Che Guevara, Uma Biografia

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Claudio Blanc

Che Guevara

Uma Biografia



Projeto Cultura e Mem贸ria do Sindicato dos Padeiros de S茫o Paulo

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Sumário Prefácio: Sobre Lobos e Homens

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América Latina

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Uma Família Politizada

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Os Diários de Motocicleta

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Guatemala

28

A Revolução Cubana

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Da Vitória ao Rompimento

44

Congo

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Bolívia

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Legado

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Sobre o Autor

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Prefácio: Sobre Lobos e Homens

Em seu livro Leviathan, o filósofo, historiador, físico e matemático inglês Thomas Hobbes (1588 – 1679) estabeleceu as fundações da filosofia política ocidental. Apesar de suas proposições na área de física ser consideradas meras excentricidades, suas reflexões filosóficas são brilhantes. Hobbes percebia o impulso natural humano de buscar uma cooperação centrada no interesse próprio, uma teoria estudada ainda hoje no campo de Filosofia Antropológica. O pensador via que o interesse pessoal de cada indivíduo formaria espontaneamente essa cooperação, o que resultaria na organização social. No entanto, ao longo do processo, alguns indivíduos se sobrepõem aos outros, oprimindo-os. Hobbes dizia que “o homem é o lobo do próprio homem”, afirmando que o predador de nossa espécie é a nossa própria espécie. Essa exploração está presente em todos os crimes. Sequestro, assalto, assassinato, extorsão são formas abertamente criminosas que os lobos humanos transformam o outro em presa, em caça. Esse impulso também está em todos os sistemas políticos que já surgiram ao longo da História. O escravismo da Antiguidade, a monarquia, o comunismo e mesmo a democracia que sustenta e é sustentada pelo neoliberalismo permitem que o homem explore seu semelhante. Algumas vezes, como no caso de Mianmar, a antiga Birmânia, é o próprio Estado que explora e persegue os cidadãos que supostamente tinha de proteger. Há ainda outras formas mais sutis de exploração. 7


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Na história dos relacionamentos humanos, a opressão e a exploração de populações inteiras têm sido uma característica tão marcante quanto as figuras que se ergueram contra ela. Eternos símbolos de rebelião, de busca de justiça e igualdade para todos, esses homens e mulheres foram guiados pelo ideal de equidade social e não mediram esforços para atingir seus objetivos. Muitos deles cometeram equívocos, perderam-se do ideal inicial, tornaram-se assassinos ou ditadores, mas o impulso primeiro, o ímpeto de se erguer contra a tirania e a oO homem é o lobo do Homem: “Negro Pendurapressão muitas vezes à custa da do Vivo pelas Costelas”, ilustração de William própria vida, é sempre o mesBlake para o livro “Narrativa da Expedição de Cinco Anos Contra os Negros Revoltosos do mo. Poetas, guerreiros, líderes Suriname”, de J.M. Stedman (1796) religiosos têm mantida acesa a chama da utopia que ilumina a esperança de uma humanidade mais digna, mais fraterna.Pablo Neruda, Castro Alves, Giuseppe Garibaldi, Fidel Castro, Jesus Cristo: todos se rebelaram a seu modo e de acordo com suas perspectivas contra sistemas cínicos construídos sobre a exploração do homem pelo homem. Entre todos esses heróis rebeldes, nenhum incorpora tantos elementos comuns aos outros quanto Ernesto Che Guevara. Sensibilidade de poeta, bravura de guerreiro e pureza espiritual transformaram-no numa espécie de Cristo guerrilheiro, um ícone contemporâneo de utopia, um futuro Robin Hood desta época. 8


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Quando Ernesto Guevara de La Serna foi executado na selva boliviana em outubro de 1967, ele já era uma lenda não só na América Latina, mas em todo o mundo. Notório pela brutalidade e reverenciado pela inquebrantável fidelidade e dedicação aos ideais revolucionários, Guevara se tornou uma figura histórica tão controversa quanto significativa. Ícone, sua vida tem sido vilipendiada ou glorificada em dezenas de biografias, ensaios, documentários e filmes. A prestigiosa revista TIME colocou Che Guevara entre as 100 figuras mais importantes do século XX – vale ressaltar que há apenas dois latino-americanos na lista –, e a famosa imagem que Alberto Korda registrou dele, batizada de Guerrilheiro Heróico, é considerada a foto mais famosa do mundo. Sua vida foi um épico de heroísmo e tragédia, alinhavada pelo ideal de justiça social e compaixão. Nada define melhor Che Guevara do que sua famosa frase: “há que se endurecer, porém, sem jamais perder a ternura”. Para se atingir a utopia, o sonho, é preciso muitas vezes ser duro, mas durante a luta não se pode perder a qualidade que encerra nossa humanidade. E como todos os épicos, a história do jovem médico argentino que abandonou a estabilidade de sua profissão e o conforto de sua terra natal para lutar pela emancipação dos pobres e explorados do mundo, começa com uma aventura, com uma viagem. Durante um giro pela América Latina, o futuro guerrilheiro se apaixonou pelo oprimido povo de seu continente e decidiu que a única forma de estabelecer justiça social era através da luta armada. A partir de seu destaque na vitória da Revolução Cubana, a imagem de Che se projetou num mito de utopia. Che foi o titã que se erguia contra a opressão do capitalismo; um guru da moral afirmando que um Novo Homem, sem ego e cheio de um amor feroz pelo próximo, deveria ser criado a partir das cinzas do velho. Foi o guerreiro romântico que abandonou a vitoriosa Revolução Cubana e a família para continuar, mesmo doente, a luta contra a opressão e a tirania. Símbolo de contracultura, revolucionário marxista, escritor, brilhante estrategista militar, colíder da Revolução Cubana, Che espelhava seus 9


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muitos aspectos em todos os seus atos. O médico que tratava dos inimigos feridos, o guerreiro vulnerável que abandona o amor de sua vida para que o romance não o influencie durante o combate, o déspota cruel que assinou ordens para executar sem julgamento centenas de prisioneiros durante a Revolução Cubana. Sua filha Aleida Guevara, hoje médica em Cuba, descreve o pai como “um ser humano especial, mágico, com uma capacidade de doar a si mesmo completamente a alguma causa”. Segundo ela, Che “tinha uma sede por amor, era um grande amante”. Correspondendo à sua imagem de coragem, “nunca tinha medo de sucumbir a qualquer causa ou emoção”. Aleida lembra também que o pai tinha certas obsessões e valores rígidos, os quais passava para os filhos. “ ‘Cuide bem dos livros’, ‘seja bom com o próximo’, ‘não tolere qualquer tipo de injustiça’ e ‘honre seu país’, eram suas preocupações, nada além disso, mas isso já era muito”, disse Aleida em 2004, em uma entrevista ao jornal inglês The Guardian. A impressão mais marcante que ficou do pai é, porém, sua generosidade. “Tinha apenas seis anos quando ele morreu, por isso fui conhecendo meu pai na medida em que crescia”, escreveu Aleida em um artigo. “Minha mãe, Aleida March, amava-o profundamente e compartilhava os mesmos ideais, os quais passou para os filhos. O que mais me lembro de meu pai, era sua grande capacidade de amar”.

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América Latina

Do México à Patagônia, com exceção de Belize, na América Central, da Guiana e de Suriname na América do Sul e das antigas colônias inglesas, holandesas e francesas no Caribe, a América Latina é formada por vinte países unidos por uma história e uma cultura comum. E apesar de o Brasil ser menos um hermano e mais um “primo” nesta família, os traços comuns, mestiços, “creolos”, são característicos. Povos diversos, nações indígenas massacradas, avançadas civilizações nativas destruídas, a história da América Latina tem sido o conflito e o choque entre os povos que a formaram. As elites descentes de europeus continuam a explorar as populações pobres, descendentes dos indígenas e dos trazidos da África. A miscigenação que formou a cultura mestiça não foi espontânea, foi imposta pelas armas, pelo estupro, pelas doenças trazidas de longe. É uma cultura belíssima, mas nascida da mágoa e da humilhação. Até hoje, os descendentes desses povos ainda não foram capazes de se relacionar de foram harmônica, com justiça social. E o choque das culturas produziu miséria. Índice de Desenvolvimento Humano Apesar da riqueza cultural nascida da miscigenação dos povos que formaram a América Latina, a maior parte dos países latino-americanos figura entre os mais pobres do mundo. Apenas oito países latino americanos (Argentina, Brasil, Chile, Costa Rica, Cuba, México, Panamá e Uruguai) 11


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apresentam elevado índice de desenvolvimento humano. No entanto, mesmo nestes - e especialmente no Brasil -, a desigualdade social é gritante. A maior parte da riqueza dos países da América Latina é controlada por uma minoria. Sem acesso à educação e benefícios sociais básicos, um porcentual significativo da população é excluído. Ao longo do século passado, diversos movimentos eclodiram em vários países buscando nivelar a situação social através das armas. Dos tenentes comandados por Luis Carlos Prestes no Brasil da década de 1920 aos guerrilheiros sandinistas que tomaram o poder na Nicarágua no final Dos anos 1970, nenhuma revolução foi bem sucedida em incluir a imensa população de miseráveis ou em desenvolver o país cujo poder conquistou. Talvez Cuba possa ser uma exceção, mas é uma questão tão controversa quanto incerta, dependendo da perspectiva e formação do analista. Essas revoluções, principalmente as tentativas da esquerda de tomar o poder durante a Guerra Fria, tiveram, porém, um impacto determinante, ajudando a estabelecer a tendência política que vivemos hoje. Apesar de a resposta à ameaça comunista ter sido o estabelecimento de ditaduras de direita, isso acabou conduzido à transição democrática. De acordo com Eric Mayer, professor de Política Latino Americana do Victor Valley College, Califórnia, “se hoje a América Latina goza de certo grau de democracia, isso se deve, em parte, à luta da esquerda contra décadas de ditadura”. Mayer nota também que o movimento da esquerda levou à criação de redes de bem-estar social por parte de diversos países, principalmente para proteger a população pobre da fome. Apesar de duas décadas de crescimento econômico agregado, entre 1960 e 1980, de forma geral as condições da maior parte dos países latinoamericanos continua a mesma da década de 1950. Durante a década de 1980 e os primeiros anos da seguinte, a região sofreu a pior crise social e econômica desde a Grande Depressão de 1930. Em 1980, aproximadamente 120 milhões de latino-americanos, ou 39% da sua população, viviam abaixo da linha de pobreza. Nas eleições brasileiras de 1989, 70% dos eleitores haviam frequentado a escola menos de seis 12


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anos. No México, a desigualdade social é tão elevada que a expectativa de vida dos 10% mais pobres é de 20 anos menos que a dos 10% mais ricos. Durante os últimos cinquenta anos, a América Latina passou por um período de privação econômica e social. “Não fosse pelo tráfico de drogas, a imigração e a economia informal teria sido muito pior para as nações do hemisfério”, escreve Mayer. Em parte, os problemas econômicos e sociais das duas últimas décadas do século XX podem ser atribuídos à confiança do mercado-livre para solução dos problemas das sociedades. No entanto, as políticas fiscais conservadoras acabaram aprofundando a desigualdade. Como resultado, os ricos ficaram ainda mais ricos e os pobres, mais pobres. O aumento do desnível social trouxe ressentimento às camadas excluídas e levaram à formação de forças antagonistas, como os índios maias da Frente de Libertação Zapatista, no sul do México. Alguns políticos latino-americanos de orientação de esquerda tendem a enfatizar a justiça social como sendo mais importante que a integração econômica. Nesses casos, o Estado busca controlar os recursos naturais, como está acontecendo na Venezuela e na Bolívia, ou busca criar políticas de redistribuição de renda, como os programas Bolsa Família e Fome Zero que a administração Lula lançou. Marcos Históricos O professor Eric Mayer aponta os cinco momentos mais importantes da história política da América Latina no século XX. A primeira e mais fundamental é a Revolução Cubana de 1959. O segundo e terceiro momentos se referem ao assassinato de dois importantes líderes – ambos mortos com o apoio do governo americano, agindo através do Departamento de Estado e da CIA. Um deles foi Che Guevara, executado em 1967, e o outro, Salvador Allende, o presidente socialista do Chile eleito em 1973 que estava promovendo as tão esperadas reformas sociais em seu país. 13


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Mayer aponta também a vitória dos Sandinistas na Revolução da Nicarágua de 1979 e a derrota deste partido nas eleições de 1990, quando pela primeira vez um regime de esquerda foi removido do poder de maneira democrática, como os outros dois momentos mais importantes do século passado na América Latina. Uma característica da política latino-americana tem sido o Populismo. Os regimes populistas seguem políticas econômicas semelhantes, não importa em que país chegue ao poder. Os partidos e políticos populistas buscam a inclusão da população no sistema e pregam que a industrialização e a modernização podem ser alcançadas com um custo social mínimo. Ironicamente, os regimes populistas são permeados de autoritarismo. Na última década, após o processo de redemocratização do continente, o populismo tem voltado com novo peso na região. Na Venezuela, Hugo Chávez, eleito em 1999 e reeleito em 2006. Na Bolívia, o presidente democraticamente eleito Evo Morales, de etnia indígena, também tem uma veia populista. Com a intenção de fazer justiça social está promovendo a nacionalização de diversos empreendimentos estrangeiros na indústria boliviana, principalmente de energia. Até mesmo no Brasil, o Populismo deixa sua marca. Sua retórica se alinha com os anseios das classes sociais mais baixas. Assim, a América Latina começa o século XXI com enormes desafios a vencer. Sem o apoio das potências globais e sem a integração política necessária para se desenvolver através da cooperação mútua, a região permanece sangrando em berço esplêndido.

