Claudio Blanc
Madiba O Guerreiro da igualdade
Uma biografia de Nelson Mandela
Projeto Cultura e Mem贸ria do Sindicato dos Padeiros de S茫o Paulo Presidente: Francisco Pereira de Sousa (Chiquinho Pereira)
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Sumário Prefacio: África do Sul: Uma breve história O Jovem Xhosa A Entrada na Política O Sabotador O Julgamento de Rivonia O Prisioneiro Winnie Mandela O Negociador Mandela Presidente Mandela Volta a Se Casar A vida do Ex-presidente Sobre o Autor
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Prefácio:
África do Sul: Uma Breve História
Nos últimos três séculos e meio, até 1994, a história da África do Sul foi marcada pelo conflito de diferentes povos, tanto europeus como africanos. Essa característica acabou levando a um governo baseado na discriminação e na exclusão, o apartheid. É uma história de lutas e de intolerância, mas que, paradoxalmente, acabaram culminando na criação de um grande país. Talvez isso seja menos paradoxal do que pareça. De fato, esta é uma característica humana, a de construir grandes coisas a partir do conflito entre diferentes populações. Os Estados Unidos foram constituídos sobre a terra que os descendentes de europeus subtraíram dos nativos e dos mexicanos (que também a haviam tirada dos índios), e até o final da década de 60 do século passado leis municipais e estaduais restringiam os direitos civis das minorias num regime que poderia se chamar de apartheid americano. 7
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Também o Brasil foi construído sobre a exploração de um povo escravizado em benefício de outro. A existência de excluídos neste país se deve a esta relação torpe. Fomos o último país no Ocidente a abolir a escravidão. Contudo, os escravos libertos não foram incluídos na sociedade. Discriminados, não receberam educação, nem tiveram – ou lhes foi negada – oportunidades de ascensão social. É o apartheid nacional, estampado em qualquer favela, explícito no rosto de cada criança de rua. Diferentemente do americano e do sul-africano, o apartheid brasileiro não é constitucional. Não tivemos, como os Estados Unidos, as leis de Jim Crow que proibiam casamentos inter-raciais e impediam que diferentes raças frequentassem os mesmos lugares. Tampouco promulgamos uma Constituição que excluía acesso social, como na África do Sul. Assim, o apartheid brasileiro é indistinto, amorfo e, para alguns, até mesmo inexistente. E por isso mesmo ele continua. Os Estados Unidos e a África do Sul tiveram líderes que se ergueram contra uma situação clara, delineada através das leis. O apartheid americano produziu líderes como Malcon X e Martin Luther King. A África do Sul teve tantos outros, como Steven Biko e Nelson Mandela. No entanto, desses três lugares onde imperou ou ainda impera o apartheid ou a exclusão social, foi na África do Sul que o conflito entre os povos que constituíram o país assumiu contornos mais dramáticos. Se nos Estados Unidos os brancos se uniram para restringir os direitos dos negros 8
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e dos índios e no Brasil a exclusão social e econômica é fato, na África do Sul, ao longo de sua história, colonos brancos de três países diferentes se digladiaram pelo controle do território, negros se voltaram contra negros e, no final, os brancos submeteram constitucionalmente negros e outras raças. A história da África do Sul começa a ser registrada pelos cronistas e historiadores ocidentais na Era dos Descobrimentos, quando os navegantes portugueses lutavam para cruzar o Cabo das Tormentas que os levaria a abrir uma rota marítima para as Índias. Quando Bartolomeu de Dias realizou a proeza em 1488, esse ponto ao sul
Malcon X, um dos líderes da luta pelos direitos civis
da África passou a ser chamada de cabo da Boa Esperança.
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Contudo, a história humana na região onde hoje é a África do Sul começou muito antes, com a ocupação do território pelos bosquímanos, nômades caçadores e coletores. Há indícios de que esse povo, também chamado de khoisan, hotentote e khoikhoi, se estabeleceu no sul da África há dezenas de milhares de anos. Além desses primeiros habitantes, no início da nossa era, grupos bantos, como os xhosas e os zulus, chegaram a esse território e ocuparam parte dele. Diferentemente dos hotentotes, seu modo de vida era baseado na criação de gado. Imediatamente depois do estabelecimento da rota marítima para as Índias, as nações bantos e os hotentotes não foram incomodados pelos europeus. Embora os portugueses navegassem essas águas por todo o século XVI, eles não se estabeleceram. O conflito entre europeus e africanos começou apenas quanto os holandeses decidiram fundar um posto de abastecimento na região do cabo da Boa Esperança. Para suprir seus navios em rota para o Oriente ou de volta para a Europa, a Companhia das Índias Orientais estabeleceu, em 1652, um entreposto na área do Cabo sob o comando de Jan Van Riebeck (1619 – 1677). A partir desse foco se iniciaria a colonização da África do Sul. Os holandeses se fixaram em fazendas, reivindicado cada vez mais terras para o seu gado. Esses colonos começaram a chamar a si mesmo de africâneres (afrikaners) ou bôeres, palavra derivada do termo holandês “boer”, que significa justamente fazendeiro. Conforme seu número au10
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mentava, os bôeres invadiram o território dos khoikhois, uma etnia relacionada aos bosquímanos que ocupava a região do Cabo, e passaram a escravizá-los. Poucas décadas depois da vinda dos holandeses, em 1688, chegaram os primeiros franceses huguenotes, fugindo da perseguição religiosa que sofriam em seu país natal. Foram os membros dessa dissidência cristã que introduziram a cultura da uva e a fabricação de vinho. Hoje, a qualidade dos vinhos sul-africanos se compara à dos melhores produtores mundiais. Os britânicos, o último povo europeu a colonizar o país, só chegaram mais de um século depois, em 1795. Com Napoleão ameaçando a Europa e o mundo, os britânicos assumiram o controle político desse importante ponto estratégico, o cabo da Boa Esperança. Eles também jogaram mais lenha na fogueira do conflito étnico que já grassava na colônia. Uma das primeiras iniciativas do governo foi a de expulsar os xhosas da região, empurrando-os para a fronteira leste. Os novos governantes também colocaram pressão sobre os bôeres. Há pelo menos três gerações na África, tendo estabelecido um estilo de vida próprio, os africâneres eram livres e independentes. Por isso, relutavam em se submeter ao controle britânico. Em 1834, os novos governantes aboliram a escravidão, o que representava um duro golpe ao estilo de vida dos colonos de origem holandesa. Como resposta, os bôeres começaram a emigrar para o território fora do contro-
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le britânico, em um movimento que ficou conhecido como Great Trekk, ou Grande Jornada. Ao longo da conquista do novo território, os africâneres, que a essa altura falavam afrikaans, um dialeto próximo do holandês, mas repleto de termos importados de outras línguas, se encontraram com os zulus, que como eles seguiam um movimento migratório. O resultado do encontro de povos tão distintos não foi outro senão a guerra. Os bôeres venceram os zulus na Batalha de Blood River (Rio Sangrento), conquistando a região onde viriam fundar dois novos países soberanos: o Estado Livre de Orange e o Transvaal. Ao mesmo tempo, na fronteira leste do território sulafricano, os britânicos continuavam a combater os xhosas e, a oeste, os zulus. Até o final da década de 60 do século 19 a África do Sul ainda não era o país que viria a ser. Eram três enclaves europeus – os dois fundados pelos bôeres mais a Colônia do Cabo – entremeadas por reinos bantos. Nessa época, em 1866, foram descobertos diamantes na fronteira das colônias. Pouco depois, em 1886, descobriu-se ouro na região aonde viria a ser fundada a cidade de Johanesburgo. Os britânicos não tardaram em buscar exercer controle sobre as regiões produtoras de ouro e de diamante, anexando as colônias bôeres. Como poderia se esperar, os africâneres não aceitaram a intromissão britânica e muito menos o controle em suas ricas minas. O Transvaal reafirmou 12
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sua independência, e nova guerra – uma vez que os conflitos entre europeus e as nações bantos ainda continuavam – eclodiu.
Grupo de zulus no inicio do século XX
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Foram duas Guerras dos Bôeres, em 1880-1881 e em 1899-1902. Os africâneres adotaram táticas de guerrilha, dificultando a vitória britânica. No início da guerra, a supremacia foi deles. Para derrotar os guerrilheiros, os britânicos passaram a invadir, saquear e incendiar as fazendas dos africâneres, que tinham ficado sob o cuidado das mulheres, enquanto os maridos estavam na guerra. Mais que isso, os britânicos aprisionaram as mulheres e filhos dos combatentes e os enviaram a uma nova e infame instituição que criaram nesse conflito: o campo de concentração. Ver suas esposas e crianças padecendo de fome e de doenças nesses locais quebrou o ânimo dos bôeres. Precedendo os nazistas, os britânicos provocaram a morte de cerca de vinte mil pessoas nesses campos de concentração, a maioria mulheres e menores de idades. Diante disso, os africâneres acabaram cedendo. No início do século 20, embora unificada politicamente, a África do Sul continuava dividida. Três séculos de guerra e ódio entre as diversas populações que haviam se estabelecido no lugar separavam como um muro esses povos. As muitas etnias sul-africanas não conviviam bem. Ressentidos com os britânicos, os bôeres buscaram conquistar cadeiras no Congresso para promoverem leis que avançassem seus interesses. Em 1948, foi estabelecida uma nova constituição que continha leis que separavam as pessoas conforme a raça. Estava inaugurado o regime do apartheid, ou “separação”. O casamento inter-racial foi proibido, e os ne14
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gros e outras etnias, como os imigrantes indianos, eram impedidos de votar e de permanecer nas cidades depois de findas as horas de trabalho. Foram transferidos para as chamadas townships, verdadeiras favelas, focos de pobreza em um país naturalmente rico. Frente à injustiça inconcebível, surgiram líderes negros que se opunham ao regime que perpetrava a desigualdade. A resposta da situação era assassinato e terror. Em 1976, centenas crianças negras que protestavam com a imposição do afrikaans como língua obrigatória foram chacinadas pela polícia. Seus pais, parentes e simpatizantes saíram às ruas em novo protesto e tiveram fim igual. Dessa vez, seiscentas pessoas foram mortas. O abuso contra os direitos humanos promovido pelo governo branco sul-africano fez com que, em 1986, a comunidade internacional impusesse sanções econômicas ao país. Pressionado, em 1990, o governo Frederik de Klerk repudiou o apartheid e revogou as leis que promoviam a discriminação racial. Sua atitude, criticada pelos conservadores, foi referendada por um plebiscito só para brancos, cujo resultado indicou que 69% dos eleitores eram favoráveis ao fim do apartheid. Estava aberto o caminho da reconciliação. Depois de séculos de conflitos, assassinatos e guerras, as diversas etnias e culturas podiam, enfim, vislumbrar um futuro de paz. Hoje, a África do Sul é movida pela esperança de se construir, de fato, aquilo que o arcebispo Desmond Tutu chamou de Raimbow Nation, a na15
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ção arco-íris, constituída pelas cores de tantos povos e etnias diferentes que formaram esse grande país. Na construção desse novo país, destacaram-se diversos líderes e ativistas obstinados. Muitos permanecem anônimos, assassinados, torturados ou aprisionados pelas mãos de ferro do regime. Outros, como Steven Biko e Desmond Tutu, serão sempre lembrados pela coragem e obstinação.
Steven Biko, um herói sul-africano
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Mas a oportunidade de conduzir essa mudança fundamental coube a apenas um homem. Um líder que, no desespero de defender sua família, seu clã e seu povo, não hesitou em pegar em armas; que teve dignidade de justificar seus atos perante a lei e de arcar com eles, sem nunca esmorecer ou abandonar sua causa. Um homem que teve coragem de perdoar e coerência para manter o país unido. Depois de um passado tão turbulento, a África do Sul produziu um líder com qualidades morais à altura do desafio de conduzir os diferentes povos que formaram o país rumo a um destino comum. Esse líder é Nelson Mandela.
