Lição de luta contra o ódio e pela liberdade

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Nelson Mandela

18-7-1918 5-12-2013

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Lição de luta contra o ódio e pela liberdade

Johannesburgo, África do Sul. Ícone da queda do apartheid e figura adorada pelos sul-africanos, Nelson Mandela morreu ontem aos 95 anos em sua casa em Johannesburgo, na África do Sul. “Faleceu em paz, ao lado de sua família por volta das 20h50, no dia 5 de dezembro. Ele agora está em paz. Nosso país perdeu seu maior filho”, disse o presidente sul-africano, Jacob Zuma, ao anunciar a morte do líder em cadeia de TV. “Nossos pensamentos e orações estão com a família Mandela. Temos uma dívida de gratidão com eles. Eles se sacrificaram muito para que nosso povo fosse livre”, continuou. “O que fez Nelson Mandela grande foi justamente o que o fazia humano. Nós víamos nele o que perseguíamos em nós mesmos”. Primeiro presidente negro da África do Sul (1994-99), Mandela não era visto em público desde a final da Copa do Mundo da África do Sul, em julho de 2010.


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Morre Mandela, o líder quederrotouoapartheid BIZERRA JUNIOR/AGENCIA BG PRESS/ARQUIVO

¬ JOHANNESBURGO, ÁFRICA DO SUL.

“Embora soubéssemos que esse dia chegaria, nada pode diminuir nossa sensação de uma perda profunda e duradoura”, lamentou na noite de ontem o presidente sul-africano, Jacob Zuma, ao informar ao mundo a morte de Nelson Mandela. Num emocionado discurso, Zuma lembrou a trajetória de luta de Mandela contra a segregação racial e seus esforços por alcançar uma África do Sul unida, pacífica e próspera. Em Brasília. Fernando Henrique Cardoso e Mandela se cumprimentam ao lado de suas esposas. Ruth Cardoso e Graca Machel, em visita à capital federal ADIL BRADLOW/AP/ARQUIVO CLAUDIO LUFFOLI/AP/ARQUIVO “Faleceu em paz, ao lado de sua família por volta das foi libertado em 1990. Saiu da 20h50, no dia 5 de dezembro. prisão para negociar com a miEle agora está em paz. Nosso noria branca o fim do regime e, país perdeu seu maior filho”, de lá, para ser presidente eleito disse o presidente sul-africano sob uma nova Constituição. ao anunciar a morte do líder Em seu governo, adotou coem cadeia de TV. “O que fez mo prioridade o discurso de Nelson Mandela grande foi jus- unidade nacional e desencoratamente o que o fazia humano. jou atos de vingança e violênNós víamos nele o que perse- cia. Analistas apontam que, em guíamos em nós mesmos”. razão disso, não conseguiu dar Primeiro presidente negro atenção suficiente a programas da África do Sul (1994-1999), sociais, à geração de empregos Mandela não era visto em públi- e à epidemia de Aids, que se co desde a final da Copa do alastrou durante seu governo. Mundo da África do Sul, em juEm 1999, não concorreu a lho de 2010. Sua última apari- um novo mandato para se dedição ocorreu em abril passado, car a causas sociais e a ser uma quando ele recebeu um grupo espécie de consciência moral de políticos encabeçado pelo da nação. Pouco a pouco, foi represidente sul-africano. As ce- duzindo sua visibilidade à menas transmitidas pela TV esta- dida em que a idade avançava. Nelson Mandela posa ao lado do cantor Michael Jackson Ex-presidente cumprimenta o papa João Paulo II em 1990 tal, em que aparece distante e alheio ao que se passa a seu re- ENTERRO. Ainda não está claro ROBBEN ISLAND/ZAF/ARQUIVO dor, causaram grande como- quando e onde será o enterro. ção no país. Há duas possibilidades: na vila Em junho, ele enfrentou a onde nasceu, Mvezo, ou na pesua quarta internação desde de- quena localidade em que paszembro de 2012. O líder sul-afri- sou a infância, Qunu. cano sofria de complicações deA presidente Dilma Roussecorrentes de uma infecção respi- ff, que deve comparecer ao funeratória. ral, lamentou a morte. “O goverRespeitado internacional- no e o povo brasileiros se inclimente pelos gestos de reconci- nam diante da memória de Nelliação, Mandela passou 27 son Mandela”, afirmou, em noanos preso por se ta. Já o ex-presidente Luiz opor ao sisteInácio Lula da Silma segregava classificou cionista o africano branco. como “um Após inhomem tensa compersopresnalidade são ine caráter ternaextraordiDilma Rousseff cional, PRESIDENTE DA REPÚBLICA nários”. Encontro. Então presidentes dos Estados Unidos, Bill Clinton, e da África do Sul, Nelson Mandela, juntos em 1998