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Uma Família Politizada

Ernesto Guevara de la Serna nasceu em 14 de maio de 1928 na cidade de Rosário, Argentina. Era o mais velho dos cinco filhos de uma família de ascensão basca e irlandesa, dois povos notórios pela natureza livre e rebelde. Depois da morte de Che, seu pai, Ernesto Guevara Lynch, escreveu que “a primeira coisa a se notar é que nas veias de meu filho corria o sangue dos rebeldes irlandeses”. Desde cedo, “Ernestito”, seu apelido de infância, padeceu com asma. Pouco mais de um mês depois do seu nascimento, o garoto pegou uma pneumonia muito forte. Semanas antes de completar dois anos, sua mãe, Célia de La Serna, o levou para tomar banho em um rio, numa manhã especialmente fria. Era um costume da época, uma espécie de “vacina” contra doenças do pulmão. O resultado, porém, não podia ser pior. No mesmo dia do banho de rio, Ernestito sofreu seu primeiro ataque de asma, uma mal que o acompanharia pelo resto da vida e que minou sua resistência durante sua última campanha guerrilheira, na Bolívia. A asma acabou estreitando ainda mais a relação entre Célia e o filho. Ela também era asmática e sentia culpa pela doença de Ernestito. A ligação entre os dois foi marcada pela intensidade desde o começo. Célia era uma mulher avançada para a época, como mostra o fato de ter casado grávida, na conservadora década de 1920. Feminista, socialista e anticlerical, Célia foi, de acordo com o escritor Rodolfo Lorenzato, “a mais forte influência intelectual de Che, pelo menos até que ele viesse a conhecer Fidel Castro, em 1955”. 15


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Ernestito nos braços da mãe, Cecília, em 1928

Ainda criança, Guevara se convenceu de que só seria possível mudar o mundo por meio da revolução armada. Cresceu idolatrando Francisco Pizarro, o conquistar espanhol que derrotou o império inca e fundou Lima, capital do Peru. Em suas fantasias de menino, Che sonhava ser um dos soldados de Pizarro. De fato, seu ideal guerreiro se expôs ao longo de toda a infância. Em 1937, durante a Guerra Civil Espanhola, Ernestito, então com nove anos, acompanhava os avanços das forças de Franco movendo seus exércitos de brinquedo sobre um mapa da Espanha, conforme as posições nos campos de batalha reais. Quando começou a Segunda Guerra, Ernesto Lynch, pai de Che, fundou a Ação Argentina, uma organização antifascista cujo objetivo era 16


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combater a disseminação do fascismo numa Argentina simpática a essa orientação política. Lynch apoiava os Aliados através de comícios, de fundos levantados para o exército aliado e da divulgação de informações sobre o avanço das forças contrárias a Hitler e Mussolini. Inscrito na Ação Argentina pelo pai, Ernestito participava com entusiasmo das atividades políticas da família.

A família Guevara nos anos 1940. Che é o primeiro à esquerda

El Furibundo Apesar da asma, o futuro guerrilheiro se destacou como atleta. Jogava rugby com tanta garra que foi apelidado de “Fuser”, uma mistura de “el furibundo”, ou “o furioso”, com seu sobrenome materno “Serna”. Ou17


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tra característica de el Furibundo Serna era o fato de detestar tomar banho. Gabava-se de usar uma única camisa por semana. Por conta disso, Fuser também era chamado por seus colegas de Chancho, ou “porco”. Hábitos de higiene a parte, Fuser também era ótimo jogador de xadrez. Ele aprendera o jogo com seu pai e, já aos 12 anos, participava de torneios locais. Este jogo foi criado há séculos, na antiga Pérsia, com a intenção de treinar os militares na arte da estratégia. Talvez o xadrez possa igualmente ter ajudado o futuro guerrilheiro a desenvolver a soberba visão estratégica que veio a ser sua marca na Revolução Cubana. Muitas vezes isolado em casa por conta das crises de asma, Fuser lia muito. A biblioteca da família tinha mais de três mil livros, e o rapaz se entregava a eles com avidez. As aventuras de Julio Verne e de Jack London povoavam sua mente. Os filósofos Aristóteles, Marx, Kant, Gide e o escritor William Faukner também ajudaram a estabelecer a pedra fundamental do que viria a ser o pensamento político de Che Guevara. Outro importante ingrediente na formação de Guevara foi Che (com a bola) quando jogava rúgbi a poesia. Ele sabia de cor poemas inteiros, alguns bem longos. Fuser nutria interesse passional pela obra de Pablo Neruda e John Keats. Neruda, que também foi diplomata e senador, escreveu com ímpeto incendiário em defesa dos explorados e excluídos da América Latina e do mundo. A força da sua poesia valeu ao grande poeta chileno o Nobel da Literatura de 1973. Essa mesma verdade, cantada com poder e beleza, permeou o romantismo da luta de Che: “ha que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás”. 18


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Em 1948, Guevara entrou para a Universidade de Buenos Aires para estudar medicina. Nessa época, ele se apaixonou por Maria del Carmen Ferreyra, quatro anos mais nova. Durante seus estudos, Guevara fez diversas viagens pela América Latina. Trabalhando como enfermeiro em petroleiros e navios cargueiros, Che viajou ao Brasil, Venezuela e Trinidad. Em sua primeira viagem, iniciada em janeiro de 1950, Che atravessou as províncias do norte da Argentina em uma bicicleta, na qual ele instalara um pequeno motor. Em San Francsco de Chahar, perto de Córdoba, Che visitou Alberto Granado, um infectologista que trabalhava no leprosário local. Poucos anos depois, os dois iriam empreender uma viagem marcante na vida de Che.

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Os Diários de Motocicleta

O espírito aventureiro de Che Guevara o levou a fazer de 1952 um ano sabático. No meio do curso de medicina, Guevara fez uma viagem de motocicleta através da América do Sul acompanhado de seu amigo Alberto Granado, o qual viria, anos depois, a fundar a Escola de Medicina de Santiago, em Cuba, onde iria se estabelecer. Os dois partiram de Buenos Aires em dezembro de 1951 a bordo de uma velha motocicleta Norton 500 cc 1949, apelidada de La Poderosa. No final da aventura, tinham percorrido perto de 13 mil quilômetros através de oito países, da Argentina ao sul dos Estados Unidos, parando durante um período na Colônia de Leprosos de San Pablo, às margens do rio Amazonas peruano, onde trabalharam como voluntários. A primeira parada da viagem ainda estava imbuída de aventura e de despreocupada diversão. Os dois amigos foram ao balneário de Miramar, ainda na Argentina, visitar a namorada de Che, Chichina, que lá estava passando as férias de verão com a família. As duas noites que tencionavam passar na casa da família rica viraram oito. Quando finalmente foram embora, Chichina deu a Guevara 15 dólares e pediu que ele comprasse um maiô em Miami, se ele realmente conseguisse chegar aos Estados Unidos. O estudante jurou que morreria de fome, mas não gastaria o dinheiro. No entanto, ele acabou dando os dólares a um casal de camponeses pobres, mais necessitados do que Chichina. No Chile, em uma pequena cidade do interior, os aventureiros se apresentaram como especialistas em leprologia a um jornal local, o qual publicou uma matéria desfiando elogios aos dois médicos. O artigo no 20


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jornal acabou sendo um passaporte para conseguir refeições e favores ao longo do caminho.

Reportagem em jornal chileno sobre os dois médicos aventureiros

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Ainda no Chile, os viajantes visitaram a mina de cobre de Chuquicamata, a maior mina de cobre a céu aberto do mundo. Na época, a mina era administrada pelo monopólio minerador americano e era vista como um símbolo da dominação estrangeira. A visita causou uma forte impressão em Guevara. Numa noite, depois de se reunir com um casal de comunistas à procura de emprego na mina, Guevara escreveu em seu diário: “à luz de uma única vela... a figura contraída do trabalhador lhe dava um ar misterioso e trágico... o casal, duros de frio na noite do deserto, abraçando-se para se manterem aquecidos, era uma representação viva do proletariado em qualquer lugar do mundo”.

Alberto Granado e Che (na garupa) na La Poderosa

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No Peru, o futuro líder guerrilheiro ficou impressionado com a antiga civilização inca. Naquele país, La Poderosa quebrou, e os aventureiros tiveram de viajar na carroceria de caminhões junto com os descendentes desse povo. Dessa forma, Guevara começou a se aproximar dos camponeses e indígenas. Ficava condoído ao ver os vagões onde os índios eram transportados. O estudante os comparava aos vagões de gado na Argentina. Conforme observou o escritor Rodolfo Lorenzato, “começava a nascer em Che um sentimento fraternal pelos povos nativos e (pelos) menos favorecidos, sempre associada a um ódio crescente pelos exploradores europeus e norte-americanos”. Com as palavras do poeta cubano José Marti, registrou em seu diário seu desejo de “ligar meu destino ao dos pobres do mundo”. Em maio daquele 1952, Guevara e Granado chegaram a Lima, onde conheceram o médico e cientista peruano Hugo Pesce, diretor do programa nacional de leprosários. Pesce era marxista e Che registrou que as conversas mantidas com o cientista através das noites de Lima foram importantes na evolução de suas atitudes com relação à vida e à sociedade. Che reconheceu a influência de Pesce sobre ele em seu livro Guerra de Guerrilhas. “Ao dr. Hugo Pesce, que talvez sem o saber provocou uma grande mudança em minha atitude com relação à vida e à sociedade, com o mesmo espírito aventureiro de sempre, porém canalizado na direção de objetivos mais condizentes com as necessidades da América”, escreveu o guerrilheiro na dedicatória. No Hospital de Guia, em Lima, onde Pesce trabalhava, Che teve um romance rápido com a enfermeira Zoraide Boluarte, que alimentou os viajantes e lhes arranjou abrigo. Pesce os convidou, então, a conhecer a colônia de leprosos de San Pablo, na Amazônia peruana. Com roupas novas, um pouco de dinheiro e um pote de geleia de laranja, doados pelos novos amigos, os viajantes embaraçaram numa viagem de barco até o leprosário. Depois de sete dias pelo rio, chegaram à colônia. O mês de junho começava. O hospital na selva foi outro contato com a realidade dos desvalidos e afetou ainda mais Guevara. Ficou aturdido com a vida miserável que 23


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tanto os pacientes como as pessoas da região viviam. Eterno aventureiro romântico, Guevara não hesitou em cruzar a nado o Amazonas, vencendo uma distancia de quatro quilômetros, da margem onde ficava o alojamento dos médicos até a outra margem, onde os leprosos eram isolados. Em seu diário, Guevara descreve as condições sub-humanas as quais os doentes eram submetidos: sem roupas, medicamentos e quase sem comida, eram praticamente abandonados.

