TÊXTEIS
Introdução
Este livreto é um registro livre e poético dos processos experimentados na disciplina “Práticas têxteis no Urbano” em 2023. Construído a partir de fotos, imagens trabalhadas na aula e dos trabalhos desenvolvidos pelas alunas:
Ana Carolina Lages
Carol Dupin
Cristiane Luiza Ávila
Gabriella Sevilha
Iara Paraizo
Isabella Breder
Joelle de Carvalho
Letícia Moraes
Ligia Persichini
Luiza Therezo
Marcela Brandão
Patricia Faria
Pauline Aimê
Samuel Braga
Thais Mol
Thiago Flores
Vívian Florense
Exercícios
Provocados por Ursula LeGuin a encontrar nas tramas do fazer têxtil as nossas histórias vitais, nossa humanidade que nos foi negada pela história do herói – que também é assassino - pedimos as alunas para trazer objetos de seus arquivos pessoais e familiares e colocarem esses panos, tecidos, bordados e crochês para contarem suas histórias. Com esse exercício pudemos começar a escutar as histórias que o fazer nos conta, muitas vezes silenciosas para quem tenta as compreender apenas pela via da oralidade.
Encontrar os fios para cruzarmos nossas histórias. Processos de escuta, registro e partilha que participem do universo desses fazeres e respeite os procedimentos de suas praticantes foi essencial para cruzarmos nossas histórias particulares, encontrando nelas continuidades e rompimentos, para em seguida tramá-las junto às histórias de outros grupos visitados no contexto do curso.
Visitas
Em uma das vilas operárias mais emblemáticas, da fábrica de Biribiri, encontramos nos registros da gerência a procura por mulheres pobres, órfãs ou viúvas, consideradas corpos dóceis para o trabalho, que eram alojadas em pensionatos, com regras sobre horários, convívio e comportamento. Ao abrigá-las dos perigos do mundo, os patrões eram tidos como figuras paternas protetoras. As estruturas dessas fábricas remetem aos dispositivos de controle analisados por Foucault como estratégia de controle da vida íntima a partir da organização do espaço e sociedade. Se por um lado essa organização as guardava de outras violências, era em si uma privação em relação a suas subjetividades. Ainda assim, no avesso dos documentos oficiais, é possível encontrar as linhas de fuga das mulheres que produziam seu próprio cotidiano e história. As “malandras” que desobedeciam seus patrões, brincando ou namorando em serviço.
“Senhor gerente, comunico-lhe que foi necessário suspender dos serviços durante as 4:00 horas de hoje e o dia de amanhã, a operária Maria Madalena Brant, por motivo de ter largado a sua máquina, para se assentar em cima de um carrinho de transportar linha convidando a sua colega Welza para empurrá-la e a mesma aceitou, elas saíram brincando chamando a atenção de todas as suas colegas. Este fato foi por mim presenciado, que resolvi tomar esta atitude, e que espero vossa aprovação.”
A Estúdio Veste é uma marca que desenvolve produtos têxteis para uso doméstico. Formada por Luiza Luz e Dani Luz, sobrinha e tia, a história dos produtos se trama pela biografia da própria família. Aprendemos com elas sobre a riqueza da biografia pessoal para se alimentar as criações estéticas e que a continuidade da tradição só é possível pelo rompimento, que renova o que se repete em movimento espiralar.
O projeto Flores do Morro reúne duas vezes por semana moradoras do Morro das Pedras, favela localizada na região Oeste de Belo Horizonte. A partir de técnicas têxteis diversas suas participantes contam suas histórias e em produtos que complementam suas rendas.
A Associação Casa Madre Teresa de Calcutá localizada na favela Taquaril, atua há 20 anos no acolhimento e acompanhamento de mulheres com trajetória de rua. O bordado se tornou central na associação como uma atividade que possibilita reunir as assistidas, virar uma ocupação e geração de renda. Como escutamos na visita o no início é difícil começar a bordar mas com o tempo este fazer desata os nós da cabeça.