“O exemplo deste grande líder guiará todos aqueles que lutam pela justiça social e pela paz”

Repercussão pelo mundo

¬ Ele deixou a seu país um legado de li- ¬ Morre Nelson Mandela, símbolo da digni- ¬ Nelson Mandela está morto. O ex-presi- ¬ O presidente sul-africano Nelson Manberdade e de tolerância. Mandela deixa um legado orgulhoso da liberdade e dos direitos humanos, da tolerância e da reconciliação.

dade e da luta contra o ódio. Sua atuação custou-lhe uma longa e forçada sentença de 27 anos em um isolado presídio na África do Sul.

dente sul-africano e Prêmio Nobel da Paz, Nelson Mandela, que disse que “tinha dedicado sua vida à luta pelo povo africano”, morreu nesta quinta-feira aos 95 anos.

dela deixa avanços na reconciliação entre negros e brancos, mas não teve grande sucesso na redução do fosso entre ricos e pobres


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EDITORIA DE ARTE / O TEMPO DENVER OLIVEIRA / EDITORIA DE ARTE FOTO: SCHALK VAN ZUYDAM/AP

ADEUS, Quando me vi no meio da multidão, alcei o punho direito e estalou um clamor. Não havia podido fazer isso há 27 anos, e me invadiu uma sensação de alegria e de força. Depois de ser colocado em liberdade, em 1990.

Nelson Rolihlalha Mandela 18-7-1918 5-12-2013 1918 Nelson Rolihlalha Mandela nasceu no dia 18 de julho de 1918, em Mvezo, uma pequena vila do Distrito O.R Tambo, na província de Cabo Oriental. 1941 Aos 23 anos, fugiu de um casamento arranjado e foi para a capital Joanesburgo. 1944 Casou-se com Evelyn Ntoko Mase, com quem teve quatro filhos: Thembekile, Makaziwe – que morreu aos nove meses –, Makgatho e Makaziwe. 1952 Abriu, com Oliver Tambo, o primeiro escritório advocatício negro do país. 1955 Observador do Congresso do Povo em Kliptown, lançou a Carta da Liberdade. 1958 Divorciou-se de Evelyn Mase e casou-se com Nomzamo Winnie Madikizela, também ativista antiapartheid, com quem teve duas filhas: Zenani (1959) e Zindzi (1960).

1960 No dia 21/3 ocorreu o Massacre de Sharpeville: 5.000 pessoas se manifestavam contra a Lei do Passe, que obrigava os negros a registrar onde eles poderiam ir. Eles marcharam pacificamente até serem contidos pela polícia com rajadas de metralhadora. Morreram 69 pessoas e cerca de 180 ficaram feridas.

1961 Em resposta ao Massacre de Sharpeville, Nelson Mandela cria o “Lança de uma Nação” (ou MK), braço armado do ANC. 1963 Já preso em Pretoria, a polícia invadiu seu esconderijo encontrando papéis e anotações comprometedoras de Mandela. Em 1964 foi condenado à prisão perpétua. 1985 Mandela rejeitou a oferta do então presidente sul-africano, Pieter Willem Botha, que prometia liberdade em troca do abandono à luta armada e declarou: “Quem deve renunciar à violência é o Botha. Que diga que vai acabar com o apartheid”. Em novembro, ele operou a próstata e, na volta, foi informado de que não retornaria para a cela comum e ficaria isolado dos amigos. 1990 Depois de passar 27 anos encarcerado, Mandela foi libertado, no dia 11 de fevereiro.