Che (à direita) na colônia de leprosos

Ernesto passou o dia do seu 24º aniversário no leprosário, e uma festa foi oferecida a ele. Emocionado, o jovem agradeceu a hospitalidade fazendo um discurso, no qual já se distinguia o impulso revolucionário e o ideal pan-americano. “A divisão da América (Latina) em nacionalidades 24


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ilusórias e incertas é completamente fictícia. Constituímos uma única raça mestiça, que, do México ao Estreito de Magalhães, apresenta notáveis semelhanças etnográficas. Por isso, numa tentativa de me livrar do peso de qualquer provincianismo pobre, ergo um brinde ao Peru e à América Unida”. Depois do Peru, Guevara e Granado seguiram pelo Amazonas numa balsa improvisada até a Colômbia. Outro choque. Numa carta à mãe, datada de julho de 1952, Che afirma que “há mais repressão da liberdade individual do que em qualquer outro país que já estive; os policiais patrulham as ruas com rifles nas mãos e pedem para ver documentos o todo o tempo”. Os viajantes ficaram pouco tempo na Colômbia e foram para Caracas, Venezuela, ainda em julho. De lá voltariam. Guevara, porém, esticou um pouco mais para cumprir o plano de viagem inicial e foi até Miami num avião de carga. O avião teve problemas técnicos e não pode retornar antes de um mês. Para sobreviver, o estudante teve de trabalhar como garçom e lavador de pratos em um bar de Miami. A viagem de Che pelas Américas foi crucial no desenvolvimento de seus ideais. Conforme notou o professor da Universidad Nacional de Lanús, em Bueno Aires, Carlos Vilas, “o despertar político e social (de Che) teve muito a ver com seu contato direto com a pobreza, a exploração, a doença e o sofrimento”. Foi nessa viagem que ele fez a escolha que o levaria através da Argentina à selva boliviana, de encontro à rajada de metralhadora que pôs fim à sua vida. Alberto Granado, seu companheiro de viagem valida esse ponto de vista. Em um depoimento dado em 2005 à rede de notícias britânicas BBC, Granado afirmou sobre a viagem que “a coisa mais importante foi ter percebido que tínhamos uma sensibilidade comum pelas injustiças”. De acordo com Granado, o período passado na colônia de leprosos de San Pablo foi essencial. Tanto ele quanto Guevara dividiam o pouco que tinham com os doentes. No momento da partida, Granado disse ter ficado “com a impressão de que Che estava dizendo adeus à medicina institucional e que tinha se tornado um médico do povo”. 25


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Granado e Che à bordo da balsa Mango-Tango, que os leprosos construíram para eles

Easy Rrider Marxista Guevara organizou suas notas em um livro, publicado pela primeira vez em 1993, 26 anos depois de sua morte, com o título de Das Kapital encontra Easy Rider, uma referência ao revolucionário livro de Karl Marx e do filme de 1969 estrelado por Peter Fonda e Jack Nicholson, ícone da contracultura dos anos 1960. O livro foi publicado subsequentemente em várias edições e se tornou um best seller. Foi também levado às telas de forma magistral por Walter Salles no filme Diários de Motocicleta. O texto retrata a transformação ocorrida “no jovem de 23 anos que saiu da Argentina em busca de aventura e dos sonhos sobre os grandes feitos que iria realizar”, conforme escreveu sobre a viagem a filha de Che 26


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Aleida Guevara. “Conforme ele descobria a realidade do nosso continente, amadureceu como ser humano e se desenvolveu em um ser social. Aos poucos, percebemos (ao longo do texto) como seus sonhos e ambições mudaram. O jovem que nos faz rir no início do livro com suas loucuras e absurdos se torna cada vez mais sensível, conforme nos descreve o complexo mundo indígena da América Latina, a pobreza de seu povo e a exploração à qual são submetidos. Ele ficou consciente de que as pessoas precisavam mais do que sua habilidade como médico, precisam da sua força e persistência para tentar realizar a mudança social a qual os permitiria recobrar a dignidade que lhes foi roubada e pisoteada por séculos”. Depois da viagem, Guevara passou a acreditar que as mudanças sociais necessárias para mudar o quadro de opressão e miséria da América Latina só seriam atingidas através da revolução armada. Outra visão que Guevara propõe em seu livro é a tese de a América Latina não ser constituída de nações separadas, mas é uma entidade única esperando para ser libertada. Em suas lutas, Che defendeu esse conceito de uma Pan América, compartilhando a mesma cultura mestiça com liberdade e justiça social. No ano seguinte às suas aventuras pelas América, em 1953, Guevara se formou em medicina.

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Guatemala

Logo depois de voltar à Argentina do seu ano sabático e de completar seus estudos, Che embarcou, em julho de 1953, numa nova viagem onde, por cinco meses visitou a Bolívia, Peru, Equador, Panamá, Costa Rica, Nicarágua, Honduras e El Salvador. Em dezembro daquele ano, Guevara chegou à Guatemala, onde o presidente Jacobo Arbenz Guzmán promovia reformas agrárias, as quais colidiram com o sistema latifundiário dominado por empresas americanas. Foi nesse ambiente que Guevara decidiu se estabelecer e se aperfeiçoar, procurando se tornar um “verdadeiro revolucionário”. Na Cidade de Guatemala, Guevara conheceu Hilda Gadea Acosta, uma exilada peruana que fazia parte da Aliança Popular Revolucionária Americana, uma frente socialista, e que tinha bons contatos políticos. Hilda apresentou Guevara a vários altos-funcionários do governo de Guzmán. Foi nessa época que o cubano Anônio “Nico” Lopez o apelidou de “El Che Argentino”, por conta do frequente uso que Guevara fazia da típica expressão gaúcha, que significa “ei, você”, em guarani. Hilda ajudou Ernesto e conseguiu um posto médico para ele. Apesar de ele a achar feia, o romance entre Che e Hilda foi inevitável. Anos depois, em 1956, tiveram uma filha, Hilda Guevara Gadea, morta em 1995. Apesar dos bons contatos, o jovem médico enfrentava dificuldades financeiras. A situação política da Guatemala também ficava cada vez mais instável. A reforma social promovida pelo presidente Arbenz era contrária aos interesses americanos. Ao desapropriar as terras da poderosa United Fruit Co. para a reforma agrária, o governo de Arbenz comprou uma briga 28


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com Washington. Num golpe de Estado orquestrado pela CIA, a qual planejou até mesmo o assassinato de opositores, Carlos Castillo depôs Arbenz e instaurou uma ditadura militar que, entre 1954 e 1990 perpetrou mais de cem mil assassinatos.

Hilda Acosta e Che Guevara na Guatemala

Arbenz havia sido eleito legitimamente em 1951, na primeira transição pacífica de poder da história da Guatemala. Comprometido com o bem estar dos guatemaltecos, Arbenz continuou as reformas políticas e sociais iniciadas por seu antecessor, Juan Arévalo, cujo governo resistira às tentativas de nada menos de vinte golpes de Estado. Mas se Arévalo en29


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frentou apenas a elite interna ao tentar realizar seu programa de reformas, Arbenz acirrou os ânimos de um inimigo bem mais poderoso. A deposição de Arbenz foi a primeira intervenção da CIA no continente. Che estava ansioso para lutar ao lado de Arbenz e se alistou em uma milícia armada organizada pela Juventude Comunista. Mas a inatividade do grupo frustrou o futuro guerrilheiro. Logo depois do golpe, Che tentou mais uma vez se unir a algum grupo disposto a lutar pelo regime de Arbenz. No entanto, o próprio presidente deposto se refugiou na embaixada do México e pediu que os estrangeiros que o apoiavam saíssem do país. Depois que Hilda Gadea foi presa, Guevara buscou refúgio no consulado da Argentina, onde permaneceu durante algumas semanas, até receber um salvo conduto para ir ao México. Depois, Hilda conseguiu subornar um guarda e também fugiu para o México, onde encontrou o amante. O relacionamento entre os dois, porém, ficava cada vez mais tenso. A experiência na Guatemala solidificou ainda mais a ideologia radical de Che Guevara. Ele tinha testemunhado o jogo de interesses que condena grande parte da humanidade à pobreza. O golpe bancado pela CIA o levou a ver os Estados Unidos como uma poder imperialista que se opunha a qualquer governo que tentasse corrigir a iniquidade social endêmica na América Latina e em outros países em desenvolvimento. O golpe na Guatemala apenas confirmava sua crença de que o marxismo conquistado pelas armas era a única forma de levar a dignidade aos oprimidos. Da Guatemala, Che foi ao México, onde conheceu os irmãos Fidel e Raúl Castro. Decepcionado com o governo pró-americano instalado por Fulgencio Batista em Cuba, em 1953, os irmãos Castro lideraram um levante contra o novo governo. No entanto, o movimento fracassou, e Fidel foi condenado a 15 anos de prisão. Libertado sob a anistia promovida por Batista, Fidel e Raúl se exilaram no México, onde Che os encontrou. Imediatamente, Che se uniu ao Movimento 26 de Julho (M-26-7), o esforço liderado por Fidel para depor Fulgêncio Batista. Estava prestes a embarcar na sua mais gloriosa aventura, de onde emergiria como Comandante Che Guevara. 30


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O advogado Fidel Castro e o médico Che Guevara na Cidade do México em meados dos anos 1950

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A Revolução Cubana

Na América Latina, ao longo do século XX, em diversos países houve movimentos armados buscando a inclusão da população mantida às margens da sociedade pelos mecanismos do capitalismo. No Brasil, já na década de 1920, tenentes do exército insuflaram revoltas no Sul do país, as quais tomaram São Paulo e se estenderam para o interior, através da notória marcha da Coluna Prestes. No Chile e na Guatemala, programas de cunho socialista com o objetivo de eliminar o déficit social de suas populações foram desenvolvidos por presidentes eleitos democraticamente apenas para serem sabotados pelos Estados Unidos. A revolução Soviética de 1917 deu um impulso revolucionário, provocando um efeito dominó de revoluções em praticamente todas as sociedades oprimidas, as quais funcionavam baseadas num sistema de enorme desigualdade entre as classes que as formavam. Nas palavras de Che Guevara, eram sociedades de “castas”. Depois da Segunda Guerra Mundial, as revoluções se espalharam por todo o mundo. Conforme observa o grande historiador inglês Eric Hobsbawm, “a década de 1950 foi cheia de guerras de guerrilha no Terceiro Mundo, praticamente todas nos países coloniais em que, por um motivo ou outro, as antigas potências coloniais ou colonos locais resistiram à descolonização pacífica – Malásia, Quênia (o movimento Mau Mau) e Chipre no império britânico em dissolução; as guerras muito mais sérias na Argélia e no Vietnã no império francês em dissolução”. Muitas dessas revoluções ou guerras de independência seguiam a orientação comunista – fosse soviética ou maoísta. 32


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Na América Latina, porém, nenhum movimento armado de esquerda foi efetivado, pois foram boicotados pelos Estados Unidos. A única revolução socialista vitoriosa na região aconteceu em Cuba. Num primeiro momento, a intenção dos revolucionários era a de derrubar o governo de Fulgêncio Batista. Não havia qualquer cunho socialista ou marxista. A grande influência de esquerda na Revolução Cubana vinha de Che Guevara. Muitos dos outros líderes e grande parte da população repudiavam o marxismo. No entanto, a truculência americana, a qual em vez de apoiar o novo governo o repudiou, acabou empurrando os revolucionários vencedores para os braços abertos dos soviéticos. A incompetência diplomática de Washington acabou trazendo o inimigo para a porta de sua própria casa, uma vez que a ilha está situada a uma distância relativamente pequena dos Estados Unidos. E apesar dos esforços americanos para minar a economia e a sociedade cubanas, a revolução foi, de certa forma, bem sucedida, conservando o poder com relativa estabilidade há mais de meio século. Antecedentes Cuba fora especialmente atingida pela Grande Depressão da década de 1930: dependia virtualmente da monocultura da cana-de-açúcar, cujo único escoadouro era os Estados Unidos. De acordo com o historiador J.M. Roberts, autor de The Shorter History of the World, “este vínculo econômico foi um entre os vários que deram a Cuba um relacionamento ‘especial’ mais próximo e incômodo com os Estados Unidos do que com qualquer outro Estado latino-americano”. Até 1934, a Constituição cubana incluíra dispositivos especiais restringindo a liberdade diplomática de Cuba e os americanos mantinham uma base naval na ilha. Havia pesados investimentos americanos em propriedades urbanas e empresas de serviço público, e a pobreza e os preços baixos de Cuba permitiam que se tirasse muito do trabalhador cubano pagando-o pouco. Dessa forma, Cuba “pertencia” aos Estados Unidos, sem 33


