FotO GrafiA cOn Tem PoRA Nea frOn TeI rAs e Trans Gres Soes Susana Dobal Osmar Gonรงalves (orgs.)
Fotografia Contemporânea — Fronteiras e Transgressões
Fotografia Contemporânea — Fronteiras e Transgressões Susana Dobal Osmar Gonçalves (orgs.)
Organizadores: Osmar Gonçalves e Susana Dobal
Diagramação: Beatriz Fidelis e Karla Beatriz Coordenação Editorial: Gustavo de Castro, FlorenDiagramação da Capa: Henrique Lucio
ce Dravet, Suzana Guedes e Wagner Rizzo
Imagens de Capa: Duda Bentes, Julia Margaret
Conselho Editorial:
Cameron, Maleonn, Marcelo Feijó, Osmar Gonçal-
Alex Galeno (UFRN)
ves e Susana Dobal
Ângelo Dedavid (Escritor) Florence Dravet (UCB) Gustavo de Castro (UnB) Luiz Martins da Silva (UnB) Marcelo Costa Nunes (SETRD) Michel Maffesoli (Université Paris V) Miroslav Milovic (UnB)
Revisão: Gustavo de Castro, Verônica Brandão, Florence Dravet
Impresso no Brasil 2013 Casa das Musas
Fotografia Contemporânea - Fronteiras e Transgressões / Susana Dobal, Osmar Gonçalves (Orgs.). Brasília: Casa das Musas, 2013 208 p.; 21cm ISBN: 9788598205854 1. Comunicação 2. Fotografia 3. Fotografia Contemporânea I. Dobal, Susana, org. II. Gonçalves, Osmar, org.
Casa das Musas Tel. (+5561) 9238-5912 www.casadasmusas.org.br casadasmusas1@hotmail.com
CDU 316
Sumário Prefácio
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Estratégias fotográficas A
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fotografia na tormenta das imagens
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André Rouillé (Université Paris 8)
A
fotografia na arte: alguns movimentos, espaços e formas de apresentação
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Maria Ivone dos Santos (UFRGS)
Entre o documento e o lúdico Desvirtuar
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a câmera, virtualizar a imagem: o lúdico na
fotografia contemporânea
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Osmar Gonçalves (UFC)
Ficção
e encenação na fotografia contemporânea
75
Susana Dobal (UnB)
Documentação Fotográfica:
do registro objetivo à
descrição visual densa
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Milton Guran (UFF)
O espaço repensado fotograficamente A Reinvenção
da
Memória
Alexandre Sequeira (UFPA)
na
Vila
de
119
Lapinha
da
Serra
121
Lisboa, Anos 50: Victor Palla
e Costa Martins vislumbram novas fronteiras para a fotografia
Marcelo Feijó (UnB)
137
6
Entre
olhar o turista e olhar para o que ele olha
Lívia Aquino (FAAP)
O tempo e o ensino da fotografia reconfigurados Sobreposições
149 161
e atravessamentos entre o analógico e o
digital
Antônio Fatorelli (UFRJ)
Estados
fotográficos, fósseis e fantasmas
Cláudia Sanz (UnB)
Ensino
da fotografia: percurso e desafios
Duda Bentes (UnB)
Caderno de Imagens
163 179 187 201
Fotografia Contemporânea - Fronteiras e Transgressões
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Prefácio
Fronteiras e transgressões na fotografia contemporânea A fotografia contemporânea tem passado por diversas transformações que afetaram práticas até então consolidadas da imagem fotográfica, como a fotografia documental, a publicitária, a doméstica e as manifestações artísticas. Tais transformações são sugeridas principalmente pelas amplas possibilidades de manipulação e distribuição de imagens possibilitadas pela tecnologia digital, mas não se esgotam nisso. Embora o status de verdade da imagem fotográfica tenha sido afetado, ela consolidou-se em meio a uma tormenta de possibilidades expressivas que liberaram a fotografia de um vínculo rígido com o referente sem, no entanto, abrir mão do uso da imagem como meio de reflexão sobre a contemporaneidade. Esse livro apresentará rumos da pesquisa da imagem fotográfica que apontam para tais transformações. Nos últimos anos, a fotografia conquistou uma autonomia inimaginável em termos de linguagem e expressão. Ela estendeu-se em novas direções, teceu relações renovadas com as artes e com outros campos culturais, redefinindo radicalmente nossa maneira de entender e de lidar com o meio. Ao que parece, uma nova linguagem fotográfica está emergindo, um novo projeto estético e semiótico vem sendo colocado em prática nas obras de artistas e fotógrafos contemporâneos. Hoje está claro que o dispositivo fotográfico é muito mais do que um instrumento cuja tarefa principal seria restituir e/ou conservar as formas de um mundo preexistente. Pois, nos seus mais distintos gêneros e formatos, a fotografia se apresenta como um enigma, uma trama complexa e instável, um território de invenção aberto aos domínios da ficção e do imaginário, às mais diversas formas de intervenção. O colóquio na Universidade de Brasília, que reuniu os au-
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tores dessa coletânea, propôs-se a pensar o que está em jogo nesse processo de transformação estética. Quais seriam os novos rumos, os desvios e as fronteiras da fotografia contemporânea? Se existe, de fato, uma nova ordem visual, um novo regime de visualidade em andamento, o que o caracterizaria? Que novos agenciamentos, novos processos de subjetivação são produzidos atualmente? Nossa hipótese é de que essas mudanças não têm um caráter formal apenas, mas trazem implicações múltiplas, ao mesmo tempo, estéticas, éticas e políticas. Dito de outro modo, elas refletem a emergência de outras formas de percepção, de novas sensibilidades, novos modos de ser e de estarno-mundo. De fato, mais do que um estilo ou um modo de formar é uma nova maneira de se relacionar com as imagens e com o mundo que está em questão aqui. É nesse sentido, por exemplo, que André Rouillé discute as transformações por que passa a fotografia na transição do analógico para o digital. O autor discute como os pilares do que ele denomina como fotografia-documento foram abalados e exemplifica com a análise de duas exposições onde debate sobre a dimensão política da fotografia e a função pública das instituições promotoras da arte e da cultura. As metamorfoses afetam não apenas as técnicas e ferramentas fotográficas, mas os “modos de produção, os usos, economias”, um processo amplo que coloca em jogo novos “olhares, estéticas e regimes de verdade”. Regimes que, como nos mostra Fatorelli – em uma cuidadosa análise das obras San Marco Flow, de David Hokeby e Tu, do crítico e artista francês Thierry Kuntzel – se reconfiguram na cultura digital, suspendendo as definições tradicionalmente aceitas sobre meios (fotografia, cinema, vídeo), borrando seus limites e renovando os desafios tanto para o criador quanto para o crítico das imagens técnicas. De fato, vivemos um momento de reconfiguração de fronteiras, práticas e saberes. Um período de rara complexidade, marcado pela supressão das especificidades, por contrabandos, passagens e atravessamentos entre os campos da fotografia e da arte. Nesse contexto, Maria Ivone dos Santos destaca os diferentes usos da fotografia e a reencenação do seu sentido na interação com o espaço expositivo. Estudando
Fotografia Contemporânea - Fronteiras e Transgressões
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as obras de Denise Helfenstein, Ana Tomimori e Hélio Fervenza, Maria Ivone revela que a significação da fotografia não se esgota apenas nas escolhas feitas no momento da captura, pois, cada vez mais, a forma de apresentação, ou seja, a disposição e a montagem das fotos no espaço expositivo, a interação com outros elementos expostos (mesmo que seja simplesmente o espaço vazio entre as fotos) dão outra significação e amplitude ao gesto fotográfico. Na mesma linha, Osmar Gonçalves ressalta a importância de se pensar a fotografia hoje “como um acontecimento, uma relação, um evento que envolve não apenas o momento do clique — o instante “mágico” em que o obturador pisca, deixando a luz entrar na câmera e sensibilizar o dispositivo — mas todo um antes e um depois, um processo amplo e abrangente que excede, como veremos, a própria imagem, o objeto-foto”. Fotografia, portanto, não como uma “máquina ou um relógio de ver” — conforme a célebre expressão de Roland Barthes — mas como um dispositivo relacional, um instrumento capaz de nos abrir ao Outro, ao imponderável de todo encontro, de toda alteridade. Analisando as obras de Rosângela Rennó, Alejandro Chaskielberg e Delphine Balley, Susana Dobal comenta como a ficção tem se infiltrado no domínio da fotografia documental, como boa parte dos fotógrafos tem optado hoje por trabalhar na borda da realidade, criando roteiros fictícios com pessoas e situações reais. De fato, a intervenção e construção fotográficas, práticas que antes eram condenadas, passam agora a ser consideradas parte integrante do processo de produção das imagens. Como dizia Nietzsche, “o mundo verdadeiro, finalmente, torna-se fábula”, o documento elimina-se na ficção, potencializando a invenção de outras realidades. Trata-se, segundo Dobal, de “consolidar uma flutuação do real na fotografia contemporânea”, de afirmar a potência de fabulação e invenção da fotografia. Milton Guran expõe o conceito de “fotografia eficiente” que será aplicado a um projeto de documentação do nordeste atualmente em realização pelo Museu do Homem do Nordeste, em Recife. O projeto envolve a participação de diversos fotógrafos e pretende mapear as transformações sócio-eco-
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nômicas e culturais na região. A iniciativa conta com apoio institucional e será contextualizada também por textos a serem produzidos por fotógrafos e pesquisadores. O projeto brasileiro tem as suas particularidades, mas lembra o famoso FSA (Farm Security Administration) (1935), referência na história da fotografia norte-americana, e a Missão Fotográfica da DATAR, na França, em 1983 — iniciativas de instituições públicas com o objetivo de desvendar um fenômeno sócio-econômico regional pelo olhar de diversos fotógrafos. Tratando das relações entre fotografia e turismo, Lívia Aquino discute a idéia do acúmulo repetitivo das imagens, da transformação da experiência da viagem num registro obsessivo de clichês — uma estratégia para acumular fotos. Nesse contexto, onde, como já disse certa vez Susan Sontag, “ter uma experiência se torna idêntico a tirar dela uma foto”, Aquino analisa uma série de trabalhos que questionam essas relações de forma irônica e parodística. “Pare, tire uma foto e vá em frente”, provoca Martin Parr em trabalhos de cunho visivelmente sarcástico como The Last Resort e Small World. Já nas obras de Penelope Umbrico e Joachim Schmid, a apropriação e a ressignificação de imagens amadoras ampliam uma abordagem acerca da posse, da exaustão dos clichês, da pose e do uso do arquivo. Duda Bentes levanta questões sobre o ensino da fotografia, no momento em que o aparato digital alcança um patamar de estabilidade, tornando-se objeto de consumo de massa e sua tecnologia impõe um novo horizonte, ao mesmo tempo estético, ético e político, obrigando-nos a repensar continuamente o ensino e o significado do fotográfico. Bentes traça então um panorama da situação das escolas de fotografia no Brasil e das questões implícitas ao ensino do assunto, de forma a superarmos as abordagens meramente técnicas. Centrada numa discussão sobre o tempo, Cláudia Linhares Sanz revela o caráter simultaneamente evasivo e constante da fotografia. Ela nos mostra que, a despeito dos mais acurados prognósticos sobre o declínio histórico da fotografia, sobre seu desuso prático, a suposta diminuição de sua eficácia e poder na era das tecnologias do digital: a fotografia persiste! Disseminada, dissimulada, transmutada, a fotografia tornou-
