RECANTOS DA VIDA POEMAS
OSCAR KELLNER NETO Delfin贸polis-mg / novembro 2013
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recantos da vida
para os filhos Gustavo Luciano Aninha
para os netos Gabriela Ă‚ngelo AdĂŠlia
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para Maria Alcina, raz達o da poesia.
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recantos da vida
sumário acalanto regresseiro – 69 acuados – 108 Adélia – 39 alma no varal – 148 Ângelo – 38 angústia azul – 109 ânsias – 70 antechuva – 98 anticanto – 66 aurora 7.300 – 71 baile – 50 belle de jour – 67 biobibliografia - 156 botina de gomas – 42 brado – 45 branco – 137 caminhos – 73 canção – 76 canto de busca – 86 canto de busca – letra para uma música – 113 5
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canto negro de adolescente – 111 cenas – 141 chão parado – 63 chiachiri – 11 chuva – 51 começo de noite – 62 conversa no bar do simpatia – 133 cravo de ferro – 115 dança geral – 58 das músicas que não ouço – 57 decálogo da musa – 31 desencanto – 79 desmanhã – 48 diálogo com a morta – auto-elegia – 21 do mágico & seu aprendiz – 60 dos frutos – 74 elegia a Maria do Carmo – 13 elegia ao poeta Arnaldo Ricardo de Souza – 15 elegia para Luiz Reinaldo – 20 em pastoreio a Pixinguinha – 90 entrepassado – 100 escritura – 83 6
recantos da vida
esperança – 82 estufa – 75 expoeta – 47 felina – 117 fonte – 116 Gabi – 37 gaivotas – 151 grande amigo – 29 grandezas distintas – 89 horto interior – 154 imagem e semelhança – 149 intenção – 150 intróito ao livro canto de busca – 88 inventário da dor – 24 isca – 85 levitação – 78 Londres-fog – 54 magia crepuscular – 80 manhã – 119 minuto junino – 94 mudança – 52 nascente – 92 7
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natal – 27 noturno – 121 novavinda – 95 o ladrilho – 126 olvido – 128 outra vez, festa – 99 parábola – 84 parto – 33 pequena cantiga de preferência – 97 pequeno noturno – 101 pictórico – 127 poeminha para Alcina – 32 poesia e chá – 125 polar – 53 praça noturna – 140 primavera – 135 raiar operário – 102 recado – in memoriam – 16 receita – 122 reflexão – 65 renotícias freudianas – 106 retorno – 123 8
recantos da vida
sagitário – 118 samba – 105 sementes – 81 sensorial – 103 society – 104 soneto filial – 35 soneto filial II – 36 submarina – 49 subsolar – 153 subversiva – 124 tecer a noite – 146 telúrica – 107 tempo – 96 vácuo – 56 vertical – 136 vespertina – 139 vestal – 147 visita – 40 vôo rasante – 55
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ELEGIAS
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recantos da vida
CHIACHIRI
Oi! Último oi te trago, amigo. Não consigo compreender-te aí inerte. Certas relíquias-tesouros devem estar vivas Em teu peito cansado, amigo. Sim: justamente aquelas que não expunhas Na casa de teus sonhos. Guardava-as no repositório do coração Com teu jeito de monge bondoso. Não consigo compreender-te aí inerte. Sinto teus passos ressoando nesse soalho velho. Em cada objeto, um alinhamento teu. Teu olhar de ajuste em cada peça presente. Como eu, os quadros e tudo aqui Não compreendem a razão dessas lágrimas. Sei que ficarás por aqui, Nesse teu recanto preferido, Às voltas com as coisas que são tuas... Hoje é um dia de arrumação: essas exéquias São parte do ritual de tua entronização. 11
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Tudo para colocar-te, em definitivo, Em teu próprio mundo. A História te é grata, amigo. Não há separação hoje. Só fica pelo ar Uma tristeza pequena de quem renuncia. Em seu pronunciamento mudo, um porteiro anuncia um teu sinal em tudo. Que nada mais de ti o prive: Morre teu corpo, teu museu vive! Se antes eras o guardião, Hoje passas a protegido. Se antes ele era a tua vida, Hoje és a alma do Museu! 9/11/1972
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recantos da vida
ELEGIA A MARIA DO CARMO
Eras o amor, a flor deveras roxa. Para os olhos santos, ofuscados pela visão de Deus, serás colírio. Os séculos findarão... Eu te encontrarei no Céu. A galáxia dos amores, lá na imensidão do éter Chorou estrelas ao ver-te Fluído, essência, névoa santa, passar...
Agora lá ou aqui Na imensidão que nos separa e me tortura Sinto a longitude do paroxismo... Fundido nesta tristeza, chego a ver O grande ângulo reto que me persegue a alma Encadeando-a em noventa graus:
Formado no desenlace por tua matéria
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Que findava horizontalmente E se desunia pelos pés de tua alma que subia Lentamente respeitando minhas duas lágrimas.
Enquanto aqui descansas ela percorre, creio, Tronos invisíveis, perfilados, infindáveis, celestes, Rumo ao trono maior.
Sei: o pesadelo de tuas recordações Velará minhas insônias...
Mas és renda branca, prenda branca Entre os anjos do céu, Cuja ausência faz surgir latente Bem no fundo do coração A fome do reencontro! franca-sp/ 1967
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recantos da vida
ELEGIA AO POETA ARNALDO RICARDO DE SOUZA
nasce um poema! morreu um poeta na cidade poética. é o passado recordado voltando cansado pro sono da paz...
arnaldo era verso no universo... morreu na carne, morreu da vida.
mas ricardo é flauta incansável! o poeta morto será poema eterno,
poeta de Souza.
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RECADO (in memoriam) antes de tudo, tenho dó da senhora, doutora. creia-me. sinto pena da senhora. sabe, Dra., é duro ser poeta numa hora dessa. sentir-sofrer como a mãe é impossível. uma dor triste de impotência ante a morte, uma dor dura de raiva ante a recusa de socorro, uma dor revoltada por seu gesto, Dra.... o Luiz Reinaldo sofreu uma noite inteirinha, Dra. quarenta graus de febre, a noite inteirinha, e eles desesperados ao telefone lhe chamando: - vem! nosso filhinho morre, Dra.! e você vira pro canto e dorme, Dra. ou faz qualquer outra coisa qualquer, mas não vem ver o menino que morre, Dra. no colo da mãe, quarto 71 – sta casa de franca, noite, alta madrugada, amanhecer de 13/14/junho/73. é dia de seu plantão ou não? não importa. chamaram-na, pediatra, e agora, cadê o menino? 16
recantos da vida levaram-no no lençol envolto, no sagrado sudarinho... morreu sem um remédio pro seu mal. (apenas um lenitivo inicial às 9 da noite, um pouco de antipirético pra febre de 40 graus que lhe consumia o corpo mirrado, Dra.!) porque não veio você, Dra.? não, não responda não. busque na própria consciência a resposta que ainda não achou nem achará, Dra.! nada explica, nada justifica. meu afilhado Luiz Reinaldo não tinha culpa de seu sono, de seu cansaço, Dra.! sabe, Dra., ele lhe esperou até não aguentar mais de dor. há um limite pressas coisas, não? já pensou, Dra., uma criancinha morrendo de dor, Dra ? não chego a entender muito disso não, que não sou médico, definitivamente. o menino chorando no colo da mãe, noite inteira. a enfermeira – anjo!- que ajudou, chorando também. que vamos fazer, o pequeno Luiz, de sete-oito meses está morto, sepultado, não volta mais, Dra.! - ai!!! meu filho, tão bonitinho, gordinho, morreu... - mas é um absurdo eu chegar em casa sem meu menino, gente! ontem mesmo ele tava aqui brincando... 17
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ah! Dra.! a sra. não ouviu essas coisas no cemitério e na casa da mãe. a senhora não viu o pai – cego de dor sem poder chorar, de desespero ante a inutilidade de seus esforços – pernas doendo de andar corredores e corredores noite toda, as lágrimas despejadas de montão pra dentro, pois o Luiz não é homem de chorar pra fora. - meu menino tá morrendo, gente! meu menino morreu, gentre!!! ah! Dra., esse pessoal que lhe parece gentinha sofre muito, sabe? esse pessoal confiava na sra. você nem foi ver o caixãozinho branco com aquele menininho gordinho parecendo dormir lá dentro, tão quietinho, e eles fechando com tijolos a parede da sepultura, Dra.! ah! o chuquinha dele, Dra., as coisinhas dele ficarão espalhadas por toda a casa, em cada canto de nossa vida, pela eternidade, sabe? o que mais posso fazer pra lhe mostrar o quanto nos faz sofrer a todos o seu gesto de recusa, Dra.? agora é tarde... Luizinho se foi, levando um pouco de todos nós. se foi, sem ao menos uma tentativa sua de salvar sua vida pequena – sim – mas importante para todos nós. 18
recantos da vida você não lhe estendeu a mão em seu abismo de dor e agonia. morreu de dor, o inocente, em agonia sem remédio. não podia eu me calar, Dra., é muito duro ser poeta numa hora dessa. hoje é muito duro ser padrinho do meu afilhado Luiz Reinaldo! franca-sp, junho/1973
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ELEGIA para Luiz Reinaldo, inesquecível afilhado. chorei pelo menino anjo um verso contraditório: enquanto ele foi pro céu eu fiquei no purgatório. quando a madrugada chega o choro me faz entender: enquanto ele morre pra dormir eu só durmo pra morrer. na estrela em que renasceu sua pureza vai florir: hoje sei que não morreu acabou ficando de tanto ir....