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que estes precisassem bancar o bem-estar social de seu povo, sem ter a obrigação que o Estado tem com seus cidadãos. Os Estados Unidos eram vistos como a verdadeira potência que apoiava os governos conservadores de Cuba no pós-guerra. No entanto, o Departamento de Estado desaprovou o ditador da ilha, Fulgêncio Batista, e cortou-lhe a ajuda em 1957. Batista, “figura conhecida e tortuosa da política cubana desde sua estreia num golpe do exército em 1933, como o então sargento Batista”, conforme observa Eric Hobsbawm, voltara a tomar o poder em 1952 e ab-rogara a Constituição. Na época, o jovem advogado nacionalista Fidel Castro já iniciara uma campanha de guerrilhas contra o regime. Hobsbawm define Castro como “uma figura não característica na política latino-americana: um jovem forte e carismático de boa família proprietária de terras, de política indefinida, mas que estava decidido a demonstrar bravura pessoal e ser um herói de qualquer causa da liberdade contra a tirania, que se apresentasse no momento certo. Mesmo seus slogans (‘Pátria ou morte’ – originalmente ‘Vitória ou morte’ – e ‘Venceremos’) pertencem a uma era mais antiga de libertação: admiráveis, mas sem muita precisão”. Depois de um período obscuro entre os líderes mais extremados da política estudantil da Universidade de Havana, escolheu a rebelião contra o governo. Castro atacou um quartel do exército em 1953, foi preso e exilado. No México, onde se refugiou, planejou a invasão de Cuba por uma força guerrilheira que se estabeleceu nas montanhas da província mais remota. A jogada mal preparada, quase improvisada, deu certo. Tratava-se um movimento inicialmente diminuto, mas que acabou dominando toda a ilha. Conforme nota Eric Hobsbawm sobre a luta de Fidel Castro, “curiosamente, foi um movimento relativamente pequeno – sem dúvida menor que a insurgência malaia –, atípico, mas bem-sucedido, que pôs a estratégia da guerrilha nas primeiras páginas do mundo”. Che Guevara foi o grande estrategista militar. Conforme J. M. Roberts , o argentino “partiu para conquistar o resto de Cuba com 148 homens, que se elevaram a trezentos quando sua campanha de guerrilha já 34


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estava praticamente ganha”. De fato, a participação de Che na Revolução Cubana foi fundamental. Sua sagacidade tática e bravura em combate fizeram com que fosse visto como o “cérebro de Fidel”. A campanha começou com poucos homens, mas cresceu tanto nas cidades como no campo e acabou sendo bem sucedida.

Fidel Castro sendo interrogado depois de preso em julho de 1953

Che chegou à Cidade do México no começo de setembro de 1954 e logo voltou a ter contato com os cubanos que tinha conhecido durante sua permanência na Guatemala. Quase um ano depois, em junho de 1955, Che foi apresentado a Raúl Castro, um exilado cubano que, juntamente 35


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com seu irmão Fidel, tentara e fracassara depor a ditadura pró-americana que reinava na ilha. Raúl colocou Che em contato com Fidel, o qual havia fundado o Movimento 26 de Julho, ou M-26-7, para uma vez mais tentar depor Fulgêncio Batista. Ainda inflamado pela experiência guatemalteca, Che abraçou de imediato a causa de Fidel. Na verdade, era a oportunidade pela qual ele ansiava desde que havia decidido que a solução para o problema social na América Latina seria conquistada apenas por meio da luta armada. Apesar de ter planejado atuar apenas como o médico do grupo, Che participou do treinamento junto com os outros membros do M-26-7. Seu desempenho foi tão acima das expectativas que seu instrutor, o coronel Alberto Bayo, herói cubano da Guerra Civil Espanhola, o declarou “o melhor guerrilheiro” do treinamento. O plano de Fidel era atacar Cuba a partir do México. Para tanto, em 1956, os revolucionários compraram um velho iate que acabou virando legendário, o Granma. Pouco depois da meia-noite de 25 de novembro de 1956, oitenta e dois membros do M-26-7, entre eles Che, Fidel e Raúl, subiram a bordo do Granma, o qual havia sido projetado para acomodar 12 pessoas. O piloto era Norberto Collado Abreu, um veterano da Segunda Guerra Mundial, onde lutara na Marinha de Cuba. Depois de uma viagem em condições precárias – o barco fazia água e quase afundou por conta do peso excessivo – o grupo, que mais tarde veio a ser chamado de los expedicionarios del yate Granma, aportou na atual Província Granma, na mesma praia onde José Marti, o líder do movimento da independência cubana, havia aportado em 1895, durante as guerras de independência da Espanha. O local havia sido escolhido justamente por este motivo. O lugar onde aportaram era pantanoso e dois dias depois do desembarque foram atacados por forças do governo. O guia dos rebeldes os traiu e delatou sua posição aos homens de Fulgêncio Batista. A maioria dos 82 combatentes do M-26-7 foi morta durante o combate ou executada, depois de capturados. Durante o confronto, Che largou seu equipa36


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mento médico e apanhou uma caixa de munição que um companheiro em fuga deixara cair. Conforme escreveu, aquele ato marcara simbolicamente a transição que o transformou de médico em guerreiro. Segundos depois de ter feito a escolha, Che foi atingido no pescoço por uma rajada de metralhadora, a qual matou imediatamente o companheiro ao lado. Em estado de choque, Che perdeu a esperança de sobreviver até que um companheiro, Juan Almeida, o tirasse do transe gritando para que levantasse e corresse. Che, Almeida e mais três homens conseguiram chegar até a floresta próxima e de lá prosseguiram em direção à Sierra Maestra. Durante vários dias, esconderam-se das tropas inimigas O desembarque dos expedicionários do Iate Granma em imagem histórica que estavam no seu encalço, padecendo de fome e de sede. Caminhando apenas à noite por segurança, acabaram encontrando mais três companheiros e continuaram a jornada. Com a ajuda de um camponês colaborador do movimento, foram guiados até o esconderijo onde estavam Fidel, Raúl e mais quatro combatentes. Dos 82 expedicionários do Granma, apenas 15 sobreviveram (algumas fontes falam em 18, outras ainda, buscando relacionar o número de rebeldes ao dos apóstolos de Cristo, mencionam 12). Os sobreviventes se reagruparam no coração da Sierra Maestra, uma cadeia de montanhas localizada no sudeste de Cuba. Os primeiros ataques dos rebeldes foram a depósitos de armas. Aos poucos, começaram a se reestruturar, recrutaram mais homens e conseguiram manter contato com suas bases de apoio. O grupo de Che e Fidel recebeu apoio 37


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dos camponeses e da rede de guerrilha urbana do M-26-7, comandada por Frank País, um brilhante estrategista, morto durante a revolução em 1957, quando tinha apenas 23 anos. Internados na selva, o mundo pouco sabia sobre os sucessos e fracassos dos revolucionários até que, em 1957, Fidel foi entrevistado pelo jornalista Herbert Matthews, do prestigioso jornal The New York Times. O texto de Matthews apresentou ao mundo uma visão quase mítica de Fidel e de seus guerrilheiros. A entrevista foi muito importante para o grupo, pois permitiu que os homens levantassem a baixa moral que vinham amargando até então. Embora não estivesse presente durante a visita do repórter, Che percebeu a importância da mídia na luta. Carrasco Na época da entrevista de Fidel, seus homens localizaram um traidor fugitivo. Eutímio Guerra, o espião de Batista, havia sido capturado com um salvo-conduto do governo. Guerra assumiu a culpa, e Fidel o condenou a morte. Corajoso, Guerra não pediu clemência. Os homens de Fidel, por sua vez, relutaram em decidir quem cumpriria a ordem. Em seus relatos, Che descreveu a “situação incômoda para as pessoas e para ele [Guerra]”. Para resolver o impasse, o guerrilheiro conta que acabou “com o problema dando-lhe um tiro com uma pistola calibre 32 no lado direito do crânio, com o orifício de sida no [lobo] temporal direito”. Aquela foi a primeira execução de Che, mas estava longe de ser a última. A situação em Sierra Maestra era crítica. Apesar de o exército rebelde conseguir aumentar seu contingente, as provisões eram escassas e era preciso ações extremas para conseguir suprimentos. Saques a depósitos e armazéns e o sacrifício de cavalos para alimentar as tropas eram uma constante da campanha revolucionária. Depois de um período de treinamento de novos combatentes, os rebeldes empreenderam um ataque a um quartel em El Uervo. A vitória conquistada teve um preço alto: seis insurgentes morreram e outros sete foram feridos. Entre os governistas, havia ainda mais feridos. Nesse episó38


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dio, Che revelou sua humanidade, baseada, muitas vezes, em contradições. Como médico, Che tratou dos feridos dos dois lados do campo de batalha.

Che (de costas), Raul e Fidel (no círculo) preparam prisioneiro para execução

Naquela altura da campanha, classificada por Che como os “mais dolorosos dias da guerra”, Fidel promoveu Che a comandante de uma das colunas do segundo exército. No entanto, o primeiro ataque de Guevara no novo posto não saiu conforme planejado. Ao contrário, foi totalmente improvisado. Decidido a atacar um destacamento governista, Che se adiantou e chegou ao local do ataque antes de seus homens, os quais estavam atrasados, acompanhado apenas de outro rebelde. Como se não bas39


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tasse esse erro de sincronização, Che decidiu atacar sozinho o pelotão inimigo. Pior, tanto sua arma como a do único comandado que o acompanhava travaram no momento em que Guevara ordenou que abrissem fogo. Os dois combatentes fugiram sob uma saraivada de balas. A sorte, porém, estava ao lado de Che. Os tiros dos inimigos provocaram uma resposta de peso dos rebeldes que ainda estavam nas colinas. A tropa governista acabou se rendendo antes mesmo de Guevara ter conseguido destravar sua arma.

Fidel Castro na Sierra Maestra, durante a Revolução Cubana

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O episódio serviu de lição. A partir de então, Che impôs uma disciplina rígida aos seus comandados. Os desertores eram tratados como traidores. Frequentemente, Che enviava esquadrões de execução atrás dos desertores. Os acusados de serem espiões ou informante também eram punidos com a morte. Em julho de 1958, Che teve um papel fundamental na Batalha de Las Mercedes, a última ofensiva lançada pelo governo contra os rebeldes e que durou nove dias. Com sua coluna, Che deteve uma força de mil e quinhentos homens que manobravam para cercar e destruir Fidel. A tática empregada por Che no combate é considerada “brilhante” por muitos estrategistas militares.

O Comandante Che Guevara na campanha em Cuba

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Com a moral elevada, Che comandou uma nova coluna no ataque final a Havana, a capital da ilha. Nos últimos dias de dezembro de 1958, Che liderou seu “esquadrão suicida”, como foi chamado, no ataque a Santa Clara, que marcou a vitória decisiva da revolução.

O casal Aleida March e Ernesto Guevara

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O primeiro dia do ano seguinte trazia um novo regime. Naquela manhã, quando Fulgêncio Batista soube que seus generais estavam negociando a trégua separadamente, fugiu imediatamente para a República Dominicana. Pouco mais de dois anos depois da campanha de guerrilha em que Guevara se consagrou por sua bravura e habilidade, os insurgentes entraram em Havana, estabelecendo a única revolução socialista vitoriosa das Américas. Em 8 de janeiro de 1959, o exército rebelde desfilou vitorioso pelas ruas de Havana. Menos de um mês depois, Che recebeu a cidadania cubana em reconhecimento pelo seu papel na vitória das forças revolucionárias. Aquele ano trouxe mudanças também na vida pessoal de Che. Além da vitória, o líder guerrilheiro se divorciou de Hilda Gadea, a economista peruana com quem havia casado no México, e se casou com Aleida March, uma cubana que fazia parte do M-26-7 e com quem ele passara a viver no final de 1958. Che conheceu Aleida March na selva, aprendeu com ela as características do local e acabou casando com a guerrilheira. Che e Aleida tiveram quatro filhos. A mais velha é Aleida Guevara, nascida em 1960. Os outros três, Camilo, Célia e Ernesto, também vivem em Cuba. Os dois primeiros são advogados e outro é veterinário especializado em golfinhos.

