução educacional a) As linhas gerais do plano
Ora, assentada a finalidade da educação e definidos os meios de ação ou processos de que necessita o indivíduo para o seu desenvolvimento integral, ficam fixados os princípios científicos sobre os quais se pode apoiar solidamente um sistema de educação. A aplicação desses princípios importa, como se vê, numa radical transformação da educação pública em todos os seus graus, tanto à luz do novo conceito de educação, como à vista das necessidades nacionais. No plano de reconstrução educacional, de que se esboçam aqui apenas as suas grandes linhas gerais, procuramos, antes de tudo, corrigir o erro capital que apresenta o atual sistema (se é que se pode chamar sistema), caracterizado pela falta de continuidade e articulação do ensino, em seus diversos graus, como se não fossem etapas de um mesMas, para que a escola possa fornecer aos “impulsos mo processo, e cada um dos quais deve ter o seu “fim interiores a ocasião e o meio de realizar-se”, e abrir particular”, próprio, dentro da “unidade do fim geral ao educando à sua energia de observar, experimen- da educação” e dos princípios e métodos comuns a totar e criar todas as atividades capazes de satisfazê-la, dos os graus e instituições educativas. De fato, o divoré preciso que ela seja reorganizada como um “mundo cio entre as entidades que mantêm o ensino primário natural e social embrionário”, um ambiente dinâmico e profissional e as que mantêm o ensino secundário em íntima conexão com a região e a comunidade. A e superior, vai concorrendo insensivelmente, como já escola que tem sido um aparelho formal e rígido, sem observou um dos signatários deste manifesto, “para diferenciação regional, inteiramente desintegrado em que se estabeleçam no Brasil, dois sistemas escolares relação ao meio social, passará a ser um organismo paralelos, fechados em compartimentos estanques e vivo, com uma estrutura social, organizada à maneira incomunicáveis, diferentes nos seus objetivos culturais de uma comunidade palpitante pelas soluções de seus e sociais, e, por isto mesmo, instrumentos de estratifiproblemas. Mas, se a escola deve ser uma comunidade cação social”. em miniatura, e se em toda a comunidade as atividades manuais, motoras ou construtoras “constituem as A escola primária que se estende sobre as instituições funções predominantes da vida”, é natural que ela ini- das escolas maternais e dos jardins de infância e conscie os alunos nessas atividades, pondo-os em contato titui o problema fundamental das democracias, deve, Revista Livre Pensamento - Número 3
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Ser Humano pois, articular-se rigorosamente com a educação secundária unificada, que lhe sucede, em terceiro plano, para abrir acesso às escolas ou institutos superiores de especialização profissional ou de altos estudos. Ao espírito novo que já se apoderou do ensino primário não se poderia, porém, subtrair a escola secundária, em que se apresentam, colocadas no mesmo nível, a educação chamada “profissional” (de preferência manual ou mecânica) e a educação humanística ou científica (de preponderância intelectual), sobre uma base comum de três anos. A escola secundária deixará de ser assim a velha escola de “um grupo social”, destinada a adaptar todas as inteligências a uma forma rígida de educação, para ser um aparelho flexível e vivo, organizado para ministrar a cultura geral e satisfazer às necessidades práticas de adaptação à variedade dos grupos sociais. É o mesmo princípio que faz alargar o campo educativo das Universidades, em que, ao lado das escolas destinadas ao preparo para as profissões chamadas “liberais”, se devem introduzir, no sistema, as escolas de cultura especializada, para as profissões industriais e mercantis, propulsoras de nossa riqueza econômica e industrial. Mas esse princípio, dilatando o campo das universidades, para adaptá-las à variedade e às necessidades dos grupos sociais, tão longe está de lhes restringir a função cultural que tende a elevar constantemente as escolas de formação profissional, achegando-as às suas próprias fontes de renovação e agrupando-as em torno dos grandes núcleos de criação livre, de pesquisa científica e de cultura desinteressada.