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recantos da vida
DIÁLOGO COM A MORTA – auto-elegia –
Tirada a luz que tinhas no olhar, que mais terei eu pra te recordar? -
Murmúrios do mar! Exceto teus naufrágios, encontro no ar que mais de silente?
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A estrela cadente! Sem esse mistério, que podes daí contar-me de ti?
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Que não vivi, mas morri! O que resta, querida, deste teu espectro florido, outrora criança?
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Só Esperança! Apartado o Eterno, o que sobra daquilo que a gente recolhe da pluma da vida?
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Uma rosa partida! Dos beijos forjados em plena madruga, 21
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e de tantos retornos das ondas do mar, aí em teu mundo, o que hei de encontrar? -
Bocas fechadas, água parada, silêncio profundo... Se falas comigo, quem foi que te deu tal permissão?
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O homem da chave, o que guarda a prisão! E tirando o vigia, o que mais de bom daí posso esperar?
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Tu virás descansar! Acaso sabes o que mais em teu mundo me é destinado?
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Vê ao lado: o mesmo cimento que me enlaça a cintura: tua sepultura! Não!!! Afora esse horror, o que inda me aguarda no último recanto de tua morada?
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Mais nada! franca/sp - 1966.
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recantos da vida
DA FAMĂ?LIA
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INVENTÁRIO DA DOR
com todo respeito, pai, e amor que um filho possa ter, te digo: notei, apavorado, que teu semblante recuou pro futuro, muitos milênios encovando-te os olhos. (OH! NÃO TE RENDAS, MEU PAI!) súbito, caí em mim e soube: os setenta anos (que prestidigitador camuflaste na algibeira dos sorrisos gradualmente) resolveram de repente pesar-te sobre os ombros! (OH! VÊ SE AGUENTA MAIS , MEU PAI!) e vi o pai que não cria ver um dia. e vi o caquinho de gente em que não queria ver-te tornado, pai. 24
recantos da vida (OH! PAI, CONTE COMIGO!) senti aquela multidão de anos lentamente recolhidos em teus passos minuendos querer tomar conta de tua vontade e de teus rumos. percebi também, assustado, que ninguém tinha percebido antes, como eu, que tinhas envelhecido, pai. (OH! ME ESPERA CADUCAR, MEUPAI!) e sua pouca voz e sua muita dor fez de todos nós renovar-se o amor por ti, pai. (OH! QUANTO DE AMAMOS, PAI QUERIDO) a todos inda reservas uma piada, uma toada-galhofa... mas já tão fraco pareces e eu fico tão doido de não saber melhor dizer-te meu amor por ti, que me azucrino e choro, 25
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vontade de ir aí te ver e ficar por perto até de novo te ver firmerrijo à testa da família... (OH! QUE TEU DEUS E MEU SEJA PIEDOSO E TE RECONDUZA À SAÚDE E À ALELGRIA QUE É DE TODOS NÓS. AMÉM!)
franca-sp/06-04-0979, primeira sexta-feira,20:30h. dia em que fui ver papai que teve cólicas, talvez de fígado, e deveria tirar uma radiografia de vesícula. comunguei por ele.
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recantos da vida
NATAL
Numa gruta pastoril, bem distante da cidade, uma jovem se prepara para a sua Maternidade. Não existe lugar nas estalagens de Belém pra Maria dar à luz o seu pobre neném... (É sempre assim: com injustiça e desamor o Mundo nega nascença a Jesus, o Salvador...) Pensativo, São José, tendo então contado os dias, espera que um milagre dê sentido às profecias... Então ecoa pelos ares um convite sagrado: -Vinde, pobres pastores, atendei ao chamado! Querubins jubilosos ensaiam hosanas atrás da mata: brilhando surge no céu, uma estrela toda de prata! Ovelhas ali de fora; lá dentro, o burrico e o bovino: é o mundo animal aguardando a chegada do Menino!
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Pára sobre o presépio, de repente, a Estrela-Guia e muita paz a toda Gente, um anjo louro anuncia... E aí, nesse ambiente maltrapilho, com a força do Altíssimo, a Virgem ganha seu Filho! Na manjedoura despojada, sem nenhum Papai-Noel, então surge o Deus-Criança, presente vindo do Céu! E a Coorte Celeste desce, cada um cantando um fado: vêm adorar na Terra, o Filho de Deus Encarnado... E Jesus, tão revestido da miséria corporal, sorridente, inaugura nosso primeiro Natal...
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recantos da vida
GRANDE AMIGO
vê, amigo, a amizade nos invade... vê, amigo, mais além, o grande amigo que todo mundo tem! tenha-o no coração com amor profundo. ter amigos antigos é bom, eu digo, mas só os materiais? não! também existem os espirituais! ame-o, lhe digo: pode ele ser um mendigo, ou às vezes um doente que falta sente do carinho da gente... é Ele que no dia, entre as trevas do mal nos guia para o bem, afinal. veja: eu lhe digo: esse mendigo 29
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que vive tão só de quem ninguém tem dó gosta tanto de você... e você o despreza... porque? veja-o, preze-o, seja bom... pois quem morreu por você na cruz? amigo seu mortal? nenhum... ah! sim Ele, aquele Amigo tão antigo... sim, só Ele deu-lhe a luz foi o Primeiro é o Único Amigo verdadeiro... é Ele tão Eterno... Jesus! franca-sp/1963
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recantos da vida
DECÁLOGO DA MUSA
Suportar seus maus humores, sua amada contrariedade... Sorrir contente com sua alegria e chorar seu pranto contrafeito.
Agradecer sua dedicada culinária em minha gorda saciedade... Arquejar com seus suspiros, nosso desejo satisfeito! Fornecer-lhe amor, em muitas reprises E, mesmo quando não as quiser, querê-las... Amar em suas pernas o relevo das varizes Desde o primeiro dia que passar a tê-las... Beber seu riso e te amar demais, Debelar seu siso, deixá-la jamais... Seu sono sonoro suportar quieto... (Agora você entende porque poeto?) 14/10/1981 31
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POEMINHA PARA ALCINA
Sabe, amada, só agora compreendo o Amor que tanto cantam! Fui aluno tanto tempo dessa escola que é a vida e só agora minha querida começo a entender o que é o Amor. Ele não cabe no maior significado que se dê à palavra amor. Cada qual entende seu querer... Não existe definição Não existe tempo, não existe tamanho. O Amor é uma pessoa: o meu Amor é você! 14/10/1981
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recantos da vida
PARTO
preciso parir um poema que denuncie esse amor represado que tenho dentro de mim.
preciso gritar um berro tão urro quanto amostra de meu amor sufocado
preciso revolver o terreno onde sepultou-se a semente do amor. que nasça! que minha vida recomece, abaixo o desamor!
é físico o mal que me faz a ausência de oferendas de objetivos, de direção.
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você, simples menina moça mulher do olhar limpo, recuado, meigo, puro...
sua imagem já re-existe o amor tomando forma compôs esse hino vivo que é você...
se é possível amar em verso vivo ligado à minha amada... ainda que em outro universo goteje minha pena alucinada...
delfinópolis-mg/março/75
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recantos da vida
SONETO FILIAL
a natureza já faz vibrar o seu corpo em juvenília a pureza em seu olhar é meu arrimo de família.
sua face, em saúde colorida, acaricio com agrados brutos. meu garoto inaugura na vida a época de amadurecer seus frutos.
perpetuará no futuro meus traços. mas inda acalanto carregá-lo nos braços inda desejo estreitá-lo no peito.
parecendo Oscar, semelhando Alcina, criança eterna, alma menina, meu filho Gustavo: homem feito! 02/10/87 35
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SONETO FILIAL II
nessa etapa da juventude quer em tudo ser capaz aprende com solicitude ama e sofre o meu rapaz.
enfrenta as alergias da vida trilhando as sendas do bem levará ao longínquo porvir os traços da família que tem.
vencer o mal, só dar amor ser direito nas jornadas estudará, vai ser doutor.
um pouco Alcina, um tanto Oscar mente aberta, firme no trato, meu filho Luciano, homem de fato! 02/10/87 36
recantos da vida
GABI
pra te recordar, 贸 felicidade, fui ver minha neta, correndo...
eu, que fui matar a saudade voltei de saudade morrendo...
para minha neta Gabriela, 07/06/1994.