LINGUÍSTICA
LINGUÍSTICA TÊXTIL
FUXICO s.m [fu.xi.co]
1. Dito que, baseado em inverdades, é disseminado com o intuito de prejudicar alguém. 2. Fofoca. 3. Intriga.
ENREDAR-ENREDO
v.; s.m [en.re.dar.en.re.do]
1. Cadeia de eventos em princípio de causa e efeito.
NOVELO-NOVELA
s.f [no.ve.lo.no.ve.la]
1. Narração de um acontecimento real ou imaginário.
TRAMA
s.f [tra.ma]
1. Reunião daquilo que constrói uma narrativa ou um acontecimento presentes nela. 2. Intriga. 3. Enredo.
FRIVOLITÉ s.f [fri.vo.li.té]
1. Qualquer coisa de pouca valor. 2. Coisa fútil. 3. Ninharia. 4. Frivolidade.
TRABALHO DOMÉSTICO s.m
[tra.ba.lho.do.més.ti.co]
1. Trabalho artesanal autônomo como possibilidade de seguir próxima aos filhos e do trabalho de casa.
Como trabalho da disciplina construímos uma instalação coletiva onde pudessem se relacionar as histórias bio-cartográficas registrada por cada aluna. A ideia original de costurar as narrativas da turma em uma colcha de retalhos deu lugar a uma composição provisória de bastidores pendurados de maneira a rotacionarem entre o avesso e direito (cada um contendo parte de uma história)
INSTALAÇÃO
INSTALAÇÃO
constelações: arranjos dos elementos que se reconfiguram de acordo com o ponto de vista e momento.
bastidores: estrutura que auxilia a esticar o pano para bordar e ferramenta conceitual para se pensar no direito o que se revela, no avesso o que estrutura mas também irrompe a trama.
territórios afetivos: vínculos subjetivos entre a memória, o fazer e o espaço.
Território-corpo
Joelle, Patty e Isabella
As alunas Joelle, Patty e Isabella trouxeram uma dimensão íntima para seus trabalhos, uma relação com o próprio corpo reconstruído e narrado nas linhas. Os materiais utilizados são carregados de significado em ambos trabalhos: Jolene que utilizou miçangas das contas que teceu pro terreiro e se presentificaram ali em sua imagem; Isabelle que para contar do rompimento e reconstituição de seu joelho trabalhou com um pano com crivo aplicado - técnica que desfia e remenda a trama.
O corpo e o tecido se cruzam, o íntimo se torna público, mas mantendo uma dimensão de segredo. Patty partiu de sua relação com o crochê e criou um dicionário de pontos acompanhado de uma leitura psicológica das cores escolhidas e tensões aplicadas aos trabalhos.
Território-palavra
Patrícia e Lígia
Trabalhando com a palavra Carolina e Lígia produziram no nó entre suas subjetividades e as vivências da disciplina. Carolina bordou ditos populares que partem da relação com o fazer têxtil e atravessa as questões que vivenciamos. Lígia teceu as frases que anotou ao longo de todos encontros ditas por várias pessoas da turma, a trama revela e oculta palavras, permitindo uma leitura incompleta; em seu outro bastidor trouxe parte da trama do trabalho de seu avô com uma frase sua a ser decifrada junto ao trabalho. Ambas alunas trabalharam com o limite entre o revelar e esconder o que é dito, mas não é entregue. O jogo das linhas que multiplica o significado das frases e permite lançar um novo olhar sobre os trabalhos têxteis vizinhos.
Território-comum (ou cesta)
Vívian, Pauline e Luiza Therezo
Para outras alunas esse nó entre o individual e o coletivo foi desembolado em práticas dialógicas. Vívian trabalhou com macramê tecendo a própria estrutura da montagem da exposição, em uma conversa com toda turma. Luiza Therezo revisitou as vivências e trocas com sua vizinha e sua prática com fuxico, registrando esse encontro com imagem, palavra e a própria flor de fuxico. Pauline retornou duas vezes a Flores do Morro para realizar oficinas de serigrafia e carimbagem com plantas, se aproximando mais das mulheres do grupo, compreendendo mais sua forma de trabalho, contribuindo no desenvolvimento de produtos e novas imagens, no processo estampou com as mulheres um tecido que trouxe para a exposição.
Em todos os casos o fazer se manifesta como forma de se relacionar, aproximar, conhecer e se desdobra em produto com autoria dissolvida.