la, sem negar a arte, a literatura e os valores culturais. A arte e a literatura tem efetivamente uma significação social, profunda e múltipla; a aproximação dos homens, a sua organização em uma coletividade unânime, a difusão de tais ou quais idéias sociais, de uma maneira “imaginada”, e, portanto, eficaz, a extensão do raio visual do homem e o valor moral e educativo conferem certamente à arte uma enorme importância social. Mas, se, à medida que a riqueza do homem aumenta, o alimento ocupa um lugar cada vez mais fraco, os produtores intelectuais não passam para o primeiro plano senão quando as sociedades se organizam em sólidas bases econômicas. b) O ponto nevrálgico da questão A estrutura do plano educacional corresponde, na hierarquia de suas instituições escolares (escola infantil ou pré-primária; primária; secundária e superior ou universitária) aos quatro grandes períodos que apresenta o desenvolvimento natural do ser humano. É uma reforma integral da organização e dos métodos de toda a educação nacional, dentro do mesmo espírito que substitui o conceito estático do ensino por um conceito dinâmico, fazendo um apelo, dos jardins de infância à Universidade, não à receptividade mas à atividade criadora do aluno. A partir da escola infantil (4 a 6 anos) à Universidade, com escala pela educação primária (7 a 12) e pela secundária (l2 a 18 anos), a “continuação ininterrupta de esforços criadores” deve levar à formação da personalidade integral do aluno e ao desenvolvimento de sua faculdade produtora e de seu poder criador, pela aplicação, na escola, para a aquisição ativa de conhecimentos, dos mesmos métodos (observação, pesquisa, e experiência), que segue o espírito maduro, nas investigações científicas. A escola secundária, unificada para se evitar o divórcio entre os trabalhadores manuais e intelectuais, terá uma sólida base comum de cultura geral (3 anos), para a posterior bifurcação (dos 15 aos 18), em seção de preponderância intelectual (com os 3 ciclos de humanidades modernas; ciências físicas e matemáticas; e ciências químicas e biológicas), e em seção de preferência manual, ramificada por sua vez, em ciclos, escolas ou cursos destinados à preparação às atividades profissionais, decorrentes da extração de matérias primas (escolas agrícolas, de mineração e de pesca) da elaboração das matérias primas (industriais e profissionais) e da distribuição dos produtos elaborados (transportes, comunicações e comércio).
A instrução pública não tem sido, entre nós, na justa observação de Alberto Torres, senão um “sistema de canais de êxodo da mocidade do campo para as cidades e da produção para o parasitismo”. É preciso, para reagir contra esses males, já tão lucidamente apontados, pôr em via de solução o problema educacional das massas rurais e do elemento trabalhador da cidade e dos centros industriais já pela extensão da escola do trabalho educativo e da escola do trabalho profissional, baseada no exercício normal do trabalho em cooperação, já pela adaptação crescente dessas escolas (primária e secundária profissional) às necessidades regionais e às profissões e indústrias dominantes no meio. A nova política educacional rompendo, de um lado, contra a formação excessivamente literária de nossa cultura, para lhe dar um caráter científico e técnico, e contra esse espírito de desintegração da escola, em relação ao meio social, impõe reformas profundas, orientadas no sentido da produção e procura reforçar, Mas, montada, na sua estrutura tradicional, para a por todos os meios, a intenção e o valor social da esco- classe média (burguesia), enquanto a escola primária Revista Livre Pensamento - Número 3
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Ser Humano servia à classe popular, como se tivesse uma finalidade em si mesma, a escola secundária ou do 3º grau não forma apenas o reduto dos interesses de classe, que criaram e mantêm o dualismo dos sistemas escolares. É ainda nesse campo educativo que se levanta a controvérsia sobre o sentido de cultura geral e se põe o problema relativo à escolha do momento em que a matéria do ensino deve diversificar-se em ramos iniciais de especialização. Não admira, por isto, que a escola secundária seja, nas reformas escolares, o ponto nevrálgico da questão. Ora, a solução dada, neste plano, ao problema do ensino secundário, levantando os obstáculos opostos pela escola tradicional à interpenetração das classes sociais, se inspira na necessidade de adaptar essa educação à diversidade nascente de gostos e à variedade crescente de aptidões que a observação psicológica regista nos adolescentes e que “representam as únicas forças capazes de arrastar o espírito dos jovens à cultura superior”. A escola do passado, com seu esforço inútil de abarcar a soma geral de conhecimentos, descurou a própria formação do espírito e a função que lhe cabia de conduzir o adolescente ao limiar das profissões e da vida. Sobre a base de uma cultura geral comum, em que importará menos a quantidade ou qualidade das matérias do que o “método de sua aquisição”, a escola moderna estabelece para isto, depois dos 15 anos, o ponto em que o ensino se diversifica, para se adaptar já à diversidade crescente de aptidões e de gostos, já à variedade de formas de atividade social.