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ÂNGELO
pra te receber havia o novo milênio, a folia do carnaval, e muita gente ansiosa dentro e fora do hospital...
vieste curioso, guerreiro e teimoso, o paciente mais impaciente do berçário inaugural...
o mundo sorria pro neném pelo vidro do corredor e ele, lá da incubadora querendo olhar para o vovô.
delfinópolis-mg/29-03-2000 38
recantos da vida
ADÉLIA
foi nascer em Cássia a menina preciosa: queria a proteção de Santa Rita milagrosa.
chegou de cá do rio, enfeitando nossa vida com muita fome e pouco sono logo de todos era a querida.
com a carequinha de boneca e com seu rosto sorridente ficando levada da breca deixou o mundo mais contente... e o nosso coração em festa...
delfinópolis-mg/25-12-2002 39
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VISITA
Ontem uma festa me invadiu As mínimas partículas nervosas. Meus caros amigos Sônia, Sérgio e Filhos vieram nos visitar. Há tempos não nos víamos: E a gente se rejubilou por estarmos juntos. Jantamos, conversamos mil assuntos. Todos interessados em todos... Mas a verdade, O verdadeiro motivo de tanta alegria Nesse encontro é o amor que nos une! É a solidariedade! É uma união fraterna onde nos tornamos Indispensáveis uns para os outros. O convívio, o cultivo dos laços dessa amizade Profunda, verdadeira, mexe comigo, indispensável como o ar que respiro. 40
recantos da vida
Perto deles me invade um calor... tudo se torna fácil de fazer. Para os amigos tudo é possível! E me percorre a espinha uma faísca perceptível Que se irradia pelas costelas, me enchendo o corpo De alegria e júbilo. As lágrimas me escorrem face a dentro Banhando o meu coração que quer parar Seu trabalho para entrar em regozijo! 19-09-1989.
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BOTINA DE GOMAS
Para Mauro Ferreira, dezembro de 1984.
Habitante de dois mundos Eras o menino que havia Na casa nova feita de céu Ao lado da entrada dos fundos Daquele casarão em agonia Do velho “Cacique Hotel”. Como a erva dos canteiros, Crescestes em berço de cetim Vendo a diária labuta Dos operários sapateiros Que perderam o emprego sem luta Na fábrica do Valentim... Conseguiste o teu diploma Sem esquecer aquelas cenas: Eram pais de família Pés no chão, botinas de goma, Vidas comuns, pobres apenas 42
recantos da vida Na injustiça da partilha. Hoje o ideal de escritor Que praticas com a arquitetura É estranho, nada geral... Mas aí está o teu valor Persegues a utopia pura Da igualdade social!
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POEMAS DIVERSOS
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recantos da vida
BRADO
diria que não tive culpa da fraqueza da possuída. que não houve pombo nem sol nos dias de minha infância. que nunca ouvi choro de vizinho, chorando violão e arrasta-pé. que não amo vacas & seus leites, seios & donas, outonos e ipês. diria que é fraca a plástica da evolução e mesmo o diálogo regado a limão – que já não há nas mesas do Chuá Bar... diria que os olhares se vitrificam ao som da orquestra passaral derrubando folhas sem clorofila... diria que os ruídos provam ter sons os pesadelos de crianças famintas em metamorfose! que a miséria é invisível e mata essa fome... que fazer poesia disso tudo é bobagem... 45
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diria que não vejo a fome dos irmãos, que estou de acordo com qualquer Vossa Excelência... diria ainda: não! a um amigo. recuso! à mulher... renuncio à poesia adeus à pátria... diria tudo, menos não creio.
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recantos da vida
EXPOETA
hoje não preciso mais exercer o ofício poético: sou realista e aprendi coisas...
a noite não é tão cálida assim: apenas naturalmente se embriaga do próprio orvalho.
o dia não é tão áspero apenas docemente se arrasta no próprio asfalto doentio.
hoje não preciso e nem posso mais ser poeta.
apreendi a diferençar as coisas, dos sonhos:
sou realista e sei ofícios... abril/1975
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DESMANHÃ
na serra das horas inda é manhã. por entre a macega, contudo, a neblina dos séculos impera...
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recantos da vida
SUBMARINA
nos rec么ncavos de nosso mar penetram algas de incerteza
de cada ostra partida esvai-se um pouco de n贸s...
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BAILE
... seja noite... e assim foi. aĂ muita luzes artificiais iluminaram os dias apagados! venham versos, mas imersos em Ăşmidos cristais! champanhe & sax gravatas & bravatas inatas borboletas: loiras morenas negra pretas. unhas rosas punhos e rendas: baile!
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recantos da vida
CHUVA
passa chuva passa. lindos pingos e respingos findos na vidraça!
passa bruma de raça nenhuma. chuva branca, uva manca que caiu do cacho.
passa macho passa fêmea passa gêmea. riacho celeste diacho peste!
chuva de amor chuva de dor ouvindo das sargetas coisas de horror!
passa chuva meu bem...
noite banhada vem, minha namorada também...
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MUDANÇA
após o canto da rosa negra despetalando-se, megatons poéticos vibram em cogumelo no estertor dos “barões assinalados”..
radipoesia medra então em células dantes inexistentes. no derrame epilético tombam elegias e épicos. perecem alexandrinos, heróicos decassílabos, estruturas, sonetos e estrofes em desintegração.
lentos, da poeira-poema saem rabiscos, risos, deboches, chuviscos choros-desigualdade, antipoesia, novapoesia, novo poeta.
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recantos da vida
POLAR
-Ipreciso preocupar-me, fugir às fugas, que as horas estão sugadas e sujas. a rola não arrulha... eu quero hibernar. buscar rugas e norte a sul. pingüins, daí-me lugar! a tarde é anã e o inverno vergasta a poesia. -IIjá forjo no peito auroras boreais. os centígrados denunciam-me inerte. o sonho vive: minha dor congela-se no âmago do frio. o amor é um ponto azul. só ursa menor ouve meu ronco... -IIIavulta-se o sonho! vejo pátrias libertas, guerras murchando-se... sozinho medito o gelo. como pólo é sossego.. as mães aqui não choram e mãos já não acenam adeuses. é inverno pleno, gelo amigo, pólo quente... mas vem o quebra-gelo ianque e estraga tudo! 53
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LONDRES-FOG
quadrante estรกtico reduz alvorada, trazendo no alvo um sol meio calvo.
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recantos da vida
VOO RAZANTE
em meu bosque silente que é dos pássaros? do chilreio dos pássaros? do galope dos pássaros? das fêmeas dos pássaros?
ah! as aves? elas não mais têm paz foram construídas muitas gaiolas.
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VÁCUO
chegou o tempo das palavras encontrarem eco. época renascida das pedras, no aço.
é hora dos efeitos não tardarem e bailarem temporões com a descarga das sílabas...
mas, cadê barulho? cadê fonética? cadê palavras? seu som fugiu!
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recantos da vida
DAS MÚSICAS QUE NÃO OUÇO
no remanso que distante canta nunca sabemos qual peixe sola e além do bosque de fadas a ternura que a rola faz é quimera, canção que jaz
onde encontrar a paz? EUA? Rússia, Brasil? nunca...
pois está nas asas que a andorinha tem a liberdade que nunca vem...
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DANÇA GERAL
estão matando o pessoal de dezesseis anos amada minha... nesse Paço Calabouço esses passos que ouço donde vêm? de que sonhos inacabados?
pra que cheirar agonia se o perfume-melancolia é adolescência que morre?
“libertas quæ sera tamem” está morrendo a meninada do futuro está morrendo “libertas quæ sera tamem”
esses passos que ouço não serão, minha amada, alguns gingados da sinfonia macabra dos meus dezoito anos? 58
recantos da vida
essa água que corre insinuando democracia é nada mais que sangue de estudante pobre almoçando hipocrisia.
queremos menos dessa música timbrando tirania e ratatás!
onde julgam as armadas encontrar reservistas? em casinhas bem arrumadas, bem sortidas de empregadas, ou no peito perfurado do humilde proletariado aqui representado nos 16 anos mal-almoçados de Edson Luiz Lima Souto?
franca-sp/1968
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DO MÁGICO & SEU APRENDIZ
Inicialmente, querida, ignoremos a platéia. Agora, o primeiro truque: Recolhe toda tristeza tua Ao fundo-gordo-falso de minha cartola.
Recosta-te em meu peito: Aí, apenas perceptível, Uma palpitação sentirás: É donde partem minhas lágrimas, Única seiva da verdade.
Em minha casaca, No bolso esquerdo de cima, Encontrarás um pouco de terra virgem: É pra numa hora de crise – própria de anjos – 60
recantos da vida Plantarmos algumas lebres e pombas Aos pés de nosso palco...
