Gibraltar & almafina

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Acima da Serra do Mar, do cume sobranceiro do alto São Francisco, o poderoso Gibraltar sonda a benévola Curitiba com pensamentos tenebrosos. O próprio ar se rarefaz e enegrece ante a disposição terrível da potência.

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Ele cobiça a prudente Almafina, que por três vezes lhe negou o seu regaço. Por toda a cidade venerada, a donzela teme o conúbio do fino cristal com o duro aço. De ânimo rejeitoso vestiu-se e nenhuma esperança dispensa ao ogre monstro.

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Gibraltar troveja em fúria: - Entreguem-me agora mesmo a moça que reclamo, ou a vossa desgraça não será pequena! - Dêem-me a bela Almafina ou farei cair os mais terríveis males sobre a terra de Dalton Trevisan!

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Em São Borja, GV é tomado de súbita inquietação. Em Praga, FK sente que uma metamorfose tem início. Em Nova York, PG nota uma inesperada dissonância no segundo movimento de sua nona sinfonia.

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O misterioso fot贸grafo FL sente que o sol lhe esmaece e pede aos c茅us a caridade para Curitiba.

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As gentes caem em pranto e clamam aos sábios que não permitam tal desdita. Que bom conselho levem à suave Almafina, para que a sua inclinação propícia se torne ao demandante.

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Almafina, todavia, bem sabe que a música de Gibraltar é altissonante. Por mais que se lhe confranja o terno coração, não pode ceder ao apelo que a levaria ao reino infernoso, ao mais fundo de todos os profundos.

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Pelas FĂşrias tomado, Gibraltar derrama sobre Curitiba o ser quetzalcoatl, que exige sacrifĂ­cios de sangue. A dor e o espanto se espalham por toda a urbe, do Atuba ao Pinheirinho, sem atingir, ainda, os confins da regiĂŁo metropolitana.

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Enfastiada com as súplicas populares e a exigência gibraltareana, Almafina distrai-se num ciclo de cinema, no Goethe Institut. De Murnau a Fritz Lang, no entanto, sente que lhe querem extrair a essência, o suco, e imagens escuras e música lancinante a atormentam. Aos poderes mais altos se dirige e pede que, se um Elvis houver no paraíso, e se por lá estiverem Janis e Amy Winehouse, que não deixem de cantar por ela, sofredora.

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Cresce ainda a cólera no imo da potência dominadora dos infernos. Não bastasse o ser quetzalcoatl devastar os campos de Curitiba – outrora cidade modelo, faz cair dos mares celestes um peixe monstruoso na Rua 15 de Novembro. Todos se espantam, pois em seu ventre há um Jonas, que se debate, esperneia, geme e sofre.

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Habilidosamente eviscerado pelos sábios, dele sai gotejante o prefeito, que desaparecido havia durante um piquenique em Caiobá. Trêmulo, reclama dos fados da existência e promete aos eleitores ação rápida e eficiente para tantos males. Mesmo que o remédio para a doença dela tenha boa parentença.

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Comovidos com o drama, às musas perguntamos porque o audaz Bruce Murdock não vem em socorro de Almafina. Ora, ele não pode, pois, em outra história, Valêncio Xavier e Rones Dumke o encarregaram de enfrentar uma gangue de mafiosos, para libertar a meyga Viola.

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E o Oil Man? E o Gralha? E a Gilda? Será que nenhum herói virá livrar Almafina? Prestes a ser entregue ao demônio, de nada lhe valem o auxílio de sete despachos na esquina e do caboclo Tranca Ruas. Desesperada, ela pega o seu cavalo alado e voa até a Lapa, invocar o auxílio do monge João Maria.

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As lágrimas da guria virgem encharcam a alma sertaneja e o santo resolve contestar o monstro feio. Em seu realejo, composição celestial executa, pois sabe que a música das esferas possui harmonia absoluta. João Maria lança reza da mais braba e ela atinge em cheio o arrogante. Gibraltar vai ao chão, no cume do São Francisco. A rolar no pó, entretanto, o contra-ataque já medita.

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O fenômeno sopra palavras insinuosas. Elas vencem a geografia, os materiais terrenos e chegam aos ouvidos da grande Cobra Verde, que sonha sonhos impensáveis na caverna abaixo de nosso solo, negro e fértil, pleno de húmus. A dormir, o portento se agita e bate o rabo imenso no chão. Por toda parte, rebentam estrondos. A terra desliza, buracos se abrem, chamas brotam, calorosas. Muitos incêndios.

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O piso falta aos pés do monge santo e ele prova o sal da terra. Rochas caem sobre o homem da Lapa, prostram-no e ameaçam-lhe o sopro da vida. O ogre regozija, a aumentar a aflição de Almafina. Ela apela à Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, que nunca falta aos desvalidos. Do Alto da Glória, a mãe do Filho Divino, que não tolera serpentes, a tudo observa, angustiada. A sua benção, ela concede a João Maria.

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De poderes divinos tomado, o monge não hesita em trucidar o cruel Gibraltar. Retira-lhe a pele, esmaga-lhe a cabeça e manda-o, eternamente, para os quintos de onde veio. E todos os seus malfeitos desfaz, matando também o ser quetzalcoatl, que os campos de Curitiba devastava, do Abranches à Cidade Industrial.

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Júbilo e festa. Felicidade. O prefeito decreta feriado na quinta-feira e todos aproveitam também a sexta. Uns vão à praia, outros preferem Morretes ou Antonina. Acho que vou até Itajaí, comprar uns peixes.

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E a bela e valente Almafina? Transfigurada por tormentos tantos, mais ainda se torna pia. E a felicidade lhe virรก de forma plena, pois o bom monge revelou-lhe que o seu nome, em verdade, sempre foi Maria Bueno.

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Otรกvio Duarte otaviodu@gmail.com Rones Dumke ronesdumke@hotmail.com




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