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se o fóssil da convivência de dois regimes concomitantes, a síntese do velho e do novo, da ruína, o vestígio e a origem, um inventário sobre a concomitância e a alteridade do passado e do futuro, do moderno e do contemporâneo. Fotógrafo e artista plástico, Alexandre Sequeira narra a maneira como usou a fotografia para captar a vivência de uma criança frente a seu vilarejo, menos interessado no registro do local do que no diálogo que o garoto estabelece com o lugar por meio de suas memórias, fábulas e elaborações fictícias. Nesse contexto, a fotografia surge primeiramente como um elo ou um comutador: instrumento disparador de encontros, permitindo a aproximação e o desvendamento do Outro. Na relação de Sequeira com Rafael, uma teia de afetos se cria e a memória se reinventa através de estratégias poéticas que transgridem a dicotomia realidade/ficção. De fato, a memória fotográfica constitui-se aqui não como um testemunho de aparências mas uma história de afinidades: afinidade recíproca entre o autor e o garoto, afinidade com o espaço da vila, afinidade por fim com a imagem no seu potencial de evocar relações de afeto para além do mero registro das aparências. Marcelo Feijó traz, por sua vez, uma reflexão sobre o livro Lisboa Cidade Triste e Alegre, de Victor Palla e Costa Martins publicado inicialmente em 1959. Através de uma análise criteriosa, Feijó demonstra como o livro realizado a quatro mãos já vislumbrava ainda no período do pós-guerra novas fronteiras para a fotografia, anunciando uma estética híbrida e fascinante que se deixa contaminar pela linguagem do cinema, das artes gráficas e até mesmo pela publicidade. O livro é marcado por experimentações e transgressões na sintaxe fotográfica, como desfoques, enquadramentos insólitos, cortes abruptos, e revela uma Lisboa múltipla e fragmentada. As fotos enfatizam a escolha subjetiva pelo fragmento, as transformações arquitetônicas, a presença humana, com atenção especial para as mulheres e crianças. Nesse cenário de intensa experimentação, de contaminação das técnicas e dos suportes, de eliminação das fronteiras entre as formas de expressão, produção e circulação das imagens, a fotografia parece tornar-se mais complexa e reflexiva, conquistando uma autonomia criativa antes inimaginável. De
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acordo com François Soulages, a fotografia hoje: Não fornece uma resposta, mas coloca e impõe esse enigma dos enigmas que faz com que o receptor passe de um desejo de real a uma abertura para o imaginário, de um sentido a uma interrogação sobre o sentido, de uma certeza a uma preocupação, de uma solução a um problema.1
Nosso interesse aqui, no entanto, não é propor uma solução ao problema, tornar claro e transparente, o que é, em essência, nebuloso, múltiplo, fragmentado. O presente livro procura apenas traçar algumas perspectivas, propor relações entre os diversos desvios e achados da fotografia contemporânea. Estamos cientes de que essa coletânea não esgota as inúmeras possibilidades de leitura sobre o fenômeno, mesmo porque a fotografia contemporânea se transforma a cada dia, trazendo novas questões, novos atores e exigindo a reformulação contínua dos conceitos estéticos. Nosso desejo é tão-somente expor um momento de reflexão sobre esse fenômeno que em seu movimento de constante fluxo e devir tem balançado as velhas certezas da ontologia fotográfica. Os autores reunidos nesse livro são pesquisadores que se expressam pela palavra e alguns também pela imagem. Tivemos a preocupação de, além do convidado internacional, reunir na Universidade de Brasília pesquisadores que não só trouxessem perspectivas diferentes para o debate como também viessem das cinco regiões do Brasil com o intuito de promover o diálogo entre experiências diversas e trazer à cena acadêmica um pouco da utopia brasiliense de integração nacional.
Susana Dobal Osmar Gonçalves
Julho de 2013
SOULAGES, François. Estética da fotografia: perda e permanência. São Paulo: Senac, 2010. p.346. 1
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Agradecimentos A Wagner Rizzo, Gustavo Castro, Gabriel Luiz, Hermano Araújo, Karla Beatriz de Oliveira, Beatriz Maya, Henrique Lúcio, Rose May, Suzana Guedes, Tânia Montoro, Florence Dravet, Verônica Brandão – por acreditarem nesse projeto, pelo tempo e generosa dedicação; à Universidade de Brasília, Capes/Ministério da Educação, Embaixada da França, Finatec, Universidade Federal do Ceará, f508, pela contribuição para que o colóquio e essa publicação pudessem ocorrer. Agradecemos ainda aos palestrantes que compartilharam conosco o entusiasmo pela fotografia, além dos que gentilmente cederam suas imagens para os artigos, divulgação e capas ( incluindo os fotógrafos palestrantes que cederam fotos) : Maleonn, Fred Merz, Delphine Balley, Penelope Umbrico, Corinne Vionnet, Marcelo Pedroso, Hélio Fervenza, Ana Paula Tomimori, Denise Helfenstein.
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Estratégias Fotográficas
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A Fotografia na Tormenta das Imagens André Rouillé André Rouillé é professor na Université ��������������������������������� Paris-8 e autor de diversos livros sobre a fotografia, entre eles A fotografia entre documento e arte contemporânea (Senac, 2009) foi traduzido no Brasil. É o diretor fundador do site www.paris-art.com, dedicado à cultura contemporânea ( arte, foto, design, dança e livros ) e para o qual escreveu mais de 400 editoriais sobre arte contemporânea e fotografia. Foi redator-chefe da revista La Recherche Photographique e participou de colóquios e conferências em Paris, Bordeaux, Lyon, Aix-en-Provence, Bayonne, Liège, New York, Amsterdan, Lisboa, Vevey, Milão, Salzbourg, Mannheim, Derby, Atenas, Florença, Barcelona, Caracas, Santiago-do-Chile, São Paulo, Helsinki, Sofia, Jerusalém, Praga, Bratislava, Genebra, Montreal, Shenzhen (China), Hong Kong, Seoul, Rio de Janeiro, Tunis, Lima, Kiev, Lima, Moscou, Belgrado, Bucareste, Sofia, Brasília, Shanghai, Cracóvia, Varsóvia, Tanger etc.
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A profusão e aceleração das imagens não cessa de crescer e os novos dispositivos, de se multiplicarem, enquanto outros, como a televisão, vêem o seu poder ser corroído. Essas mudanças afetam ao mesmo tempo ferramentas, materiais, modos de produção, usos, economias, mas também olhares, estéticas e regimes de verdade. Como resultado, há uma impressão confusa de imensa desordem e de “criação contínua de novidade imprevisível” (Bergson, Le possible et le réel).
1. O abalo do dispositivo Um eco das perturbações do mundo, essa tormenta, que faz estremecer o universo das imagens, não poupa nada, nem mesmo a fotografia cujo privilégio no século XIX terá sido o de aparecer e prosperar com a sociedade industrial e a economia de mercado e de transpor para o domínio das imagens os valores e mecanismos deles. A fotografia analógica terá sido, portanto, a imagem da sociedade industrial, um dos seus dispositivos privilegiados de expressão e de representação. Enquanto outros dispositivos de imagens, tais como o cinema e depois a televisão, juntaram-se à fotografia para assegurar outras funções figurativas sem competir com ela, a fotografia analógica está hoje frontalmente ameaçada no seu próprio terreno. O dispositivo digital toma o lugar do dispositivo analógico cuja natureza industrial impede a sua eficiência para responder convenientemente às exigências e necessidades da sociedade globalizada da informação e das redes. Essa substituição, tão fulgurante quanto a extensão planetária das redes de comunicação, faz da fotografia digital o dispositivo de produção de imagens fixas equivalente à nova sociedade e a serviço dela. Em congruência, portanto, com ela. Enquanto dispositivo de produção mecanizada de imagens fixas descontínuas que registram marcas luminosas, a fotografia teve que mudar devido à passagem atual da sociedade industrial rumo a uma sociedade de redes digitais. Na virada para o século XXI, portanto há pouco mais de uma década, o dispositivo baseado na combinação química da luz e dos sais de prata foi substituído por um novo dispositivo de registro digital das marcas luminosas. Por meio dessa muta-
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ção, a fotografia entrou em um devir-outro, o de uma outra fotografia dentro da fotografia. Por essa razão ela mudou de natureza. Apesar da amplitude dessa fratura, o dispositivo fotográfico de produção mecanizada de imagens fixas não chegou ao fim. Não assistimos a uma estagnação ou desaparecimento da fotografia, mas a um processo de substituição do analógico pelo digital como resposta às crescentes necessidades atuais. O digital procede, assim, a uma produção do novo na fotografia, a sua abertura para um devir-outro que é também uma adaptação aos regimes de produção, de circulação, de visibilidade, de saber-poder, bem como aos processos de subjetivação que estão se generalizando no mundo a partir dos países desenvolvidos, em conformidade com interesses e valores deles. Entre seu passado recente e seu futuro próximo, a atualidade da fotografia reside, portanto, na sua oscilação de um regime químico industrial a um regime digital informacional, na sua passagem do universo de papel ao das telas e redes, no seu deslocamento do registro da expressão-representação ao da informação-comunicação. Não se trata de uma simples atualização, nem de uma adaptação suplementar, trata-se, ao contrário, de retirar o que se tornou hoje o resíduo histórico da fotografia, seu peso e arcaísmo, para protegê-la do mundo atual. Trata-se de uma nova versão, diferente em todos os pontos, das imagens fixas mecanizadas — versão de que o mundo precisa. A produção, as propriedades e os usos da fotografia digital são novos e atuais, em uma diferença radical — quanto à natureza e não ao grau — em relação à fotografia analógica. Fotografar com o digital não consiste apenas em trabalhar mais rápido e mais facilmente do que com o analógico, mas de maneira essencialmente diferente e nova. De fato, o regime de visibilidade do dispositivo digital é totalmente estrangeiro ao do dispositivo analógico. São duas máquinas óticas radicalmente diferentes. Não fotografamos da mesma forma com um ou outro. Não vemos nem registramos as mesmas coisas com o olho colado no visor de um aparelho mecânico munido de algumas bobinas de 36 poses e com um
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aparelho digital — ou mesmo um celular — inteiramente programável, desprovido de visor, equipado com um cartão de memória com capacidade para armazenar mil fotos, e com o qual podemos acessar imediatamente as imagens registradas. O automatismo, a quantidade, a imediata acessibilidade e a difusão instantânea de imagens bem como a substituição da perspectiva histórica e cultural dos visores pela superfície da tela do aparelho, tudo isso já é o suficiente para definir um novo regime de visibilidade que faz ver de outra maneira e outras coisas, que distribui uma outra luz sobre o mundo. Os praticantes e os usuários da fotografia digital estão, de fato, sempre engajados na experiência, por mais espontânea que seja, de uma relação digital com o mundo. Os protocolos digitais de produção de imagens rompem a sucessão ordenada de etapas, de lugares, de estados de imagens próprios da fotografia analógica: revelação-cópia, invisibilidade-visibilidade das imagens, exterior-laboratório, escuro-luz no laboratório etc. As redes pelas quais as imagens digitais podem ser instantaneamente difundidas acabam radicalmente com a difusão muito lenta, pesada e vertical da produção de imagens por meio da impressão. Em especial, enquanto a fotografia analógica está associada a valores e discursos sobre a estagnação do tempo, a fixação das formas, a transparência (Barthes: “Na imagem, vejo apenas a coisa”), a aderência às coisas (Barthes: “O referente adere”), a imobilidade dos arquivos mas também a verdade, a memória, a prova, a fotografia digital, por seu lado, é, ao contrário, associada a um regime totalmente diferente de enunciados nos quais dominam as noções de velocidade, mobilidade, simultaneidade, de flexibilidade, de perda da origem, de mixagem, de falsidade etc. Em suma, essas duas versões da fotografia distinguem-se no fato de que uma é moderna e a outra pós-moderna. Uma está presa à crença na essência documental da fotografia enquanto a outra assume o seu caráter inevitavelmente fictício. Entre ver e dizer, uma e outra não suportam as mesmas formas de saber. De um lado, um saber que constata, baseado em imagens supostamente documentais por natureza, adere às coisas e transmite sem distorção as formas e o espírito delas;
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de outro lado, um saber especulativo, tecido e constituído a partir de séries dinâmicas de imagens e de dados que circulam em fluxo em redes e que têm uma relação sempre variável com as coisas a serem estimadas e gerenciadas caso a caso. Enquanto a fotografia analógica supostamente retém uma verdade por contato, o verdadeiro da fotografia digital seria apenas um suplemento alegórico, uma espuma produzida pela agitação do falso. A tormenta atual das imagens se manifesta de maneira particularmente intensa no domínio da reportagem que foi por muito tempo, na fotografia, o paradigma da verdade e do poder do documental. Assiste-se, agora, a um rápido colapso do regime de verdade moderno sobre o qual se baseou a época da reportagem e da imprensa ilustrada do século XX.