Fitemos o azul atrás das cortinas: Vês quantos dedos submersos? São de ilusionistas que já se foram...
Fixa agora esta bola de cristal, a luz. Olha-a com o olhar perdido De quem perde um ente querido...
Pronto? Então chega de esperas! Procuremos no abracadabra O que restou da magia da criação... -1967-
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COMEÇO DE NOITE
lembro-me bem: era começo de noite. um mesclado de calor e frio derrubava em nossas cabeças farelo de estrelas escondidas... a lua era ausente e conversávamos. o neon distante lograva transformar-se em pirilampos e iluminava a relva escura. já o murmúrio ao longe era regato. o vento soprava segredos em nossa primavera interior. pra regar nossa ventura, uma chuva forte e quente: a primeira de setembro. lembro-me bem, era começo de noite: prenúncio de amor!
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recantos da vida
CHÃO PARADO
busco no éter um chão pra pisar. no sonho, paro o tempo fico parado olhando o chão parado que o sonho não tem.
na imensa paz que me circunda há muito de chão.... mas, paz que circunda, não a tenho!!!
no chão celeste que me cobre vejo um grande stop. mas só me cobre, não piso nesse chão parado...
em cada milímetro cúbico de angústia, vejo um chão. e piso a amargura do deserto: miragem...
sinto vontade de cimentar as palavras, os sons, pra pisar nesse chão.
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oscar kellner neto
num lampejo vasto da síntese, vejo a longa sombra de um chão. chão parado por que não caminho, não caminho!
na luta ensimesmada do dia, na fria contusão do pó com o só, na face oculta da lua, na frase oculta na rua, nas venezianas semidormindo, no abotoar das fechaduras de novembro, no chuvisco lacrimal, no âmago do peito, no amargo do leito, na lembrança de um rosto, na chegança de um agosto, na falta do que dizer, vejo um chão parado...
se não tivesse a vazante veia da poesia talvez não sentisse falta de um chão parado. não alongaria, não descobriria, assim não amaria algo tão vazio, tão agora, como um chão parado... 64
recantos da vida
REFLEXテグ
se para cada pテゥtala da roseira dos dias hテ。 sempre oferta de seiva e sol,
convenhamos, companheira,
que nesta festa desalegre resta ainda a luz do sonho pois alテゥm do deserto nos espera, ao menos, o florir de uma nova aurora!
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ANTICANTO
olhas o sol morrendo. entanto, ignoras quantas luas roçaram teus pés...
vê: os sons te abandonam e morrem nos pássaros...
esse poente não é dia morto, mas fim de vida.
escuta: não vigies a chegada do caos.
vem, agonizemos juntos que esse ocaso é o último.
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recantos da vida
BELLE DE JOUR
essa esteira de passos madrugando minhas ruas galga momentos Ăntimos inacabados em pensares
outra noite repleta de silfos e duendes salpica promessas no cĂŠu do dia a vir
o aconchego dos segundos bem junto aos ossos de cada dama prediz a dança esquiva das fadas no arvoredo neblinado de cada cama 67
oscar kellner neto
atĂŠ a renda de ramas fecundada no envelhecer dos caules gera furtiva aurora se insinuando na aorta da manhĂŁ
o dia chega e passa vĂŁo talvez seja por isso que os gnomos adormecem de repente no bosque de cada um
68
recantos da vida
ACALANTO REGRESSEIRO
Rebusquemos a alvorada que ontem foi Lá encontraremos inúmeros regaços Emersos de nosso oceano.
Urge recomeçar plantio. Eras margarida, lembras? Pois serás rosa! (a única)
Siga-me: taparemos nas nuvens a brecha por onde o luar nos flecha. Vem, busquemos o gesto de retorno Em que findamos.
Não importa que entre essa festa Nossa solidão permaneça.
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oscar kellner neto
ÂNSIAS
Ânsia de galgar em suor e beijos A cordilheira de teu colo Banhado em calor moreno...
Ânsia de eternizar tua boca No instante de nosso encontro
Ânsia amarela que antevê saudades, a minha.
Mas tua ânsia, menina-ânsia É fome que brota da coluna, perturba estômago, trafega jugular, Percorre miséria, apóia enxada E escorre em baba coração Adentro. 70
recantos da vida
AURORA 7.300
A noite enselvarada nos convida a procurar Grandes pérolas e jasmim (regados de mistérios),
E relembra rotas bandeiras piratas, Incitando abordagens.
Embarco a nau naufragada e singro O grande pântano celeste Por entre estrelas movediças...
Atrás de cada relâmpago, Pressinto o dia que nasce.
Renasço assim toda manhã. E toda manhã recomeço a própria morte.
E o tempo chove ocasos 71
oscar kellner neto
na primavera que vem chegando.
Aguardo manso outono-canção Que virá lançando folhas mortas ou vivas, não sei.
Aguardo o outono Que aguardo há 20 anos E em cada gesto, repito-me em ti!
72
recantos da vida
CAMINHOS
Túneis insondáveis tuas veias de barro e fogo. Divergentes apocalipses as ondas de teus carinhos.
Horizontes de teus olhos, recônditos cruzeiros, Túneis fagueiros mais que belos – intrafegáveis.
Teu colo de alva lama percorro errante...
Ah! O leito de teus túneis flamejantes de trompas e vidas, Meu único caminho!
73
oscar kellner neto
DOS FRUTOS
Não vens há dias. É chegado o temido tempo Das ausências tuas.
Pra mim, época esperada Em que trajo roupa camponesa, Convoco caneta-enxada E rumo pra seara das palavras, Que lá é hora colheiteira:
Buscar os poemas que tu semeaste E o destino amadureceu!
74
recantos da vida
ESTUFA
se eflúvio dolente mascara essa noite (e a vida lá fora é mentira constante) chega de orquídeas: eu quero uma rosa!
75
oscar kellner neto
CANÇÃO
sulcando a noite carrego o arroio sou sósia do rio que engole o mar
sou calado refrão que distante ressoa: “menos criança nova embalando rajadas!!!”
coração cansado sou caverna romeira de águas nervosas tinindo de amor
meu criado netuno tateia a tintura do dia que nasce trazendo perfume
76
recantos da vida
sou madruga que finda defendo ponteiros assinalo segundos sou carroรงa e leiteiro.
77
oscar kellner neto
LEVITAÇÃO
Acima do abismo dos afogados a memória consome levitações De repente, numa tarde de trinta chuvas se afogam sessenta e cinco arco-íris.
78
recantos da vida
DESENCANTO
rouxinóis teimam seu canto mas ele se afunda, falso gorjeio, numa floresta de silêncio e bruma. a cereja se aventura vermelhar mas seu fruto é só espuma num chafariz crepuscular. a magia dessa pluma não consola meu silêncio mas tritura meu lamento com poesia de pó e vento.
79
oscar kellner neto
MAGIA CREPUSCULAR
Cirandas brincam de criança na tarde de um longo verão. No manto do ocaso Mágicas violetas Intervalam dia e noite. Singrando a praça rósea do tempo barcos inconscientes levam nossa infância ocasional.
80
recantos da vida
SEMENTES
Os telhados, mas contudo, amadurecem assobios passeando revĂŠis entre pelos de pĂĄssaros. Como bichos enamorados, os montes assobiam frutos e harpias arrepiando sementes.
81
oscar kellner neto
ESPERANร A
Hรก que ressurgir em uma outra galรกxia um ponto fulgurante onde a gente se permita ser mandala. Hรก que se galaxiar as nascentes do existir onde e quando renasce em cada ser um tal ponto candurente.
82
recantos da vida
ESCRITURA
escrevo sobre os ocasos solitários e pungentes inflamada de gritos, a garganta escreve, desacata o ato... acaso a febre se encontra no fim da linha? até que ponto, febril, a garganta, solidária, escreve?
83
oscar kellner neto
PARテ。OLA
profetas, (me dizei, Senhor,) sテ」o tambテゥm a relva e o regato que no campo largo saciam de beleza o pastor sedento e o fazem poeta?
84
recantos da vida
ISCA
no vôo dos ossos apurando o nascimento de asas alheias me conservo em ilhas, translúcido pássaro, ao sal esquivo de águas experimentais o acaso ronda meu peito peixes e mergulhos bicam meu corpo de sargaços. teu fecho se abre em concha. aberta tua nudez, tu, pérola rara, fisga-me o último verso.