Etnias sul-africanas. Os Hotentotes Os hotentotes, também chamados de bosquímanos, são os primeiros habitantes da África do Sul. Sua sociedade é igualitária, isto é, não existe hierarquia. O lazer é muito valorizado por esse povo, que reserva grande parte de seu tempo para conversas, jogos e brincadeiras. Por conta da dieta pobre em gordura, as mulheres hotentotes menstruam mais tarde que as outras etnias. Normalmente, têm filhos apenas aos 18-19 anos. Sua economia se baseia em presentes. Em vez de trocarem bens entre si, eles simplesmente doam àqueles que estão precisando. Enquanto as mulheres apanham frutos e raízes, os homens caçam usando flechas envenenadas. Originalmente nômades, a partir dos anos 50 do século 20, os bosquímanos foram forçados a mudar seu modo de vida tradicional e a se estabelecer em fazendas, adotando a prática pastoril em lugar da caça e da coleta. Os Zulus
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Os zulus são um povo de origem banto, hoje o maior grupo étnico da África do Sul, com uma população estimada entre dez e onze milhões de pessoas. O reino zulu chegou a ter um papel de proeminência na história da África do Sul, no século 19 e início do 20. Sob o rei guerreiro Shaka, em 1816, os zulus se uniram a outras tribos e estabeleceram um poderoso império, que chegou a ameaçar os colonos britânicos. Povo guerreiro, os zulus infligiram uma humilhante derrota aos britânicos – na época o mais poderoso exército do mundo – , na Batalha de Isandlwana, em janeiro de 1878. Mas a Guerra Anglo-Zulu acabou sendo vencida pelos britânicos. Depois da guerra, os zulus se dividiram em 13 subgrupos, os quais lutavam entre si. A guerra civil só terminou quando o território zulu, a Zululand, foi absorvida pelos britânicos na colônia de Natal. Atualmente, os zulus se espalharam por todo o país, embora seu maior contingente populacional continue sendo a província de Natal. Os Xhosas Os xhosas, outra etnia banto, são hoje oito milhões de pessoas espalhadas por toda a África do Sul, constituindo 18% da população do país. Sua língua é, depois do zulu, a segunda mais falada no país. De fato, a relação entre esses dois grupos é muito estreita. Como os zulus, também são um povo guerreiro. O nome “xhosa” significa “feroz”. Os povos bantos criam gado e são agricultores. Essas atividades os levaram a entrar em conflito com os europeus, notadamente os descendentes dos colonos holandeses, os bôeres ou africâneres. No final do século 18, a rivalidade entre os xhosas e os bôeres teve início por conta da posse de terra. No início do século seguinte, os xhosas também se viram pressionados pelos zulus, que migravam para suas terras. Os xhosas produziram personalidades proeminentes na história não só no cenário da África do Sul, mas também no internacional. Entre eles o primeiro arcebispo sul-africano, Desmond Tutu, a cantora Miriam Makeba e o ex-presidente Nelson Mandela.
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O Jovem Xhosa
Em 18 de julho de 1918, na pequena aldeia de Myezo, os thembus, uma nação xhosa que reina no território de Transkeian, na Província do Cabo, assistiu ao nascimento de um novo descendente. O menino era bisneto do inkosi enkhlu, ou rei, do povo thembu, o grande Ngubengcuka (? – 1832). Mas foi do avô, o príncipe Mandela, que o garoto herdou o sobrenome. Seu pai, Gadla Henry Mphakanyiswa, apesar de não ser elegível ao trono dos thembus porque sua mãe pertencia a outro clã, era o chefe da aldeia de Myveso. A mãe de Mandela, Nosekeni Fanny, era a terceira das quatro esposas de Mphakanyiswa. Fanny pertencia ao clã Mpemyu Xhosa, com quem Mandela passou grande parte da infância. Como de costume, o primeiro nome do menino foi dado conforme suas características mais proeminentes. Assim, ele foi chamado de Rolihlahla, ou “encrenqueiro”. Com efeito, Rolihlahla Mandela traria encrencas para o regime do apartheid.
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Nelson Mandela, em 1937
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Os thembus, como outras nações xhosas, haviam enfrentado os britânicos ao longo de quase todo o século 19, quando britânicos, bôeres, xhosas e zulus disputavam o território que veio a ser a África do Sul. Depois da anexação do Transvaal e do Estado Livre de Orange, os descendentes de europeus começaram a promulgar leis que restringiam os direitos das populações negras. Logo o pequeno Rolihlahla Mandela sentiu a intervenção branca. As autoridades governamentais destituíram Mphakanyiswa da liderança da aldeia. Mesmo assim, Mphakanyiswa continuou a fazer parte do conselho do rei, mas resolveu se mudar para outra aldeia, Qunu. Mphakanyiswa ajudou a cimentar a ascensão de Jongintaba Dalindyebo ao trono thembu, um esforço que iria influenciar o futuro do pequeno Mandela. Quando Mphakanyiswa morreu de tuberculose, o rei Dalindyebo adotou o menino, então com nove anos. Rolihlahla Mandela foi o primeiro membro da sua família a frequentar a escola. Foi lá, no liceu da missão Wesleyan, próxima ao palácio do rei, que a professora, senhorita Mdingane, deu-lhe seu nome inglês: Nelson. Seguindo a tradição thembu, Nelson passou pelo ritual de iniciação aos 16 anos. Em seguida, o rapaz foi enviado a uma escola interna, a Clarkebury Boarding Institute, para complementar seus estudos fundamentais. Dedicado, Nelson completou o que equivaleria ao Ensino Médio em dois anos, em vez dos três anos regulares.
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Mandela, boxeador
O rei Dalindyebo tinha planos para Nelson. Ele esperava que o rapaz assumisse o lugar de seu pai no conselho real thembu. E para se preparar, o jovem nobre xhosa foi enviado, em 1937, à faculdade Wesleyan, em Fort Beaufort, instituição frequentada pela realeza thembu. Na faculdade se interessou por boxe e corridas. Em seguida, Mandela foi estudar artes na Fort Hare University. Aqui ele conheceu Oliver Tambo, com quem cultivaria uma amizade ao longo de toda a vida. Na Fort Hare, Mandela também iniciou suas atividades políticas. No final do primeiro ano da faculdade, Mandela se envolveu em um boicote do Conselho Representativo dos 22
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Alunos que se opunha às regras da universidade. Como resultado, foi expulso. A instituição, porém, permitiu que ele voltasse – caso aceitasse as regras da universidade. Mandela não voltou. Logo depois de sair de Fort Hare, o rei Jongitaba anunciou que havia arranjado casamento para seu enteado. Mandela não gostou do arranjo e deixou o reino thembu, mudando-se para Johanesburgo. Não muito depois de chegar, Mandela conseguiu seu primeiro emprego, como guarda em uma mina. No entanto, quando seu empregador descobrir que ele era o enteado foragido do rei dos thembus, o jovem fugitivo perdeu seu emprego. Mas Mandela estava determinado a ficar em Joeburg – como os britânicos apelidaram a cidade. Através do amigo e mentor Walter Sisulu, o jovem começou a trabalhar como escriturário num escritório de advocacia, o Witkin. Sidelsky & Edelman. Ele também se estabeleceu na township – os guetos onde os negros eram obrigados a morar – Alexandra, ao norte de Johanesburgo. Ao mesmo tempo, Mandela continuou seus estudos e se diplomou em artes pela University of South Africa num curso por correspondência. Logo depois de receber o diploma, ele começou o curso de Direito na Universidade de Witwatersrand. Apesar de Mandela só vir a completar sua formação superior na prisão, quando cursou Direito através o Programa Externo da Faculdade de Londres, o tempo que frequentou a Witwatersrand teve grande relevo em sua vida por causa das amizades 23
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que forjou. Nessa universidade ele conheceu os futuros ativistas antiapartheid Joseph Slovo, Harry Schwarz e Ruth First. Slovo viria a ser Ministro de Moradia da administração Mandela e Schwarz foi seu embaixador em Washington, EUA.
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A entrada na política
Em 11 de fevereiro de 2010, uma multidão se reuniu em frente à prisão Victor Verster, em Joahanesburgo. Exatos vinte anos antes, o homem que liderou a África do Sul no início de um novo tempo, no qual pela primeira vez todos tinham direitos iguais independentemente de raça ou credo, saía da prisão depois de ter cumprido uma pena de 27 anos. Durante esse tempo, Nelson Mandela, o líder em questão, tornou-se o símbolo da luta contra o apartheid, espécie de mártir calado por um regime intransigente por lutar por justiça não só para si, mas para todas as nações bantos. A libertação de Mandela significava a libertação das raças excluídas da África do Sul. Simbolizava a redenção dos oprimidos, o fim de um regime parcial. Um símbolo tão forte que foi fundido em bronze, forjado na estátua erguida na entrada da prisão Victor Verster que retrata os primeiros passos de Mandela como homem livre. Eram os primeiros passos da África do Sul livre. Todos sabiam disso, tanto em fevereiro de 1990, quanto hoje. Por
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isso mesmo, a multidão se reuniu ao redor da estátua do líder para comemorar o aniversário da sua libertação. Ultrajado pelo apartheid, Mandela dedicou toda sua vida adulta à luta contra o regime. Em determinado momento entendeu que a única forma de conseguir isso seria por meio da luta armada. Preso, assumiu seus atos como justificáveis. Condenado como sabotador, continuou a liderar a resistência pelos meios legais. Libertado, negociou com o presidente De Klerk a transiPresidente De Klerk e Nelson Mandela
ção pacífica do apartheid à democracia.