Gabriella, Cristiane e Letícia
O trabalho de Leticia também partiu de suas trocas com as bordadeiras da Casa Madre Teresa. Na visita Viviane, mulher com bordados impecáveis mas que havia comentado não gostar de crochê, gostou do top que a aluna usava, quando ela comentou que ela mesma quem crochetou ela pediu para aprender. Letícia a ensinou e pediu para em troca aprender bordado com ela, as duas praticaram durante o encontro. A técnica tradicional ao ser aplicada de uma forma nova despertou interesse, mais uma vez revelando que tradição e rompimento caminham lado lado. Para o seu trabalho a aluna crochetou uma casa, para trazer a história daquelas mulheres para quem a conquista desse direito significava tanto, para decorá-la colocou
os crochês de Viviane, o bordado em processo de seu aprendizado e crochetou motivos florais tão presentes nos riscos do grupo. Tradição e rompimento foi um tema também experimentado nos trabalhos de Gabriella e Cristiane. Revisitando técnicas e situações as duas produziram imagens que falassem de suas próprias histórias familiares em que a transmissão não é linear nem direta
Iara, Thais e Thiago
Por fim o último conjunto de trabalho se reúne a partir de uma relação mais explícita com o território. Iara e Thiago partiram de imagens comuns a linguagem da arquitetura e urbanismo mas reinterpretadas na tradução para o suporte têxtil, que permite fabular com as linhas menos precisas que as projetuais: no caso de Iara as da experiência e percurso e de Thiago as da memória de sua tia e das entrelinhas dos documentos da fábrica de Biribiri. O têxtil também lhes permite relacionar faces do território, certo sentido oculto nas imagens sem legenda ou no avesso que revela um cotidiano não capturado pelo desenho técnico. Em um gesto mais radical Thais trouxe o território de Brumadinho atingido pela quebra da barragem através das linhas que desfiou de seu tecido, o que fazer
com um espaço que se desfaz, que perdeu sua trama como consequência de um crime ambiental. Sua história também conversa com a visita a exposição ao método centesimal, contrastando aquelas linhas tão rígidas do corte e costura tradicionais às reinvenções poéticas que reconstituem o tecido cotidiano daquela comunidade.
RELATOS
RELATOS
Isabella Breder
Essa disciplina foi um sensibilizador do meu olhar. Não costuro, minha mãe também não. Eu não via o têxtil na minha vida, exceto pelas roupas que eu garimpava. Depois dos nossos encontros, passei a ver muito mais graça e riqueza nos detalhes de cada peça, no adivinhar de seus processos, a tecelagem de seus fios, seu tingimento, é fascinante. Aprender que o bordado e a costura, em geral, foram e são tão revolucionários em diversos cenários, como no caso das Arpilleras, no Chile. Sobretudo, a disciplina me permitiu resgatar muitas memórias que estavam perdidas. Pensando em qual seria o tema retratado nos bastidores viajei pelas histórias da minha cabeça, revisitei lugares da infância, a antiga casa dos meus avós. No final, escolhi representar o que tem pautado grande parte da minha vida no momento: um joelho remendado.
Ana Carolina Lage Santos
Antes de entrar nessa disciplina, as práticas têxteis pra mim se limitavam ao “fazer um pontinho” quando alguma roupa minha desfiava ou rasgava, e lembrar da minha avó crochetando com a minha madrinha por horas e horas quando eu era pequena. Aprendi com a turma e com as incríveis visitas que fizemos que o têxtil não é limitado ao tato, ao fazer com as mãos. Existe toda uma trajetória por trás de cada outrabalho, cada produto, uma história escondida entre linhas, botões e agulhas. Passei a olhar as roupas que compro mais atentamente, os panos que uso na cozinha, cada detalhe de tecido que tenho na minha vida com mais afeto, pensando em quem poderia ter feito aquilo e o que queria expressar com isso. Nesssa disciplina, aprendi a fazer novos pontos no bordado, mas também a contar histórias. Foi uma grande experiência para mim conhecer novas pessoas e ouvir o que elas têm a dizer sobre suas vivências nesse ramo e na vida em si. Me sinto diferente da pessoa que entrou na sala de aula no primeiro dia, e fico muito feliz com isso. Por último, bem que me avisaram que bordar, crochetar, tricotar e afins é realmente um caminho sem volta, você se apaixona e não larga mais!