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Da Vitória ao Rompimento

Fidel contava com o apoio do povo, dos estudantes e também da elite. Hobsbawm explica que “Fidel venceu porque o regime de Batista era frágil, não tinha apoio real, a não ser o motivado pela conveniência e o interesse próprio, e era liderado por um homem tornado indolente por longa corrupção. Desmoronou assim que a oposição de todas as classes políticas, da burguesia democrática aos comunistas, se uniram contra ele, e os próprios agentes, soldados, policiais e torturadores do ditador concluíram que o tempo dele se esgotara. Fidel provou que se esgotara, e muito naturalmente, suas forças herdaram o governo. Um mau regime que poucos apoiavam fora derrubado”. A vitória do exército rebelde foi genuinamente sentida pela maioria dos cubanos como um momento de libertação e infinita promessa, encarnada em seu jovem líder, Fidel astro. “Provavelmente nenhum líder no Breve Século XX, uma era cheia de figuras carismáticas em sacadas e diante de microfones, idolatradas pelas massas, teve menos ouvintes céticos ou hostis que esse homem grande, barbudo, impontual, de uniforme de combate amassado, que falava horas seguidas, partilhando seus pensamentos um tanto assistemáticos com as multidões atentas e crédulas (incluindo este escritor)”, pontua Hobsbawm. Fidel acabou se projetando como um herói em todo o mundo. Em 1959, como primeiro-ministro de uma Cuba nova e revolucionária, descreveu o regime como “humanista” e especificamente não comu44


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nista. “Embora radicais, nem Fidel Castro, nem qualquer de seus camaradas eram comunistas, nem (com duas exceções) jamais disseram ter simpatias marxistas de qualquer tipo”, confirma Hobasbawm. Na verdade, o Partido Comunista cubano, o único partido comunista de massa além do chileno, era notadamente não simpático a Fidel, até que algumas de suas alas juntaram-se a ele, meio tardiamente, em sua campanha.

Che e Fidel vitoriosos em Havana

O relacionamento com os Estados Unidos, até então neutros, azedou rapidamente quando Fidel Castro se voltou para a reforma agrária, para a nacionalização das empresas de açúcar e para a denúncia dos elementos americanizados da sociedade cubana que apoiavam o antigo regime. “O antiamericanismo era um meio lógico – talvez único – para que 45


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Fidel Castro unisse os cubanos sob a bandeira da revolução”, escreve J. M. Roberts. Logo os Estados Unidos romperam relações diplomáticas com Cuba e também começaram a aplicar pressão econômica. Não tardou muito, resolveram promover a derrubada de Fidel Castro à força. Exilados cubanos já tramavam na Guatemala, com o apoio americano, quando o Presidente Kennedy tomou posse em 1961. Num fiasco sem precedentes, Kennedy bancou a fracassada tentativa de invadir a ilha usando os exilados cubanos. A partir de então, Fidel Castro se voltou com mais firmeza para a União Soviética e no fim daquele ano declarou-se marxista-leninista. Daí em diante, Cuba se transformou num ímã revolucionário na América Latina. Os torturadores de Fidel Castro substituíram os de Batista ao mesmo tempo em que seu governo impulsionava políticas que buscavam promover a igualdade e a reforma social. Na década de 1970, por exemplo, Cuba reivindicava a mais baixa taxa de mortalidade infantil da América Latina. A ajuda econômica russa possibilitava tais reformas. O destaque de Che como líder militar e estrategista na Revolução Cubana garantiu a ele importantes cargos no novo governo. Guevara assumiu todos eles com a mesma paixão e radicalismo que marcaram seus atos desde sempre. Aos poucos, porém, foi se distanciando de Fidel e, ciente de seu talento tático, abandou Cuba para acender a chama da revolução em outros países. A primeira função de Che no novo governo foi a de executar os inimigos do novo regime. Durante a rebelião conta a ditadura de Fulgêncio Batista, o comando geral do exército rebelde introduziu nos territórios conquistados uma lei penal do século XIX conhecida como Ley de la Sierra, a qual previa a pena de morte para crimes sérios. Depois da vitória, em 1959, o governo revolucionário promulgou-a em todo o país. Criminosos de guerra capturados antes e depois da revolução foram submetidos à Ley de la Sierra. Fidel nomeou Che “promotor supremo” e comandante da prisão do forte de La Cabña por cinco meses, de 2 de janeiro a 12 de junho de 1959. Nessa posição, Guevara supervisionou os julgamentos do tribunal revolu46


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cionário. O tribunal promovia julgamentos diários, os quais começavam em torno da oito da noite e avançavam pela madrugada. Seu desempenho rígido, executando diversos governistas com provas contestáveis, fez com que Che fosse acusado de tomar a justiça nas próprias mãos, ordenando a morte de centenas de pessoas sem que estas tivessem julgamento adequado. Mas como a população local havia sido vítima de atrocidades por parte de Batista e queria linchar muitos dos prisioneiros, Che justificou as execuções como uma forma de evitar que o povo fizesse justiça com as próprias mãos. Estima-se que cerca de 400 pessoas foram mortas em La Cabaña durante o tempo em que Che chefiou a fortaleza. No início de junho, Che foi chamado por Fidel de volta a Havana. A oposição começava a se fazer ouvir, criticando o excesso de autoridade do novo governo. A Igreja Católica denunciava a parcialidade dos tribunais revolucionários e preocupava-se com a aproximação entre Fidel e os comunistas, uma vez que, inicialmente, a Revolução Cubana não tinha um cunho socialista. Na verdade, o governo cubano se esforçava para negar qualquer associação com os movimentos socialistas. Apesar de medidas populistas de Fidel, como baixar em 50% o preço dos aluguéis e desapropriar terrenos baldios, a autonomia das universidades foi diminuída, assim como a liberdade de imprensa. A lei da reforma agrária trouxe polêmicas e gerou

Che e Fidel Fotografados por Alberto Korda em 1961

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desconfiança em relação à socialização em Cuba. A classe média, preocupada, começou a emigrar em massa. Foi o primeiro êxodo rumo a Miami, que se tornaria um exílio para os expatriados cubanos. Por conta da sua forte influência sobre Fidel, a orientação marxista de Guevara estava trazendo preocupações tanto para os Estados Unidos como para alguns dos líderes do M-26-7, aqueles que não tinham qualquer simpatia pela esquerda. Ao mesmo tempo em que Fidel se esforçava para negar qualquer envolvimento com os movimentos socialistas, Che, com toda a força de sua sinceridade explosiva, fazia justamente o contrário. Chegou mesmo a declarar na televisão que “o fato de eu não ser um comunista filiado ao Partido Comunista, como não sou, não tem importância alguma. Somos acusados de sermos comunistas pelo que fazemos, não por quem somos ou pelo que dizemos. [...] Se você acredita que o que fazemos é comunismo, então somos comunistas”. Uma forma que Fidel encontrou de neutralizar seu companheiro nesse momento crítico do novo governo revolucionário foi mandando-o como responsável por acordos comerciais cubanos a uma missão especial, uma viagem de três meses em visita a 14 países, a maioria dos quais na Ásia e na África. Quando Che retornou a Cuba, em setembro, Fidel tinha amealhado muito mais poder do que quando ele partira. No entanto, forças contrarrevolucionárias também se erguiam. O governo havia começado um programa de reforma agrária que fez com que os ricos criadores de gado da cidade de Camagüey, a terceira maior da ilha, organizassem uma campanha contra a redistribuição de terras. Liderados por Huber Matos, um guerrilheiro veterano do M-26-7 descontente com a tendência marxista que o movimento assumia, se opuseram ao governo revolucionário. Matos recebeu o apoio do ditador dominicano Rafael Trujillo. Por conta dos novos rumos que a revolução tomava, Fidel tomou medidas para conter o avanço contrarrevolucionário. Nomeou Che para chefiar o Instituto Nacional de Reforma Agrária e, posteriormente, presidente do Banco Nacional de Cuba, mantendo, ao mesmo tempo, sua pa48


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tente militar. Fidel tinha seus motivos para escolher Che para o cargo. Desde os dias da luta na Sierra Maestra, Che propunha a criação de indústrias autossuficientes. À frente do Ministério das Indústrias, um cargo por meio do qual contribuiu para conceber o socialismo cubano, Che se tornou uma das figuras mais proeminentes do país. Sua política industrial se baseava na diversificação da economia e na eliminação de incentivos materiais. Intuindo os preceitos da moderna economia cooperativa, Che incentivava o trabalho voluntário e a dedicação dos trabalhadores, pois acreditava que este movimento espontâneo resultaria no impulso econômico desejado. Para dar o exemplo do que esperava dos cubanos, ele trabalhava incessantemente no ministério. Chegou até mesmo trabalhar como voluntário em construO vitorioso comandante Guevara (2 de junho de 1959) ções e a cortar cana-de-açúcar – algo que Fidel Castro também fez. Em 1961, o recém-eleito presidente John F. Kennedy autorizou a CIA a planejar e financiar uma invasão a Cuba usando exilados cubanos que se opunham a Castro. A CIA forneceu aviões que bombardearam aeroportos cubanos. Em seguida, a força contrarrevolucionária tentou invadir a ilha por terra, aportando na Baía dos Porcos. No entanto, a operação foi um fiasco. Fidel estava preparado, pois a inteligência cubana tinha conhecimento da operação, e rechaçou a invasão. Conhecendo o plano da CIA, Fidel tomou medidas antes mesmo da invasão. Cerca de cem mil cubanos forma presos na ilha, suspeitos de simpatizar ou de apoiar aos invasores.O 49


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episódio acabou azedando de vez a já deteriorada relação entre Cuba e os EUA. Che não lutou diretamente no confronto que resultou do episódio da Invasão da Baía dos Porcos, mas comandou o exército cubano em outra frente do conflito. Como parte das ações de defesa, Castro enviou Che à província de Pinar del Rio, onde comandou o Exército Ocidental de Cuba. Durante uma missão em Pinar del Rio, a pistola de Che caiu do coldre e disparou acidentalmente. A bala passou de raspão em seu rosto.

A crise No ano seguinte, aconteceu o mais sério confronto de toda a Guerra Fria e, provavelmente, o seu momento decisivo. Num acordo com a União Soviética, o governo Castro permitiu a instalação em seu território de mísseis capazes de atingir qualquer parte dos Estados Unidos. Era uma resposta à instalação dos mísseis americanos na Turquia, apontados contra a União Soviética. O reconhecimento fotográfico americano confirmou, em outubro de 1962, que os russos estavam construindo locais para estes mísseis. Quando isto pôde ser demonstrado de forma inconteste, o presidente Kennedy anunciou que a Marinha dos Estados Unidos deteria qualquer navio que estivesse trazendo mais mísseis para Cuba e os que já lá estavam deveriam ser retirados. Um navio libanês foi abordado e inspecionado nos dias seguintes; os navios russos foram apenas observados. A força nuclear americana se preparou para a guerra. Durante 13 dias de tensão, as duas potências trocaram acusações, posicionaram suas tropas e seus mísseis. Depois de trocas de cartas pessoais entre Kennedy e o líder soviético Kruschev, este concordou em remover os mísseis. O efeito desse episódio nas relações das superpotências foi profundo. A tecnologia espacial soviética já alarmara os americanos no final da década de 1950, mas agora parecia que os Estados Unidos tinham afinal uma preponderância de forças grande demais para ser desafiada. Apesar de a URSS fazer enormes e bem sucedidos esforços para reduzir a lideran50


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ça americana nos anos seguintes, a Guerra Fria ultrapassara o seu ponto mais perigoso – sem dúvida a crise dos mísseis de Cuba. Embora o conflito ainda continuasse, as duas superpotências mantiveram um período de negociações e contatos mais próximos, muitas vezes interrompidos, a respeito de todo tipo de questões. Como um dos principais líderes da Revolução Cubana, Che fez ouvir sua posição. Em um dos piores momentos da crise, Guevara declarou ao jornal britânico Daily Worker que “se os mísseis estivessem sob controle dos cubanos, nós os teríamos usado”, justificando ainda mais o temor que os americanos nutriam da ameaça cubana.

Imagem de reconhecimento da CIA localizando as instalações de lançamento de mísseis em Cuba

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Rompimento Silencioso Em 1963, o quarto ano da revolução, os problemas cubanos se agravaram. A infraestrutura deixada pelos americanos era incomparavelmente melhor com a tecnologia atrasada fornecida pela URSS. Depois da retirada dos mísseis soviéticos da ilha, Che começou a demonstrar claramente seu desgosto com Moscou e começou a se alinhar com o pensamento chinês. O corte entre os soviéticos e os chineses se aprofundava, e Cuba tomou seu partido ao lado da URSS. Apesar da polpuda ajuda financeira que recebeu em troca do apoio, Cuba ficou completamente dependente dos soviéticos. Além disso, Moscou via com maus olhos os esforços bélicos de Che, o qual queria exportar a revolução para outros países da região. Bom político, Fidel procurou, moderadamente, se aproximar de Washington. Enquanto isso, Che buscava criar um foco guerrilheiro na Argentina, sua terra natal, a qual queria tornar socialista. Em 1964, Che já pensava em deixar Cuba. Diversos fatores contribuíram para essa decisão: o fato de o regime estar consolidado, de a ameaça da invasão americana ter diminuído, de ele não ser cubano e não estar acostumado ao estilo de vida da ilha caribenha e também porque não era burocrata, mas guerreiro. Em abril de 1964, os esforços de Che para implementar o socialismo em seu país natal fracassaram. Naquele mês, os integrantes do foco guerrilheiro instalado por Che na Argentina foram mortos ou presos. Embora frustrado, Che não se deixou abalar. Seu maior desejo era o de liderar a revolução continental que pregava. Assim, iniciou sua campanha para combater o imperialismo onde quer que estivesse. Aquela era a verdadeira luta da sua vida, uma luta suicida onde ele esperava morrer, como de fato acabou acontecendo. Em dezembro de 1964, Che Guevara embarcou numa viagem por diversos países como chefe da delegação cubana. Como porta-voz oficial de Cuba, discursou na sede das Nações Unidas, em Nova York, na 19ª Assembleia Geral das Nações Unidas. Em seu famoso discurso na ONU, Guevara atacou o intervencionismo americano, declarou a morte do colonia52


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lismo e aplaudiu o que chamou de “Guerras de Libertação” na América Latina. Ainda nos Estados Unidos, reuniu-se com o líder radical negro Malcon X, que pregava um rompimento com a sociedade branca que explorava os afrodescendentes, e outros radicais. Dos Estados Unidos, Che foi a Paris, reunindo-se com intelectuais com o filósofo Jean-Paul Sartre, disseminando o sucesso da Revolução Cubana. Nos três meses seguintes, o comandante argentino-cubano visitou a China, diversos países da África, e esteve também na Irlanda e em Praga.