A separação racial na África do Sul era fato há séculos, e como todos os jovens de origem semelhante à sua Mandela sentiu o preconceito no momento em que entrou em contato com o mundo dos brancos. Adaptar-se aos modos e maneiras exigidos pelas autoridades não era o pior. Ser discriminado legalmente e ter seus direitos civis negados era inaceitável. Os colonizadores europeus haviam criado um Estado, mas não haviam incluído os outros povos que viviam naquele território. Empregavam-nos em 26
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suas fazendas e minas, mas não lhes davam oportunidades. Eram estrangeiros em sua própria terra. A biografia de Mandela se confunde com o advento do apartheid. Em 1944, quando tinha 26 anos, Mandela ingressa no Congresso Nacional Africano, CNA, o partido político que congregava os negros. O CNA havia sido fundado em 1912, com o nome de Congresso Nacional dos Nativos da África do Sul e sob o lema “esqueçam todas as diferenças entre os povos africanos e se unam em uma organização nacional única”. Em 1923, o partido recebeu o nome que permanece até hoje. Em 1948, poucos anos depois de Mandela se filiar ao CNA, a segregação que já acontecia na prática foi respaldada por lei. O Partido Nacional, dominado por africâneres, venceu as eleições de 1948 e iniciou um regime discriminatório. O apartheid, que em africâner significa “separação”, negava os direitos econômicos, sociais e políticos a todos os sul-africanos que não fossem comprovadamente brancos. Os descendentes dos colonos europeus assumiam espaços e posições em todos os setores do país, públicos ou privados em detrimento das minorias. Eles haviam criado as instituições, indústria e comércio e não compartilhariam os frutos de seu esforço com outros povos ou com mestiços. Com a instituição do apartheid, uma série de leis discriminatórias foram promulgadas. Não havia muita diferença das leis que Hitler baixou para perseguir os judeus, logo no início do regime nazista. Em 1949, os 27
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casamentos inter-raciais foram proibidos; em 1950, todos os sul-africanos foram obrigados a fazer uma declaração de registro de raça, um documento que garantia ou obliterava os direitos civis de seu portador; no mesmo ano, os negros, mestiços, indianos e outras raças foram proibidos de permanecer nas cidades depois do horário comercial; em 1951, foram criadas as townships, áreas afastadas onde as raças excluídas foram forçadas a morar; em 1953, quem não fosse branco não podia usar instalações públicas, como banheiros e bebedouros; ainda em 1953, as autoridades criaram um sistema educacional diferenciado para as crianças das townships. Os investimentos em educação pública eram dez vezes menores para os negros, que constituíam cerca de 70% da população. Os negros, mestiços e asiáticos também não podiam empregar brancos, nem podiam ter seus negócios nas áreas reservadas para estes. Para entrar nesses espaços, precisavam ter um passe, o qual era dado desde que a pessoa tivesse emprego comprovado naquela local. Aqueles que não tivessem passe ao serem abordados pelas autoridades eram presos imediatamente. Até as praias eram segregadas. As melhores, claro, eram reservadas ao “grupo de raça branca”, conforme avisavam as placas. Mesmo ganhando menos, os negros pagavam mais impostos que os brancos e se um negro estuprasse uma branca, seria condenado à morte, enquanto, se fosse o branco a violentar uma negra, este recebia apenas uma multa. Além de ter sua dignidade afrontada a cada momento, a sobrevi28
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vência econômica para qualquer membro das raças excluídas era extremamente difícil. Imediatamente após o estabelecimento do apartheid, Mandela iniciou sua oposição ao regime. Como resposta à arbitrariedade legal com que seu povo era tratado, ele fundamentou sua orientação política nos ideais democráticos de igualdade. Embora fosse jovem, conhecia o adágio bantu que diz “somos gente através de outras gentes”. Era consciente da interdependência que permeia não só a condição humana, mas a relação entre diferentes espécies. Essa interdependência confere o caráter de uma sociedade, no caso dos homens, ou de um ecossis-
Mandela em trajes tribais (1961)
tema, se forem espécies animais e vegetais. Conforme escreve Anders Hallengren em seu artigo “Nelson Mandela and the Rainbow Culture” (Nelson Mandela e a Cultura Arco-Íris), “agressivo pugilista e nacionalista que começava sua luta pelos direitos dos negros nos anos 1940, Mandela nunca duvidou que o progresso democrático [na África do Sul] devia se basear em igualdade, pluralismo e na multi29
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etnicidade”. Essa orientação pautaria suas ações por toda sua vida política. Na Campanha de Desacato de 1952, promovida pelo CNA para desafiar o regime, Mandela se destacou como líder. A campanha se constituiu num movimento de massa de resistência ao apartheid, estimulando os participantes a lançar campanhas futuras. Lançada conjuntamente pelo Congresso Nacional Africano e o Congresso Indiano da África do Sul, a campanha seguia a tradição da satyagraha, a resistência não violenta proposta – e colocada em prática com sucesso – por Gandhi. Os negros, indianos e mestiço, apoiados por brancos que se uniram ao movimento – alguns dos quais eram figuras proeminentes –, passaram a desobedecer abertamente as leis segregacionistas frequentando locais onde não poderiam estar, lugares como um posto de correio ou uma estação de trem. Nelson Mandela, que era presidente da Liga Jovem do CNA, foi eleito voluntário-chefe da campanha. Ao longo do movimento, suas qualidades como líder de massa ficaram patentes. Por conta disso, foi eleito Presidente do CNA do capítulo do Transvaal e vice-presidente nacional do partido em 1952. O governo do apartheid, por sua vez, promulgou leis que restringiam ainda mais a via da resistência pacífica. Qualquer ação, por menos intensa que fosse, era motivo de prisão e condenação. Nessa época, Mandela e seu amigo Oliver Tambo abriram um escritório de advocacia que oferecia serviços legais preços módicos para os negros. 30
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Oliver Tambo
Em 1955, Mandela liderou o Congresso do Povo, promovido pelo Congresso da Aliança, que reunia os partidos Congresso Nacional Africano, Congresso indiano da África do Sul, o Congresso dos Povos Mestiços e o Congresso dos Democratas. O Congresso do Povo foi um marco. Reuniu todas as etnias do país para exigir uma nova África do Sul, livre do regime do apartheid. Durante o evento, a Carta do Povo foi promulgada. O documento, que abria com a declaração direta “o povo deve governar!”, esta31
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belecia os fundamentos da causa antiapartheid. A Carta de Povo continuou a ser a orientação fundamental do CNA durante décadas, inspirando gerações de novos ativistas. Como era de se esperar, os líderes do Congresso da Aliança foram perseguidos. Nelson Mandela, que tinha seus movimentos vigiados, precisou se disfarçar de entregador de leite. Mesmo assim, acabou preso e levado a julgamento duas vezes, em 1956 e em 1961. Não foi, porém, condenado. Ao menos não nessas ocasiões.
O Apartheid Com a unificação do Estado Livre de Orange e do Transvaal pela Grã-Bretanha, os africâneres, descendentes dos colonos holandeses, ressentidos com a perda de suas nações para os britânicos e marcados pelas contínuas guerras com os zulus, buscaram ascensão política no parlamento para garantirem seus privilégios. Em 1948, o partido que representava esse estrato social , o Partido Nacional, chega ao poder e decreta o apartheid. Os descendentes dos britânicos, cujos ancestrais já no século 19 adotavam práticas segregacionistas não só na África do Sul, mas em suas colônias no mundo todo, não foram afetados. Há, porém, um elemento que separa os brancos descendentes dos holandeses dos
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descendentes de britânicos, a língua. No norte da África do Sul, ocupado pelos africâneres, o afrikaans predomina; na província do Cabo, o inglês é a língua principal. Imediatamente após a promulgação do apartheid, os grupos raciais afetados negativamente, impedidos de promoverem uma transformação pela via eleitoral, se uniram em oposição. De fato, a oposição na áfrica do Sul não se constituía somente dos negros – a maioria xhosa e zulu. Havia os imigrantes indianos, que haviam se estabelecido em grande número na província de Natal, e também mestiços das muitas raças que ocupavam o território da África do Sul a quem também eram negados direitos civis. A eles se uniam brancos dissidentes, que se opunham ao regime.
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O Sabotador
O Massacre de Sharpeville; Mandela lidera ataques armados; a organização MK; Box: O primeiro Casamento de Mandela Depois de os grupos raciais segregados pelo apartheid organizarem uma oposição e de lançarem dois movimentos contra o regime na primeira metade da década de 50, o governo do presidente Hendrik Verwoerd restringiu ainda mais a liberdade de ação dos manifestantes. Em 1960, a administração Verwoerd também estendeu a obrigatoriedade dos passes às mulheres. Desde os anos 1920 os movimentos dos negros eram restringidos pela obrigatoriedade dos passes, mas Verwoerd endureceu ainda mais esse expediente legal. A partir de 1960, as leis dos passes se tornaram o principal instrumento do Estado para prender e intimidar os que se oponham ao apartheid. Paradoxalmente, foram essas mesmas leis que mobilizaram a resistência dos negros, indianos e mestiços. Em continuidade com o movimento de desobediência civil de forma 34
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pacífica, inspirada na satiagraha de Gandhi, os líderes do Congresso Nacional Africano (CNA), lançaram uma campanha de protestos contra as leis dos passes. Os protestos deveriam acontecer no dia 31 de março de 1960. No entanto, o partido rival, o Congresso Pan Africanista (CAP) decidiu se antecipar ao CNA lançando as manifestações dez dias antes. Assim, com o melhor espírito de resistência pacífica, na manhã de 21 de março, uma multidão calculada entre cinco e sete mil pessoas procedeu até a estação de polícia da township de Sharpeville e se en-
O Mahatma Gandhi (1869 – 1948)
tregaram às autoridades para serem presos por não portarem passes. No final da manhã, a atmosfera ainda era festiva e pacífica. Havia cerca de vinte policiais na estação, mas logo pediram reforços. As autoridades tentaram dispersar a multidão intimidando-a com vôos rasantes de jatos F-86, simulando um ataque aéreo. Isso, porém, não teve efeito. Ao contrário, enfureceu os manifestantes que, como davis africanos enfrentando golias africânderes, passaram a atirar pedra nos policiais. A resposta da polícia foi desproporcional: abriu fogo contra a 35
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multidão. Os números oficiais divulgados afirmavam que 69 pessoas foram mortas, entre elas oito mulheres e dez crianças, e outras 180 ficaram feridas, 31 delas mulheres e 19 crianças. A chacina passou a ser lembrada como o Massacra de Sharpeville. O CNA, de cuja liderança Nelson Mandela fazia parte, também foi uma das vítimas. Colocado na ilegalidade, juntamente com os outros partidos de oposição, o CNA, embora tenha permanecido ativo clandestinamente, precisou recorrer a outras estratégias. A ação das autoridades não deixava outra saída à maioria negra. A única forma de enfrentar o regime era por meio da força. Nelson Mandela passou a defender a fundação de um braço armado do agora clandestino CNA. Mandela propunha o uso de táticas de sabotagem. Em 1961, depois de deliberações, o conselho executivo do partido deu carta branca: os membros que desejassem se envolver na campanha armada de Mandela não seriam impedidos pelo CNA. Assim, foi fundado o braço armado do partido, Umkhonto we Sizwe, a Lança da Nação, mais conhecido pela sua abreviatura, MK. Em seu famoso discurso, “Estou Preparado para Morrer”, proferido em seu julgamento em 20 de abril de 1964, Mandela expôs os motivos que levaram à fundação do MK: “em primeiro lugar, acreditávamos que, como resultado da política do governo, a violência do povo africano tinha se tornado inevitável e, a não ser que uma liderança responsável pudesse canalizar e controlar os sentimentos do nosso povo, haveria ondas de ter36
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rorismo que espalharia um amargor e hostilidade tão intenso entre as raças desse país que nem uma guerra poderia produzir. Em segundo lugar, sentimos que sem violência não haveria nenhum modo de o povo africano ter sucesso em sua luta contra o princípio da supremacia branca. Todas as formas legais de expressar oposição a esse princípio foram solapadas pela legislação e nós fomos colocados em uma posição na qual ou aceirávamos um estado permanente de inferioridade, ou teríamos de desafiar o governo. Nós escolhemos desobedecer a lei. Primeiro infringimos a lei de modo a não recorrer à violência. Quando essa forma foi considerada ilegal e o governo recorreu a uma mostra de força para esmagar a oposição, apenas então decidimos responder à violência com violência”. Após sua fundação, o MK logo iniciou uma colaboração com o Partido Comunista da África do Sul, composto principalmente por brancos que se opunham ao regime do apartheid. O primeiro atentado do MK aconteceu em 16 de dezembro de 1961. A campanha prosseguiu, tendo como alvo instalações do governo, alvos militares, industriais e infraestruturas vitais. Nelson Mandela era o coordenador das campanhas de sabotagem. Se, porém, essas medidas se mostrassem incapazes de derrubar o regime, Mandela também criou planos para uma campanha de guerrilha. Além disso, ele era encarregado de levantar fundos para o MK e do treinamento dos membros do grupo. Wolfie Kadesh, membro da CNA e do MK, relatou em um depoimento a 37
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campanha elaborada por Mandela. “Sabíamos que começaríamos, em 16 de dezembro de 1961, a explodir os locais simbólicos do apartheid, como os escritórios de emissão de passes, os tribunais que julgavam os nativos... correios, escritórios do governo. Mas deveríamos fazer isso de modo que ninguém se ferisse, que ninguém fosse morto”. A campanha de sabotagem fracassou. Depois de Mandela ter Mandela, em 1944
sido preso, o MK continuou suas
atividades passando a lançar mão de táticas de guerrilha contra o regime, o que provocou a morte de diversos civis. Os principais atentados do MK aconteceram na década de 80. No septuagésimo aniversário da fundação do CNA, em 8 de janeiro de 1982, o MK perpetrou um ataque contra a usina nuclear de Koeberg, próximo da Cidade do Cabo. No mês de maio do ano seguinte, a organização plantou bombas em Church Street, Pretoria, matando 19 pessoas. Em 14 de junho 38
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de 1986, o MK explodiu um carro bomba em frente ao Magoo’s Bar, na cidade de Durban, matando três pessoas e ferindo outras 73. O MK encerrou suas operações em agosto de 1990, como parte das negociações que puseram fim no apartheid. Depois da queda do apartheid, Mandela admitiu que em sua luta contra o regime o CNA também violava os direitos humanos. Não só Mandela via as ações do MK como radicais. O governo dos Estados Unidos negaram até 2008 a entrada de Mandela e de outros membros do CNA por serem considerados terroristas. O então presidente sul-africano só podia entrar no país com um visto especial emitido pela Secretaria de Estado dos EUA e apenas para visitar os escritórios das Nações Unidas, em Nova York. Nos primeiros anos de operação, o MK tinha seu quartel-general em Lilliesleaf Farm, uma fazenda localizada em Rivonia, um subúrbio de Johanesburgo. O local havia sido comprado em nome de Arthur Goldreich com fundos do Partido Comunista Sul-Africano (PCSA) e do ANC. O regime proibia que alguém de etnia negra pudesse comprar uma propriedade como aquela, por isso a aliança com o PCSA, que reunia brancos contrários ao regime, era essencial. As autoridades, porém, estavam fechando o cerco contra o MK. Desde 1952, Nelson Mandela havia sido “banido” pelo governo pela liderança que exercia no CNA. Com essa medida, Mandela não podia mais participar de reuniões, nem fazer discursos. No entanto, o ativista conti39
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nuou exercendo suas atividades disfarçando-se para despistar a polícia. Um de seus disfarces preferidos era o de motorista. Isso, porém não evitou que ele fosse preso. Em 5 de agosto de 1962, depois de ter estado foragido durante sete meses, Nelson Mandela foi preso e encarcerado no Johanesburg Fort. Sua prisão foi possível porque a CIA, a Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos, informou às autoridades sul-africanas o local onde Mandela estava e o disfarce que o protegia. Julgado, foi condenado a cinco anos de trabalhos forçados por ter liderado uma greve em 1961 e por ter saído do país ilegalmente. Contudo, sua situação iria piorar drasticamente. Enquanto Nelson Mandela estava preso, Em 11 de julho de 1963, a fazenda Lilliesleaf foi invadida e os principais líderes do CNA, MK E PCSA. Eles foram acusados de sabotagem e traição pelo governo. Essas acusações também foram feitas a Mandela no Julgamento de Rivonia. A sentença que ele e oito membros do CNA foi prisão perpétua.