2. A reportagem entre duas éticas O caso provocou alvoroço no planeta “foto de imprensa”: Paolo Pellegrin, membro da agência Magnum, laureado com o célebre World Press Photo, teria tomado liberdade com a ética da reportagem. Algumas das suas fotos teriam sido fruto de pequenos rearranjos da realidade: uma infâmia que viola as regras fundadoras da confiança atribuída às imagens e abre, assim, no edifício da reportagem, uma funesta brecha de suspeita. Em 2012, Paolo Pellegrin foi com outros fotógrafos da agência Magnum fazer reportagens na cidade de Rochester, sede da emblemática empresa fotográfica Kodak, hoje vítima não menos emblemática das mudanças do mundo. Diferente dos seus colegas, Paolo Pellegrin orientou seu olhar para a face mais sombria da cidade: o crime, a violência, e sobretudo o culto das armas. Foi assim que ele pediu para ser conduzido em um bairro reputadamente sensível e que foi apresentado a um veterano do exército possuidor de armas. Porém, depois de uma sessão de retratos no apartamento do veterano, Paolo Pellegrin pediu a ele que posasse em frente a sua garagem convidando-o a segurar um fuzil de caça. Foi essa a fotografia impressa com a seguinte legenda: “Um exatirador da marinha com sua arma”.
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O assunto estourou sob a forma de uma volta brutal do real quando o dito “ex-atirador”, ator-modelo de circunstância, descobriu a fotografia impressa pelo World Press Photo, constatando que o real havia sido duplamente alterado: pela legenda, pois o homem afirma não ter jamais pertencido à marinha, e pela encenação improvisada onde seu ar ameaçador, a arma e a atmosfera sombria sugerem, equivocadamente e de maneira inoportuna, que os habitantes do bairro são obrigados a garantir a própria segurança com armas na mão. O caso é grave porque toca nos fundamentos da ética da reportagem fotográfica, cujo desenvolvimento desde seu início, no entreguerras, repousa na muito moderna transparência, com a objetividade como método e a verdade como ideal. Enquanto que, durante toda a época moderna, a prática da reportagem consistiu em alimentar a ficção da objetividade e da verdade das imagens até o mito da sua consubstancialidade com o real, os pequenos arranjos da realidade por Paolo Pellegrin vinham, ao contrário, afirmar que, nessas imagensdo-mundo que são as fotografias, o choque da imagem prevalece agora sobre a realidade do mundo. Diferente de Henri Cartier-Bresson, que encarnou a época moderna da agência Magnum ao longo da segunda metade do século XX, Paolo Pellegrin, ou Antoine d’Agata de outra maneira, exprimem, nesse início de século, uma direção abertamente pós-moderna. De uma a outra época, as concepções e práticas da reportagem mudaram com o mundo: distâncias, velocidades e relações com o real, regimes de verdade e, evidentemente, estéticas não são mais as mesmas. Para Cartier-Bresson, tratava-se de construir uma ficção com um alto grau de objetividade e verdade das imagens apagando sua individualidade corporal e subjetiva, mantendo-se à distância das cenas, refugiado atrás da sua Leica, com o olho colado no visor. Nessa versão, a fotografia era o vetor de um tipo de olhar claro, quer dizer, um olho para ver, um espírito racional para analisar as situações e distinguir nelas o “instante decisivo” da mais alta expressividade, e, claro, detentor de uma cultura e de um savoir-faire rigorosos, necessários para traduzir em formas fotográficas este “instante decisivo” dos acontecimentos.
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Quanto às imagens, elas deveriam ser claras e precisas, rigorosamente construídas, mas sobretudo suscitar a impressão de colar no real, sem mediação nem distorção. Pois a especificidade da fotografia de ser impressão mecânicoquímica das coisas, portanto de aparecer no contato direto com o real, raramente foi tão forte para por si só reforçar o mito de uma coincidência das imagens e das coisas. Para isso, foi preciso armar a ética da reportagem moderna com uma série de prescrições estéticas proibindo rigorosamente a menor ação direta seja sobre o real, incluindo a encenação, seja sobre as próprias imagens, banindo os reenquadramentos e, claro, os retoques. Tal era o edifício do documento moderno que prevaleceu enquanto a fotografia foi investida da missão de produzir e transmitir documentos supostamente verdadeiros sobre o mundo. Mas o mundo e os regimes de verdade de hoje não são mais os mesmos da época moderna. A prática, a ética e a estética das imagens-documento também mudaram com o mundo. As fotografias de Henri Cartier-Bresson não são nem mais verdadeiras nem mais falsas do que as dos novos fotógrafos da agência, já que a veracidade não é imanente às imagens fotográficas, mas tributária do regime de verdade no qual elas se inscrevem. Também as fotos de Henri Cartier-Bresson são mais verdadeiras no regime de verdade moderno de ontem do que no de hoje. O que ontem era probido para a fotografia-documento, em particular a fotografia de imprensa e de guerra, hoje tornou-se prática corrente entre fotógrafos de agência tais como Paolo Pellegrin ou Antoine d’Agata. O fluido e a sombra quase sistemáticos, que eliminam quase até a indistinção os valores descritivos e denotativos permitidos pelo procedimento fotográfico; a implicação do corpo e o declínio da geometria, que rompem com a racionalidade, o papel do olho e o olhar centrado do humanismo fotográfico; e, claro, os arranjos extra-fotográficos operados sobre o real pelas encenações e sobre as imagens por diversos tipos de retoques, reenquadramentos ou organizações da fotografia. Todos esses elementos e ainda outros apontam para uma versão não moderna das práticas fotográficas documentais com outros regimes de verdade, para um mundo outro.
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Por essa ruptura na ordem da estética, da verdade e da ética que, no limiar do século XXI, afetam conjuntamente suas práticas e suas imagens, a fotografia de imprensa, onde a realidade é arranjada, inscreve-se lado a lado com o futebol, onde as partidas são manipuladas e com o ciclismo, onde reina o doping etc. A encenação e o retoque são assim para a fotografia de imprensa o que o uso de substâncias ilícitas e as partidas manipuladas são para o esporte, um abalo profundo das regras éticas e dos mecanismos de crença em algumas das principais atividades da sociedade. Signos de uma nova era. Mas essa nova era não se limita a um relaxamento mais ou menos superficial das práticas e das regras em vigor na época precedente, nem mesmo a uma renovação tecnológica. Assistimos a uma inversão radical do funcionamento das práticas documentais que, durante a época moderna, era a razão social da fotografia analógica. Essa deriva dos documentos pode ser abordada a partir da distinção entre “monumento” e “documento” que Michel Foucault utiliza para a prática histórica.
3. A deriva dos documentos Um tipo de esgotamento afeta hoje os dispositivos documentais, principalmente a fotografia de imprensa confrontada com as exigências crescentes da sociedade hipermoderna. Mas a crise ultrapassa largamente a fotografia pois são o mito da objetividade e da transparência do documento, e a fábula da sua verdade que estão afundando. Mais ainda, o protocolo documental está ele mesmo invertendo-se nas imagens depois de, na história, ter passado por profundas mutações. Enquanto a história tradicional ocupava-se em memorizar documentos do passado transformando-os em documentos, hoje, segundo Michel Foucault, a história seria inversamente “o que transforma os documentos em monumentos” (A Arqueologia do Saber). Tratando-se de imagens, as práticas tradicionais, em particular fotográficas, teriam consistido em transformar monumentos em documentos quando as imagens atuais, principal-
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mente digitais, seguiriam processos que vão, ao contrário, do documento ao monumento? As imagens oscilariam portanto entre uma lógica monumental – de perenidade, unicidade, localização, originalidade –, e uma dinâmica documental, quase em cada termo oposta – os documentos sendo mais precários, múltiplos, móveis, reproduzíveis. Diferente do documento, o monumento está ancorado em um lugar, elevado a uma verticalidade. O monumento é da ordem do simbólico e o documento, mais do analógico. Os dois inscrevem-se em uma economia geral da memória: uma de pedra, a outra do fluxo. Essa inversão que se anuncia radical opera apenas com outros dispositivos, outras ferramentas e outras posturas documentais que não as da fotografia, isto é, com recursos das redes e das ferramentas digitais. Essa inversão do paradigma documental atualmente em curso é a razão essencial da crise da fotografia-documento. Na época da hegemonia da fotografia-documento, no século XIX, com as grandes expedições, e no século XX, com o imenso desenvolvimento do fotojornalismo, a fotografia tinha como missão percorrer o planeta para converter em imagens fotográficas as zonas mais vastas e os acontecimentos sempre mais numerosos, variados, mesmo perigosos. Deveria empurrar simbolicamente os olhares até os confins do mundo geográfico, social e político e de fazer disso um inventário tão exaustivo quanto possível. Durante cerca de dois séculos, na época gloriosa do “ter estado lá”, as fotografias constituíram, imagem por imagem, uma imensa massa documental que dia após dia sedimentouse em arquivos, que foi em parte difundida por meio da imprensa e que permitiu a cada indivíduo adquirir uma certa visão sobre o estado e o correr do mundo – sem que essas imagens pudessem encarnar qualquer verdade que fosse. Somente uma mistura de conhecimento e ideologia. Pelos jogos estéticos de enquadramentos, de pontos de vista e de distâncias, a fotografia serviu para selecionar, individualizar, distinguir e valorizar, em suma, transformar em monumentos as miríades de coisas e de estados de coisas do mundo – das mais nobres às mais modestas, das maiores às menores, das mais altas às mais baixas. Tantos monumentos
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fotográficos edificados no espaço de um “ter-estado-lá: e no ápice de um “momento decisivo”. Mas, todos os fatos e coisas que a fotografia assim elevou esteticamente, isolou e monumentalizou, ela, pela ação do registro, também inseriu na ordem do documento. O enquadramento e a forma das fotografias colocados do lado do monumento, enquanto o registro, do lado do documento. Ao longo dessa aventura, a sociedade industrial dotou-se de outros dispositivos de imagens-documentos: o cinema e o rádio, que não competiram muito com a missão documental da fotografia; mas sobretudo a televisão, que, desde os anos 1970, tomou-lhe parte importante das suas prerrogativas. Hoje, a explosão vertiginosa das redes digitais e o desenvolvimento da sociedade hipermoderna provocam uma ruptura nos dispositivos de imagens, de informação, de comunicação, de figuração — e nos processos documentais. Não se trata mais, como no tempo da heróica conquista fotográfica do mundo, de elevar cada coisa e cada fato ao patamar de monumento fotográfico provisório antes de constituí-lo em documento. Trata-se de, ao contrário, afrontar os fluxos massivos, moventes e crescentes de documentos, frequentemente anônimos (sem autores nem origem definidos), produzidos e difundidos por amadores (fora das tradições técnicas e estéticas), e cada vez mais gerados por dispositivos automáticos (inclusive de vigilância), ou por aparelhos desprovidos de sistemas de visor (sem controle de enquadramento e de composição de imagens). Nesse mundo submerso pelo excesso visual que ultrapassa muito a dita “civilização da imagem”, partir de fatos, coisas, eventos e erigi-los em monumentos tornou-se impossível. É assim que se impõe a via contrária que tenta “isolar, agrupar, tornar pertinente, colocar em relação, constituir em conjuntos”, quer dizer, “dar status e elaboração a essa massa documental” (Michel Foucault). Partir portanto de documentos, e transformar esses “documentos em monumentos”: uma abordagem arqueológica dos documentos da sociedade hipermoderna, muito longe da fotografia.