versitária, a partir dos 18 anos, inteiramente gratuita como as demais, deve tender, de fato, não somente à formação profissional e técnica, no seu máximo desenvolvimento, como à formação de pesquisadores, em todos os ramos de conhecimentos humanos. Ela deve ser organizada de maneira que possa desempenhar a tríplice função que lhe cabe de elaboradora ou criadora de ciência (investigação), docente ou transmissora de conhecimentos (ciência feita) e de vulgarizadora ou popularizadora, pelas instituições de extensão universitária, das ciências e das artes.
No entanto, com ser a pesquisa, na expressão de Coulter, o “sistema nervoso da Universidade”, que estimula e domina qualquer outra função; com ser esse espírito de profundidade e universalidade, que imprime à educação superior um caráter universitário, pondo-a em condições de contribuir para o aperfeiçoamento constante do saber humano, a nossa educação superior nunca ultrapassou os limites e as ambições de formação profissional, a que se propõem as escolas de engenharia, de medicina e direito. Nessas instituições, organizadas antes para uma função docente, a ciência está inteiramente subordinada à arte ou à técnica da profissão a que servem, com o cuidado da aplicação imediata e próxima, de uma direção utilitária em vista de uma função pública ou de uma carreira privada. Ora, se, entre nós, vingam facilmente todas as fórmulas e frases feitas; se a nossa ilustração, mais variada e mais vasta do que no império, é hoje, na frase de Alberto Torres, “mais vaga, fluida, sem assento, incac) O conceito moderno de Universidade e o pro- paz de habilitar os espíritos a formar juízos e incapaz blema universitário no Brasil de lhes inspirar atos”, é porque a nossa geração, além de perder a base de uma educação secundária sólida, A educação superior que tem estado, no Brasil, exclu- posto que exclusivamente literária, se deixou infiltrar sivamente a serviço das profissões “liberais” (enge- desse espírito enciclopédico em que o pensamento nharia, medicina e direito), não pode evidentemente ganha em extensão o que perde em profundidade; erigir-se à altura de uma educação universitária, sem em que da observação e da experiência, em que devia alargar para horizontes científicos e culturais a sua fi- exercitar-se, se deslocou o pensamento para o hedonalidade estritamente profissional e sem abrir os seus nismo intelectual e para a ciência feita, e em que, fiquadros rígidos à formação de todas as profissões nalmente, o período criador cede o lugar à erudição, e que exijam conhecimentos científicos, elevando-as a essa mesma quase sempre, entre nós, aparente e sem todas a nível superior e tornando-se, pela flexibilida- substância, dissimulando sob a superfície, às vezes bride de sua organização, acessível a todas. Ao lado das lhante, a absoluta falta de solidez de conhecimentos. faculdades profissionais existentes, reorganizadas em novas bases, impõe-se a criação simultânea ou sucessi- Nessa superficialidade de cultura, fácil e apressada, de va, em cada quadro universitário, de faculdades de ci- autodidatas, cujas opiniões se mantêm prisioneiras de ências sociais e econômicas; de ciências matemáticas, sistemas ou se matizam das tonalidades das mais vafísicas e naturais, e de filosofia e letras que, atendendo riadas doutrinas, se tem de buscar as causas profundas à variedade de tipos mentais e das necessidades so- da estreiteza e da flutuação dos espíritos e da indisciciais, deverão abrir às universidades que se criarem ou plina mental, quase anárquica, que revelamos em face se reorganizarem, um campo cada vez mais vasto de de todos os problemas. Nem a primeira geração nasinvestigações científicas. A educação superior ou uni- cida com a república, no seu esforço heróico para adRevista Livre Pensamento - Número 3
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Ser Humano quirir a posse de si mesma, elevando-se acima de seu meio, conseguiu libertar-se de todos os males educativos de que se viciou a sua formação. A organização de Universidades é, pois, tanto mais necessária e urgente quanto mais pensarmos que só com essas instituições, a que cabe criar e difundir ideais políticos, sociais, morais e estéticos, é que podemos obter esse intensivo espírito comum, nas aspirações, nos ideais e nas lutas, esse “estado de ânimo nacional”, capaz de dar força, eficácia e coerência à ação dos homens, sejam quais forem as divergências que possa estabelecer entre eles a diversidade de pontos de vista na solução dos problemas brasileiros. É a universidade, no conjunto de suas instituições de alta cultura, prepostas ao estudo científico dos grandes problemas nacionais, que nos dará os meios de combater a facilidade de tudo admitir; o ceticismo de nada escolher nem julgar; a falta de crítica, por falta de espírito de síntese; a indiferença ou a neutralidade no terreno das idéias; a ignorância “da mais humana de todas as operações intelectuais, que é a de tomar partido”, e a tendência e o espírito fácil de substituir os princípios (ainda que provisórios) pelo paradoxo e pelo humor, esses recursos desesperados.