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O Julgamento de Rivonia
Rivonia foi chamado de “o julgamento que mudou a África do Sul”. Assim referido por conta do subúrbio de Johanesburgo onde o MK, o braço armado do Congresso Nacional Africano (CNA), tinha seu esconderijo, o processo que julgou 16 líderes do CNA começou em 26 de novembro de 1963. Nelson Mandela já estava preso, confinado em uma cela solitária por ter deixado o país sem passaporte e por ter incitado greve, quando o esconderijo do MK foi descoberto. No entanto, documentos encontrados no local ligavam Mandela a atos de sabotagem contra o regime. Ele e outros dez membros do MK foram acusados de 221 atos de sabotagem vistos como destinados a “fermentar uma revolução violenta” no país (algumas fontes falam em 235 atos de sabotagem). Outros dois membros do MK, Arthur Goldreich e Halrold Volpe, ambos brancos, haviam conseguido realizar uma fuga espetacular e evitaram ser processados. Julgados sob a nova emenda sobre sabotagem da Lei Geral de 1962 e do Ato de Supres-
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são ao Comunismo, os onze acusados enfrentavam a ameaça de serem condenados à morte.
Arthur Goldreich e Halrold Volpe
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Os advogados de defesa não sabiam do que seus clientes seriam acusados, até o procurador efetuar a acusação. Só então souberam do que se tratava. Imediatamente solicitaram ao juiz, Quartus de Wet, que adiasse o início dos trabalhos. O juiz concedeu três semanas para a defesa preparar seu caso. Nelson Mandela tinha uma reputação internacional crescente, e o CNA planejava usar o julgamento para angariar apoio internacional na luta contra o apartheid. Quando o julgamento foi retomado, Mandela entrou na corte à frente dos outros acusados. Ao se dirigir ao banco dos réus, saudou o público negro que acompanhava o processo com o característico punho fechado e gritou “Amandla!” (Poder). “Será nosso”, responderam os outros. A defesa argumentou que as acusações eram vagas e não determinavam exatamente o crime de cada um dos réus. O juiz de Wet concordou com a defesa. A promotoria precisou retrabalhar o caso. Em dezembro, o promotor Percy Yutar leu as acusações contra Nelson Mandela e os outros dez membros do MK: “Os acusados planejaram de forma deliberada e maliciosa e promoveram atos de violência e destruição em todo o país. O objetivo era lançar a África do Sul no caos, desordem e tumulto, o que seria agravado, de acordo com seus planos, pela operação de milhares de guerrilheiros treinados empregados em várias partes do país (...) A operação combinada deveria provocar um violento levante seguido, no momento apropri43
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ado, de uma invasão armada do país por poderes estrangeiros. Em meio ao caos, baderna e desordem resultantes, os acusados planejavam instalar um governo revolucionário provisório que assumiria a administração e o controle deste país (...)”
O promotor Percy Yutar
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Conforme Joel Joffe relatou em seu livro The State vs. Nelson Mandela (O Estado versus Nelson Mandela), ao ouvir as acusações, os advogados de defesa perceberam que, para a maioria dos acusados, o único veredito possível seria “culpado”. Por conta disso, a defesa se concentrou em lutar para evitar a pena de morte. Mas para surpresa da defesa, os acusados tinham outros planos. Vários deles viam o julgamento como a primeira e única oportunidade para explicar ao país e ao mundo o motivo pelo qual eles escolheram agir da forma como agiram. A acusação demonstrou seu caso. A principal testemunha da acusação foi um ex-sabotador do MK, Bruno Mtolo, que ficou conhecido durante o julgamento como “Senhor X”. Mtolo contou que havia recebido ordens do Alto Comando Nacional do MK para explodir um escritório municipal, uma usina geradora de eletricidade e uma linha elétrica. Testemunhou que Mandela treinou ele e seus camaradas para manusearem bombas, granadas, minas terrestres e outras armas empregadas pelos sabotadores da MK. Mtolo afirmou ainda que acreditava que o CNA e seu braço armado, o MK, haviam se tornado instrumentos do Partido Comunista. Outras testemunhas foram chamadas pela acusação, mas todas se mostraram débeis em provar os argumentos de Yutar. Claramente haviam sido coagidas e torturadas para disseram o que a polícia queria. Yutar também usou diversos documentos apreendidos na fazenda Lilliesleaf, 45
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quartel-general do MK em Rivonia, como prova contra os réus. Mas estes também não eram provas cabais, uma vez que não acrescentava nada além do que os réus já haviam admitidos, isto é, que eram culpados de atos de sabotagem. A defesa teve, então, cinco semanas para se preparar. O caso foi iniciado com um testemunho de Nelson Mandela, feito no banco dos réus. Conforme ele explicou depois sobre sua arriscada decisão, “eu não queria ficar limitado” ao formato pergunta-resposta para explicar porque ele e os outros réus julgaram promover uma campanha de sabotagem contra o governo sul-africano. Em seu livro sobre o julgamento, Joel Joffe, advogado da defesa, afirmou que ele e seus colegas temeram que o discurso de Mandela pudesse levá-lo a ser condenado à pena capital. Durante duas semanas, Mandela passou as noites em claro redigindo seu discurso. Quando foi anunciado que Mandela não seria interrogado, mas daria um testemunho, Percy Yutar se dirigiu ao juiz com veemência: “meu senhor! Meu senhor, penso que o senhor deva avisar o acusado de que o que ele disser do banco dos réus terá muito menos peso do que se ele for interrogado”. Joffe conta que o juiz de Wet fuzilou um olhar frio ao promotor e respondeu secamente: “creio, senhor Yutar, que os advogados de defesa têm experiência suficiente para aconselhar seus clientes sem sua assistência”.
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Mandela começou a falar com voz calma, mas carregada de convicção. Ele continuou a ler o discurso que havia preparado durante as quatro horas seguintes. Contou a história de sua vida, os motivos que o levaram a participar da luta pela igualdade racial e explicou como chegou à conclusão que o movimento pacifista devia dar lugar a ações violentas. Só assim, acreditava ele, a democracia multirracial que ele e o CNA tanto almejavam para a África do Sul poderia ser conquistada. Mandela admitiu que havia organizado atos de sabotagem. Explicou o porquê havia recorrido à violência e discorreu sobre a África do Sul pela qual estava preparado para morrer, uma democracia multirracial onde todos os cidadãos teriam os mesmos direitos e seriam vistos como iguais perante a lei. Com efeito, o discurso que Mandela proferiu em 20 de abril de 1964, batizado de “Estou Preparado para Morrer”, teve uma incrível repercussão. Até hoje é lembrado como um dos momentos épicos no combate ao aparteheid. Em 11 de junho de 1964, quando o julgamento foi concluído, Nelson Mandela e outros sete acusados – o líder do CNA Walter Sisulu, Govan Mbeki (pai do ex-presidente da África do Sul Thabo Mbeki), Raymond Mhlaba, Elias Motsoledi, Ahmed Kathrada, o único idiano entre os acusados, e o judeu Denis Goldberg – foram sentenciados a prisão perpétua. Cedendo à pressão internacional, que exigia que os acusados não fossem condenados à morte, o juiz de Wet resolveu abdicar da pena capital, embora 47
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fosse, segundo ele afirmou ao pronunciar a sentença, “a pena apropriada para este crime”. Os acusados sorriram aliviados. Iriam viver.
Walter Sisulu
O Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas condenou o julgamento e incitou os países membros a promoverem sanções contra 48
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o regime do apartheid. Mas seriam preciso 27 anos de opressão da maioria negra sul-africana até que Nelson Mandela fosse libertado e se tornasse, quatro anos depois que saiu da prisão, o primeiro presidente do país a ser eleito em uma eleição multirracial.
Estou Preparado Para Morrer Trechos do Discurso de Mandela no Banco dos Réus
Em minha juventude, no Transkei, eu ouvia os anciões da minha tribo contar histórias sobre os tempos antigos.Entre aquelas que eles me contaram havia as das guerras feitas por nossos ancestrais em defesa da nossa terra. Os nomes de Dingane e Bambata, Himtsa e Makana, Squngthi e Dalasile, Moshoeshoe e Sekhukhuni eram venerados como a glória de toda a nação africana. Eu esperava, então, que a vida pudesse me oferecer a oportunidade de servir meu povo e de fazer minha humilde contribuição à sua luta pela liberdade. Foi isso que me motivou a fazer tudo o que fiz com relação às acusações feitas contra mim neste caso. (...) Eu já mencionei que fui uma das pessoas que ajudaram a fundar o Umkhonto (MK). Eu e os outros que fundaram a organização fizemos isso por dois motivos. Primeiramente, acredi-
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távamos que, como resultado da política do governo, a violência do povo africano se tornou inevitável e, a não ser que uma liderança responsável fosse exercida no sentido de canalizar e de controlar os sentimento do nosso povo, ações terroristas seriam perpetradas que produziriam grande intensidade de amargor e de hostilidade entre as várias raças deste país, as quais não são produzidas nem mesmo pela guerra. Em segundo lugar, sentimos que sem violência não haveria possibilidade de se abrir um caminho para o povo africano ter sucesso em sua luta contra o princípio da supremacia branca. Todos os meios legais de expressar oposição a esse princípio foram fechadas pela legislação, e nós fomos colocados em uma posição na qual ou teríamos de aceitar um estado permanente de inferioridade ou teríamos de desafiar o governo. Nós desobedecemos a lei de uma maneira que evitava qualquer uso de violência; quando isso se tornou ilegal e o governo recorreu ao uso da força para esmagar a oposição às suas políticas, apenas então decidimos responder violência com violência. Contudo, a violência que escolhemos adotar não foi o terrorismo. Nós que fundamos o Umkhonto (MK) éramos todos membros do Congresso Nacional Africano e tínhamos conosco a tradição de não violência do Congresso Nacional Africano e de negociação como meio de resolver disputas políticas. Acreditamos que a África do Sul pertence a todos os povos que nela
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vivem e não apenas a um grupo, seja branco ou negro. Não queríamos uma guerra inter-racial e tentamos evitá-la até o último minuto. (...) Ao longo da minha vida, eu me dediquei à luta do povo africano. Lutei contra o domínio branco e lutei contra o domínio negro. Cultivei o ideal de uma sociedade livre e democrática na qual todas as pessoas possam viver juntas, em harmonia e com oportunidades iguais. É um ideal o qual eu espero viver e realizar. Mas se for necessário, é um ideal pelo qual estou preparado para morrer.