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A amplitude da tormenta das imagens é tal que ela afeta a fotografia de todos os lados e em todos os seus aspectos. No que diz respeito à tecnologia, claro, mas também no espaçotempo, nas práticas, principalmente documentais, nos regimes de verdade, mas também na recepção das imagens. Quanto a isso, os altos redutos da cultura francesa não são poupados da deflagração, de um grave bloqueio do pensamento.
4. Cem obras-primas sem conceito O título da exposição “A fotografia em 100 obras-primas” que a Biblioteca Nacional da França apresentou (até fevereiro de 2013) é bastante arriscado de tanto que faz eco ao gosto da época por hit parades, os 10, 50, 100 Melhores e outros palmares. Nada mais escapa a essa compulsão de quantificar o valor, de circunscrever o incomensurável pelos critérios supostamente incontestáveis mas sempre tão obscuros quanto arbitrários. A edição para o grande público está repleta de livros recordes, de antologias de obras-primas de todo gênero enquanto a imprensa multiplica a lista das 100 grandes fortunas, dos mais altos leilões na arte contemporânea, dos melhores hospitais franceses ou universidades do mundo etc. Quanto aos sites de comércio eletrônica, eles mostram todas as classificações reais ou fictícias das suas melhores vendas. Compreende-se bem as finalidades comerciais e prescritivas de tais práticas em uma sociedade toda ela inclinada para a performance, a competição, a concorrência e a rentabilidade. Mas esse tipo de abordagem é tão delicado de manipular e tão difícil de sustentar diante de obras de arte, que havia curiosidade de saber em que tinham se amparado os dois curadores da exposição “A fotografia em 100 obras-primas” (uma é diretora do Departamento de Gravuras e da Fotografia, o outro, “colecionador e expert [...] respaldado pelo mundo da fotografia”). Na verdade, da pior maneira. De fato, apesar das armadilhas da empreitada, os curadores afirmam claramente, em um prêambulo para o catálogo, a escolha deles de permanecerem longe dos “recorrentes questionamentos teóricos sobre a definição de ‘obra de arte’, o propósito deliberado de “fazer uma pausa nos argumentos um
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pouco vãos das últimas décadas” e, em termos nada amenos, a convicção de poder, nesse assunto, “dispensar as esperadas ladainhas e notas”. Em vez de alimentar ou de enriquecer a reflexão sobre a importante noção de “obra de arte” (mais do que sobre a sua definição!) a partir e a serviço da exposição a ser concebida, os curadores empenham-se curiosamente em clamar a vacuidade do pensamento. E isso, não menos curiosamente, no seio de uma das grandes e prestigiosas instituições culturais francesas. Difícil não pensar no artigo recente de Edgar Morin convocando a “se desconfiar da douta ignorância dos experts” (Le Monde, 1º de janeiro de 2013). Pois desse desprezo contrário aos “questionamentos teóricos”, dessa pretensão de poder dispensar o pensamento, desse princípio proclamado de operar uma “pausa” do pensamento no limiar da ação, de tudo isso a exposição carrega o estigma. “Perceber, escolher, eleger, extrair cem imagens” de um conjunto de cinco ou seis milhões de fotografias que contém o acervo da Biblioteca Nacional da França é, evidentemente, uma tarefa impossível se ela não se apoiar em um mínimo de método. Ainda mais que o programa é bastante ambicioso pois trata-se de, nos estritos limites de 100 imagens, esboçar um perfil da “fotografia”. Apresentar “a fotografia em 100 obras-primas” é de fato uma missão incomparavelmente mais complexa do que o projeto mais modesto de propor “100 obras-primas da fotografia”. Agravadas pela indeterminação da noção de “obra-prima” e pela recusa determinada de interrogá-la, as dificuldades tiveram como resultado desarmar o olhar dos curadores e de fazer o projeto tender para o que se revela finalmente ser apenas uma sequência heterogênea de vistas justapostas sem rima nem razão. Dois princípios ditos “indiscutíveis”, “simples mas radicais”, ainda que em verdade bastante vagos, foram enunciados: “as noções de exemplaridade no corpus dos autores retidos e a marca da coisa fotográfica reivindicada”. O que permitiria: 1º excluir o pictorialismo “submetido de maneira servil demais às convenções picturais”; 2º de “recusar todos os academismos”; 3º de “marcar uma predileção por toda cópia
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impecável” (o famoso vintage). Porém, concretamente, um programa tão vago logo transformou-se em um único princípio que na verdade não chega a sê-lo: a total subjetividade dos curadores frente à “evidência de imagens que [os] assustam um e outro, que se impõem em obras de arte e cuja primeira e sem dúvida única razão de existir é de nos ajudar a viver”. Enfim, seja pelo cuidado de amenizar o arbitrário subjetivo, seja pela adesão ao mito da obra de arte desconhecida, a seleção “reserva um lugar não negligenciável aos esquecidos da história oficial, pequenos mestres”, amadores, cientistas e outros “autores pouco ou não conhecidos, mesmo de um público informado”. Em suma, essa exposição “A fotografia em 100 obras-primas” sucumbe a uma concepção estereotipada — essencialista — de obra-prima. Ou, uma obra não é uma obra-prima por essência. Ela deve, para tornar-se obra-prima, ser designada, nomeada e olhada como tal por uma série de olhares (e não apenas por um ou dois): subjetivos, do observador qualquer; informados, dos especialistas; estéticos e museológicos, das instituições artísticas; científicos, dos praticantes das disciplinas constituídas tais como a história da arte; ou também dos críticos, colecionadores, turistas etc. Não existe, portanto, obra-prima sem processo, especialmente discursivo, da sua produção. As qualidades estéticas próprias de uma obra constituem apenas a metade de uma obra-prima, a outra metade reside na força estética suplementar de que dispõe a obra para magnetizar os olhares, na capacidade de mobilizar essas potentes máquinas para clarear (com uma luz física e simbólica) que são os museus e exposições, os catálogos e os livros, as feiras e as vendas, os colóquios, as polêmicas e escândalos, os sites na internet etc. Uma obra-prima não é portanto nunca apenas para mim sem ser igualmente para os outros. Sua produção é sempre eminentemente coletiva e social, jamais simplesmente individual ou secreta. A obra-prima aparece assim como uma obra brilhante com mil luzes no firmamento da cultura. Uma obra que a máquina cultural clareia e que em troca ilumina a cultura. Criada
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na arte, uma obra só se torna obra-prima na cultura, passando do domínio de exceção que é a arte para o da regra, que é a cultura (Jean-Luc Godard). Apresentar “A fotografia em 100 obras-primas” não era em si nem uma aberração nem uma impossibilidade. O projeto poderia mesmo ser fecundo, com a condição de ter sido feito de outra forma combinando o método a uma análise aguda da noção de obra-prima. De fato, a justaposição de cem fotografias independentes umas das outras convém perfeitamente à singularidade própria da obra-prima, a sua radical solidão, ao itinerário sempre único da sua consagração. Mas era preciso não se enganar ao lado de obras “quase nunca mostradas de profissionais de renome, ou do lado de “pequenos mestres esquecidos”, pois, por si mesma, a qualidade das obras deles não constitui obras-primas. Mas era preciso igualmente não cair na deriva subjetivista que dobra os fenômenos sociais e coletivos a abordagens individuais, privadas, mesmo íntimas. A obra-prima paradigmática que se tornou a Mona Lisa poderia servir de exemplo, ela que os especialistas em Leonardo da Vinci não apontam como a melhor obra do artista, ela que por muito tempo foi marginalizada e ela que, sobretudo, deve em grande parte sua consagração a sua história rocambolesca extra-estética. Teria sido de maior interesse, e de uma imensa contribuição à compreensão concreta do processo de sacralização de certas obras fotográficas como obras-primas, se os curadores tivessem escolhido cem provas consagradas como obrasprimas e depois descrevessem cuidadosamente, caso a caso no catálogo, os itinerários e mecanismos que transformaram cada uma daquelas imagens em obras-primas. Mas em vez desse tipo de texto, que tínhamos o direito de esperar da parte da Biblioteca Nacional da França, e que teria podido constituir uma bela maneira de compreender e pensar, os textos dos catálogos frente a cada uma das imagens foram deixados à livre fantasia de “personalidades” solicitadas de domínios tão variados — e heterogêneos — como as letras, a política, o esporte, a ciência, a moda, a medicina etc. A ministra da Cultura Aurélie Filippetti comenta um retrato de
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Nadar; o botânico Henri Puig, um daguerreótipo figurando... uma palmeira; o escultor Didier Vemeiren, uma foto de...uma escultura; o cantor lírico Roberto Alagna, uma fotografia do... canteiro de obras da Ópera de Paris em 1860; um cirurgião de mãos, uma foto de...mão; o treinador de cavalos e diretor Bartabas, uma foto de...cavalo; a navegadora Isabelle Autissier, A Onda desfeita de Gustave Le Gray etc. Sem de forma alguma colocar em questão os textos e seus autores, que responderam perfeitamente a uma demanda precisa, deve-se ressaltar que esses textos não são adaptados para a missão cultural e científica da Biblioteca Nacional da França. Eles exprimem, ao contrário, sua escolha deliberada de trocar a produção de saber pelo que nossos dois comissários, que, uma vez mais à deriva, remetem alegremente a uma “vontade de abalar as abordagens congeladas, de sair da proposição historicista” etc. De fato, assistimos aqui em grande escala a devastação causada pela penetração do modelo publicitário e comercial no espaço público do saber e do (não)pensamento. Se fosse preciso ainda se convencer, bastaria notar que a primeira imagem do catálogo, Folha de vinha, de Fox Talbot, é comentada pelo diretor geral da empresa produtora de champagne que é mecenas exclusivo da exposição. E para concluir, então, os mecenas pegaram a pluma dos conservadores e curadores. Vemos os efeitos. Enfim, a tarefa, sem dúvida, mais importante do pensamento sobre a fotografia (e todas as outras imagens) é examinar com atenção como a tormenta que as atravessam se manifesta no seu próprio núcleo: a nível das formas e da produção formal de sentidos. A obra de Antoine d’Agata é eloquente a esse respeito.