Che Guevara discursando na seda da ONU em Nova York (1964)

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Com seu radicalismo, Che acabou embaraçando os laços políticos que Fidel procurava atar. Seu rompimento veio em um discurso proferido em Argel, na Argélia, em fevereiro de 1965. Che se excedeu em sua palavras, criticando abertamente o modelo socialista soviético, acusando a URSS, a qual injetava polpuda ajuda financeira em Cuba, de explorar o Terceiro Mundo tanto quanto as potências capitalistas. A simpatia que Che nutria pelo modelo de comunismo chinês desagradou os soviéticos, pois estes tinham rompido com Pequim. Além dessa simpatia, Che considerava a retirada dos mísseis de Cuba pelos soviéticos uma traição. Nos primeiros anos de revolução, temia-se, como de fato aconteceu no episódio da Baía dos Porcos, que os Estados Unidos tentassem invadira ilha. Os mísseis, raciocinava Che, garantiriam a soberania do regime revolucionário. Mas nem a União Soviética nem os Estados Unidos viam a questão desta maneira. Apesar das críticas públicas ao regime de Moscou, patrocinador do governo revolucionário, Che foi recebido com solenidades, quando voltou a Cuba em meados de março. Fidel e Raúl foram esperar Che no aeroporto de Havana, e tudo parecia se desdobrar em mesuras e concórdia. No entanto, duas semanas depois, Che abandonou a vida pública e simplesmente desapareceu. O povo cubano, que via Che como o segundo na linha de poder, atrás apenas do próprio Fidel, se perguntava o que havia sido feito do herói da revolução. Muitos pensavam que o desaparecimento estava ligado ao fracasso do plano de industrialização que ele defendeu durante sua gestão como ministro da Indústria, ou vinculado às críticas que Che tecera à União Soviética. O modelo socialista preconizado por Che se assemelhava ao da China. Isso era um problema para Cuba, financiada ostensivamente pelos soviéticos. Muitos historiadores defendem que Guevara advogava uma estratégia maoista para a América Hispânica, e seu projeto de rápida industrialização tem sido comparado ao “Grande Salto para Frente” empreendido na China por Mao Tse-tung. Apesar de muitos estudiosos apontarem para as desavenças sobre a orientação de qual bloco seguir como a principal causa do rompimento 54


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entre Che e Fidel, havia outro fator igualmente importante. A crescente popularidade que Che amealhava em torno de sua carismática figura era uma ameaça para Fidel. No entanto, esta não era a intenção de Che, sempre fiel ao companheiro de armas. Muitos rumores sobre o destino de Che começaram a se espalhar dentro e fora de Cuba. Fidel foi pressionado a informar sobre o paradeiro do antigo companheiro de armas. Em junho de 1965, cerca de dois meses e meio depois do sumiço, Castro afirmou que o povo seria informado sobre Guevara apenas quando este desejasse. Em outubro, Fidel revelou uma carta sem data, escrita, segundo ele, por Guevara meses antes. No texto, o líder guerrilheiro reafirmava seu apoio à Revolução Cubana, mas declarava que decidira deixar Cuba para continuar a combater pela causa revolucionária em todo o mundo. Além disso, Che renunciava a todos os seus cargos no governo e no partido e também abria mão de sua nacionalidade cubana. Nos dois anos seguintes, ninguém sabia ao certo ande estava Che Guevara. A carta era, na verdade, para ser revelada caso Che morresse nas campanhas nas quais iria se engajar para libertar o mundo através da revolução.

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Congo

O mundo só veio a saber novamente de Che em 1967, na Bolívia, quando ele tentava derrubar o governo pró-americano local com uma estratégia semelhante à que empregara em Cuba. Mas antes da Bolívia, Che esteve na África. Guevara acreditava que aquele continente tinha um grande potencial revolucionário, pois era o “elo fraco” do capitalismo. Durante suas viagens internacionais em 1964, Che havia entrado em contato com diversos líderes revolucionários africanos e, apesar da primeira impressão ter sido negativa, preparou-se para ajudá-los a promover a revolução pan-africana. No Congo, o movimento marxista Simba lutava contra o governo de situação para impor um regime comunista no país. Lá, Guevara comandou uma operação cubana em prol dos rebeldes congoleses. Chegou em abril de 1965 sem se identificar, dizendo aos rebeldes que 130 homens viriam de Cuba para treinamento do foco revolucionário. A missão de Che e dos cubanos que o acompanhavam era secreta. Para não envolver Cuba diretamente, a presença do comandante revolucionário não poderia ser descoberta. Mesmo sem dizer quem era, Che esperava que o aceitassem em combate pela imposição de sua presença física. A operação cubana na guerra congolesa contou com um contingente de aproximadamente uma centena de afro-cubanos que chegou depois de Guevara. Os cubanos sob comando de Che apoiaram o líder guerrilheiro Laurent-Désiré Kabila. Guevara tencionava exportar a Revolução Cuba56


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na e muitas vezes instruiu pessoalmente os combatentes simbas, iniciando-os na ideologia marxista e nas suas próprias estratégias de guerrilha. Logo no início da campanha, Che recebeu de um expedicionário cubano que se unia ao esforço revolucionário a notícia de que sua mãe estava gravemente doente, às portas da morte. Na verdade, quando Che soube da doença, Célia de La Serna já havia morrido, vítima de um câncer fulminante. Sem ter como localizar o marido, Aleida, a esposa de Che, não pode avisá-lo da morte da sogra. Na última carta que escreveu ao filho, Célia deixou clara sua preocupação com o desaparecimento de Che e um possível desentendimento com Fidel. Na carta, Célia vaticinava: “você sempre será um estrangeiro. Este parece ser o seu destino permanente”. A revolução também não ia bem. O disciplinado Che ficou desiludido com a indisciplina das tropas congolesas. As dificuldades de relacionamento entre cubanos e congoleses intensificavam-se ainda mais com as críticas que Che tecia ao estilo de vida desregrado e indolente dos nativos. Sem código de conduta adequado e invariavelmente bêbados, o Exército Popular de Libertação (EPL), o movimento armado rebelde do qual Che estava participando, também era visto pelos camponeses como uma força parasita. O primeiro ataque do EPL foi, no dizer do biógrafo Rodolfo Lorenzato, “uma tragédia”. Cerca de 40 cubanos e 160 congoleses atacaram o Forte Bendera. Che ficou na retaguarda para manter sigilo. Os congoleses desertarem, e quatro cubanos foram mortos, expondo o envolvimento de Havana com a guerrilha local. Como resultado, os cubanos se revoltaram contra os congoleses. Che temeu que seus homens desertassem em massa. Embora Fidel continuasse a enviar mais homens, os quais entravam no Congo via Tanzânia, país que apoiou até certo momento a revolução, o governo congolês contratou mercenários sul-africanos, os quais eram coordenados pela CIA e apoiados por exilados cubanos trabalhando em conjunto com o exército regular para frustrar os esforços das forças rebeldes. Interceptavam suas comunicações e planejavam emboscadas a partir das informações obtidas. 57


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Che no início da campanha do Congo, onde procurou não revelar sua identidade

Seis meses após sua chegada ao Congo, a base onde Che operava foi invadida. O comandante teve tempo apenas de fugir, abandonando equipamentos e suprimentos. Com as deserções em massa e os rebeldes sendo acuados, os líderes revolucionários decidiram encerrar a campanha. Che pediu que essa decisão fosse documentada por escrito. Queria com isso provar que os cubanos não abandonaram o campo de batalha. Sem dar ouvidos, os comandantes congoleses simplesmente interromperam o movimento. A retirada foi humilhante, partindo às margens do lago Tanganyika a bordo de um barco, Che e os cubanos fugiram junto com 20 congoleses escolhidos por eles para serem salvos. Os demais foram abandonados à própria sorte. Che registrou a ocasião com pesar: “foi um espetáculo gra58


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ve, desolador e inglório. Tive de repelir os homens que imploravam para serem levados conosco. Nessa retirada não houve um só traço de grandeza, nem gesto de rebelião”. Durante a fuga, um barco patrulha se aproximou da embarcação dos cubanos, e Che ordenou a seus homens que se preparassem para o combate. No entanto, os inimigos se retiraram, e os revolucionários puderam continuar a retirada em segurança. Alguns autores atribuem a retirada de Che e de seus homens do Congo a um acordo entre Fidel Castro, o Departamento de Estado dos Estados Unidos, a CIA e os mercenários que acuaram os guerrilheiros no lago Tanganika. Provavelmente, Fidel Castro desejava menos exportar a revolução do que seu companheiro, mas o fazia também para mantê-lo longe de Havana. Em seu Diário do Congo, Che atriChe no Congo (1965) bui a causa do fracasso da revolução congolesa à incompetência e à intransigência dos rebeldes. Sofrendo de disenteria, asma e frustrado com sete meses inúteis de campanha, Che desistira da causa de Kabila. “Nada me faz pensar que ele é o homem da vez”, escreveu sobre o líder em seu diário. Deixou o Congo acompanhado dos cubanos sobreviventes para confessar, semanas depois, quando escreveu a introdução do seu Diário do Congo, que aquela “era a história de um fracasso”. 59


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Depois do fracasso congolês, Che passou um tempo escondido na Tanzânia, onde Aleida foi visitá-lo secretamente. Por seis semanas, o casal ficou confinado em um apartamento de dois cômodos em Dar es Salaan. Não saiam para nada e recebiam mantimentos diariamente de um dos poucos agentes cubanos que conheciam seu paradeiro. Aleida descreveu esse período como uma “lua-de-mel”. Da Tanzânia, Che se refugiou na Tchecoslováquia, em Praga. Uma vez mais, ficou naquele país em sigilo e, de novo, recebeu a visita de Aleida. Apesar da insistência de Fidel que retornasse a Cuba, Che se recusava. Achava que o melhor modo de ajudar o governo revolucionário a sair do isolamento ao qual fora imposto pela comunidade internacional orientada pelos Estados Unidos era exportando a revolução. Seu alvo era a América Latina. Durante o período passado na Tanzânia e na Tchecoslováquia, Che reuniu informações fornecidas pela inteligência cubana e estudou a situação dos países latino-americanos. Decidiu que o melhor local para iniciar seu foco revolucionário seria a Bolívia. E foi para este país que dirigiu seus esforços. Lá, sabia que encontraria a vitória ou a morte.

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Bolívia

Depois da fracassada campanha com os rebeldes congoleses, no período em que viveu clandestinamente, Che completou suas memórias congolesas e rascunhou mais dois livros, um sobre filosofia e o outro sobre economia. Também visitou diversos países da Europa Ocidental para testar os documentos forjados para ele pela inteligência cubana. A ideia era usar o falso passaporte quando Che fosse para a América do Sul, semear a revolução. Che escolheu a Bolívia como foco inicial da revolução. A opção pareceu vantajosa ao guerrilheiro pela sua posição geográfica no continente, próxima da Argentina e no centro da América do Sul. Além disso, Che também esperava receber apoio do Partido Comunista da Bolívia, especialmente da ala pró-China. Che despachou dois companheiros à Bolívia, onde Fidel havia comprado, através de comunistas bolivianos, um trecho de terra na remota região de Nancahuazú. Além disso, Fidel tinha plantado uma agente em La Paz para servir de contato com Che. Haydée Tâmara Bunke Bider (1937 – 1967), codinome “Tânia”, era argentina como Che e fiel à causa comunista. Depois da Revolução Cubana, Tânia foi para Cuba onde ocupou posições no Ministério de Educação e na Federação das Mulheres Cubanas. Tânia trabalhava para a Stasi, a polícia secreta da Alemanha oriental, e possivelmente também para a KGB.