dos problemas que põe a complexidade das sociedades modernas. Essa seleção que se deve processar não “por diferenciação econômica”, mas “pela diferenciação de todas as capacidades”, favorecida pela educação, mediante a ação biológica e funcional, não pode, não diremos completar-se, mas nem sequer realizar-se senão pela obra universitária que, elevando ao máximo o desenvolvimento dos indivíduos dentro de suas aptidões naturais e selecionando os mais capazes, lhes dá bastante força para exercer influência efetiva na sociedade e afetar, dessa forma, a consciência social.
A unidade de formação de professores e a unidade de espírito
Ora, dessa elite deve fazer parte evidentemente o professorado de todos os graus, ao qual, escolhido como sendo um corpo de eleição, para uma função pública da mais alta importância, não se dá, nem nunca se deu no Brasil, a educação que uma elite pode e deve receber. A maior parte dele, entre nós, é recrutada em todas as carreiras, sem qualquer preparação profissional, como os professores do ensino secundário e os do ensino superior (engenharia, medicina, direito, etc.), d) O problema dos melhores entre os profissionais dessas carreiras, que receberam, De fato, a Universidade, que se encontra no ápice de uns e outros, do secundário a sua educação geral. O todas as instituições educativas, está destinada, nas magistério primário, preparado em escolas especiais sociedades modernas a desenvolver um papel cada (escolas normais), de caráter mais propedêutico, e, as vez mais importante na formação das elites de pen- vezes misto, com seus cursos geral e de especializasadores, sábios, cientistas, técnicos, e educadores, ção profissional, não recebe, por via de regra, nesses de que elas precisam para o estudo e solução de suas estabelecimentos, de nível secundário, nem uma sóliquestões científicas, morais, intelectuais, políticas e da preparação pedagógica, nem a educação geral em econômicas. Se o problema fundamental das demo- que ela deve basear-se. A preparação dos professores, cracias é a educação das massas populares, os melho- como se vê, é tratada entre nós, de maneira diferenres e os mais capazes, por seleção, devem formar o te, quando não é inteiramente descuidada, como se vértice de uma pirâmide de base imensa. Certamente, a função educacional, de todas as funções públicas a o novo conceito de educação repele as elites forma- mais importante, fosse a única para cujo exercício não das artificialmente “por diferenciação econômica” ou houvesse necessidade de qualquer preparação profissob o critério da independência econômica, que não sional. Todos os professores, de todos os graus, cuja é nem pode ser hoje elemento necessário para fazer preparação geral se adquirirá nos estabelecimentos parte delas. A primeira condição para que uma elite de ensino secundário, devem, no entanto, formar o desempenhe a sua missão e cumpra o seu dever é de seu espírito pedagógico, conjuntamente, nos cursos ser “inteiramente aberta” e não somente de admitir universitários, em faculdades ou escolas normais, eletodas as capacidades novas, como também de rejeitar vadas ao nível superior e incorporadas às universidaimplacavelmente de seu seio todos os indivíduos que des. A tradição das hierarquias docentes, baseadas na não desempenham a função social que lhes é atribuída diferenciação dos graus de ensino, e que a linguagem no interesse da coletividade. Mas, não há sociedade fixou em denominações diferentes (mestre, professor alguma que possa