85
oscar kellner neto
CANTO DE BUSCA
musa brincava de maré em meus poros e eu não a bebia.
ela era a canção. seus cabelos, versos inesgotáveis.
era a poesia, a enchente e a vazante, o mar do meu canto.
veio a revolução: versos ao operário,
canto à criança faminta de minha terra sem palmeiras.
canto de Rússia, amantes, desengano e lutas.
chovi estrelas até, 86
recantos da vida num natal no Vietnã.
vivi noites... e que noites!
agora, sedento, sorvo mares de musas inspiradoras.
mas aquela, meu Deus, aquela pura, não volta!
a noite é calma. meu canto, de busca...
franca-sp/1968
87
oscar kellner neto
INTRÓITO AO LIVRO CANTO DE BUSCA
Era gordo o poema. Gordo e verde, cheio de sonho. Sonho e juventude. Mas ais noturnos Cantos fúnebres Pobres universais Guerras Auroras roubadas E o sol último vietcong murcharam-no. Suas poucas proteínas Sua gasta gordura Neste livro expelem últimos versos, eu sei. Depois, no poema magro Será profundo o vergão E nele, como em mim Haverá um vasto vazio. Que será da amada?
88
recantos da vida
GRANDEZAS DISTINTAS
às vezes, imensa dor mora em nossas células,
imenso amor nos persegue sem unir-nos,
imenso esforço adia o colóquio em Vênus...
mas sempre a esperança e a inutilidade são em nossas carnes acostumadas camadas analgésicas imensas, imensas.
89
oscar kellner neto
EM PASTOREIO A PIXINGUINHA
gestantes e gestados partindo escravos duma África enlutada. na praia o choro de outras pastoras.
pretérito negro lembrando macabro chibatas terror e grilhão.
não há fuga: todos os caminhos são negreiros, todos os gemidos são negrinhos.
no vendaval emerso do ventre das águas naufraga a galera repleta de breu...
a origem das coisas (das coisas escuras) e a liberdade comum (comum para todos) imergem ao longe (naufragam em nós)
e são mortos ideais sepultos no oceano.
90
recantos da vida mas do canto que havia e que ficou submerso restou um murmúrio uma canção de palmares.
hoje, quando a brisa nos traz a calmaria das flautas lembramos pastores navegando perdidos em caravelas de samba...
91
oscar kellner neto
NASCENTE
carinho paterno de mĂŁos pastoras afasta duendes convocando o sol
amorfa fragrância que noite reprime suga semblantes treinando alvorada
trejeito menino repassa madruga convida Ă enxada prepara mais fome
passo que passa traduz o regresso do carro da aurora roubando-me a lua 92
recantos da vida
e a fuga termina no dia engasgado n達o adianta fugir que a noite se foi
93
oscar kellner neto
MINUTO JUNINO
o poema retrai-se na angústia desse silêncio. o vazio toma forma e brinca de São João dentro da gente.
já o verso, envolve-se de roxo e mágoa.
sonho: primeira bomba espoucam foguetes: olhos distantes
quentão é pranto alcoólico.
essas danças vagam nos lábios como palavras não ditas.
triste a fogueira que arde no peito: coração...
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recantos da vida
NOVAVINDA
em novembro nosso amor camuflado de horizontes brincou de menino-cĂŠu ensaiando pesadelos...
jĂĄ agora ele vem ornado de rimas garimpando em uma lenda naufrĂĄgios de dezembro...
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oscar kellner neto
TEMPO
Sim, o tempo. Esse que chove fino no telhado dos segundos Que salpica de cãs nossos grisalhos minutos
Sim, o tempo. Esse que margeia mágoas na noite séria das horas... Que sangra pombas no altar de cada dia...
Sim, o tempo. Tempo fazendo serão na fábrica de nossos anos. Esse que muda tempos Na meteorologia dos séculos.
Sim, o tempo Cobrindo de rugas o corpo dos milênios. Esse que é coração teimoso No corpo da eternidade...
Sim, o tempo. Tempo presente sempre No pensamento dos deuses... 96
recantos da vida
PEQUENA CANTIGA DE PREFERÊNCIA
antes brincar de subdesenvolvido antes chutar império e (alistas) antes assoviar cadência inorgânica antes do sol nascer.
mas nada de nublar pupilas nos dias de tua ausência: perderia os beijos que me mandas disfarçados em aurora!
97
oscar kellner neto
ANTECHUVA
fico observando... por aquele vitrô basculante entra toda nacionalidade de insetos voadores.
buscam a luz...
amarelos e avermelhados os aleluiões formigáticos, picadores e asóides, ligeiros e desvoantes
dos africantos: pernilongos e pernicurtos centenas de colônias.
caucasianos, os asóides besouros falsos, furtacores e os acastanhos de forma e cor... 98
recantos da vida
OUTRA VEZ, FESTA
Paira clorofila no ar na hora décima nona... Roupas virgens no horizonte do varal Trescalam recuerdos... As pás gasosas que sempre me molham do céu Ajudam a soterrar as mágoas da parede nova Sem caninas experiências... Longos fios molhados de cobre e vermelho Sobre a rua formam fúteis um violão Quase réptil... Vem o aperto: amígdala e céu. Vai haver outra vez festa... Duvido que a mesa suporte a violência do bolo. Chegam à última hora: amargura, melancolia. Espero a poesia... Pardais e andorinhas, quais velinhas acesas Indicam parabéns e muitos anos de vida... Nesse momento ouço palmas. Palmas tristes embaladas pela brisa, sussurrando. Palmas banhando-se de sombras esperando a lua. E o bolo, incendiando-se, sepulta-se nas trevas. É noite!
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oscar kellner neto
ENTREPASSADO
Pela décima lua Visito a fome liberta que teu olhar encerrou
Luz e breu. Tua chama de cal perdura, Revelando o belo de nosso pertence único: O rebento ao lado visitando noturno O país dos caramelos.
Eras o aconchego que coroava minhas tentativas E teu ímpeto perpetuou nosso cálido compasso.
A ausência da lama errante Emanava tributos de nascer ou fugir... Fugiste.
Hoje são minha vida e luta certos passos rolantes: Massacrando minhas noites, Predizem a época de teu regresso.
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recantos da vida
PEQUENO NOTURNO
acordes partem da caneta operária rabiscando poemas.
uma brisa cheia de tarde ajuda o requebro do arvoredo.
depois, arredores de cidade e rubros lábios da noite murmuram miséria e seresta.
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oscar kellner neto
RAIAR OPERÁRIO
a motivação dilui-se. a madrugada põe galos travessos em guarda. carroças abotoam-se em cavalos ou homens, não se sabe... dançam no asfalto os primeiro operários. abrem-se as comportas das fábricas: ah! vem o hálito quente e amigo do patrão!
o dia não tarda... será enorme a enxurrada... outros operários tremem de fome. fome de justiça. aos segundos, a motivação dilui-se. poetas vão dormir... sonham que a inspiração foi-se com martelo na mão dos operários...
tudo é confuso no sonho e a indagação morre nos lábios desses que ora dormem... franca-sp/1967 102
recantos da vida
SENSORIAL
apelo profundo do peito cansado ĂŠ brado incontido em verso adubado.
poema sacro falando de calma a um mundo que erra filho da guerra!
103
oscar kellner neto
SOCIETY
rocha e perfume: massacre diurno carícia e lodo.
rocha e olhares: nuanças pobres cílios postiços.
rocha diurna: rocha não rocha rocha na luz carne na treva.
rocha carne carne cama cama rocha doce carne carne rocha cama carne doce rocha rocha e cama.
104
recantos da vida
SAMBA
escorrendo do morro suando batuques vem Maria fundida em asfalto...
enfeita a cabrocha a volĂşpia da lua e ginga bacana no meio da rua...
105
oscar kellner neto
RENOTÍCIAS FREUDIANAS ao Padinha, Poeta Verde os cientistas não devem mesmo pesquisar a relação perigosa que pode levar o ser humano à despoesia da vida do amanhã... o excesso de poesia de hoje ignorando o verd/ugo do universo vai desenvolver num incerto verso, uma ciência mesquinha e malsã... os poemas poluem em roxo o campo úbere de uma mente/capta mas nada que afete a crosta vida nessa terra tão louçã... o apocalipse da magia da vida viceja, inda menino, na poesia de cada velho que inda moço habita todo dia meu divã... 16-10-2009 106
recantos da vida
TELÚRICA
o poema-terra dorme em mim tão místico e antigo e meu como em descuidado jardim, viceja anônima a erva daninha. amanhã, de mim ele nascerá e eu, que o modelei no ventre terno de minha espera, vou perdê-lo para a mulher que me conquiste ou para o homem que o destrua.
107
oscar kellner neto
ACUADOS
acocorada no riso demente, te busco no fundo do quintal.
vem, ternura, traze tuas estrelas, teus pรกssaros, rios e afluentes...
entra pela porta da cozinha: vem puxando tudo o que estava do outro lado do muro.
coloque-os na sala e repita pra eles o que de melhor jรก foi dito antes.
ajeite tudo, entupindo a porta da frente.
agora o mundo baterรก inutilmente, tentando arrombar nosso lugar comum.