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A estudante de jornalismo Haydée Bunke...

... e a guerrilheira Tânia, na foto que virou ícone

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Entrementes, Che voltou à Cuba para recrutar mais soldados para sua causa e para treiná-los em segredo. Quando estava pronto, preparouse para partir. A despedida de Che de Cuba trazia o peso do destino fatal que o aguardava. Como um testamento, Che deixou com Aleida textos que condenavam Lênin, por quem havia antes nutrido profunda admiração, e que advertiam que “a URSS e o bloco soviético estavam fadados a retornar ao capitalismo”, algo que realmente aconteceu pouco antes da última década do século XX. Disfarçado de empresário uruguaio, deu uma abraço em Fidel. De acordo com testemunhas, Fidel ficou calado em um canto durante um bom tempo. Talvez soubesse que jamais veria seu explosivo companheiro novamente. Aleida teve a mesma impressão. Quando foi se despedir da família, seus filhos não o reconheceram. Desde que partira para o Congo, os visitara poucas vezes e mesmo nessas raras ocasiões os via disfarçado. Temia que, sem querer, os filhos denunciassem seu paradeiro. Aleida segurou o choro até que as crianças não estivessem mais por perto. Em meio a essa atmosfera de luto, Che foi enfrentar sua luta final. Em novembro de 1966, Che entrou na Bolívia sob o disfarce de Adolfo Mena Gonzáles. Depois de se instalar na base de Nancahuazú, Che contatou o secretário-geral do Partido Comunista da Bolívia, Mario Monje. O boliviano, porém, só aceitaria participar se fosse o chefe integral da luta armada. Che, claro, recusou e se viu apenas com pouco mais de 20 combatentes. O comandante começou, então, a treinar os poucos rebeldes que abraçaram a causa. O treinamento no campo do vale de Nancahuazu foi extenuante para Che e para os cubanos que o acompanhavam. Àquela altura, a força guerrilheira de Guevara, o Eiército de Liberacíon Nacional de Bolívia, era constituída de apenas cinquenta homens. A única guerrilheira era Tânia. Na verdade, Che desaprovava a presença da mulher. De fato, sem que soubesse a espiã serviu como um dispositivo de rastreamento dos guerrilheiros. Dessa forma, Tânia teria servido sem querer aos interesses soviéticos. A “libertação” da Bolívia por uma força marxista desvincu63


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lada da orientação de Moscou não interessava aos soviéticos, tanto quanto um governo de esquerda na América Latina não interessava aos americanos. No final da campanha, as colunas foram divididas. O grupo com quem Tânia estava foi emboscado por tropas do governo boliviano, e a guerrilheira, metralhada. A Campanha O diário mantido por Guevara durante a campanha relata os onze meses de guerrilha e as dificuldades que os revolucionários enfrentaram. As anotações vão de 7 de novembro de 1966, logo após a chegada de Che à fazenda em Nancahuazu para treinar os insurgentes, até 7 de outubro de 1967, o dia anterior à sua captura. O diário conta sobre como os guerrilheiros foram forçados a iniciar as operações prematuramente, pois foram descobertos pela inteligência boliviana, e explica a decisão de dividir a coluna de combatentes em duas unidades, as quais foram incapazes de restabelecer contato uma com a outra. O texto também informa sobre o racha entre Che e o Partido Comunista Boliviano, o que resultou em menos soldados para a causa do guerrilheiro argentino e conta a dificuldade que seus homens tiveram de recrutar a população local, pois haviam aprendido a língua indígena quéchua, quando na região onde estavam se falava o tupi-guarani. O diário revela ainda que, conforme a campanha chegava a seu final, Guevara tinha cada vez mais crises de asma. Muitas das últimas ofensivas da campanha tinham o objetivo de conseguir remédios para o comandante revolucionário. Apesar do pequeno contingente, as forças de Che eram bem equipadas e asseguraram algumas vitórias iniciais contra os soldados bolivianos no difícil terreno da região montanhosa de Camiri, no sudeste da Bolívia. No entanto, o governo boliviano agiu rapidamente para evitar a disseminação da guerrilha. Além de enviar prontamente tropas para a região onde Che e seus combatentes operavam, o Estado Maior boliviano pediu e recebeu ajuda dos EUA. 64


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Alguns dos homens de Che, na Bolívia

Com a pressão das forças governistas, Che dividiu seu grupo – formado em sua maioria por cubanos, alguns bolivianos, dois peruanos e Tânia – em duas colunas para melhor poder se deslocar. Para piorar as coisas ainda mais, dois homens de Che que deveriam fornecer inteligência a partir de La Paz foram capturados, deixando Che isolado. O líder guerrilheiro também esperava manter contato com Havana para receber inteligência e suprimentos. No entanto, os dois transmissores de ondas curtas que Che recebeu de Castro quebraram, e os guerrilheiros perderam o contato com Cuba. Estavam isolados e sem meios de se reabastecer. Sem informações e sem suprimentos, a missão de Che estava fadada ao fracasso desde o início. Uma das principais causas do insucesso de Che na Bolívia foi o fato de ele não ter inteligência da situação. Guevara 65


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esperava enfrentar apenas os militares bolivianos, mal equipados e despreparados. Não sabia, porém, que o governo americano havia enviado agentes da CIA e um grupo dos Boinas Verdes, as Forças Especiais do Exército dos Estados Unidos, à Bolívia para coordenar os esforços antirrevolucionários. O exército boliviano foi, por sua vez, equipado, treinado e supervisionado pelos Boinas Verdes. Com ajuda dos americanos, foi formado um batalhão especial treinado em combate na selva, cuja base foi estabelecida em La Esperanza, próximo do local onde Guevara e seus guerrilheiros operavam.

Os guerrilheiros na Bolívia. Ao centro, Tamara/Tânia Bunke

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A personalidade explosiva de Che somava a todas essas dificuldades. Guevara tinha um impulso suicida. Preferia sempre o confronto direto à negociação de acordos. Durante a campanha de Cuba, Fidel soube administrar essa tendência como uma arma de combate. Mas tanto no Congo como na Bolívia, essa característica cáustica impediu que de Che firmasse alianças com os líderes locais. Como consequência, ao contrário do que aconteceu em Cuba, o povo boliviano não aderiu à revolução. Mártir da Revolução A caçada a Che Guevara foi comandada por Félix Rodriguez, um agente da CIA. No dia 26 de setembro de 1967, durante uma missão de reconhecimento, alguns dos homens de Che forma emboscados e, a maioria, morta. O comandante e os sobreviventes se esconderam, então, em um bosque, de onde podiam observar os deslocamentos de tropas do exército em seu encalço. Os guerrilheiros conseguiram evitar seus perseguidores por mais duas semanas. A essa altura, as crises de asma de Che aumentavam de frequência e de intensidade. Cerca de 1.800 soldados do governo boliviano vasculhavam a área em busca de Che e de sua coluna, então reduzida a 17 homens. No dia 8 de outubro de 1967, os guerrilheiros foram cercados pelas tropas do capitão Gary Prado. Estavam numa ravina, em La Higuera. Quando os homens de Prado atacaram, numa vã tentativa de escapar, Che dividiu seus comandados em três grupos. Escondido atrás de uma pedra, Che só parou de atirar quando sua arma foi atingida e ficou inutilizada. Sua pistola também estava sem balas. Durante o combate, Che foi ferido na perna. Sem ter como se defender, Che teria gritado, segundo o sargento boliviano Bernardino Huanca, que participou da operação, “não atirem! Sou Che Guevara e valho mais para vocês vivo do que morto”. Há, porém, outras duas versões sobre o que aconteceu no momento da captura de Che Guevara. Numa delas, Che teria exclamado, “Sou Che Guevara e fracassei”. No entanto, a mais verossímil das três versões, uma vez que as duas primeiras parecem servir o interesse de seus captores, 67


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reza que quando Che foi ferido, um soldado boliviano chamado Willy, o qual ajudou o guerrilheiro baleado a caminhar, teria jogado sua arma de lado e gritado: “este é o comandante Guevara e merece mais respeito!”

Che Guevara capturado pelos soldados bolivianos treinados pela CIA

Guevara foi amarrado e, no dia seguinte à captura, levado a um casebre que servia de escola na aldeia de La Higuera, ali perto. Sua aparência espelhava as duras condições que enfrentou na campanha. Magro, sujo, doente, esfarrapado, nos pés, prosaicos sapatos de pano feitos por ele mesmo: o altivo combatente lembrava agora mais um mendigo. 68


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Che foi interrogado pelo tenente-coronel Andrés Selich, a quem admitiu a derrota, lamentando profundamente a pouca ajuda recebida dos camponeses bolivianos. Depois, passou sua última noite em companhia dos cadáveres de dois jovens guerrilheiros cubanos. Os americanos queriam que o comandante guerrilheiro fosse levado ao Panamá, onde seria interrogado. No entanto, àquela altura, o general René Barrientos, ex-presidente da Bolívia, já tinha ordenado a execução do líder da malfadada insurreição. Lyndon Johnson, então presidente dos EUA, lamentou a decisão, classificando-a de “estúpida”. Ao receberem a ordem, os oficiais pediram voluntários. Dois soldados se apresentaram e começaram a discutir sobre quem teria a honra de matar Che Guevara. Para resolver a disputa, tiraram a sorte. O escolhido foi o sargento Mario Terán. O carrasco recebeu instruções específicas de Félix Rodriguez sobre como deferia assassinar o prisioneiro. O governo divulgaria a versão de que Che havia sido morto em combate contra o exército boliviano. Pouco antes da execução, perguntaram a Guevara se ele estava pensando sobre sua imortalidade. “Não”, teria respondido ele. “Estou pensando sobre a imortalidade da revolução”. Che, pouco antes de ser executado Então, Che se voltou ao seu carrasco e disse: “sei que você veio me matar. Atire, covarde. Saiba que está matando um homem”. Terán hesitou por um momento e finalmente puxou o gatilho do seu rifle semiautomático, atingindo Che nas pernas e nos braços. Guevara caiu no chão se contorcendo, aparentemente mordendo o pulso para não gritar. Então Terán deu o tiro de misericórdia. A bala fatal 69


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entrou através do tórax e perfurou o pulmão de Che. Che morreu por volta das 13h de 9 de outubro de 1967. Tinha 39 anos.

O cadáver de Che, que parecia rir de seus executores

O corpo de Che foi amarrado ao trem de pouso de um helicóptero e transportado a Vallegrande, onde foi exposto à imprensa internacional. A impressionante visão do cadáver sobre a grande pia da lavanderia do hospital de Vallegrande contribuiu sobremaneira para sua projeção como 70


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mito. Cabelos e barbas longas, a imagem do morto e a circunstância covarde da execução faziam Che parecer um Cristo guerrilheiro. Os olhos surpreendentemente vivos continuam a olhar a partir de outra perspectiva, a partir do além. Brilham com uma intensidade viva, como se mesmo morto Che continuasse comunicando sua mensagem, como se mesmo capturado e executado ele ainda persistisse em propagar seu sonho de liberdade através da revolução. Após um médico boliviano amputar as duas mãos, o cadáver foi levado a um local desconhecido e enterrado. As autoridades militares bolivianas se recusaram a informar a localização para onde o corpo havia sido levado. Quanto às mãos, foram enviadas para Buenos Aires, onde suas impressões digitais foram tiradas e arquivadas pela Polícia Argentina. Depois, as mãos foram enviadas a Cuba. Os restos de Che ficaram desaparecidos por trinta anos. Em 1997, o repórter Jon Lee Anderson realizava pesquisas para a extensa biografia que escreveu sobre Che, Che Guevara: A Revolutionary Life, e recebeu de um militar reformado a informação do local onde o guerrilheiro estava enterrado. O esqueleto sem mãos foi exumado debaixo de uma pista de pouso próxima de Vallegrande e identificado como sendo de Guevara por uma equipe de legistas cubanos. Os restos de Che foram embarcados para Cuba e enterrados, junto com os de seis outros combatentes, com honras militares em um mausoléu construído na cidade de Santa Clara, onde Che venceu a batalha decisiva da Revolução Cubana. O homem morreu. Das suas cinzas nasceu o mito.