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O Prisioneiro
Depois de condenado à prisão perpétua no Julgamento de Rivonia, Nelson Mandela foi enviado à prisão de Robben Island, onde líderes xhosas que lutaram contra os colonizadores britânicos no século 19 eram mantidos pelos britânicos. Na ilha, tanto ele como os outros os prisioneiros eram forçados a fazer trabalhos pesados em uma pedreira de cal. As condições da prisão eram mínimas. Os detentos eram segregados por raça. Os prisioneiros políticos eram separados dos presos comuns e tinham menos privilégios do que estes. Os negros, como no resto do país, tinham suas necessidades propositalmente negligenciadas. Até mesmo suas rações eram menores do que a dos brancos. Mandela era classificado como “prisioneiro do grupo-D”, a mais baixa categoria entre os detentos. Como tal, ele tinha permissão de receber apenas uma visita e uma única carta a cada seis meses. Essas raras cartas eram mantidas pelos censores durante longos períodos antes de serem entregues a seus destinatários e quando eram encaminhadas aos prisio52
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neiros, tinham grande parte de seu conteúdo obliterada. Muitas vezes, era simplesmente impossível as ler. Além dos trabalhos forçados, da minguada ração e do isolamento quase absoluto com o mundo exterior, Nelson Mandela também enfrentava ameaças contra sua existência. Ao longo dos seus anos na prisão, a reputação de Nelson Mandela como o mais proeminente líder da causa antiapartheid cresceu. A comoção em torno dele era tal que suas fotografias foram proibidas na África do Sul. E com a projeção de Nelson Mandela, também aumentava a indignação da comunidade internacional.
Robben Island
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Em 1969, o BOSS (South African Bureau of State Security), a inteligência do apartheid, elaborou um plano para assassinar o líder negro. Conforme o agente Gordon Winter relatou em seu livro de 1981, Inside BOSS (Por Dentro do BOSS), ele (Winter) foi infiltrado na prisão para supostamente resgatar Mandela. Durante a fuga, agentes da BOSS deveriam matá-lo. Dessa forma, sua morte seria justificada, e o regime se livraria de um prisioneiro incômodo, cuja causa atraía cada vez mais simpatizantes no mundo todo. Contudo, o plano foi frustrado pela inteligência britânica. Na prisão, Mandela também voltou a estudar. Ele tinha um diploma em artes, havia estudado direito e, embora não tivesse se formado, também exercera a profissão de advogado. Agora, ele retomava o curso, feito por correspondência através do Programa Externo da Universidade de Londres. De fato, desde que foi preso em 1962, o tempo que Mandela tinha livre era dedicado a estudar e a lecionar. Com efeito, Robben Island se tornou um verdadeiro campus para os prisioneiros políticos. Ao fazerem o trabalho na pedreira, extraindo cal, a vigilância sobre eles era relaxada. Assim, os prisioneiros debatiam suas visões políticas e divulgavam conhecimento entre si. Mandela queria que um espírito semelhante ao das universidades reinasse em Robben Island. Palestras secretas eram realizadas com regularidade entre os prisioneiros, tanto negros como brancos. Ele também estudou afrikaans e conversava frequentemente com carcereiros e empregados brancos da prisão. Isso 54
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permitiu que ele passasse a entender melhor a mentalidade da minoria bôer. Conforme escreveu Anders Hallengren em seu artigo “Nelson Mandela and the Rainbow of Culture” (Nelson Mandela e o Arco-Íris de Cultura), “Mandela se identificou com esses descendentes dos imigrantes holandeses do século 17 e percebeu que, sob outras circunstâncias, ele mesmo poderia ter desenvolvido pontos de vista semelhantes aos deles”. Essa experiência, adquirida ao longo dos anos em que esteve encarcerado em Robben Island, Mandela ampliou sua consciência ideológica – conhecimento que seria usado na elaboração da nova Constituição sul-africana. A partir dessa percepção, conforme observa Hallengren, “o notável espírito de reconciliação de Mandela surgiu, quando africanos e africâneres formaram um governo de coalizão”. Conforme o tempo passava, os prisionei-
Mandela em Roben Island
ros foram desenvolvendo cada vez mais formas de burlarem a vigilância e de se comunicarem. Embora os presos políticos constituíssem um grupo bastante heterogêneo – entre eles estavam membros da elite intelectual negra, bem como pessoas sem qualquer educação –, as ideias e a troca de
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conhecimento cresciam cada vez mais na “Universidade Mandela”, como Robben Island acabou sendo apelidada. Apesar de valorizarem a cultura africana, os debates eram inspirados pelas obras de autores europeus. Mais do que os livros sagrados das religiões dos presos – a Bíblia, o Alcorão e o Bhagavad Gita – William Shakespeare (1564 – 1616) era a maior fonte de inspiração dos prisioneiros. Constantemente citada e discutida, parte da obra do dramaturgo inglês refletia a situação dos encarcerados. Como Hamlet, o príncipe dinamarquês da peça de mesmo nome, que havia sido enganado por um rei criminoso, os prisioneiros políticos foram vítimas de um governo brutal. Como em Júlio Cesar, também eles estavam tramando para derrubar um governo despótico. Com em Mcbeth, pensavam eles, o regime do apartheid estava igualmente condenado a ruir. Passagens de textos como Coriolano e Henrique V os estimulavam a lutar. O trecho preferido de Mandela era a passagem de Julio Cesar que diz: “os covardes morrem muitas vezes antes da sua morte; o valente só prova a morte uma única vez”. Nelson Mandela compreendia perfeitamente a coragem descrita nesse trecho. Era a coragem que sempre moveu sua luta, que fez com que ele arriscasse a vida no banco dos réus ao proferir seu discurso histórico. O verdadeiro líder é imbuído de coragem e justiça. E a personalidade de Nelson Mandela havia sido forjada por esses valores.
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Ao longo dos anos 70, especialmente depois do massacre promovido pela polícia no Levante de Soweto, quando, em 16 de junho de 1976, quando mais de quinhentos estudantes negros que protestavam contra a imposição do afrikaans em sua grade curricular, foram chacinados pela polícia, Mandela se tornava um ícone, mesmo apesar de amordaçado pelo regime. Não obstante os esforços das autoridades para calar o líder negro, suas pregações aos prisioneiros da sua raça foram influentes a ponto de influenciar toda uma geração de novos líderes. As pressões da comunidade internacional também aumentaram depois do Levante de Soweto. Duras sanções econômicas foram impostas à África do Sul, obrigando o governo a um movimento de rever a política segregacionista. Em março de 1982, depois de passar 18 anos confinados em Robben Island, Mandela foi transferido para a prisão Pollsmoor, não muito distante de onde estava. Junto com ele também foram transferidos outros líderes do CNA que haviam sido condenados com ele no Julgamento de Rivonia: Walter Sisulu, Andrew Mlangeni, o sul-africano de origem indiana Ahmed Kathrada e Raymond Mhlaba. Provavelmente as autoridades tomaram essa decisão para neutralizar a influência que Mandela e esses líderes do CNA exerciam sobre uma nova geração de ativistas antiapartheid encarcerados em Robben Island. De acordo com o partido da situação, o Partido Nacional, o qual havia instituído o apartheid em 1948, o motivo da trans57
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ferência foi outro. Segundo essa versão, Mandela e a liderança do CNA foram transferidos para Pollsmoor para iniciar um contato entre eles e o governo sul-africano. De fato, tímidas negociações começaram a ser efetuadas, um indicativo de que, pressionada pelas sanções econômicas e também por atentados do MK, Pretoria começava a ceder. Em 1985, o presidente P.W. Botha ofereceu libertar Mandela, desde que ele convencesse o MK a cessar a luta armada. Muitos ministros do Partido Nacional aconselharam Botha a não oferecer esses termos. Sabiam que Mandela não abriria mão do esforço armado em troca de ganho pessoal. Eles tinham razão: Mandela recusou a oferta. Em um comunicado que conseguiu passar ao mundo exterior por meio de sua filha Zindzi, ele afirmava, “apenas um homem livre pode negociar. Um prisioneiro não pode firmar contratos”. A partir desse ponto, a situação começou a se inverter. Agora era o Partido Nacional que procurava Mandela. A primeira reunião entre Mandela e a administração Botha se deu de forma informal, quando o líder antiapartheid estava internado no Volks Hospital, na Cidade do Cabo, recuperando-se de uma cirurgia de próstata. Nessa época, o slogan Free Mandela (Libertem Mandela) ecoava em todo o Ocidente. O vice-ministro da Defesa Kobie Coetsee foi visitá-lo no hospital, abrindo caminho para uma série de encontros que ocorreram ao longo dos quatro anos seguintes. Embora esses contatos pavimentassem a trilha para futuras negocia58
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ções, quase nenhum progresso foi feito. Por outro lado, as restrições ao prisioneiro foram caindo paulatinamente.
Presidente P.W. Botha
Em 1988, Mandela foi novamente transferido para a prisão Victor Verster, onde permaneceria até sua libertação. Na Victor Vester, Mandela 59
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podia receber visitas, o que permitiu que ele iniciasse articulações com a liderança negra. Ele, porém, continuava a se recusar a negociar com o governo na situação de prisioneiro. O final do seu suplício se anunciou em 1989, quando o presidente Pieter Botha, apelidado por seus correligionários de “O Grande Crocodilo”, sofreu um derrame e foi substituído por Frederik Willem de Klerk. Em fevereiro de 1990, De Klerk anunciou finalmente o fim do apartheid e a libertação de Nelson Mandela.
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7 Winnie Mandela
A segunda esposa de Nelson Mandela, Winnie Mandela, é outra figura de grande estatura na história recente da África do Sul. Mas diferentemente do marido, as opiniões sobre ela estão longe de ser unanimes. Há aqueles para quem ela é a Mãe da Nação. Para outros, porém, ele deveria estar presa, sentenciada à prisão perpétua. Essa mulher capaz de despertar sentimentos tão antagônicos demonstrou ao longo de sua carreira uma coragem quase irracional – tão irracional quanto algumas de suas ações mais radicais. Aqueles que conhecem Winnie afirmam que ela é aquele tipo de mulher que chama a atenção quando entra em uma sala cheia de gente. Além de sua beleza natural, hoje ofuscada pelo tempo, ela se veste com as coloridas roupas tradicionais africanas, o que torna impossível não notá-la. Também na luta contra o apartheid Winnie não deixou de ser percebida. Nomzamo Winifred “Winnie” Zanyiwe Madikizela nasceu em 26 de setembro de 1936, em Bizana, Transkei, no seio de uma família xhosa. Sua 61
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mãe, Nomathamsanga Mzaidume, era professora de economia doméstica na escola local e faleceu quando Winnie tinha apenas oito anos. Seu pai trabalhava no Departamento de Florestas e Agricultura do Transkei, uma província “independente”, ou bantustão (veja definição de batustão na seção Curiosidades), em meio à África do Sul.