108
recantos da vida
ANGÚSTIA AZUL
ligas o mundo na tomada da tevê e sob o peso do sofá a humanidade fica soterrada no escombro dos conflitos.
socorrer-te por um grito? mas, moras num edifício onde gentes de sessenta e quatro apartamentos cunham distâncias e civilizam as elegâncias.
a varanda te arrasta e o mar invade tua estrutura líquida com uma exata obstinação.
os astros te buscam: teus quadrantes te maestram pelos destinos surdos
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oscar kellner neto
até que uma estrela sinistra à porta de seu buraco negro irrecorrivelmente engula tua noite redonda e farta...
adormeces enfumaçada: os cigarros do vídeo filtram tua extra-longa paz.
tua angústia invade a humanidade azul.
o exílio dos veludos dorme em tua fuga e nos lençóis dos conflitos descobres o destino dos cronômetros.
teu chinelo de lã jaz esquecido à borda da lareira...
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recantos da vida
CANTO NEGRO DE ADOLESCENTE
primeiro roubaram as laranjas inda verdes. cresceram inventando truques, batuques: fizeram festivais, uúdistuques.
harpejaram fogos, lançando pianos pelas portas do mundo. estilhaços de violão na plateia... pra não dizer que não falei de flores...
estalaram as asas, afiaram os fios das guítricas eletarras, romperam rotina e mataram o tempo.
com violinos iconoclastas bolinaram órgãos catedrais: sim, preconcebidamente violinaram
com órgãos desnudos a vida contida 111
oscar kellner neto
e a falsa escada que levava ao grito.
aà assaltaram as barbearias e com navalhas na carne colocaram com ódio ritual nas bocas desdentadas pela vida sem sentido a mordaça da primeira mordida.
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recantos da vida
CANTO DE BUSCA (letra para uma música de Kátia Bento)
morenamada, virás como essa madruga bela, pálida já. com essa boca de sol tão pouca com esse baton de nuvens afins
às voltas que dei eu dei dei voltas que nem cantei e foram novos caminhos esses caminhos por que eu passei
busco a fonte a ponte e vou pra frente que lá tem gente tem horizonte chegando dobro à direita direita não tem estrada eu insisto a caminhada e não encontro nada
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oscar kellner neto
estrada, que é de ti? estrada, que é de ti?
mas, pra onde eu vou se os caminhos que eu conheço já foram caminhados? e eu sem direção levo no passo a madrugada, minha espera e esta canção?
meu canto é de busca quero um cais chegada um horizonte perto, a morenamada horizonte certo que virá como essa madruga bela, pálida já!
amada, que é de ti? amada, que é de ti?
eu vou pra frente que lá tem horizonte! eu vou pra frente que lá tem horizonte! 114
recantos da vida
CRAVO DE FERRO
quando eu senti que tu paraste, pronta a parir o grito que grávida carregavas (como um cravo de ferro que te furava a alma prestes a romper), quando senti que teu grito agudo podia estilhaçar o cristal do céu poente em chuva de granizo, derreti com beijos molhados e quentes o gelo que te cerrara os dentes e deixei que tu soprasses pra dentro de mim, da tua para a minha garganta – precipício onde escolhestes morrer – o último de teus alentos.
115
oscar kellner neto
FONTE
porque não adivinhei teu assovio chamando e tirei o paletó quadriculado para agasalhar teu corpo colegial?
era só ir à procura da chuva, desfolhar minha filosofia barata à tua janela e navegar para ti em um barco de papel...
porque não adivinhei primaveras descendo agonizantes do volume real de teu olhar sem óculos?
porque eu fiz brotar desde o teu coração de flor um alcançável mundo?
o que eu realmente queria era por à tona do mundo tua alma, translúcida fonte!
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recantos da vida
FELINA
quando um silêncio listrado rondar seus versos saiba: do bote imprevisto nascerá um poema
(juntamente com o tigre que salta do solo também nos ataca um pouco do chão: em todo depois sempre existe um pouco do antes)
& no poema nascido e no poeta ferido sempre haverá além das rimas a marca das presas da fatal poesia
& assim também o salto ferino e o sangue da vítima sempre estarão nas listras do tigre que inaugurou o poema.
117
oscar kellner neto
SAGITÁRIO
teus sinais: setas armando vôo, alturas vincadas em sangue e expectativa.
teu arco retesado, bovinos galopes fogem de mim.
pensei que fosse horóscopo, mas é sina, questão de signo.
tuas flechas alucinadas singram o zodíaco
e ferem de amor meu touro signal...
118
recantos da vida
MANHÃ
tecendo um chão de aves, os parques apanham canções nos estilhaços do sol.
parques estilhaçando cantos tecem pássaros concertando ao sol.
canções bicando aves consertam parques sol(e)ando estilhaços.
bicando pássaros, parques tecidos de estilhaços apanham do chão o sol.
bicos passarando parques 119
oscar kellner neto
apanham sóis tecendo canções.
na canção dos estilhaços, aves tecidas de parques brincam de sol e(m) mi(m)...
primavera/1984
120
recantos da vida
NOTURNO
ouve meus sinos: meus anseios em seiva diluindo teus sonhos.
essa música palpável de realejos e violinos acorda o em-fado do mundo...
ouve meus sinos: não tenho armadura! me estilhaço nas ruas, meus braços e passos buscando sinais.
essa placa musical de realinos e violejos esbate os contornos do mundo.
ouve meus sinos: a esquina do tédio adormece ao longe...
121
oscar kellner neto
RECEITA
pra fazenda da viúva dona poesia nacional a enxadáspera o estrumelódico o caloema o gadológico a mudardente a sementespessa do armazém da viúva dona minas gerais.
122
recantos da vida RETORNO para Maria de Lourdes Hortas
ainda existe em meu tempo a raiz do canto: a ponta final dum fio de lã. vou-me enovelando, passo a colher coqueiros pontes praias passagens... me calo en/fados... me lembro das fontes - virei menina! – amoras me tingindo de grilos e primaveras... fios azuis se avolumando... acho o dito castiço, o lusitano falar... adeus, sotaque mestiço!
tingem-se de rosa as faces da menina em mim: alouram a tropical morena. tudo é alumbramento: longes rios brasileiros donde saí... passo o Equador. aí minha alma rubra vacila adivinhando clarins, guitarras e vozes atávicas...
sete mares me trouxeram a ti, ó Tejo! no cais, recomposto, meu xailinho pra frio...
123
oscar kellner neto
SUBVERSIVA
eis minha barba: traços gramíneos numa cara ajardinada... a navalha passa, ceifando pelos poros fiapos de mim...
miro o espelho: diminuído, estranho, me desconheço. meu canteiro ligeiro, onde, Zico Barbeiro?
no rosto escanhoado, a loção e a certeza:
sob essa ausência, submersa na pele, presença sedosa, a raiz permanece...
124
recantos da vida
POESIA E CHÁ
não! não quero ser aquele que faltou ao encontro. pode me esperar, estarei aí sem falta...
quero estar à mesa quando o chá for servido na varanda.
no horizonte, um lago de águas calmas, uma ilha, montanhas ao longe. ouves o mugido da rês? ouves a pomba que chama? é quase o fim da tarde. o azul se enverdece em nosso jardim.
não! nem pensar! não quero faltar. quero estar à mesa quando forem servidos poesia, Mozart, flores, chocolate e chá.
125
oscar kellner neto
O LADRILHO para Zé Bonito, o Ébrio.
quero estar distante bastante para lhe agarrar um sonho. preciso sonhar de novo com novas e coloridas tranças-crianças balouçando-se em meu espelho... quero sonhar ser mármore, logo eu, ladrilho - de ladrão com andarilho... quero sonhar momentos-mármores, quero deixar me embalem os risos fáceis de vassouras e rodos... quero as coisas mais etéreas menos chão: os cismas e os criados, as crinas e as crianças. quero o sapatear balofo e zonzo dum bêbado me invadindo os sonhos nas noites mais frias dos becos... e nesse meu sonhar ladrilhante me envolvam nas noites cálidas alguns arremedos marmorejantes...
abril/1975 126
recantos da vida
PICTÓRICO
no retângulo perfeito dos gestos contidos, morrem submersos nossos desejos sabotados.
ah! de nós tantos sonhos afogamos que nos tornamos espectros sufocados.
quando cantarem as sereias, boiarão enfim à tona das lembranças nossos retratos desbotados.
127
oscar kellner neto
OLVIDO
começo a esquecer e não adianta anotar: olvida a lembrança o que foi anotado! envelheço de mim, como um pobre coitado...
se escrevo um verso, só disfarço o cansaço. não existe o remédio que me foi receitado: desnascer-me de mim, de pé ou deitado...
o pensar já me pesa e o poema é um fardo. 128
recantos da vida começo a olvidar o que sabia de mim: o que estava anotado não me foi receitado...
mas o poema insiste em fazer-se lembrar...
o remédio é um fado que disfarça o esquecido. onde achar o passado se o que fui está perdido?
começo a escrever e não existe cuidado: esbarro na palavra que tenho procurado, e não adianta chorar a letra derramada.