prescindir desse órgão especial e e catedrático), é inteiramente contrária ao princípio da tanto mais perfeitas serão as sociedades quanto mais unidade da função educacional, que, aplicado, às funpesquisada e selecionada for a sua elite, quanto maior ções docentes, importa na incorporação dos estudos for a riqueza e a variedade de homens, de valor cultu- do magistério às universidades, e, portanto, na liberral substantivo, necessários para enfrentar a variedade tação espiritual e econômica do professor, mediante Revista Livre Pensamento - Número 3
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Ser Humano uma formação e remuneração equivalentes que lhe permitam manter, com a eficiência no trabalho, a dignidade e o prestígio indispensáveis aos educadores. A formação universitária dos professores não é somente uma necessidade da função educativa, mas o único meio de, elevando-lhes em verticalidade a cultura, e abrindo-lhes a vida sobre todos os horizontes, estabelecer, entre todos, para a realização da obra educacional, uma compreensão recíproca, uma vida sentimental comum e um vigoroso espírito comum nas aspirações e nos ideais. Se o estado cultural dos adultos é que dá as diretrizes à formação da mocidade, não se poderá estabelecer uma função e educação unitária da mocidade, sem que haja unidade cultural naqueles que estão incumbidos de transmití-la. Nós não temos o feiticismo mas o princípio da unidade, que reconhecemos não ser possível senão quando se criou esse “espírito”, esse “ideal comum”, pela unificação, para todos os graus do ensino, da formação do magistério, que elevaria o valor dos estudos, em todos os graus, imprimiria mais lógica e harmonia às instituições, e corrigiria, tanto quanto humanamente possível, as injustiças da situação atual. Os professores de ensino primário e secundário, assim formados, em escolas ou cursos universitários, sobre a base de uma educação geral comum, dada em estabelecimentos de educação secundária, não fariam senão um só corpo com os do ensino superior, preparando a fusão sincera e cordial de todas as forças vivas do magistério. Entre os diversos graus do ensino, que guardariam a sua função específica, se estabeleceriam contatos estreitos que permitiriam as passagens de um ao outro nos momentos precisos, descobrindo as superioridade em gérmen, pondo-as em destaque e assegurando, de um ponto a outro dos estudos, a unidade do espírito sobre a base da unidade de formação dos professores.
a adolescência e a mocidade, de conformidade com os interesses e as alegrias profundas de sua natureza. A educação, porém, não se faz somente pela escola, cuja ação é favorecida ou contrariada, ampliada ou reduzida pelo jogo de forças inumeráveis que concorrem ao movimento das sociedades modernas. Numerosas e variadíssimas, são, de fato, as influências que formam o homem através da existência. “Há a herança que a escola da espécie, como já se escreveu; a família que é a escola dos pais; o ambiente social que é a escola da comunidade, e a maior de todas as escolas, a vida, com todos os seus imponderáveis e forças incalculáveis”. Compreender, então, para empregar a imagem de C. Bouglé, que, na sociedade, a “zona luminosa é singularmente mais estreita que a zona de sombra; os pequenos focos de ação consciente que são as escolas, não são senão pontos na noite, e a noite que as cerca não é vazia, mas cheia e tanto mais inquietante; não é o silêncio e a imobilidade do deserto, mas o frêmito de uma floresta povoada”.