Nelson Mandela e Winnie, recém casados
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A família de Winnie tinha mais poses do que a maioria dos negros da África do Sul. Winnie frequentou a Universidade de Witwatersrand, Johanesburgo, formando-se como assistente social com especialização em Ciências Políticas. De fato, Winnie foi a primeira pessoa da raça negra – homem ou mulher – a se tornar uma assistente social em seu país. Protegida pela prosperidade da família, em seus anos como estudante, Winnie esteve alheia à gritante desigualdade social que os negros enfrentavam. Foi só quando começou a trabalhar como assistente social no Baragwanath Hospital, o maior hospital do mundo, localizado na township de Soweto, que ela se deu conta da enorme disparidade entre a privilegiada minoria branca e a miserável maioria negra. “Quando eu trabalhei como a primeira assistente social negra no Hospital Baragwanath”, declarou certa vez Winnie, “comecei a me politizar, comecei a perceber a pobreza abjeta à qual a maioria das pessoas era obrigada a viver, as terríveis condições criadas pelas desigualdades do sistema”. No final dos anos 50, inflamada pelas injustiças que via no hospital, a jovem assistente social não tardou em participar do movimento antiapartheid. Em 1957, conheceu um advogado e ativista político 18 anos mais velho que ela. Nelson Mandela, o nome do advogado, havia recém divorciado sua primeira esposa. Ele e Winnie se casaram no ano seguinte, e os filhos – na verdade filhas – não tardaram em vir. Zenani nasceu em 1959 e Zindzi, em 1960. A vida familiar de Nelson e Winnie, nesses primeiros a63
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nos, estava longe de ser normal. Em 1958, Winnie foi presa no que seria a primeira de uma série de detenções. Quanto a Nelson, destacado líder do Congresso Nacional Africano, suas muitas viagens para organizar campanhas o deixavam longe de casa a maior parte do tempo. Quando Nelson foi preso em 1962, Winnie foi banida, o que equivale a uma prisão domiciliar. No entanto, em 1967, ela simplesmente ignorou a determinação e foi visitar o marido na prisão, na Cidade do Cabo. Por conta disso, ela teve de amargar um mês na cadeia. Ao longo da vida ela foi presa diversas vezes. Em uma dessas prisões, ela ficou um ano e meio em uma solitária, no corredor da morte. O governo acreditou que isso quebraria os ânimos de Winnie, mas o efeito foi contrário. Ao sair da prisão em 1975, Winnie parecia ter disposição redobrada para a luta. Imediatamente ela começou a participar da Liga Feminina do Congresso Nacional Africano. Embora essa ala do partido da maioria negra fosse imediatamente colocada na ilegalidade, nem Winnie nem suas companheiras desanimaram. Sua insistência novamente a colocou atrás das grades. Em 1976, ela participou do Levante de Soweto, o qual culminou em uma chacina, com cerca de quinhentos negros assassinados pela polícia do regime. Winnie ficou seis meses na prisão e, depois de ter sido libertada, não pôde voltar a Soweto. Como de costume, ela não aceitou ser banida e
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visitou aquela township diversas vezes. A cada uma delas, era presa e tinha de passar alguns meses na prisão. Mas Winnie acabou se embriagando com a violência em que vivia. Ao enfrentar essa realidade, ela mesma acabou por adotar a brutalidade como meio de fazer valer suas intenções. E então ela se maculou irremediavelmente e de heroína tornou-se criminosa. Winnie fundou uma agremiação com nome inocente, o Mandela United Football Team. Mas a inocência estava apenas no nome. O clube de futebol era formado por guardacostas que passavam mais tempo protegendo Winnie do que jogando. Logo surgiram rumores de que a equipe estava se envolvendo em atividades clandestinas. Qualquer um que se opusesse a eles era eliminado. O discurso de Winnie se tornou cada vez mais inflamado. Em abril de 1985, ela pregou abertamente que os informantes do governo, negros que traíam a causa antiapartheid, deviam ser mortos pelo “colar”. A terrível execução consistia de se colocar pneus encharcados com gasolina ao redor do acusado e acesos. A situação fugiu de controle em 1989, quando o time de futebol sequestrou quatro adolescentes da casa do ministro metodista Paul Verryn , entre eles Stompie Seipei, de apenas 14 anos. O menino foi encontrado morto a facada dias depois. Seu corpo apresentava sinais de tortura. Mais tarde, o guarda-costas de Winnie, Jerry Richardson, acusou Winnie de ordenar o sequestro e o assassinato de Seipei. 65
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Ela defendeu-se afirmando que mandara tirar os jovens da casa do reverendo porque suspeitava que eles estavam sofrendo abusos sexuais. Winnie acabou condenada a seis anos de prisão pelo envolvimento no crime, mas apelou da sentença e acabou tendo apenas de pagar uma multa. Um de seus guarda-costas pagou pelo crime, sendo condenado. Contudo, a reputação de Winnie ficou irremediavelmente abalada. A poucos meses da libertação de Nelson Mandela da prisão, o heroísmo que sempre a caracterizou
Stompie Seipei
foi eclipsado pelos crimes que ela perpetrou. A libertação de Nelson Mandela em 1990 tirou momentaneamente a negativa atenção que recaia sobre ela. Ironicamente, a saída de Mandela da prisão foi o prenúncio da queda de Winnie. Reunidos pela primeira vez depois de trinta anos, o casamento de Nelson e Winnie não sobreviveu às notícias de que ela havia sido infiel a ele enquanto Nelson estava na pri66
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são. Quando Mandela foi eleito presidente, Winnie sequer foi convidada para a cerimônia de posse. Mesmo assim, ela ocupou o posto de viceministra de Artes, Cultura, Ciência e Tecnologia. Onze meses depois, ela foi exonerada do cargo por suspeita de corrupção.
O arcebispo Desmond Tutu
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Durante a transição para a democracia, Winnie assumiu uma postura em menos conciliatória com relação à comunidade branca do que Nelson Mandela. Em 1997, ela foi ouvida pela Comissão da Verdade e Reconciliação, encarregada de ouvir os crimes cometidos durante o apartheid e de anistiar, ou não, os algozes do regime. O arcebispo Desmond Tutu , presidente da comissão, reconheceu a importância de Winnie na luta contra o apartheid, mas pediu que ela se desculpasse e admitisse seus erros. Winnie admitiu, então, que as coisas haviam “saído do controle”. Em 2003, Winnie enfrentou um novo julgamento, dessa vez por fraude e desvio de fundos. Considerada culpada, ela foi condenada a cinco anos de prisão. Winnie resignou sua posição de parlamentar e de líder da Liga Feminina do Congresso Nacional Africano. Em 2004, ela apelou da sentença e a Corte de Pretória sentenciou que os crimes de fraude não foram cometidos para obter ganho pessoal e suspendeu a sentença. Apesar do envolvimento de Winnie no bárbaro assassinato de uma criança, de ela ter sido infiel ao grande ícone da luta antiapartheid e de ter sido condenada por fraude, ela continua ocupando um lugar proeminente no palco da política sul-africana. Nas eleições gerais de 2009, o CNA a colocou em quinto lugar na sua lista eleitoral, atrás apenas de nomes como o do atual presidente da África do Sul, Jacob Zuma, do ex-presidente Kgalema Motlanthe, do vice-presidente Baleka Mbete e do ministro das Finanças Trevor Manuel . Esse resultado indica que o partido considera que 68
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Winnie ainda é capaz de atrair votos, especialmente entre as camadas menos favorecidas da população.
Stompie Moeketsi 0 jovem ativista James Seipei era mais conhecido como Stompie Moeketsi. Nascido em 1974 e criado em Soweto, a maior township da África do Sul, Stompie começou sua carreira de ativista com apenas dez anos, quando participou de protestos nas ruas de Soweto. Logo, o garoto assumiu uma posição de liderança no movimento juvenil antiapartheid daquela township. Ele foi o preso político mais jovem do país, ao ser detido com 11 anos. Stompie passou seu 12º aniversário na prisão. Aos 13 anos, foi expulso da escola. Mas apesar do ativismo e de sua proeminência no movimento, Winnie Mandela suspeitou que Stompie fosse informante da polícia, relatando as ações políticas organizadas no gueto. Em 29 de dezembro ele foi sequestrado. Seu corpo foi encontrado dias depois, com a garganta rasgada. Jerry Richardson, um dos guarda-costas de Winnie foi condenado pelo crime. Richarson insistiu, porém, que Winnie havia dado ordens para sequestrar quatro rapazes. Stompie era o mais jovem deles. Os quatro foram duramente brutalizados, mas Stompie teve pior sorte.
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O Negociador
O mês de fevereiro de 1990 anunciava o início de um novo tempo para a África do Sul. Depois de séculos de conflito racial e de décadas de um regime que oprimia qualquer etnia que não fosse de origem europeia, o início dos anos 90 apontavam na direção do fim do apartheid. No dia 2 daquele mês, o então presidente Frederik de Klerk autorizou a volta do Congresso Nacional Africano (CNA) e de outros partidos que havia sido postos na ilegalidade em 1960. Mais que isso, o presidente anunciou que Nelson Mandela, o ícone da luta contra o apartheid, seria libertado em breve. Pouco depois, em 11 de fevereiro, Mandela saiu da prisão Victor Verster. Era um evento de tal magnitude que foi televisionado ao vivo para todo o mundo. Falando para bilhões de pessoas que o assistiam, Mandela declarou seu comprometimento com a paz e a reconciliação com a minoria branca que tanto oprimiu seu povo. Contudo, Madiba, o título que designa os anciões do seu clã pelo qual Mandela é carinhosamente chamado, foi categórico 70
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ao declarar que a luta armada promovida pelo CNA não estava terminada. Sua libertação não implicava o fim do conflito. Afinal, desde 1985 ele recusava condicionar sua libertação ao fim do esforço militar. “Nossa opção pela luta armada em 1960, com a formação de um braço militar do CNA (o Umkhonto we Sizwe) foi uma ação puramente defensiva contra a violência do apartheid. O fatores que exigiram a luta armada ainda existem hoje. Não temos outra opção a não ser continuar. Expressamos a esperança de que um clima que leve à negociação seja estabelecido em breve, de forma que não seja mais necessária a luta armada”, declarou Mandela. Em seguida, complementou afirmando que seu objetivo principal era trazer a paz à maioria negra e garantir a ela o direito ao voto tanto nas eleições locais como nas nacionais. Depois de ter passado 27 anos enjaulado, o velho leão continuava a rugir. As negociações para acabar como apartheid começaram ainda em 1990, em 4 de maio. Naquela data, o CNA e o governo se reuniram na residência presidencial, Groote Schuur. O encontro resultou na Minuta de Groote Schuur, um compromisso que os dois partidos firmavam entre si para por um fim ao clima de violência que imperava no país. O documento também sustentava que os líderes se esforçariam para remover obstáculos à negociação, o que incluía a anistia de exilados e prisioneiros políticos. Em agosto daquele ano, as partes emitiram um novo documento, a Minuta de Pretória, a qual, entre outros pontos, determinava a suspensão da 71
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luta armada por parte do CNA e de seu braço militar, o Umkhonto we Sizwe.
A residência presidencial, Groote Schuur
Em 1991, o CNA promoveu sua primeira conferência nacional desde que voltou à legalidade, e Mandela foi escolhido unanimemente como presidente da organização. Seu velho amigo Oliver Tambo, que havia liderado o CNA quando Mandela estava preso, foi eleito presidente nacional.
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A essa altura, as negociações já incluíam outros partidos. Apesar do esforço que os líderes faziam, a relação que mantiveram foi tensa. Em 1991, Mandela acusou de Klerk de ser líder de “um regime desacreditado e de minoria”. Os debates entre as partes foram conduzidos sobre um pano de fundo de violência em todo o país. Os partidos da oposição afirmavam que havia uma força paramilitar patrocinada pelo Estado que buscava desestabilizar o país. O esforço das negociações levou ao Acordo de Paz Nacional, de 14 de setembro de 1991, assinado pelos representantes de 27 e organizações políticas e líderes tribais, abrindo caminho para a primeira Convenção por uma África do Sul Democrática, ou CODESA, conforme a sigla em inglês. A primeira CODESA, iniciada em 20 de dezembro de 1991, reuniu 19 grupos, inclusive o Partido Nacional, o CNA, o Congresso Indiano Sul Africano e o Partido Comunista Sul Africano. A conferência resultou no estabelecimento de grupos de trabalho que deveriam abordar temas específicos. Depois do CODESA, o Partido Nacional perdeu as eleições para o ultradireitista Partido Conservador, outra agremiação da minoria branca. De Klerk anunciou, então, um referendo apenas para brancos sobre as reformas e a continuidade das negociações. O resultado do plebiscito foi que 69% dos eleitores desejavam a continuidade das reformas e negociações.