129
oscar kellner neto
a poesia é em mim o próprio delírio! pras vistas cansadas que tenho na alma, a busca dos versos é meu único colírio...
o poema reclama do peso da idade. envelhecem também o vapor e a umidade: disfarço em lágrima o que chamam saudade...
deitado eu esqueço o que de pé anotei. sem fim ou começo, quem sou já não sei... 130
recantos da vida
sem receita ou remédio meu fardo é meu tédio.
não adianta ajuntar os meus cacos no chão: o que resta perdido já fora esquecido.
disfarçando o sofrer, começo a esquecer! o bem mal me quer? onde anda meu trevo? o que ontem escrevi, já não reconheço: não recordo o que escrevo, apenas esqueço.
lembrar-me dos versos
131
oscar kellner neto
em vão eu aguardo... sem receita ou remédio, o enfado é meu fardo.
não vivo nem vegeto: desaconteço. por dentro de mim, sumiu minha história. não me resta memória...
já sem poesia então Senhor eu lhe peço: esquecido meu canto, num canto envelheça.
outubro/2009
132
recantos da vida
CONVERSA NO BAR DO SIMPATIA
e a propósito do delcídico trauma com os campos plantados em milhos arroz soja café, tudo em parceria, sabendo ser muito doutor-escritor economista e advogado, leituras paulistanas buscadas com avidez pra fugir ao pacato recanto-alvo das assertivas: coivaras, a minha, onde a vida é vivida, simplesmente.
e ser proprietário de faculdades paranormais, dotado de veículos mil, garotas e esposa, niveladas cronistas sociais e tudo, garanto, passageiro e efêmero como o movimento ondular da água quando o senhor passa
133
oscar kellner neto
de lancha do continente até à Ilha, a sua, onde a vida é explorada, estudada, bicho e gente, donos!
sabendo fico e lhe digo, Delcidinho que certo Dirceu Quintanilha falou e disse: apenas somos proprietários enfim, com certidão definitiva, daquilo que ninguém pode sonhar por nós! e no meu sonho me agarro e parasito. e no meu sonho sou festa feito eu só. como um cão que fareja um osso fantasma ou uma lebre coruscando na frente dum leopardo: esse é o reino e o sonho!
Delfinópolis-mg/11-04-1979
134
recantos da vida
PRIMAVERA
agora, a tĂmida flor do carinho que se vestia de amarelo-agonia, nua, ousa enfrentar com espinhos o escuro verde da folhagem que a cobria...
135
oscar kellner neto
VERTICAL
no alto mar do tempo existe uma ponte: ali o meio-dia nos refrigera pelos canudinhos da brisa. na alta ponte do mar existe um meio-dia: lá, bebemos o vento pelo tédio dos relógios. no alto meio-dia da ponte existe um mar de relógios: a sombra dos ponteiros desaba sobre nossa brisa de tédios.
136
recantos da vida
BRANCO
no branco agora habito. vivo num longo, estreito, inodoro, geométrico corredor. ele é branco.
tem nas laterais o que seriam fachadas de prédios, mas só se eu pudesse imprimir um tom mais escuro de branco nessa longa mancha clara que é uma lateral do corredor...
como o branco aqui não varia de tonalidade, estando só, puro, não se vê as fachadas dos prédio nas laterais do corredor: mas que estão lá, isso estão!
no branco agora habito.
o longo corredor tem no piso sentimentos paralelepípedos 137
oscar kellner neto
onde piso descalço e sinto o branco comum a todo corredor: frio, liso, gélido, tiritante, quiabélico...
nalguma poça que não existe tem águas claras molhadas de branco, num único tom possível...
no branco agora habito.
138
recantos da vida
VESPERTINA
minutamente goteja teu sol em minha praia...
fugiram de mim as horas da tarde.
abandonaram-me os sonhos no exato começo do sono.
solidĂŁo adentro, ardo sem ti.
139
oscar kellner neto
PRAÇA NOTURNA
em mim onde se escondem os preâmbulos e perambulam os bêbados e onde a sombra escuta o maduro das fontes permaneces semeada, adivinhando o lamento de teus frutos em mim onde se escondem os sonâmbulos e onde a escuta amadurece o fontear das sombras quedas no aguardo do rebrotar das eras...
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recantos da vida
CENAS
Nos sábados, a cidade acorda pontualmente às seis da tarde. Um movimento eletrizante percorre os homens vindo da roça de cavalo, de bicicleta, de carroça, de condução e a pé. E e as ruas começam a receber os passos campônios, as alpercatas cansadas de quem pisa a terra maciamente O rolo de fumo da venda do Perival gira sem parar desenrolado/desdobrado e múltiplos cigarros de palha. Em todas as vendas, o açúcar flui desde as alvas sacas como que hipnotizado e se junta sem nenhum racismo ao café que muitos compram, levam e coado tomam. Os pés rachados se dilaceram nos calçamentos da cidade Às vezes, entram na igreja pra missa das sete a cada 15 dias e há os cumprimentos rituais - mais importantes do que a celebração litúrgica. As luzes se acendem quando a noite chega cobrindo tudo com um luar amarelo-queijo e a estrelaria parece vir abaixo de tão coruscosa e brilhante.
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Então os curiangos navegam o espaço de petróleo e bruma. No bar-e-mercearia do Azamor na esquina de minha casa os homens: sábado à noite. Mitos terão cortado o cabelo e feito os bigodes no salão do Zico ou do João Barbeiro. Os homens enquanto compram e tomam pinga e beliscam tira-gostos eles namoram a tevê magnetizados assistem à pública TV-chamarisco do bar seus semblantes lembram o das crianças deslumbradas: um riso franco e um brilho nolhar. Antes de vir, alguns se arrumam o melhor que podem, julgando que são vistos na TV da mesma forma que vêem. riem só quando é hora de rir e pouco entendem das notícias televisadas em rico português. Depois saem e fica o ambiente das luzes fluorescentes, fica o cinescópio em atividade mágica e os homens, levando as compras para casa, vão parando pelas esquinas e conversam com velhos conhecidos. Nunca os vi preocupados em saber como se faz uma televisão.
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recantos da vida
Nos sábados à noite, os homens vindos da roça onde suaram semana toda a lágrima das enxadas, sentam-se na sarjeta defronte à minha casa e se põem a falar de mil coisas. Entre elas, de chuva floradas colheita castração pescaria pombas do bando juritis dourados piaus tropa etc etc Nunca os vi falando do crepúsculo ou do luar. E acho que não precisa de palavras quem tem suas jornadas balizadas pelo nascente e pelo poente. Chegam lá pelas seis-e-meia e vêm chuveirados – cabelos úmidos. sua conversa vai até tarde e, mesmo depois que me deito, continuam a conversar defronte à janela do meu quarto. uns chegam e logo se vão outros se integram na assuntaria e outros ainda nada dizem sentam e ouvem e pitam e riem e olham para o bar em frente, como se contassem quem entra e quem sai de lá. Nunca dizem palavrões. e me acostumei a dormir ouvindo seu papo campônio como se fosse um acalanto. Sob o poste que há em frente da minha janela 143
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os homens se postam: aí é passagem obrigatória pra quem vai ao jardim ver a fonte e ouvir música quando no jardim tem música e ligam a fonte luminosa. Um assunto banal da boca dos caboclos vira notícia e se sabe muito da alheia vida e que se vai abrir um cinema e que as mulheres mesmo de resguardo vão para a entrada desde umas três horas antes de começar a sessão, levando embornais cheios de pão com salame e laranjas já descascadas e dão e darão leite dos peitos para crianças choronas que dormirão um sono repleto de fotogramas coloridos isso tudo se o filme for do Mazzaropi. E um conta duma caçada e mente a mais não poder e recebe um “seis-milho” em coro e cora e outro diz verdade que vai funcionar a fábrica e pagarão muito bem pelo leite e que o sindicato foi aberto e faz muita coisa de graça pra fazendeirada etc etc Uma beata passa e ouço um contar que lhe fez um elogio e ela lhe disse que não era merecendenga daquilo e que ele retrucou que apesar de tudo ele é que não se julgava mecerendengo dela (risos) e vão por aí afora... 144
recantos da vida
A prosa vai se costurando de retalhos emocionais e linhas douradas de pureza cabocla e eu, cochilando, batizo a assuntaria de “repórter osso”, e a esquina sob o poste, de “rádio rã, a voz do brejo” Minha mulher gargalha fino e baixo enquanto faz ninho entre meus braços e roça suas pernas recém-depiladas em meu baixo-ventre. aí a madrugada me engole: ofegante e elétrica. delfinópolis-mg/1975
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TECER A NOITE
numa paisagem de outrora com muros de pássaros e jardins de sabonetes a brisa da tarde anuncia a ciranda das estrelas. nos varais de borboletas o sereno principia escuridões. nas varandas perfumadas pacotes de assuntos sucumbem ao silêncio do ocaso. no tear dos cabelos se fiam sonhos e mulheres na calçada são flores de fogo de ávidas pétalas. banhadas de poente crianças sorriem esperas de café com leite. ônibus chegam despejando maridos e na miragem das esquinas a lua deposita canções extintas. 146
recantos da vida
VESTAL
curvo-Me a teu mudo apelo e por ti Me apago, poeta-dama ao saber-Me objeto de teu zelo ardendo jĂĄ inĂştil na fulva rama...
agora, como quem, humano, ama, quero findar em ti Minha procura: fazer-te de Minha sarça a chama tornando Templo tua vestal ternura.