FILMES SOBRE MANDELA Mandela: Son of Africa, Father of a Nation, da Island Pictures, de Johanesburgo

Invictus, de Clint Eastwood. O ator Morgan Freeman interpreta Mandela, no filme que fala do momento de união nacional proporcionado pela final do campeonato mundial de rúgbi de 1995

1993 Mandela foi agraciado com o Prêmio Nobel da Paz, pelo trabalho pelo fim pacífico do regime do apartheid e por estabelecer os princípios para uma África do Sul democrática. 1994 Foi eleito, pelo Parlamento, o primeiro presidente de uma África do Sul democrática. 1996 Divorciou-se de Winnie Mandela, com quem a relação já havia terminado em 1992. Na época, Winnie acabou expondo seus erros. Em 1998, aos 80 anos, se casou com Graça Machel.

Goodbye Bafana, do diretor dinamarquês Bille August. Conta a vida do carcereiro James Gregory, que, por saber falar xhosa, fora encarregado pelo regime de espionar Mandela na prisão

2001 Mandela teve diagnosticado um câncer de próstata. Em 2004, anunciou que abandonaria a vida pública. 2010 Sua bisneta Zenani morreu em um acidente de carro no dia da festa de abertura da Copa na África do Sul. Em 11 de julho, dia da final da Copa do Mundo, fez uma apariçãosurpresa no Soweto 2011 Em janeiro, foi internado em Joanesburgo, onde foi diagnosticado com uma infecção no peito. Recebeu alta após duas noites. Em junho, lançou o livro Nelson Mandela por Ele Mesmo: o Livro das Citações 2012 Em 25 de fevereiro, foi internado com dores abdominais e teve alta após uma noite. 2013 Hospitalizado de 8 de junho a 1º de setembro com um quadro de infecção pulmonar e outras complicações, Mandela voltou para casa em Johannesburgo. Com uma grave infecção respiratória, o maior símbolo da luta contra o apartheid na África do Sul e Prêmio Nobel da Paz morreu ontem, aos 95 anos.

Reconciliação: o Milagre de Mandela. Documentário de 2010 de Michael Henry Wilson Terrorist Nelson Mandela, de Peter Kosminsky Remember Mandela!, da Villon Films, de Vancouver Madiba: The Life and Times of Nelson Mandela, da CBC, Canadá


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Mandela deixa legado político para a África DENIS FARRELL/ASSOCIATED PRESS - 24.7.2007

¬ CAMILA BASTOS ESPECIAL PARA O TEMPO

¬ Ícone da luta contra o apar-

theid, o primeiro presidente negro da África do Sul, Nelson Mandela, se imortaliza como fonte de inspiração em todo o mundo. “Ele se tornou um símbolo de democracia e de reconciliação na sociedade. Mandela significa muito de, perdemos um grande hopara diversas pessoas, por mem, mas continuaremos a ter sua contribuição e esforço, novos homem inspirados no com seus princípios, de fazer Mandela”, afirma Ana Piedade do mundo um lugar melhor”, Monteiro, do Centro de Estudos explica Tukufu Zuberi do Africanos da Universidade Centro de Estudos Africanos Eduardo Mondlane, em Moçamda Universidade da Pensilvâ- bique. nia, nos Estados Unidos. Para Para o professor Michel o especialista em África, já há Cahen, da Universidade de Bormuitos jovens que estão se deaux, na França, poucas depreparando para seguir o le- vem ser as mudanças na política gado do ex-presidente. “Não do país africano. “A morte dele só na África do Sul, você po- não vai afetar muito, as pessoas de encontrá-los no Quênia, vão chorar durante um mês talna Uganda, em Brasília, em vez, mas não é isso que vai abaSão Paulo, em Nova York, em lar a política. Porém, não podeLondres. Você os encontra mos negar que foi uma grande por todo o mundo”. página na história do país”. Porém, a morte do líder O professor Cahen ressalta também traz incertezas para que os princípios de Mandela o futuro da África do Sul. Al- são um aprendizado para os fuguns membros da minoria turos líderes. “O homem ficou branca, inclusive, temem que 27 anos na prisão e depois foi o atual espírito de reconaté os extremistas que o apriciliação possa desionaram e apersaparecer tou as mãos com a sua deles. Você morte. “O p oderia que espeesperar rar? É reisso de ceoso um reliperder gioso, o Manm a s dela, o não era que será nada Tukufu Zuberi agora? disso”. CENTRO DE ESTUDOS AFRICANOS DA É verdaUNIVERSIDADE DA PENSILVÂNIA, NOS EUA

“Mandela se tornou um símbolo de democracia. Ele significa muito para diversas pessoa.”