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O CODESA II começou em maio de 1992, mas não avançou. As negociações foram interrompidas depois do massacre de Boipatong, em junho de 1992, quando 46 residentes daquela township foram mortos por membros do Partido Inkhata pela Liberdade, que defendia o nacionalismo zulu, infiltrados em Boipatong por agentes do governo. Eram negros assassinando negros com o apoio dos brancos. Mandela retirou o CNA das conferências, acusando o governo de De Klerk de cumplicidade no massacre. Mandela e o CNA se retiram das negociações, mas não ficaram inativos. Incitando uma campanha de ação em massa, buscaram uma alternativa às negociações com o governo. Mas a iniciativa foi barrada por nova tragédia, o massacre de Bisho, em setembro de 1992, quando um exército do “Estado” nominalmente independente de Ciskei, na prática um enclave xhosa dentro da África do Sul (veja “Bantustões” na seção “Curiosidades”) abriu fogo contra manifestantes, matando 28 pessoas. Novamente, eram negros assassinando negros. O grave evento trouxe o espectro de uma guerra civil que assombrou as lideranças, fazendo-as entender que as negociações eram o único caminho a ser tomado. Assim, as conferências foram retomadas. As negociações prosseguiram por um caminho espinhoso. Entre outras dificuldades, os zulus exigiam maior autonomia para seus territórios e temiam perder seu status de monarquia. O ódio e o medo que permeavam negros, brancos e outras etnias sul-africanas continuou a marcar com 74
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sangue as negociações que garantiriam aos bantus, indianos e mestiços seus direitos civis. Em abril de 1992, o líder do CNA Chris Hani foi assassinado pelo imigrante polonês ultradireitista Janusz Walus, exacerbando o temor de que a violência irrompesse de vez em todo o país. O assassinato fazia parte de um plano da ala de extrema-direita sul-africana para interromper as negociações que levariam ao fim do apartheid. Uma vizinha de Hani, uma mulher africâner, chamou a polícia ao ouvir os disparos. Walus foi preso imediatamente. Na ocasião, Mandela fez um discurso apelando pela reconciliação, um prenúncio do que seria seu governo a partir do ano seguinte. “Esta noite eu me dirijo a cada sul-africano, negro ou branco, do fundo do meu ser. Um homem branco, cheio de ódio e preconceito, veio ao nosso país e perpetrou um ato tão vil que toda a nação está agora à beira de um desastre. Uma mulher branca, de origem africâner, arriscou sua vida para que pudéssemos conhecer esse assassino e levá-lo à justiça (...) Agora é hora de todos os sul-africanos se unirem contra aqueles, independentemente de suas origens, querem destruir aquilo pelo que Chris Hani deu sua vida – a liberdade de todos nós”, conclamou Mandela. As palavras de Mandela não evitaram os conflitos que se seguiram ao assassinato de Hani. Mas o martírio de Chris Hani fez com que os negociadores de ambos os lados sedimentassem o inevitável, a total extinção do apartheid. Assim, foram marcadas as primeiras eleições democráticas das 75
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quais todos os sul-africanos, independentemente de suas origens, participariam. As eleições aconteceriam em 27 de abril de 1994, pouco mais de um ano depois do assassinato de Chris Hani.
Chris Hani
O esforço de Mandela e de De Klerk foi reconhecido pela comunidade internacional quando os dois foram premiados com o Nobel da Paz, em 1993. 76
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Mandela Presidente
Com o fim do apartheid e o avanço das negociações entre as diversas etnias que constituem a África do Sul, o país se viu ameaçado pelo espectro de uma guerra civil. Atentados em pubs e bairros multirraciais não eram raros. Extremistas negros não queriam dividir o país com os brancos, nem estes desejavam ser governados pela maioria africana. Os zulus, o maior grupo negro, não queriam perder sua autonomia, entrando em conflito com outras nações bantos. Temendo serem perseguidos pela maioria negra, como aconteceu em várias das antigas colônias europeias quando se tornaram independentes, os líderes dos vários grupos extremistas brancos fundaram a Frente Nacional Africâner, em 1993, tencionando fazer a mesma coisa que seus ancestrais, quase duzentos anos antes, isto é, fundar um país independente no Transvaal. Apesar da instabilidade, o governo de Frederik de Klerk marcou finalmente as primeiras eleições multirraciais da África do Sul para 27 abril de 1994.
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O Congresso Nacional Africano de Nelson Mandela obteve 62% dos votos. Mandela tomou posse em 10 de maio de 1994, tornando-se o primeiro presidente negro do país. O governo Mandela também era encabeçado por Frederik de Klerk, do Partido Nacional, como vice-presidente, e de Thabo Mbeki (que viria a substituir Mandela como presidente em 1999) também como vice-presidente. Provavelmente, o fato mais importante do mandato de Nelson Mandela foi o esforço pela conciliação dos povos que constituem a colcha de retalhos raciais que é a África do Sul. Seu esforço foi reconhecido internacionalmente, projetando ainda mais sua figura. Mandela foi capaz de formar o Governo Arco-Íris, assim chamado porque foi a administração mais multiétnica jamais estabelecida naquele país. Mandela já havia colocado isso em prática quando foi eleito presidente do Congresso Nacional Africano (CNA), em 1990, depois que o partido voltou à legalidade. A liderança do CNA passou a ser constituída de forma multirracial, com sete negros, sete indianos, sete brancos e sete mestiços. Seu governo obedeceu às mesmas diretrizes. Os ministros de Estado da administração Nelson Mandela incluíam negros, brancos, indianos, mestiços, cristãos, hindus, muçulmanos, comunistas, liberais... Era, de fato, um arco-íris de raças, orientações e tendências políticas, consoante com suas intenções de estabelecer uma democracia multiétnica onde todos, independentemente de suas origens, tinham direitos iguais. 78
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Para promover composição multirracial no governo – e também em um claro esforço de unir todos os grupos sul-africanos –, entre abril de 1994 e fevereiro de 1997, o país foi governado sob os termos de uma Constituição interina. Essa Constituição garantia que qualquer partido que tivesse pelo menos vinte cadeiras na Assembleia Nacional poderia requerer uma ou mais pastas e participar dessa forO presidente Nelson Mandela
ma do novo governo. Esse arranjo
ficou conhecido como o Governo da Unidade Nacional. A maior parte das vagas da Assembleia Nacional foram ganhas pelo Congresso Nacional Africano nas mesmas eleições que elegeram Mandela presidente. Os outros dois partidos a conseguir uma votação considerável, o Partido Nacional, de ascendência africâner, e o Partido Inkatha da Liberdade, que agrega os zulus e que é, hoje, o quarto maior partido sul-africano, lançaram mão da garantia constitucional e requisitaram pastas no governo. Mandela, porém, estendeu essa prerrogativa aos outros partidos que não haviam conquistado um mínimo de vinte cadeiras na Assembleia Nacional. 79
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Apesar de o regime de segregação ter acabado, a economia, a polícia, o controle das infraestruturas, a polícia e outras instituições importantes continuavam – e continuam, embora em grau cada vez menor – nas mãos dos brancos. Os negros ainda careciam de acesso social. Assim, depois de conseguir eliminar o apartheid e chegar ao poder, Mandela dirigiu seus esforços no sentido de evitar o domínio negro. Seu objetivo era superar o ódio enraizado entre essas comunidades ao longo de séculos de conflito e de segregação. Entre seus esforços, Mandela deu seu apoio pessoal ao odiado time branco de rúgbi, o Springboks, quando a África do Sul sediou a Copa do Mundo de Rúgbi, em 1995. Usando com sabedoria o entusiasmo nacional que um esporte pode proporcionar, o presidente conseguiu unir os sulafricanos – negros, brancos, indianos e mestiços – em torno do Springboks, mostrando aos cidadãos daquele país que não havia mais separação: eram todos sul-africanos e deveriam se unir para juntos construírem uma nação. A Copa do Mundo de Rúgbi de 1995 foi transformada no filme Invictus por Clint Eastwood. A ideologia da Nação Arco-Íris foi claramente espelhada na nova Constituição da República da África do Sul elaborada durante a administração Mandela e colocada em vigor em 1996. É uma das mais modernas e mais radicais Cartas Magnas do mundo no que se refere a direitos humanos. Ela contém uma extensa Declaração de Direitos, onde diversos parágrafos 80
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sobre igualdade se destacam. “O Estado não pode discriminar injustamente direta ou indiretamente qualquer um com base em raça, gênero, sexo, estado de gravidez, estado civil, origem étnica ou social, orientação sexual, idade, incapacidade física, religião, consciência, crença, cultura, língua e nascimento”, determina um desses parágrafos.
O Springboks, em 2005
Igualmente, a Constituição de 1996 enumera as línguas oficiais do país. Todas as línguas dos povos sul-africanos são permitidas, tanto no governo provincial como no nacional, outro avanço no sentido de promover a Na81
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ção Arco-Íris. “As línguas oficiais da República”, estabelece o documento, “são o sepedi, sesotho, setswana, siswati, tshivenda, xitsonga, afrikaans, inglês, isindebele, isixhosa e isizulu”. Outra questão delicada abordada pela Constituição de 1996 é o hino nacional sul-africano. De acordo com a nova Constituição, o hino nacional é determinado pelo presidente da república por meio de proclamação. Assim, o hino da nova África do Sul passou a ser o Nkosi Sikelel’ Africa, uma velha canção entoada pelos revolucionários, cantada por Mandela e seus companheiros por décadas a fio. Cientes de que a única forma de proporcionar inclusão social é por meio do estudo, os redatores da Constituição enfatizaram a importância da educação. “Todos têm o direito: a) à educação básica, inclusive a educação básica para adultos; e b) à educação estendida, a qual o Estado, por meio de medidas condizentes, tem o dever de disponibilizar e de dar acesso progressivamente”, reza a Carta Magna. Outra importante iniciativa da administração Nelson Mandela no sentido de transformar a África do Sul em uma democracia multirracial foi a instituição da Comissão Para a Verdade e a Reconciliação. A Comissão, presidida pelo arcebispo Desmond Tutu, funcionava nos moldes de um tribunal, onde as vítimas de violações dos direitos humanos eram convidadas a testemunhar a respeito do que sofreram. Os perpetradores de violência também podiam testemunhar e pedir anistia tanto dos processos 82
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civis como criminais. Uma das testemunhas a responder diante da Comissão pelos crimes dos quais teria sido acusada durante o apartheid foi Winnie Mandela, ex-esposa do presidente. Embora não tenha admitido os crimes de que era acusada, Winnie declarou que “as coisas saíram do controle”. A iniciativa foi muito elogiada e é considerada por muitos como tendo sido um componente crucial para a transição a uma verdadeira democracia no país. No âmbito internacional, Mandela também afirmou a posição da África do Sul como potência e liderança regional. Entre outras ações, o presidente comandou a primeira operação militar pós-apartheid, quando a África do Sul enviou tropas para Lesoto em setembro de 1998 a fim de proteger o governo do primeiro-ministro Pakalitha Mosili, eleito legitimamente e ameaçado de ser derrubado pela oposição. Uma das maiores críticas feitas à administração Mandela é com relação à sua inação frente à crise da AIDS na África do Sul. Vozes como a do juiz sul-africano e ativista contra a AIDS Edwin Cameron se ergueram contra Mandela pelo descaso com que abordou a questão. Seis anos depois de deixar a presidência de seu país, Mandela perdeu um filho vítima da AIDS. No fim do mandato, Mandela admitiu que pode ter falhado ao não dar tanta atenção à epidemia da AIDS. Imediatamente depois de se aposentar, Mandela passou a encabeçar uma campanha pessoal contra a AIDS.