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ALMA NO VARAL
eu, um apenas cabide, me visto de divindade dançarina: lavada em lĂquidos gestos divinos quarada no aroma dos varais celestes alvejada na forma humana de quem me criou.
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recantos da vida
IMAGEM E SEMELHANÇA
à porta do templo, no caminho da miséria um deus faminto se despe da graça e divindade. enquanto o homem põe no lixo seu irmão e semelhante, Deus esgravata lágrimas... em sua tristeza derretida, Deus chove!
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INTENÇÃO
o que você conseguiu com sua intenção foi fazer brotar à tona do mundo e no coração da gente sua alma translúcida e em cada flor uma fonte...
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GAIVOTAS
certa vez enlouqueci e cantei, translúcido, acordatas e conjugamentos: lá o verbo matar não tinha modos e nosso tempo era também nossas vozes...
desgaivotaram em adiantamento um desbotar de rosas esmagadas e estrelaram as queimaduras em que navegam as explosões.
esse meu tropel se adianta ao apocalipse e passa sobre mim: adiantar, rosear, estrelecer, navegar e gaivotar: adianta sim!
já enlouqueci, certa vez e aí retive em ti, indefinindo minha sensatez meus poucos conseguimentos:
o vôo das rosas, o pó dourado das gaivotas, 151
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o perfume das estrelas e um navio pra todas as rotas!
(das veias meus restos se vão: são palavras em sangria. em meus poros cada letra sua um horto de agonia...)
só poderão falar-me de casos contrários vagueando em meio a tempestades e bonanças enquanto isso, nossas gaivotas, poucas, vão cantando mansas, degoladas e loucas.
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SUBSOLAR
numa réstia de outono não vejo raios de rol se filtrando pelas cortinas rupestres. um luar de pânico reverbera no vidro noturno dessa caverna de signos. em meu rito de silêncios saltimbancam ruínas fosforescentes. em minha cova rasa flutuam jogos e enigmas retangulando-me neste subvoo entre raízes de ervas.
novembro/2013
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HORTO INTERIOR
meus braços quedaram inertes. libertei os sonhos que transformavam meus campos de lírio em desertos de fogo e fome... inda sinto no corpo de cravos um cansaço de espadas quebradas... ah! quantas batalhas naufragaram em meus olhos... quantas derrotas minhas mãos apalparam. nas pedreiras de minha ilusão quanto granito meu peito abraçou... construí muralhas e castelos, hoje ruínas. escravo, amada, quantos palácios, quanta glória suspirara por ti. agora sei: meu trono era a brisa, os sonhos que me fracassaram estavam retidos na alma dos dias... meu rosto de bronze era barro. e no meu “peito de ferro” habitava a areia do tempo. dispo-me de mesuras e túnicas. 154
recantos da vida resta apenas entrar na cadência do presente, cumprir a primeira valsa e, no encanto dum ritmo fértil amar a verdade de seus cabelos reais...
toma, amada, o manto da fuga... vê: lá se vai nossa inocência. sim, querida, nessa noite de catacumbas e sombras pairam entre calvário e sepulcro a coroa e o diadema do reino que perdi...
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Biobibliografia OSCAR KELLNER NETO é natural de Franca/SP (1949), casado, pai de dois filhos, avô de três netos e vive em Delfinópolis/MG, entre serras, cachoeiras e lagos, desde 1975. Arte-Educador, Professor de Gramática e Redação, Técnico em Contabilidade e Advogado atuante, Kellner também se dedica à pintura e à escultura, áreas artísticas em que sempre logrou êxito. Nas horas vagas, inda cuida de terras, gado, peixe e gente. Gosta de sumir pelos vãos da Serra da Canastra, onde cavalga, conversa, joga truco, sonda falares, respira cores e transpira poesia. O Autor, míope, curioso e astigmático, começou a escrever em 1963. Seus primeiros versos foram para a musa eterna, hoje sua esposa: Maria Alcina. Sempre colaborando em suplementos literários de vários jornais com seus textos poéticos, foi premiado na 1.ª Semana de Arte Moderna de Franca, em 1966, com o poema Beatniks. Em 1967, seu poema Do Mágico e seu aprendiz, recebeu o 1.º lugar em outro concurso francano. Publicou seu primeiro livro de poesias em 1968: CANTO DE BUSCA, em edição mimeografada e com lançamento nacional. Em 1969 editou e lançou seu segundo livro, MURAL, com poesias concretistas. Seu poema-processo 156
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RELÓGICAS, elaborado a partir de carimbos confeccionados com peças de relógio, em parceria com Antônio de Pádua Primon recebeu o 1.º Prêmio no Concurso Nacional Souzandrade, em Divinópolis(MG), em junho de 1969. Nesse ano - o de seu casamento - o Autor recebeu da imprensa francana o título de Intelectual do Ano. Desde então, vem organizando seu livro-objeto, de poemasprocesso, FLASH! ainda inédito e em constante evolução. A partir de 1970, Kellner passou a coletar seus contos e a divulgar seus textos em prosa, colaborando em jornais, suplementos e páginas literárias de toda parte e participando de algumas antologias nacionais e de fora. Em 1975 lançou cópias de seu texto concretista FOSSAPOGEU - (epistolas aos coivarenses - textos do hospício) - , de circulação restrita. Em 1977 divulgou seu primeiro romance: O CRIME PERFEITO DE SEZOGLA SUEM, em pequena edição oferecida à crítica do círculo de amigos-leitores fiéis. Participou, em 1979, com o conto O Espetáculo, da antologia A PRESENÇA DO CONTO, organizada pela Editora do Escritor, de São Paulo. Seu primeiro livro de contos O OUTRO LADO DE COIVARAS : O MUNDO foi publicado pela Editora Pirata, de Recife, em 1984. A revista Globo Rural publicou seu conto Paz-sarinha, sob o 157
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título “O touro Charuto” em sua edição do mês de setembro de 1994. Em 2009, em comemoração ao seu 60º aniversário, Kellner relança a obra MURAL em conjunto com FOSSAPOGEU, na obra poética MURAL & FOSSAPOGEU, pela Editora Clube de Autores, de São Paulo. Ainda em 2009, pela mesma editora, lança o livro de contos O JUIZ E OUTROS CONTOS, o romance O REINO DE COIVARAS e a novela TOCAIAS E DUELOS. Também em 2009, pela mesma editora paulista, lança a obra COIVARAS (cantos), onde reuniu os trabalhos O JUIZ E OUTROS CONTOS – contos -, ROSALDA GENTIL - romance – e TOCAIAS E DUELOS – novela. Também em 2009, pela Editora Clube de Autores, relançou o livro O CRIME PERFEITO DE SEZOGLA SUEM. No final de 2009, em regozijo pelo jubileu de diamante de seu nascimento, Kellner lança pela Editora Casa do Novo Autor, de São Paulo(SP) o livro FAZENDA INTERIOR. Lançou O QUILOMBO DE PALMIRA (flash contos) no findar de 2010, bem como tirou da estante um livro de versos: VISITAÇÃO (trovas). Veio a lume também em 2010 seu livro-objeto, de poemas-processo, FLASH.
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Publicou nas letras jurídicas, a monografia A CAUSA CURIANA, no campo do Direito Romano. Permanecem inéditos, O PROCESSO CAUTELAR E A COISA JULGADA, monografia na área do Direito Cautelar; e, na área do Direito Penal, desenvolveu trabalho em parceria com Juliano Quireza Pereira e Lúcio Augusto Malagoli tratando do PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. Kellner também se dedica às artes plásticas e à fotografia. Proclama a volta à Natureza. Prepara um reino de pedra, água e sol: Coivaras.
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NESTE VOLUME ENCONTRAM-SE POEMAS DO LIVRO “CANTO DE BUSCA”, DE 1968, ALGUNS TEXTOS POÉTICOS DO LIVRO “O QUILOMBO DE PALMIRA”, DE 2010 E OUTROS POEMAS ESCRITOS DURANTE MINHA VIDA. AS REFERÊNCIAS SÃO AS MELHORES. EU GARANTO. AQUI ESTÁ O MEU CORAÇÃO, DO AVESSO!
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