5. Regime estético do sentido Desde alguns anos, Antoine d’Agata percorre o planeta guiado por um desejo imperioso de fotografar a obscenidade do mundo lá onde ela se manifesta com mais evidência e violência, da maneira mais crua. Para ele, é sobre o corpo que o
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capitalismo descontrolado dirige suas práticas mais aviltantes, e que suas devastações são as mais cruelmente perceptíveis. Corpos violentados, machucados, feridos, explorados, humilhados de prostitutas e crianças, de drogados, de delinqüentes, mas também de operários, de militares ou de imigrantes. A obra de Antoine d’Agata se constrói em diálogo intenso entre o corpo deles e o corpo dele em “zonas sem-lei que são os territórios de todos os desvios, refúgio de espécimes da humanidade ferida, [...] onde a bestialidade corrói a decência e as regras sociais”. Em Nuevo Laredo, em Gaza, Naplouse e Jenine, em San Salvador e Vilnius, em Damasco, em São Paulo, em Bangkok, em Tbilissi, em Havana e Phnom Penh, em Trípoli etc, mas também em Sangatte, em Saint-Etienne e em Marselha, e ainda em outros lugares: Antoine d’Agata foi frequentemente a esses “territórios de todos os desvios” por conta da agência Magnum fundada por Henri Cartier-Bresson, mas ele literalmente rebentou o curso e a estética da reportagem que lhe valeu seu sucesso na agência durante a segunda metade do século passado. Ao fotografar mais com o corpo do que com os olhos, ao amalgamar-se com os corpos dos homens e mulheres fotografados tecendo com eles e elas ligações de respeitosa e sempre frágil proximidade. Nos hotéis surrados das “entranhas da cidade baixa” são fotografados, e expostos em série, os corpos de mulheres castigadas pela prostituição barata, drogas, estupro, e todos os insultos e violência lá acumulados. Os corpos despidos estão em convulsão pela angústia ou pelo vício, por todo tipo de dor. Os atos sexuais, eles também extraídos fotograficamente da escuridão e apresentados em série, não lembram seres de carne e desejo, mas espectros desencarnados desprovidos de formas humanas. Os rostos são numerosos e frequentemente em grande formato, mas não são retratos destinados a mostrar individualidades, são fotos de rostos nos quais as formas fluidas, a escuridão da sombra, os gritos e ritos de sofrimento desenham a terrível máscara da morte. Pois, no oposto da ficção do prazer roteirizado pelo espetáculo pornográfico, Antoine d’Agata procura captar as expressões dessa realidade da morte que, nas “zonas dos não-ditos”, invade os rostos e os corpos das
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mulheres, das prostitutas, mas também das crianças violadas. Em outros lugares, em países de direito como na França, em uma fábrica em Saint-Etienne ou em um campo de retenção em Sangatte1, as figuras e as formas do sofrimento são diferentes porque a violência ali é mais silenciada, institucionalizada e legal. Aqui, não há atos sexuais extraídos das sórdidas profundezas da noite, nem a gama de excessos permitidos nas zonas sem-lei; nada de drogas, golpes, morte a flor da pele. Apenas operários trabalhando nas fábricas, ou imigrantes reagrupados de forma totalmente legal em um campo completamente asseptizado. Quanto às imagens, todas feitas durante o dia, eles são claras e limpas, como esses estados de vida figurados. No entanto, os corpos dos imigrantes de Sangatte são todos mostrados de costas, sem rosto, fundidos com a uniformidade sem asperezas de parcas idênticas que acrescentam o apagamento de individualidade às privações de liberdade. Por sua vez, os corpos e atitudes dos operários, eles também anônimos e vistos de costas, apresentam formas surdas de uma submissão, ou de uma resignação, provocada pela passagem de uma violência direta e brutal a uma violência social mais amaciada, regulada pela lei – legalizada. Antoine d’Agata distingue estados sem-lei e de direito, mafiosos e democráticos, que, um e outro, não se caracterizam por uma ausência ou por uma garantia de liberdade, mas por um modo diferente de sujeição cujos efeitos podem ser lidos sobre e nos corpos, e são captados fotograficamente segundo regimes estéticos opostos. Em suma, os dois regimes estéticos de “imagens de noite” e de “imagens de dia”, que diferem pelos seus assuntos (corpos nus e atos sexuais, operários em fábricas ou imigrantes em campos), e pelas suas formas (a escuridão e o fluido, o claro e o límpido), exprimem fotograficamente dois regimes políticos distintos: um de soberania mafiosa, o outro de vigilância democrática (Michel Foucault). Por esse motivo a obra Sangatte fica no departamento Pas-de-Calais, ao extremo norte da França, local de passagem de imigrantes ilegais que tentam entrar na Inglaterra. O Campo de retenção de imigrantes de Sangatte foi desativado em 2002. (Nota da tradutora). 1
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de Antoine d’Agata é fotográfica e esteticamente política. Mas a concepção da exposição do Bal2 revela uma outra dimensão, resolutamente atual, da obra: sua plena ancoragem na sociedade de vigilância (Gilles Deleuze) mundializada, na qual as informações, as imagens e os sons são produzidos e circulam em fluxo, em quantidade e velocidade vertiginosos. Enquanto que a maior parte das exposições de pinturas, fotos, esculturas etc e mesmo de vídeos (quando não são projetados) conformam-se ainda às leis impiedosas do “cubo branco” no qual as obras são sabiamente isoladas na sua singularidade, no Bal, Antoine d’Agata, ao contrário, forrou de fotografias do chão ao teto, as quatro paredes sem janelas da sala de exposição em perfeito paralelepípedo – com a única exceção da entrada. Ao contrário dos seus prestigiosos predecessores da agência Magnum, e do primeiro entre eles Henri Cartier-Bresson, adepto do “instante decisivo” que deveria apenas ele captar a essência do acontecimento, Antoine d’Agata fotografa de maneira serial, em fluxo, sem jamais visar, nem enquadrar, nem focar. Sem jamais controlar, nem mesmo acionar ele mesmo o aparelho. O fluxo não conhece o vazio, é o pleno e o contínuo. Nas redes, as imagens não estão jamais sozinhas e isoladas como nas paredes de uma galeria ou nas páginas de uma revista, elas se inscrevem em contigüidades aleatórias assignificantes, mas que todavia agem entre si. Afundadas e fechadas nessa saturação sem fim de fotografias, o espectador tem paradoxalmente, em um dispositivo fixo, a experiência do fluxo das imagens; a experiência da sociedade de controle na qual os retratos da polícia de prostituídos circulam na internet; a experiência de um mundo novo, sem lógica, de produção de sentido por tricotagens visuais e mentais de imagens e de signos aleatórios, ou por aproximações de elementos heterogêneos tais com séries de corpos com O Bal é um centro de arte parisiense que funciona em um antigo salão de baile dedicado agora à difusão de diversas formas de imagens do real - fotografia, vídeo, cinema e novas mídias. Foi criado pela associação dos amigos da Magnum, presidida pelo fotógrafo Raymond Depardon. (Nota da tradutora). 2
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séries de arquitetura; a experiência de uma estética de captura e não de composição, de corpo e não de olho, de sensação mais do que de sentido. No Bal, essas experiências desencadeiam na conjunção do trabalho fotográfico de Antoine d’Agata e da concepção da exposição na forma de “mônada forrada por dentro”, quer dizer, na forma de unidade fechada contendo uma infinidade de pequenas percepções e “exprimindo obscuramente o mundo inteiro”.3 No entanto, no Bal, Antoine d’Agata parece chegar nas profundezas da noite e iniciar uma nova etapa da sua obra saindo da mônada das suas imagens, para constituir uma outra que, também ela, exprimirá o mundo inteiro, mas em uma outra zona de expressão. Outra obra da exposição que ocupa sozinha, na penumbra, a sala desprovida do térreo: um vídeo projeta em uma tela a tradução francesa, em letras brancas sobre um fundo preto, as palavras das prostitutas recolhidas por Antoine d’Agata, difundidas na sua própria língua de origem. Repentinamente, as mulheres que estavam nas fotografias apenas como longínquas abstrações, espectros de corpos absorvidos pela escuridão e apagados pela caráter fluido da imagem, tornam-se, pelo grão claro da voz delas e a precisão dos seus relatos, intensamente presentes, singulares e humanas. E o mundo que elas descrevem ainda mais insustentável.
Gilles Deleuze. Le Plis, p. 122-131 [A Dobra: Leibniz e o Barroco. São Paulo, Papirus,1991]. 3
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A fotografia na arte: alguns movimentos, espaços e formas de apresentação Maria Ivone dos Santos Maria Ivone dos Santos, artista visual, professora e pesquisadora no Departamento de Artes Visuais e no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da UFRGS. Em sua prática artística explora contextos urbanos e culturais a partir dos quais desenvolve processos de reconhecimento espacial desenvolvendo modos de leitura bem como formas de endereçamento público. Utiliza a fotografia, o vídeo, o texto e peças gráficas articuladas às instalações, intervenções urbanas e publicações. Coordena desde 2002 o Programa FPES — Perdidos no Espaço (UFRGS), e desde 2004 e co-dirije o Grupo de pesquisa Veículos da Arte (CNPq).) Exposições (seleção) 2011 — Plataforma, Diálogos Abertos-Perdidos no Espaço, anfiteatro do ICBS, UFRGS; Do atelier ao Cubo Branco, Curadoria de José Francisco Alves, Museu de Artes do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. Três questões, participação especial na Instalação Memorar de Hélio Fervenza, Museu da Gravura Cidade de Curitiba, Curitiba. 2009 — //22°S.-50°N. Museu de Arte Contemporânea de Campinas “José Pancetti” e Museu de Artes de Verviers, Bélgica. 2008 Prosa de Jardim 2, Museu de Arte de Joinville. Perdidos no Espaço 2007 — Vehículos del Arte: Conexiones al Sur, Centro Cultural Victoria Ocampo, Mar del Plata, Argentina.