Vívian Florense Leite Silva
Quando fiz a matrícula a primeira coisa que me veio à mente foi minha Avó e relembrar dela em aula foi muito bom, de entender sua história com a história de outras pessoas tanto das alunas quanto das bordadeiras visitadas, da saudade quando ela transmitia seus conhecimentos e histórias ligadas ao bordado. Além disso, ter a oportunidade de fazer o Macramê para compor a exposição me fez relembrar o quanto eu amo entrelaçar os fios. Agora, no dia a dia, eu reparo no quanto a cidade é rodeada pelas práticas têxteis e de estar mais atenta para ouvir mais histórias.
Joelle de Carvalho
Avó e mãe costureiras. Cresci brincando no pedal da máquina de costura. As memórias da infância, tão distantes da adulta que sou hoje, voltaram a me visitar e trouxeram um conforto que a muito tempo não sentia. Aqui podemos exercitar o resgate ao que estava adormecido, costuramos pontes, fizemos elos entre nós mesmas e as lembranças das que fizeram antes. O poder que os objetos exercem na nossa vida ainda é um mistério para mim, mesmo com sensibilidade de artista, eu ainda me esbarro com as surpresas que o “sentir” me apresenta. Uma foto, uma agulha, linhas. Ferramentas de poder que constroem - ou melhor - tecem as histórias e estórias da vida. Todas as possibilidades entre passado, presente e futuro como matéria prima para fiar o que quiser, como quiser. Não precisamos ser fiéis à realidade. Não com dom entrelaçar. Grata, finalmente aceitei de mim mesma a grande herança de família, o poder de tecer.
Patrícia Faria
Foi incrível participar desta disciplina. Aprendi a fazer crochê e tricô com a minha mãe, mas durante muito tempo eu não havia mais pegado numa agulha de crochê ou tricô. Há uns 5 anos atrás comecei a me interessar de novo por essas manualidades e retomei os pontos a partir de aulas no youtube. Porém, a cada dia eu gostava mais e mais de ficar tecendo os nós. Fui aprender macramê e bordado, este último ainda em fase muito inicial. A disciplina nos proporcionou um trabalho conjunto - nos propomos a criar um painel onde cada pessoa traria um pouco de si através das suas mãos e um tanto de todos através da escuta e do trabalho coletivo conduzido pela professora Marcela e pelo professor Tiago. Muito gratificante, importante e sensível as visitas que fizemos junto às organizações sociais que trabalham a arte das manualidades para aprendermos e trocarmos experiências e saberes. A construção coletiva do trabalho final e a montagem da exposição foi extremamente gratificante.
Letícia Moraes
Minha proximidade dos trabalhos têxteis vem desde o princípio da vida, seja na união de tecidos, seja na trama de fios, a prática do coser sempre foi comum no meio familiar. Ao longo do meu crescimento e com o pungente interesse pelo domínio de técnicas de trabalho com agulha, em especial o crochê, fui percebendo que ao meu redor esses trabalhos sempre foram desenvolvidos de forma bem reservada, num processo um tanto quanto solitário. Tomando parte nessa disciplina, participando de suas proposições, com destaque especial para a visita aos grupos de bordadeiras, compreendi na prática a grandeza que a coletividade pode trazer ao ato de tramar. Para o projeto final, busquei dar protagonismo para esse processo, na tentativa de narrar o breve contato que presenciei, descrevendo trocas carregadas de uma ternura desmedida, que alumiam o enunciado de corpos&espaços são vários em narrativas.
Pesquisa e execução
Marcela Silviano Brandão, Samuel Braga e Thiago Flores
Projeto gráfico
Samuel Braga
Fotografias e bordados
Ana Carolina Lages, Caroll Dupin, Cristiane Luiza Ávila, Gabriella Sevilha, Iara Paraizo, Isabella Breder, Joelle de Carvalho, Letícia
Moraes, Ligia Persichini, Luiza Therezo, Marcela
Brandão, Patricia Faria, Pauline Aimê, Samuel Braga, Thais Mol, Thiago Florese Vívian Florense
Papel Pólen Soft 90g
Fonte Caecilia LT Pro Impressão Objetiva
Práticas Têxteis no Urbano
Belo Horizonte, Brasil Julho, 2023