Dessa concepção positiva da escola, como uma instituição social, limitada, na sua ação educativa, pela pluralidade e diversidade das forças que concorrem ao movimento das sociedades, resulta a necessidade de reorganizá-la, como um organismo maleável e vivo, aparelhado de um sistema de instituições susceptíveis de lhe alargar os limites e o raio de ação. As instituições periescolares e postescolares, de caráter educativo ou de assistência social, devem ser incorporadas em todos os sistemas de organização escolar para corrigirem essa insuficiência social, cada vez maior, das instituições educacionais. Essas instituições de educação e cultura, dos jardins de infância às escolas superiores, não exercem a ação intensa, larga e fecunda que são chamadas a desenvolver e não podem exercer senão por esse conjunto sistemático de medidas de projeção social da obra educativa além dos muros escolares. Cada escola, seja qual for o seu grau, dos jardins O papel da escola na vida e a sua função so- às universidades, deve, pois, reunir em tomo de si as cial famílias dos alunos, estimulando e aproveitando as iniciativas dos pais em favor da educação; constituinMas, ao mesmo tempo que os progressos da psico- do sociedades de ex-alunos que mantenham relação logia aplicada à criança começaram a dar à educação constante com as escolas; utilizando, em seu proveito, bases científicas, os estudos sociológicos, definindo a os valiosos e múltiplos elementos materiais e espiriposição da escola em face da vida, nos trouxeram uma tuais da coletividade e despertando e desenvolvendo consciência mais nítida da sua função social e da estrei- o poder de iniciativa e o espírito de cooperação social teza relativa de seu círculo de ação. Compreende-se, à entre os pais, os professores, a imprensa e todas as deluz desses estudos, que a escola, campo específico de mais instituições diretamente interessadas na obra da educação, não é um elemento estranho à sociedade educação. humana, um elemento separado, mas “uma instituição social”, um órgão feliz e vivo, no conjunto das institui- Pois, é impossível realizar-se em intensidade e extenções necessárias à vida, o lugar onde vivem a criança, são, uma sólida obra educacional, sem se rasgarem à Revista Livre Pensamento - Número 3
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Ser Humano escola aberturas no maior numero possível de direções e sem se multiplicarem os pontos de apoio de que ela precisa, para se desenvolver, recorrendo a comunidade como à fonte que lhes há de proporcionar todos os elementos necessários para elevar as condições materiais e espirituais das escolas. A consciência do verdadeiro papel da escola na sociedade impõe o dever de concentrar a ofensiva educacional sobre os núcleos sociais, como a família, os agrupamentos profissionais e a imprensa, para que o esforço da escola se possa realizar em convergência, numa obra solidária, com as outras instituições da comunidade. Mas, além de atrair para a obra comum as instituições que são destinadas, no sistema social geral, a fortificar-se mutuamente, a escola deve utilizar, em seu proveito, com a maior amplitude possível, todos os recursos formidáveis, como a imprensa, o disco, o cinema e o rádio, com que a ciência, multiplicando-lhe a eficácia, acudiu à obra de educação e cultura e que assumem, em face das condições geográficas e da extensão territorial do país, uma importância capital. À escola antiga, presumida da importância do seu papel e fechada no seu exclusivismo acanhado e estéril, sem o indispensável complemento e concurso de todas as outras instituições sociais, se sucederá a escola moderna aparelhada de todos os recursos para estender e fecundar a sua ação na solidariedade com o meio social, em que então, e só então, se tornará capaz de influir, transformando-se num centro poderoso de criação, atração e irradiação de todas as forças e atividades educativas.
A democracia, - um programa de longos deveres Não alimentamos, de certo, ilusões sobre as dificuldades de toda a ordem que apresenta um plano de reconstrução educacional de tão grande alcance e de tão vastas proporções. Mas, temos, com a consciência profunda de uma por uma dessas dificuldades, a disposição obstinada de enfrentá-las, dispostos, como estamos, na defesa de nossos ideais educacionais, para as existências mais agitadas, mais rudes e mais fecundas em realidades, que um homem tenha vivido desde que há homens, aspirações e lutas. O próprio espírito que o informa de uma nova política educacional, com sentido unitário e de bases científicas, e que seria, em outros países, a maior fonte de seu prestígio, tornará esse plano suspeito aos olhos dos que, sob o pretexto e em nome do nacionalismo, persistem em manter a educação, no terreno de uma política empírica, à margem das correntes renovadoras de seu tempo. De mais, se os problemas de educação devem ser resolvi-