Espelho. Especialistas destacam que diversos jovens, em vários países africanos, já seguem os passos de Nelson Mandela

Mundo lamenta “Seu nome permanecerá como sinônimo de esperança para todas as vítimas de injustiça em qualquer parte do mundo” Joaquim Barbosa PRESIDENTE DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, EM NOTA OFICIAL

“Eu não conseguiria imaginar a minha vida sem o exemplo que Mandela deu. Eu sou um dos milhões que se inspiraram em Nelson Mandela” Barack Obama PRESIDENTE DOS ESTADOS UNIDOS, EM PRONUNCIAMENTO OFICIAL

“Madiba, como era conhecido, foi uma figura singular no cenário global, um gigante da justiça e uma fonte humana de inspiração” Ban Ki-moon SECRETÁRIO GERAL DA ONU, EM PRONUNCIAMENTO OFICIAL

o racismo, o preconceito, ele perpassa a ideia de diminuir o outro, desvalorizar o outro e a sua importância. O Mandela fez uma transição exatamente na contramão dessa ideia. Ele não precisou fazer o que o racista fazia com o negro. Ele não precisou oprimir o branco para trazer o negro pro seu espaço real.

que reverencia-los na sua sabedoria. Hoje, a África do Sul é uma democracia porque muitos lutaram. O Mandela não só é fonte de inspiração, ele é o meu espelho. Nós precisamos de espelhos, para que a gente se orgulhe da nossa história, para gente olhar e ver como nós somos importantes. É claro que ele não conseguiu tirar o preconceito das pessoas, mas ele fez um grande avanço tirando da lei. É a ideia: “você pode não me amar, mas tem que me respeitar”.

Qual o legado de Mandela? Foi um homem que poderia ter se embrutecido na cadeia, já que foram 27 anos presos. E foi alguém que conseguiu sobreviver porque tina um sonho. Mandela conseguiu viver tudo isso, porque, acima de tudo, ele tinha essa dimensão da importância do outro. É um legado para a gente que vê que a sabedoria dele se deu em gestos simples de um processo como esse. Saiu de um regime como era o apartheid, e passar por todo esse processo sem ter chegar a extremos. A humanidade precisa de pessoas e de homens como ele, que é fonte de inspiração, inclusive na manutenção dos sonhos. Eu sou uma mulher negra que acredita piamente que só estou pisando nesse solo porque outros pisaram antes. E eu tenho

Há um herdeiro político de Mandela? Na verdade, Mandela é um ideal. Acredito que são poucas pessoas que transformam o seu entorno. Ele deixa na África seu sonho, seus ideais de liberdade, de uma sociedade justa e fraterna, onde as diferenças não significam repressão. Ele deixa uma nova mentalidade. Teve o Martin Luther King e o Mandela, que são homens inspirados, que sempre vão deixar esse legado. Esse espelho se reflete no mundo, inclusive na história do Brasil. São exemplos que pessoas preconceituosas, como (o deputado Marco) Feliciano deveriam olhar. Se mirar e ver que o Mandela, por todo o sofrimento, toda a luta, toda a dureza – não só física mas subjetiva, ele nunca odiou aquele que o oprimiu. (CB)

Minientrevista

G

MakotaCelia Gonçalves Coordenadora do Centro DE AFRICANIDADES E RESISTÊNCIA AFRO-BRASILEIRA

Qual o significado de Mandela para a luta negra? Existem pessoas que ultrapassam o próprio significado da sua luta. Mandela foi um homem à frente do seu tempo.Eu me lembro de quando Mandela esteve no Brasil, logo que foi solto. Uma das propostas que ele falava era da questão da dimensão humana, de reconhecer no outro o seu semelhante. Depois, com ele já presidente, eu me lembro de escutá-lo dizer que havia tirado o racismo da Constituição, mas que outra história era tirar da cabeça das pessoas. Ele foi uma pessoa que fez uma transição pacífica do apartheid para a democracia. Como foi essa transição? Se você pegar


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