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Liberada da relação mágica que lhe impunham o filme negativo e a prancha contato a qual continha em sequência um número fechado de poses, liberada dos procedimentos químicos de revelação e de fixação das imagens, a fotografia e sua tecnicidade saltam do patamar de índice ao de código passível de sofrer múltiplas manipulações. São capturas e modalidades de ver o mundo. Vemos igualmente sendo oferecida pela indústria uma profusão de ferramentas de edição. As imagens fotográficas derivam definitivamente para a prática da edição e ampla difusão. O negativo torna-se um arquivo alojado em uma pasta, uma espécie de reserva, podendo ser ativado e alterado ad infinitum, podendo acomodar-se tanto nas dimensões de saída de um plotter como em outros suportes, mídias e rede, ocupando inúmeras formas de apresentação. Fazer uma imagem se tornou fácil e difundi-la na vida social, nas redes, se tornou ainda mais fácil. As imagens técnicas de raiz numérica vieram substituir os procedimentos indiciais do filme. Com isto toda uma série de discursos e de modalidades técnicas de captação e de reprodução de uma imagem, a partir de um negativo matriz, se desloca para uma modalidade que já nasce positiva. Dito de outra forma, a fotografia de base analógica passa a ser lida, decodificada e alterada. Passa a ser um arquivo de informações alojado em uma pasta passível a todo o momento de sofrer atualizações. Não pretendo me aprofundar na questão geral de analisar o fluxo de imagens em rede, ou de pensar nas transformações que a imagem sofreu do ponto de vista de sua avaliação estética. Algumas questões da fotografia na arte subsistem já que ela não abandonou seu estatuto de dispositivo regulável (FLUSSER, 1994), nem seu formato retangular ou quadrado, nem a ideia de corte e suspensão, podendo ser regrada pelas distintas etapas do processo. O que nos interessa de fato discutir é que a fotografia na arte, por ser um “ato de sentido” (COSTA, 2009, p.10), depende de um conjunto de decisões do artista que não se encerram na captura e nos formatos de espacialização, mas adquirem sentido nas formas de apresentação. Buscarei analisar três produções de artistas-pesquisadores com os quais mantenho um contato próximo, visto que elas nos auxiliarão a observar melhor a questão das for-
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mas de apresentação da fotografia, desvendando igualmente algumas das funções que este meio ocupa no interior destas práticas. As séries Pontos de Vista: relatos de intervalos sobre a paisagem (2003-2008) e Captura da Imagem, de Denise Helfenstein (2011); o processo de trabalho de Ana Tomimori, Pequenas pausas do silêncio, no qual a fotografia surge como registro e passa a ser espaço de demonstração de sua performance; e uma série de imagens realizadas por Hélio Fervenza, Aparição de um secreto desígnio (1990), Uma mão pode esconder outra (1992), Conjunto Vazio (1999) e (peixe, sombra) dentrofora (do céu da boca) d’água (2013). Subdivido o assunto em três tópicos, Tempo da imagem, Registro e deslocamento e Entre imagens: outro tempo, e busco apresentar alguns aspectos presentes nos processos destes artistas, que envolvem a fotografia, bem como procuro levantar problemáticas relativas aos espaço e temporalidades estendidas às formas de apresentação.
Tempo da imagem Denise Helfenstein possui dois trabalhos que vêm me auxiliando a entender a relação entre fotografia, tempo e experiência ao explorar a contextualização de apresentação de suas imagens.1 Em 2008, Denise empreendeu um projeto de captação de imagens bastante instigante, obtendo um conjunto de imagens realizadas junto a uma comunidade de pescadores na proximidade de Porto Alegre. O que me chamou atenção nesse trabalho, para além da qualidade documental de suas imagens marcadas por sua formação em comunicação, foi que seu projeto não se encerrou na captura e nem nas tiragens analógicas. Seu gesto se completava na modalidade de inserção das imagens nos contextos de vida daquela comunidade. Fixadas em uma incontornável pedra no meio caminho, em um poste ou no muro de uma casa, cada fotografia indexava o ponto de vista de sua captação. A exposição era substituída por esta ação expositiva in situ. A artista restituía Artista, Mestre em Artes Visuais pelo PPGAV/UFRGS (2010) Graduada em Comunicação Social pela PUC/RS (2003) Pesquisa a fotografia e ensina Artes Visuais na Feevale, RS. 1
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as imagens aos moradores criando uma circunstância de encontro. Seu ato enunciativo vinha marcado por um olhar de responsabilidade face à captura. A artista em seu blog veicula igualmente uma reflexão sobre seu processo no que tange à recepção das representações e paisagens: Simulacros entregues à paisagem original com auxílio de fita crepe, compondo uma mostra efêmera, distribuída para um livre destino: serem observadas pelos passantes, recolhidas por eles ou ignoradas, sobrepostas por outros materiais ou apenas perecerem ao tempo.2
Em outra série – mas ainda às voltas com as questões da experiência do tempo e do lugar – Denise irá, em Captura da Paisagem (2008-2010), ajustar seu dispositivo ao extremo. Ela optará por se desembaraçar de parte do aparelho, retirando-lhe as lentes e passará a jogar com as variantes de uma imagem pinhole. Ficando apenas com o que entrava no filme sensível preso à câmara. A imagem, sendo fruto de uma longa exposição, criava uma impressão negativa saturada da fração de tempo da captação. Este negativo era digitalizado e a imagem era posteriormente impressa em papel. Traduzia na superfície da impressão os valores sutis de uma fatia de tempo. Densa e misteriosa, a imagem era uma paisagem-tempo. Não satisfeita apenas com a imagem, Denise coletou e reapresentou em exposição no Santander Cultural suas imagens acompanhadas de sons registrados durante o tempo de cada captação, os ruídos de fundo de um estado do mundo único, que não se repetia.
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O texto acompanha as imagens, juntamente com o mapa de localização dos pontos onde ocorreram as intervenções: http://denisehelfensteinfotografia.blogspot.com.br/p/ pontos-de-vista-intervalos-sobre.html
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Denise Helfenstein, Escritas do tempo, 2010. *
Da série A Captura da Paisagem: Ipanema 3min9s (3´39´´)
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Denise Helfenstein, Escritas do tempo, 2011.*
Sempre falamos do silêncio na fotografia. Em suas imagens o silêncio e os ruídos de fundo da cena coabitam. Quase cinema? Talvez Denise pudesse voltar ao ponto de coleta e refazer inúmeras vezes sua operação. Neste trânsito de modalidades, a artista obteria variações de tonalidades da cena assim como dos ruídos de fundo. É bem possível que apenas os enquadramentos se repetissem, mas as possibilidades e os resultados, tanto da imagem quanto do ruído, seriam sempre variáveis. Liberada de olhar através da câmera obscura, Denise vive e pensa enquanto capta a imagem e o áudio gerando dois tipos de arquivos desses processos. A imagem é o sedimento luminoso de um tempo e o som é a sua extensão. Ela escreve acerca do que ocorre: *
Da série A Captura da Paisagem: Pinhal 2min08s (2´08´´) Santander Cultural/Porto Alegre
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A Captura da Paisagem pode ser apresentada como uma poïesis ou processo de trabalho que tem como principais produtos fotografias pinhole e registros sonoros digitais. A cada fotografia corresponde um arquivo de áudio, pois ambos são obtidos simultaneamente, em um mesmo espaço-tempo. Ou seja, as imagens são expostas à luz durante o mesmo período e no mesmo ponto do espaço em que os áudios são gravados. Cada imagem é constituída pela ação da luz sobre o filme em uma duração específica (em segundos ou minutos), e neste exato tempo, no mesmo local, é realizada uma gravação sonora dos sons ambientes.3
A exposição, no caso do processo de Denise, não apenas altera o fim, mas busca reencontrar o seu início. Como noção operatória o termo ‘exposição’ em fotografia designa o momento no qual o suporte sensível é tocado e acolhe a luz que vem deste exterior que o pequeno orifício deixará entrar. Na exposição, no momento da recepção, a artista busca proporcionar uma extensão da experiência da imagem veiculando o registro do áudio gerado em paralelo. Desenha outras formas de apresentação através da projeção de suas imagens, vindo acompanhadas de um fone que veicula o tempo experienciado, induzindo a uma certa imersão. Em pleno império do digital e das fotos numéricas, este trabalho é outro tipo de documento. Uma fração de espaço e de tempo que resiste ao resguardar, singularizar e restituir o tempo como um vestígio do ato de pregnância da imagem. O que igualmente me chama atenção no processo de Denise é a relação que ela estabelece com seu dispositivo, visto que, ao se descolar da captura, ela fica liberada para sentir o lugar que investiga. Eliminando lentes e foco, a artista vive essa espera e acolhe os resultados de uma imagem que lhe escapa, defrontando-se com certa magia e encantamento. http://denisehelfensteinfotografia.blogspot.com.br/p/captura-da-paisagem.html
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Registro e deslocamento O trabalho Pequenas pausas do silêncio, de Ana Paula Wada Tomimori4, artista que tive oportunidade de acompanhar por dois anos entre 2009 e 2011, me possibilita pensar em uma das funções da fotografia na arte, como registro e enquanto espaço de uma demonstração. Realizada no dia 13 de julho de 2010, no saguão da Pinacoteca Barão de Santo Ângelo, a performance consistia em desfazer uma capa tecida pela artista puxando um fio da base que não havia sido arrematado. Desta forma, à medida que ia desmanchando a capa, a artista fazia aparecer o seu corpo. Ao revelar seu corpo inteiro, desvendava o seu rosto e entregava a sua identidade. A performance toda durava quase uma hora e ao final a artista se retirava da sala. No chão, ficavam os vestígios, montículos de lã em meio a um vazio. Esta ação foi fruto de muitas reflexões sobre sua condição feminina e sobre seus ancestrais mulheres de origem japonesa, deslocadas em outra cultura5. A performance comportava um vídeo que era mostrado simultaneamente. Ana diz em dado momento de nossas conversas: “Me interessa este tempo estendido que considero ser um ponto importante de minha prática. Esta dimensão corporal me permite a compreensão de meu próprio ato trazendo a tona sensações que surgem através do gesto, que mesmo repetido me leva a uma progressão do acontecimento de uma forma não imediata.” No Saguão da Pinacoteca Barão de Santo Ângelo (UFRGS, Porto Alegre), onde ocorreu a performance, o vídeo veiculava numa tela pequena registros das etapas de construção da capa Natural de São Paulo, residiu em Porto Alegre de 2006 a 2010 onde concluiu o curso de artes na UFRGS. Tem privilegiado a performance, desenvolvendo diversos projetos junto ao N.A.I.P.E, Núcleo de estudos que nasceu no Instituto de Artes da UFRGS em 2008 , assim como integra o “Chicamatafunba”, grupo de intervenções interurbanas que realiza ações poéticas e discute a prática performativa. Atualmente mora em São Paulo. 4
Em Pequenas pausas do silêncio: o corpo como fala na performance, Ana retoma o crochet que aprendeu com a avó materna de origem japonesa. Tecia em seus deslocamentos cotidianos, nas situações de espera, sendo esta atividade algo que lhe auxiliava a constituir seu objeto frágill e a organizar seus pensamentos, bem como a elaborar as dúvidas instauradas no decorrer do processo. 5
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de crochê. O vídeo enfocava na mão que crocheteava e teve seu tempo reduzido na edição. O tempo real da construção da capa foi de duas semanas e meia. Na duração da performance o ato de desmanchar a capa ia sendo apresentado em concomitância com o registro da feitura, estabelendo-se desta forma uma relação entre um tempo anterior e o presencial. Um primeiro desdobramento desta performance surgiria com a exposição do tríptico em fotografia Pequenas pausas e silêncios. Esta série de imagens é resultante da segunda performance realizada em estúdio, tendo como público, desta vez, apenas Felipe Farina, o fotógrafo que registrou sua ação. Para este outro momento, a artista teve que tecer outra capa refazendo assim uma das etapas do processo anterior. As imagens mostradas nas tiragens que aqui vemos recortam a performance em três tempos. O primeiro enquadramento mostra a artista vestindo esta espécie de casulo que lhe cobre todo o corpo deixando à mostra apenas seus pés. No segundo enquadramento vemos parte do tecido sendo por ela desfeito, desvelando um pouco mais do seu corpo. No terceiro enquadramento se vê apenas um grande vazio, o espaço antes ocupado por um corpo e o monte de linhas no chão. O corpo da artista se ausenta na última imagem.