dos de maneira científica, e se a ciência não tem pátria, nem varia, nos seus princípios, com os climas e as latitudes, a obra de educação deve ter, em toda a parte, uma “unidade fundamental”, dentro da variedade de sistemas resultantes da adaptação a novos ambientes dessas idéias e aspirações que, sendo estruturalmente científicas e humanas, têm um caráter universal. É preciso, certamente, tempo para que as camadas mais profundas do magistério e da sociedade em geral sejam tocadas pelas doutrinas novas e seja esse contato bastante penetrante e fecundo para lhe modificar os pontos de vista e as atitudes em face do problema educacional, e para nos permitir as conquistas em globo ou por partes de todas as grandes aspirações que constituem a substância de uma nova política de educação. Os obstáculos acumulados, porém, não nos abateram ainda nem poderão abater-nos a resolução firme de trabalhar pela reconstrução educacional no Brasil. Nós temos uma missão a cumprir: insensíveis à indiferença e à hostilidade, em luta aberta contra preconceitos e prevenções enraizadas, caminharemos progressivamente para o termo de nossa tarefa, sem abandonarmos o terreno das realidades, mas sem perdermos de vista os nossos ideais de reconstrução do Brasil, na base de uma educação inteiramente nova. A hora crítica e decisiva que vivemos, não nos permite hesitar um momento diante da tremenda tarefa que nos impõe a consciência, cada vez mais viva da necessidade de nos prepararmos para enfrentarmos com o evangelho da nova geração, a complexidade trágica dos problemas postos pelas sociedades modernas. “Não devemos submeter o nosso espírito. Devemos, antes de tudo proporcionar-nos um espírito firme e seguro; chegar a ser sérios em todas as coisas, e não continuar a viver frivolamente e como envoltos em bruma; devemos formar-nos princípios fixos e inabaláveis que sirvam para regular, de um modo firme, todos os nossos pensamentos e todas as nossas ações; vida e pensamento devem ser em nós outros de uma só peça e formar um todo penetrante e sólido. Devemos, em uma palavra, adquirir um caráter, e refletir, pelo movimento de nossas próprias idéias, sobre os grandes acontecimentos de nossos dias, sua relação conosco e o que podemos esperar deles. É preciso formar uma opinião clara e penetrante e responder a esses problemas sim ou não de um modo decidido e inabalável”. Essas palavras tão oportunas, que agora lembramos, escreveu-as Fichte há mais de um século, apontando à Alemanha, depois da derrota de Iena, o caminho de sua salvação pela obra educacional, em um daqueles famosos “discursos à nação alemã”, pronunciados de
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Ser Humano sua cátedra, enquanto sob as janelas da Universidade, pelas ruas de Berlim, ressoavam os tambores franceses... Não são, de fato, senão as fortes convicções e a plena posse de si mesmos que fazem os grandes homens e os grandes povos. Toda a profunda renovação dos princípios que orientam a marcha dos povos precisa acompanhar-se de fundas transformações no regime educacional: as únicas revoluções fecundas são as que se fazem ou se consolidam pela educação, e é só pela educação que a doutrina democrática, utilizada como um princípio de desagregação moral e de indisciplina, poderá transformar-se numa fonte de esforço moral, de energia criadora, de solidariedade social e de espírito de cooperação. “O ideal da democracia que, - escrevia Gustave Belot em 1919, - parecia mecanismo político, torna-se princípio de vida moral e social, e o que parecia coisa feita e realizada revelou-se como um caminho a seguir e como um programa de longos deveres”. Mas, de todos os deveres que incumbem ao Estado, o que exige maior capacidade de dedicação e justifica maior soma de sacrifícios; aquele com que não é possível transigir sem a perda irreparável de algumas gerações; aquele em cujo cumprimento os erros praticados se projetam mais longe nas suas conseqüências, agravando-se à medida que recuam no tempo; o dever mais alto, mais penoso e mais grave é, de certo, o da educação que, dando ao povo a consciência de si mesmo e de seus destinos e a força para afirmar-se e realizá-los, entretém, cultiva e perpetua a identidade da consciência nacional, na sua comunhão íntima com a consciência humana.
A. Ferreira de Almeida Jr. J. P. Fontenelle Roldão Lopes de Barros Noemy M. da Silveira Hermes Lima Attilio Vivacqua Francisco Venancio Filho Paulo Maranhão Cecilia Meirelles Edgar Sussekind de Mendonça Armanda Alvaro Alberto Garcia de Rezende Nobrega da Cunha Paschoal Lemme Raul Gomes.
Fernando de Azevedo Afranio Peixoto A. de Sampaio Doria Anisio Spinola Teixeira M. Bergstrom Lourenço Filho Roquette Pinto J. G. Frota Pessôa Julio de Mesquita Filho Raul Briquet Mario Casassanta C. Delgado de Carvalho Revista Livre Pensamento - Número 3
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