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Legado

No dia em que Che Guevara foi assassinado, o jornalista Richard Gott, que cobria a guerrilha boliviana para o jornal inglês The Guardian, publicou uma reflexão sobre o guerrilheiro, caçado e morto como um bandoleiro. “É difícil lembrar que este homem já foi uma das maiores figuras da América Latina. Ele não foi apenas um grande líder guerrilheiro, mas foi também amigo de presidentes tanto como de revolucionários. Sua voz foi ouvida e considerada tanto em conselhos interamericanos como na selva. Foi um médico, um economista amador, ministro das Indústrias na Cuba revolucionária e o braço-direito de Castro. Ele poderá talvez passar para a História como a maior figura continental desde Bolívar. Lendas serão criadas em seu nome”. O vaticínio de Gott não poderia ser mais preciso: “lendas serão criadas em seu nome”. Imediatamente após sua morte, Che foi alçado ao Olimpo do imaginário mundial, tornando-se um mito. De fato, a execução de Che em Vallegrande, aos 39 anos, transformou-o em mártir. Sua morte garantiu a ele a estatura de imortal. A imagem semelhante à de Cristo – um Cristo moderno e guerrilheiro – sobre o leito improvisado com os olhos abertos e penetrantes como se fitassem os vivos a partir da morte; as destemidas palavras finais – “atire, covarde! Saiba que vai matar um homem!” –; o túmulo anônimo e as mãos amputadas, como se os assassinos o temessem mais morto do que vivo, esculpiram no imaginário contemporâneo

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um arquétipo semelhante ao dos mártires cristãos, imolados por sua fé. Che se tornou um santo no altar político de nossos dias. Mais de trinta anos se passaram e o herói assassinado continua a habitar a memória coletiva. Che se tornou ubíquo: sua imagem é vista em camisetas e pôsteres, em chaveiros e flâmulas. É um processo que acontece com todo aquele que se transforma em mito: o homem some e fica apenas a lenda. Che talvez acreditasse que seu sacrifício seria brindado com rebelião, com os oprimidos se erguendo contra o sistema e criando – nas palavras do próprio Che – dois, três, muitos Vietnãs. No entanto, se tivesse vivido para ver, teria testemunhado o rumo diferente que seu sonho de liberdade total tomou. Durante as ditaduras militares sul-americanas, milhares de jovens inspirados em seu exemplo, foram mortos em combates nas serras e selvas, ou torturados até a morte nas masmorras dos regimes opressores que se espalharam pelo continente. Não conseguiram estabeleceram a revolução, mas sua oposição corajosa garantiu que a democracia fincasse pé na região. Se tivesse sobrevivido à campanha da Bolívia, Che teria visto o Vietnã vencer os Estados Unidos para, em seguida, buscar se integrar no mercado global. O estilo de luta de Che também não prevaleceu. As maiores revoluções e transições do último quarto do século XX – na África do Sul, Irã, Filipinas e Nicarágua e a redemocratização do Cone Sul, do leste da Ásia e do mundo comunista – foram alcançadas por meio de negociação com os antigos adversários, em lugar do confronto até a morte defendido por Che. Carisma Mesmo não tendo atingindo seus ideais, Che morreu tentando. No mundo de hoje, consumista, egoísta e cínico, seu ímpeto continua a influenciar jovens nascidos quase duas gerações depois de sua morte. O jorna73


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lista americano Ariel Dorfman acredita que o espírito de Che preencha um anseio contemporâneo. “Nestes tempos órfãos de identidades, onde as alianças são frágeis, a fantasia de um aventureiro que deixou seu país, cruzou fronteiras e rompeu barreiras sem jamais trair sua lealdade inicial confere aos jovens da nossa era uma combinação que os ancora a um centro de gravidade moral ao mesmo tempo em que atrai seu impulso ao nomadismo”, deduziu ele. Paradoxalmente, a transformação do homem Che – com sonhos, ideais e que sofreu na carne por esses sonhos e ideais – em lenda faz com que sua essência perca a força. Outrora, sua imagem e seu nome encerravam a ameaça revolucionara. Apesar de seu legado ter sido banido pelos regimes de direita que se instauraram na América Latina entre os anos 1960 e 1970, temerosos de sua imagem, hoje o símbolo Che já não é perigoso. Seu cabelo hippie, a barba desgrenhada, a eterna boina onde cintila a estrela, esperança vermelha dos oprimidos, foram reduzidos à moda, banalizados pela cultura de massa, processados na imensa geleia geral mundial. Mas mesmo industrializado, ainda resta uma mensagem para quem quiser se aprofundar na complexidade de Che. Fica a eterna mensagem do homem que preferiu lutar até a morte porque não podia viver num mundo onde “los pobres de la tierra”, as pessoas humildes e desvalidas, são sempre marginalizados. Apesar da pasteurização do ideal de Che, o sentido de sua luta, a motivação que o fez sair da Argentina numa rota guerrilheira rumo ao martírio na Bolívia, está presente na inconformidade de se constatar que atualmente quarenta mil crianças – uma a cada dois segundos – morre de doenças decorrentes da fome crônica. Aprisionado nas camisetas e pôsteres, o ardor dos olhos de Che Guevara consegue, anda que de maneira tênue, remeter para além do cinismo e da indiferença de nossa época e lembrar das terríveis condições de injustiça e iniquidade que o levaram a empreender sua luta que ainda persistem em todo o mundo.

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Construindo uma Lenda Conforme observou o político britânico George Galloway, “um dos maiores erros que o Estado americano jamais cometeu foi o de exibir as fotografias do cadáver de Che. Sua pose semelhante à do Cristo morto assegurou que seu apelo iria muito além do campus universitário e atingiria ao coração dos fiéis que se unem para ouvir os sermões incendiários dos teólogos da libertação”. O apelo das imagens foi vital para consolidar Che como um mito. A revista The Economist comparou as fotos do cadáver de Che com o quadro A Lamentação Sobre o Cristo Morto, do pintor italiano Andrea Mantegna (1431 – 1506). Para a revista, as imagens ajudaram a projetar a imagem de Che como um santo moderno, um homem que desprezava o conforto material e a glória, que arriscou sua vida três vezes em países estrangeiros e que foi morto covardemente quando tentava salvar os pobres do mundo. Essa imagem foi consolidada imediatamente depois da sua morte, no final da década de 1960, quando Guevara se tornou um símbolo de rebelião e revolução durante os protestos estudantis que irromperam no mundo todo. Muitos ativistas de esquerda foram logo influenciados pela ideia de recorrer à violência como meio de estabelecer o ideal socialista. O filósofo francês Jean-Paul Sartre (1905 – 1980), um dos mais influentes do século passado, descreveu Che como “não apenas um intelectual, mas também o mais completo ser humano da nossa era”. Já o ex-presidente sulafricano Nelson Mandela, o qual combateu o regime de Apartheid da África do

A expressão do cadáver de Che: santo guerrilheiro?

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Sul, se referiu a Che como “uma inspiração para qualquer ser humano que ame a liberdade”. O legado de Guevara atravessou as décadas. Em 2007, quarenta anos depois de sua morte, Che foi eleito “a maior figura histórica e política da Argentina”. No interior da Bolívia, camponeses pobres santificaram o guerrilheiro por conta própria. Em dificuldades, eles rezam pedindo ajuda a “San Ernesto Guevara”. Em Cuba, a morte de Guevara teve grande impacto político. A execução do herói da revolução levou Fidel a abandonar a guerrilha como estratégia de política estrangeira. A União Soviética, maior aliado político e parceiro econômico de Fidel, criticou a medida e, como consequência, o governo de Havana foi orientado conforme as linhas soviéticas. No entanto, o regime castrista continuou a promover o culto da personalidade de Che. Hoje, estátuas e obras de arte em sua honra se espalham por toda a ilha, em salas de aula, escritórios, edifícios públicos e até nas cédulas. Sua esfinge está na moeda de três pesos, acima dos dizeres “Patria o Muerte”. Além disso, todos os dias, antes de começar as aulas, as crianças cubanas afirmam, como numa oração: “pioneiro do comunismo, seremos como Che!” Lennon e Lênin Apesar da queda do comunismo no final dos anos 1980, na América Latina, o fracasso das reformas neoliberais na década de 1990 intensificaram a oposição à orientação de Washington. O movimento espontâneo fez ressurgir algumas das crenças políticas de Che, como o pan-americanismo, a nacionalização de indústrias estratégicas e a centralização do governo. Na Nicarágua, os Sandinistas, um grupo com raízes ideológicas no guevarismo e que promoveu uma revolução na Nicarágua e tomaram o poder em 1979, permanecendo até 1990, foram reeleitos em 2006. Daniel Ortega foi eleito à presidência do país com 91% dos votos, direto no pri76


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meiro turno. Na celebração da vitória, tanto os membros do partido como os eleitores usavam camisetas com o rosto de Che. Entre as novas figuras políticas latino-americanas que lançam mão da retórica de Che está o presidente da Bolívia, Evo Morales. Das muitas homenagens que Morales prestou ao seu herói, está uma visita ao local onde Guevara foi enterrado pela primeira vez. Lá, Morales declarou: “Che vive”. Outra prova de admiração controversa é uma reprodução estilizada da fotografia Guerrilheiro Heróico, de Alberto Korda, feita com folhas de coca que adorna seu gabinete presidencial.

Guerrilheiro Heróico, foto de Alberto Korda, considerada a imagem mais famosa do mundo

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No entanto nenhum outro líder hispano-americano se serviu mais do mito de Guevara para projetar sua própria imagem do que o venezuelano Hugo Chávez. Com seu estilo exagerado, o presidente da Venezuela falecido em 2013 se referia a Che como o “revolucionário infinito”. Em 2006, Chávez, que costumava discursar ou conceder audiências usando camisetas com estampas de Guevara, acompanhou o então presidente cubano Fidel Castro em uma visita à cidade natal de Che, Córdoba. Guevara também é uma fonte de inspiração do movimento guerrilheiro colombiano das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia – as FARCs – , e dos zapatistas, o grupo revolucionário armado mexicano constituído principalmente por indígenas. O número de detratores de Guevara é igualmente grande. O jornalista britânico Johann Hari, por exemplo, defende que “Che Guevara não é um ícone revolucionário impune. Ele foi uma pessoa real e apoiou um sistema real de tirania”. Che também não é bem visto pelos cubanos que se opunham a Castro. O ator indicado ao Oscar Andy Garcia, nascido em Cuba e radicado nos Estados Unidos, é um exemplo. Em 2004, Garcia afirmou que “Che tem sido romantizado ao longo dos anos, mas há um lado obscuro na sua história. Parece um astro de rock, mas ele executou muita gente sem julgamento ou direito à defesa”. Apesar das controvérsias o legado de Che é fato. A famosa fotografia tirada por Alberto Korda se tornou uma das imagens mais populares do século XX, reproduzida numa gama enorme de produtos, de roupas a canecas de café. Ironicamente, a imagem de Che acabou alimentando o capitalismo que ele tanto odiava. Conforme colocou o analista argentino Martin Krauze, “a admiração a El Che não tem mais a ver com sua política e ideologia, mas sim a ideia romântica de um homem lutando sozinho contra os moinhos de vento. É um Quixote”. No final da contas, o mundo passou a ver Che, conforme colocou o jornalista britânico Sean O’Hagan, “mais como Lennon do que como Lênin”. 78


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Sobre o Autor

Claudio Blanc é escritor, tradutor e editor, autor de cerca de 600 artigos sobre História, Ciência, Literatura e Filosofia, publicados em revistas como Discovery Magazine, Filosofia Ciência & Vida, Revista do Explorador e Grandes Líderes da História. É autor, entre outros, dos livros Aquecimento Global e Crise Ambiental, Uma Breve História do Sexo, O Lado Negro da CIA e O Homem de Darwin. Entre seus livros infanto-juvenis estão Histórias Sopradas no Tempo e De lenda em Lenda se Cruza Fronteiras, indicado como Altamente Recomendável pela Fundação Nacional do Livro Infanto-Juvenil. Claudio Blanc também assina até o momento da publicação deste livro a tradução de 40 obras nos mesmos campos de conhecimento sobre os quais escreve, entre elas os best-sellers Fumaça e Espelhos, de Neil Gaiman, e O Relatório da CIA – como será o mundo em 2020?

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Direito reservados: Sindicato dos Padeiros de São Paulo, 2013 Este artigo pode ser reproduzido para fins educativos; a fonte deve ser citada Projeto Memória: www.padeirosspmemoria.com.br

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