Ana Paula Wada Tomimori, Pequenas pausas do silêncio, Fotografia (tríptico), 2010.* 1,50X,80 m (cada) Arte contemporânea no IA: nova geração Galeria da Pinacoteca Barão de Santo Ângelo, UFRGS *
(fotografia realizada em co-autoria com Felipe Farina)
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Pequenas pausas e silêncio, no meu entender, são mais do que um registro de performance. Diante das imagens, algumas questões surgem, visto que a sequência produzida encadeia certa narrativa, a qual integra uma problemática maior do processo da artista. A fotografia de estúdio dá a ver cortes e aspectos para além da performance. A cena enquadra e exalta o corpo, o silêncio e o vazio. Na fotografia, as imagens tiveram seus parâmetros de captura definidos por instruções passadas pela artista ao operador. A artista optou por ampliar as três imagens em tamanhos próximos aos de sua estatura, trazendo ao espaço expositivo a presença física do seu corpo. Marcando a sua ausência, as imagens produziam no público um efeito impactante. Diferentemente da performance que ocorreu num espaço-tempo definido, e na qual o público cercava a artista, em Pequenas pausas e silêncios, a ação de desmanche é interrompida e suspensa. As imagens são tensas e, juntas, se tornam um espaço de demonstração absurda no qual a identidade é ocultada. Ou seja, elas criam juntas outras leituras de seu gesto. Ao eliminar o foco para sua identidade ela evidencia as noções de aparição e de desaparecimento. Há um corpo que se esvazia (vida e morte) deixando sua ausência sugerida pela configuração da imagem. A terceira imagem é um suporte desabitado no qual sobram apenas os resíduos do que cobria um corpo.
Entre imagens: outro tempo A presença da fotografia na produção de Helio Fervenza é recorrente desde 1985. Interessa-me seguir algumas imagens que ele vem realizando desde 1991, e que foram mostradas e veiculadas em diferentes contextos ao longo de duas décadas.6 O enquadramento frontal de suas imagens se alterou pouco ao longo dos anos. Feitas em diferentes momentos, Nascido em 1963 em Sant’Ana do Livramento, RS, Brasil. Artista e pesquisador, vive em Porto Alegre, RS. Algumas das imagens fotográficas aqui citadas foram mostradas em exposições anteriores e reapresentadas em duas salas na Bienal de São Paulo. Uma mão pode esconder outra (1992) e Conjunto Vazio (19998) integrarão a parte histórica da representação brasileira da 55 Bienal de Veneza - junho a novembro de 2013. Na ocasião o artista mostrará a instalação (peixe, sombra) dentrofora (do céu da boca) d’água. 6
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as imagens das mãos aparecem num tempo sempre presente. Em seu processo de trabalho, a fotografia, pelas operações de corte e de enquadramento, lhe possibilita suspender certas situações que ele pretende mostrar. As mãos seguidamente protagonizam suas ações do mostrar. Estas fotografias não são mostradas isoladamente sendo seguidamente associadas a outros meios em instalações. Elas são um dos elementos de uma trama expositiva mais complexa. Veremos como as imagens confluem na noção de apresentação, a qual o artista trabalha desde 1986.7
Helio Fervenza Aparição de um secreto desígnio, 1990.*
Uma mão pode esconder outra, 1992.**
A primeira imagem mostra um enquadramento no qual duas mãos pressionam uma superfície de vidro, obstruindo a vista do que haveria por trás da imagem.8 Outra imagem realizada em 1993 mostra igualmente num plano fechado, duas mãos segurando um registro de uma ação ocorrida em 1983. Imagem instigante, que produz um efeito que ativa nosso FERVENZA, Helio. “Anotações a partir de quatro mãos e algumas fotografias”. In: DOS SANTOS e SANTOS, 2004, Fotografia nos processos artísticos contemporâneos, p. 204. 8 Estas duas fotos integraram as instalações Contre-jour Hôpital Ephémère em 1993 http:// www.heliofervenza.net/arquivo/mostrar_esconder/contre_jour/index.htm. Foram retomadas nas instalações Duplo Pousar em 1995 e Olho mágico (1997) e na publicação o + é deserto. Voltaram a ser mostradas nas salas dedicadas ao artista na XXX Bienal de São Paulo de 2012. * Fotografia em branco e preto, 10 x 15 cm. ** Fotografia em branco e preto, 50 x 60 cm. Da série de 10 imagens extraídas de um vídeo e mostradas na instalação homônima. Sala de exposições da PUC, Santiago do Chile. 7
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imaginário. Um tempo dentro de outro, uma imagem que atualiza outra exercendo a função de mostrar. Hélio diria que elas suscitam todo um imaginário do escondido sendo a exposição um ponto ativador destes muitos sentidos. Na série de fotografias a quatro mãos iniciada em 1990, Aparição de um secreto desígnio (l’apparition d’un secret dessein), pensadas para serem veiculadas num formato de cartão postal, as mãos aparecem segurando segmentos de fios de ferro que formam pequenos desenhos. Já havíamos feito algumas fotos juntos na qual demarcávamos a cena e acionávamos o disparador automático. Eu e ele cumpríamos diante de uma camera uma ação por ele desenhada. Em Uma mão pode esconder outra, Hélio explora mais ainda os gestos de mostrar e de constituir com a imagem um espaço discursivo. Desta feita, o trabalho Uma mão pode segurar outra foi concebido para ser mostrado em um vídeo a partir do qual ele faria posteriormente algumas fotografias. Estas imagens foram apresentadas em Santiago do Chile em 1992, associadas a pequenos sacos de tecido contendo terra, pedaços de cobre e pedras, distribuídos pela sala. O contexto da exposição, uma sala sem janelas coberta por grades, foi sugestivo e determinou escolhas na montagem. Aludia as questões políticas da ditadura, sendo que os materiais falavam enquanto os gestos obscuros e fortes mostravam o indizível. A noção de apresentação foi se perfilando para Hélio ao longo dos anos, seguindo de algum modo o apontado pelas imagens fotográficas. Apresentação sendo para ele “um espaço que surge no entrecruzamento dos movimentos orientados pelos gestos e os fenômenos de indicar e fazer ver, isto é, aquele que se instaura no entrecruzamanto de diferentes operações, gestos e formas de indicação” (FERVENZA, 2009, p.43). A fotografia vem sendo para o artista uma espécie de marcador - um meio com o qual ele suspende o gesto de mostrar. Vemos que as imagens antecederam pesquisas formais e o desenvolvimento de dispositivos de apresentação, de suas gravuras, dos esconderijos feitos em papel e dos grandes desenhos fixados com imãs e fios de ferro instalados em cantos do espaço expositivo. O mostrar e o esconder surgem como uma balança instigando o olhar do espectador a ir de uma foto à
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um outro elemento presente na instalação, e, a partir da mobilidade do olhar, é que o encadeamento de sentido é suscitado. Na exposição Conjunto vazio (1998) Helio apresenta duas imagens realizadas a quatro mãos, uma sobre o fundo de uma camiseta cinza, e outra sobre fundo de camiseta amarela. Nessas imagens, as mãos modelam um volume que é sugerido, mas que de fato estava ausente. Elas integram a instalação onde se faziam igualmente presentes alguns signos de pontuação aderidos a parede e folhas de papel celofane, bem como cápsulas de medicamento vazias.9
Hélio Fervenza, Conjunto Vazio, 1999.*
A instalação mais recente, que comentarei na sequência (peixe, sombra) dentrofora (do céu da boca) d’água foi concebida para ser apresentada no Pavilhão do Brasil na 55 Bienal de Veneza. Nela Hélio retoma a noção de apresentação integrando dois conjuntos de imagens fotográficas realizadas em tempos diferentes, Sombra, Peixes e uma imagem avulsa, um palito de dente suspenso por uma teia de aranha. Elas são intercaladas por signos de pontuação, duas chaves que se tocam, alinhadas pela vertical. Os signos sinalizam o dentro e o fora. Signos estes que se repetem em outras posições do espaço, próximos ao teto e ao piso. As fotografias emolduradas surgem em diferentes formatos e são colocadas em desalinho, interrompidas pelo grande desenho formado por fios de ferro, Ver as imagens desta instalação no site do artista: http://www.heliofervenza.net/arquivo/ pontuacoes/conjuntovazio_curitiba/index.htm * Papéis celofane, parênteses em vinil autocolante, fotografias, cápsulas de medicamento vazias e transparentes. Ímãs e pregos são utilizados para a apresentação e fixação dos papéis celofane na parede. Memorial de Curitiba – Fundação Cultural de Curitiba. 9
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imãs e pregos. Este desenho nos remete diretamente a uma imagem que mencionei anteriormente, L’apparition d’un secret dessein. Distribuídos pela parede do pavilhão, os signos de pontuação, as imagens fotográficas e o desenho foram cuidadosamente pensados no que concerne à regulagem das modalidades do ato de ver. A visibilidade do que está suspenso pela fotografia no interior da imagem é uma parte do enigma que só se resolve no ir e vir, entre imagens, em presença da obra e no espaço da sua apresentação. Colocados em espécies de vitrines posicionadas na horizontal o grupo de imagens que identificamos como Sombra é resultante de um enquadramento fechado sobre o motivo – no qual se vê a projeção da luz que atravessa uma folha e que desenha no solo a silhueta da mesma. A imagem da sombra de uma folha deixa transparecer pontos de luz que atravessam esta silhueta. O encontro e a colisão entre o artista e esta imagem nos escapam. Interessa-nos, porém o fato de que algo foi resguardado enquanto imagem no arquivo e que se apresenta nesta instalação. Estas imagens na vertical se intercalam com as apresentações dos peixes frontalmente dispostos. O fascínio exercido por estes simulacros de peixe, vendidos como isca de pesca em lojas especializadas, viria resultar na série de fotografias nas quais os mesmos são suspensos pelos gestos de uma mão que os mostra sob o fundo azul do céu. Experimentando a montagem por aproximações e afastamentos, próximo de, muito próximo ou afastados, imagens menores ou maiores, o artista busca criar o campo de visibilidade entre os peixes-anzóis, o desenho com fios de ferro, as chaves de sinalização e as caixas com as sombras. Os peixes, pelo seu aspecto e brilho atraem e funcionam como isca para o olhar (tal como ocorria com os papéis celofanes transparentes utilizados por ele juntamente com as imagens no Conjunto vazio). A fotografia surge como parte de um processo mental na instalação e reforça o ato de mostrar iniciado pelos gestos das mãos. A relação entre as imagens e os demais elementos que integram a instalação de Hélio é dependente das características do espaço expositivo, do lugar que acolherá as configurações
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Hélio Fervenza, (peixe, sombra) dentrofora (do céu da boca) d’água, 2013.*
dos elementos, sendo este um dado de fundamental importância para o artista. Na apresentação durante a XXX Bienal de São Paulo, para citar um exemplo, do conjunto de dez fotografias da série Uma mão pode esconder outra, somente quatro foram ampliadas. Isto porque o vazio e o espaçamento entre os demais elementos deveriam ser resguardados para se efetivar a justa visibilidade do todo. O aspecto das imagens é para Hélio outro fator importante e contribui com o pensamento sobre a (i) matéria da imagem fotográfica. Antes do digital, buscava-se resolver muitas etapas na captação, resguardando certas qualidades dos pretos pela escolha do filme e pela regulagem do aparelho. Assim como na ampliação, poder-se-ia garantir que certa modelagem de vazio se fizesse presente. Os pretos que ele obteria na série mostradas em Santiago do Chile em 1992 e em São Paulo em 2012 são de fato qualidades da imagem pois ‘dramatizavam’ pelo seu aspecto, pelos seus negros profundos, as suspensões e silêncios. Tiragem sobre papel de algodão. Chaves em vinil autocolante, 18 fotografias (peixes) emolduradas em diferentes formatos fotografias (sombra) dispostas em pequenas vitrines, segmentos de círculo presos por Ímãs à pregos ficados na parede. *
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O convite para integrar a representação brasileira na Bienal de Veneza, o dentro-fora proposto pelo recorte curatorial de Luis Pérez-Oramas e André Severo, conduz Hélio a explorar questões de sua obra anterior com mais profundidade. Palácio Enciclopédico é o tema central da Bienal e Hélio lembra que o termo palais em francês refere-se igualmente ao céu da boca. Peixes suspensos contra o azul do céu aparecem na grande arcada do mundo, presos entre vazios e entre espaçamentos que se configuram e se desenham como possíveis constelações de sentidos. No conjunto de elementos previstos para ser mostrado em Veneza, Hélio pensa a instalação na qual as imagens fotográficas geram órbitas carregadas de potencialidades associativas. Ela são, como ocorre com os outros dois exemplos trazidos, “atos de linguagem”. Suspender, pender, criar suspense são todos modos de dizer de um corpo. Algo ocorre; algo surge na mobilidade do olhar que colide no brilho e transporta o observador de uma imagem à outra. O sentido talvez só exista no ricochete “entre imagens” e na espacialização proposta pelo artista.