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Pakalitha Mosili
Outro aspecto negativo do governo Mandela foi que durante seu mandato o índice de violência e de criminalidade aumentou. Em sua campanha presidencial, Mandela e o Congresso Nacional Africano afirmaram que seu governo traria “empregos, paz e liberdade”. A peça central dessa política era o Plano de Reconstrução e de Desenvolvimento, que prometia a cons84
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trução de 300 mil casas populares por ano, acesso à água tratada, esgoto e eletricidade, melhorias na rede de saúde pública, empregos que seriam gerados pelo governo e uma ampla reforma agrária. Contudo, embora os africanos que tiveram acesso à educação tenham de fato melhorado suas condições sociais, a realidade das townships ainda era a pobreza e o desemprego. Os jovens pobres viam os negros que tiveram acesso à educação progredirem e observaram que os brancos continuavam a deter seus privilégios, enquanto suas perspectivas pouco haviam mudado. E mais uma vez se desiludiram. Revoltados, muitos negros pobres recorreram ao crime como meio de buscar ascensão social. A criminalidade era realidade nas townships na era do apartheid, mas pela primeira vez invadiu as cidades e os subúrbios. Os primeiros cinco anos da democracia sul-africana não atingiram muitas das ambiciosas metas econômicas e de desenvolvimento social estabelecidas pelo CNA. A disseminação da criminalidade espalhou medo por todo o país e desestimulou o tão necessário investimento estrangeiro, aumentou o temor da população branca que levou a uma grande emigração de jovens profissionais dessa etnia. Apesar de alguns itens do Plano de Reconstrução e de Desenvolvimento tenha atingido algumas metas, especialmente aquelas relacionadas ao abastecimento de água tratada, o programa foi abandonado no final do governo Mandela.
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Na verdade, o sucesso da administração Nelson Mandela está no fato de ter estabelecido os fundamentos de uma nova nação. Seus méritos estão na política de reconciliação e na nova Constituição – além, claro, do seu próprio exemplo como líder.
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Mandela Volta a se Casar
Em 18 de julho de 1998, data em que completava 80 anos, o então presidente da África do Sul, Nelson Rolihlahla Mandela, se casou pela terceira vez. A noiva, Graça Machel, na ocasião com 52 anos, é viúva do presidente de Moçambique, Samora Machel. A cerimônia, que contou com poucos convidados, foi realizada na casa de Mandela, no elegante subúrbio de Houghton, em Johanesburgo – a mesma que aparece no filme Invictus, do diretor Clint Eastwood. O casamento, presidido pelo bispo metodista Mvuve Dandala, foi selado com troca de alianças incrustadas de diamantes e de um longo beijo dos noivos. “Foi uma bela cerimônia”, disse a assessora de Mandela, Priscila Naidoo. O relacionamento de Mandela e Machel veio a público no ano anterior ao casamento. Mandela afirmou que efetivou seu relacionamento com Graça Machel através do casamento porque havia uma pressão “insuportável” dos amigos para isso. De acordo com declarações de Mandela na época, membros do clero de diversas religiões insistiam que o casal estava 87
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dando um mau exemplo ao não se casar. “Até mesmo no Parlamento, os deputados me diziam que eu deveria me casar”, confidenciou o então presidente.
Samora e Graça Machel
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O casal manteve um relacionamento aberto durante dois anos, até que a “pressão insuportável” dos líderes sul-africanos os levasse a se casar. Mesmo assim, os noivos mantiveram discrição. A cerimônia de casamento foi mantida em segredo porque, disse o casal, não sabíamos quais dos “numerosos amigos” que ajudaram a África do Sul no combate ao apartheid deveriam ser convidados. Também afirmaram, com certa modéstia, que não queriam provocar engarrafamentos nas ruas de Joeburg, como os sul-africanos apelidaram sua maior cidade. Graça Machel resistiu ao casamento porque não queria que a união prejudicasse seu trabalho como ativista dos direitos das crianças e pelo fim da pobreza em Moçambique. Além disso, como ex-primeira-dama daquele país e notória combatente pela independência de Moçambique, ela pretendia conservar seu status em sua terra natal. Machel é presidente da Fundação Desenvolvimento da Comunidade, sediada em Maputo, a capital moçambicana, onde busca fornecer meios para que Nelson Mandela e Graça Machel
pessoas e comunidades possam se 89
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manter e se desenvolver. De fato, Graça Machel é uma das figuras mais influentes e populares de Moçambique. Por conta disso, mesmo tendo se casado com Mandela, Graça continua residindo em seu país natal e conserva o nome de seu primeiro marido, morto em um acidente aéreo na África do Sul.
De acordo com a jornalista Vukani Magubani, que entrevistou Graça Machel à época do casamento com Mandela, “é fácil ver porque a exprimeira-dama de Moçambique capturou a atenção de um dos solteirões mais amados e admirados do mundo, o (então) presidente da África do Sul Nelson Mandela”. Na entrevista dada a Magubani, da revista Ebony South Africa, Machel afirmou entre “risos e rubores” que depois de ter sofrido tanto tempo com a morte do marido ela estava vivendo uma felicidade que pensou nunca mais vir a sentir novamente. A biografia de Graça Machel, a primeira mulher a se tornar primeiradama de dois países diferentes, tem diversos pontos de congruência com a de Nelson Mandela. Em sua página do Facebook, Graça afirma que “o sentido de minha vida, desde jovem, é buscar lutar pela dignidade e pela liberdade do meu povo”. Qualquer semelhança com o as motivações de Nelson Mandela não é mero acaso. Graça vem de uma família pobre, criada na Moçambique rural. Seu pai morreu vinte dias antes de ela nascer, em 17 de outubro de 1945. Seu 90
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nascimento aliviou um pouco o sofrimento de sua mãe e irmãos. Por isso recebeu o nome de Graça – um presente divino. Em seu leito de morte, o pai fez seus filhos prometerem que educariam a irmã que estava por nascer, pois ele não estaria mais por perto. E assim eles fizeram. Graça foi uma aluna excelente. Quando concluiu a escola secundária, ganhou uma bolsa para ir estudar em Lisboa. Na Europa, seu ativismo político cresceu tanto que não passou desapercebido das autoridades. A polícia secreta portuguesa passou a segui-la, e Graça saiu do país, indo se refugiar na Tanzânia, onde recebeu treinamento militar. Sua intenção era lutar contra o colonialismo português. Quando o conflito chegou ao fim, Graça participou das negociações pela independência com o governo português. Ela foi a única mulher a participar das negociações. Em seguida, ela foi apontada ministra da Educação do novo governo – novamente a única mulher a ocupar uma posição dessa dimensão. Graça continuou a trabalhar no governo pelos 14 anos seguintes. Hoje, ela continua com seu ativismo e, juntamente com Nelson Mandela, participa do grupo chamado Os Anciões, que busca fazer avançar diversos temas sensíveis no mundo todo. Mas por conta de tantas atividades em tantos lugares diferentes, eles continuam a viver em casas separadas.
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A Vida do Ex-Presidente
Quando o mandato de Nelson Mandela terminou, em 14 de junho de 1999, depois de cinco anos de governo, ele já havia decidido não concorrer a um segundo termo. Aos 81 anos, depois de amargar 27 anos na prisão, de passar quatro longos e tensos anos negociando o fim do apartheid e de comandar a transição histórica pela qual a África do Sul passou, reconciliando brancos e negros, o velho leão sentia que era hora de se retirar da vida pública. Isso, porém, não implicava que Mandela deixaria de atuar nos bastidores. Depois de concluir seu mandato, ele passou a colaborar com diversas organizações que trabalham por avanços sociais e pela defesa dos direitos humanos. Mandela participou do movimento Faça a Pobreza Virar História. O torneio de golfe Nelson Mandela, instituído por ele, levantou mais de vinte milhões de rands, a moeda sul-africana, para instituições de caridade que mantêm crianças, desde que aconteceu pela primeira vez, em 2000. Com efeito, o evento se tornou a iniciativa esportiva mais bem su92
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cedida em termos de levantar fundos para instituições de caridade em todo o mundo. Mandela também dá seu apoio à SOS Children’s Village, a maior organização mundial dedicada a cuidar de crianças órfãs ou abandonadas. Outra importante causa a que Madiba, o título adotado pelos anciões do clã de Mandela pelo qual ele é chamado em sinal de reverência, tem dedicado seus esforços desde 2000 é o combate à AIDS. Apesar de seus esforços no combate à doença, a qual se tornou crônica na África do Sul, seu filho Makgatho Mandela morreu vítima da AIDS, em janeiro de 2005. No início dos anos 2000 a saúde de Madiba começou a dar sinais de desgaste. Em julho de 2001, ele foi diagnosticado com câncer de próstata e foi submetido a um tratamento a base de radiação que durou sete semanas. Afastado das vistas do público, em 2003, a morte de Mandela foi erroneamente anunciada pela rede americana de notícias CNN. O obituário do expresidente sul-africano já havia sido escrito e foi divulgado no website da Makgatho Mandela
CNN por conta de um problema no 93
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sistema de proteção de senhas. A informação falsa foi imediatamente contestada, mas essa não foi a única vez que a morte de Mandela foi anunciada incorretamente. Em 2007, um grupo de direita espalhou um boato de que Nelson Mandela estava morto e que essa informação estava sendo omitida do público, pois, conforme a falsa notícia, depois do funeral de Madiba, os brancos sul-africanos seriam massacrados pela maioria negra. Embora falso, esse rumor espelhava o medo que continua a assolar os sul-africanos de origem europeia. De fato, Mandela estava passando férias em Moçambique, país natal de sua terceira esposa, Graça Machel. Felizmente, o rumor não teve o efeito esperado, isto é, provocar um levante da população branca. Em junho de 2004, quando estava com 85 anos, Mandela anunciou que sairia definitivamente da vida pública. Com a saúde debilitada, ele planejava passar mais tempo com a família. Mas Mandela avisou também que não tinha a intenção de se esconder do público. Queria apenas estar em uma posição, conforme ele colocou, de “chamar quando eu quiser”, em vez de ser “chamado a fazer coisas e a participar de eventos”. Desde o ano anterior, suas aparições públicas já haviam diminuído sobremaneira. No dia em que completou 89 anos, Mandela, sua esposa Graça Machel e o arcebispo Desmond Tutu fundaram um grupo ao qual chamaram Os Anciões. A ideia, baseada nos conselhos tribais, era oferecer sua sabedoria 94
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e seus dividendos políticos para ajudar a enfrentar os piores problemas mundiais. O arcebispo Tutu é o presidente da organização, que conta com membros proeminentes, como o ex-presidente americano Jimmy Carter e o ex-secretário-geral da ONU Kofi Annan. “Esse grupo pode falar abertamente, trabalhando tanto publicamente como por trás das cenas em quaisquer ações que precisem ser tomadas”, comemorou Mandela. “Juntos trabalharemos para levar coragem onde houver medo, promover concórdia onde houver conflito e inspirar esperança onde houver desespero”. Em 18 de julho de 2008, Madiba comemorou seu 90º aniversário. Em Londres, um concerto foi realizado ao ar livre, no Hyde Park, para celebrar a data. Em seu discurso de aniversário, Mandela mais uma vez mostrou porque é o líder africano de maior estatura moral, apelando aos ricos de todo o mundo que sejam solidários
O ex-presidente americano, Jimmy Carter
com os pobres. Em 5 de dezembro de 95
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2013, depois de uma infecção pulmonar prolongada, Mandela faleceu, em sua casa, cercado por familiares.
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Sobre o Autor
Claudio Blanc é escritor, tradutor e editor, autor de cerca de 600 artigos sobre História, Ciência, Literatura e Filosofia, publicados em revistas como Discovery Magazine, Filosofia Ciência & Vida, Revista do Explorador e Grandes Líderes da História. É autor, entre outros, dos livros Aquecimento Global e Crise Ambiental, Uma Breve História do Sexo, O Lado Negro da CIA e O Homem de Darwin. Entre seus livros infanto-juvenis estão Histórias Sopradas no Tempo e De lenda em Lenda se Cruza Fronteiras, indicado como Altamente Recomendável pela Fundação Nacional do Livro Infanto-Juvenil. Claudio Blanc também assina até o momento da publicação deste livro a tradução de 40 obras nos mesmos campos de conhecimento sobre os quais escreve, entre elas os best-sellers Fumaça e Espelhos, de Neil Gaiman, e O Relatório da CIA – como será o mundo em 2020?
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Direito reservados: Sindicato dos Padeiros de São Paulo, 2013 Este artigo pode ser reproduzido para fins educativos; a fonte deve ser citada Projeto Memória: www.padeirosspmemoria.com.br
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