Epílogo ou outro recomeço Régis Durand no final do seu livro Le temps de l”image (1995) fala acerca da imagem fotográfica de um modo que interessa igualmente ao nosso assunto, ou seja, o de que o suspender e o apresentar propiciam uma experiência sobre o sentido das imagens. Durand diz que a imagem fotográfica vale como elemento de um dispositivo no qual o objeto é “constituir um modelo de experiência das coisas, e não lhes representar”. Ele retém igualmente de Robert Smithson a idéia do ato de olhar como obra de arte. Assim, com Durand, eu finalizo minha passagem em suspensão visto que seu dizer reitera os enfoques que pretendi pontuar: Cada pedaço de conhecimento e de experiência pode se decompor em um mosaico infinito de imagens. Este mosaico de elementos discretos é o que o mundo se tornou para nós. Uma atitude crítica (e
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artística) possível poderia restituir à certos elementos o seu conteúdo de experiência. Ao interromper a circulação dos programas para encontrar algo de uma decisão que é uma visada individual. Mas para que isso não seja simplesmente levado a uma teoria da expressão ou intencionalidade, tem que se manter uma tensão constante com tudo o que é exterior à consciência individual (sem o qual ela não existe e não faz sentido): o dispositivo, é claro, é geralmente “o mundo”.10
No mundo, no vasto campo das nossas experiências e diante da desaparição iminente de tudo, a arte apresenta e suspende. Algo pode se ativar neste campo. Diante de uma imagem ou em uma exposição, talvez algo nos mobilize a viver o intervalo e a descontinuidade, a viver uma experiência de outra ordem.
Referências DURAND, Régis. Le temps de l’image — Essai sur les conditions d’une histoire des formes photographiques. Paris: La différence, 1995. DOS SANTOS, Maria Ivone; SANTOS, Alexandre (Orgs.). A fotografia nos processos artísticos contemporâneos. Porto Alegre: Unidade Editorial da SMC, Editora da UFRGS, 2004. KRAUSS, Rosalind. «Quand les mots font défauts», In: Le photographique — Pour une Théorie des écarts. Paris: Macula, 1990. COSTA, Luis Cláudio (org.). Dispositivos de registro na arte contemporânea, Rio de Janeiro: Contracapa, 2009. 10
DURAND, Régis. Le temps de l´image, (Tradução minha). p. 196 .
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FERVENZA, Hélio. O + é deserto Documento Areal, n° 3. São Paulo: Escrituras Editora. Ano: 2003. ________________. «Anotações a partir de quatro mãos e algumas fotografias». In: DOS SANTOS, Maria Ivone; SANTOS, Alexandre (Orgs.). Fotografia nos processos artísticos contemporâneos. Porto Alegre: Unidade Editorial da SMC: Editora da UFRGS, 2004. _______________. «Registros sobre deslocamentos nos Registros da arte». In: COSTA, Luis Cláudio da. Dispositivos de registro na arte contemporânea. Rio de Janeiro: Contracapa, 2009. FLUSSER, Vilém. Los gestos: fenomenologia y comunicación. Barcelona: Herder, 1994. HELFENSTEIN, Denise. «Pontos de Vista: relatos de intervalos sobre a paisagem». In: RAMOS, Celia M. Antonacci (Org.). Camelódromo Cultural: Poéticas do Urbano. Florianópolis: Bernúncia, 2008. Links referentes aos artistas comentados no texto: Hélio Fervenza: http://www.heliofervenza.net/arquivo/pontuacoes/ conjuntovazio_poa/index.htm Denise Helfenstein: http://denisehelfensteinfotografia.blogspot.com.br/p/capturada-paisagem.html Ana Tomimori: http://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/28007/ 000768011.pdf?sequence=1
Entre o Documento e o LĂşdico
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Desvirtuar a câmera, virtualizar a imagem: o lúdico na fotografia contemporânea Osmar Gonçalves Osmar Gonçalves é doutor em Comunicação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), com bolsa-sanduíche na Bauhaus Universität-Weimar (Alemanha), financiada pelo DAAD/CAPES. Pesquisador e fotógrafo, possui graduação (2001) e mestrado (2003) pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG. É Professor do Programa de Pósgraduação em Comunicação Social e do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Ceará (UFC), concentrado principalmente nas áreas de fotografia, teoria da imagem, semiótica e estética do audiovisual.
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O nosso desafio não é uma sociedade de deuses ou de artistas inspirados, mas sim uma sociedade de jogadores. Vilém Flusser O papel do artista consiste, daí em diante, em propor um dispositivo, em oferecer oportunidades das quais o público possa se apossar para que algo aconteça, não exatamente uma coisa, mas uma relação em constante devir: um estar-lá conjunto, que aja sobre os comportamentos. Entramos aqui em uma nova era onde a obra é periférica, em que ela não é mais o centro, mas somente a expressão de conexões. André Rouillé
Na iminência de completar duzentos anos de história, a fotografia atravessa mais um ciclo de grandes transformações. A popularização definitiva da máquina digital, dos dispositivos de tratamento e simulação numérica da imagem são apenas alguns dos aspectos dessa mudança — sem dúvida, os mais estudados até o momento. Outra alteração menos visível e alardeada diz respeito aos regimes de visualidade, aos modos de “escrita” e pensamento que a fotografia vem adotando na atualidade. Ao que parece, uma nova língua fotográfica está emergindo, um novo projeto estético e semiótico vem sendo colocado em prática nas obras de artistas e fotógrafos contemporâneos. Se a fotografia esteve durante décadas atrelada à mística do “momento decisivo” (CARTIER-BRESSON, 1981, p. 384386), à ideia do meio como uma arte de captura, como um dispositivo de registro essencialmente ligado ao instante do clique, ao momento “mágico” do corte, hoje ela finalmente se desprende dessa fórmula, estabelecendo relações renovadas com a imagem e com o mundo. Atualmente, está claro que o dispositivo fotográfico é muito mais do que uma simples “máquina de ver”, um instrumento cuja tarefa principal seria restituir as formas de um mundo preexistente, produzir, na feliz
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expressão de André Rouillé, “imagens de captura”.1 Uma nova geração — chamada pela crítica de geração 00 — tem transformado radicalmente o meio fotográfico, expandindo suas potencialidades, suas formas de escrita e expressão, através de uma intervenção mais direta e traumática sobre o código. De fato, nós vivemos um momento em que se afirma a possibilidade de uma expressão mais intimista e libertária por parte dos fotógrafos. Momento em que a fotografia se apresenta como um território de invenção, como uma trama complexa e instável, aberta aos domínios da ficção e do imaginário, e no qual ela é tomada, sobretudo, por sua capacidade de invenção, seu poder em produzir novas realidades, pôr em movimento acontecimentos inesperados, encontros que estabeleçam relações inéditas com as imagens e com o mundo. Como sempre, este não é um fenômeno absolutamente novo. De certa forma, ele já existia em estado embrionário nas experiências modernistas, nas vanguardas históricas dos anos 1920, em especial em suas vertentes construtivistas e surrealistas. Expoentes da fotografia em diversas áreas da cultura apontam para uma cristalização desse processo. Em outras palavras, o que a princípio aparecia como experiência limítrofe ocupa agora a prática dominante da fotografia. No Brasil, por exemplo, os trabalhos mais significativos produzidos ao longo das duas últimas décadas tiram toda sua força e beleza desse processo de renovação estética. Obras amplamente reconhecidas como as de Cássio Vasconcelos, Miguel Rio Branco, Mário Cravo Neto, Kenji Otta, Rosângela Rennó, Alexandre Sequeira e Eustáquio Neves tomam a fotografia como um processo a ser reaberto. Operando uma intervenção mais direta sobre o código, esses fotógrafos procuram abrir novas possibilidades do fotográfico, ainda reprimidas pelas convenções do gosto pictórico dominante — gosto este baseado na concepção da fotografia como documento, como registro, imagem-especular ou imagem-rastro (ROUILLÉ, 2009). Neste contexto de intensa experimentação, de redistribuição de fronteiras, práticas e saberes, muitas obras têm suCf. a este respeito BARTHES, Roland. A Câmara Clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. 1
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preendido ao se apresentarem como um jogo, um dispositivo, uma experiência que envolve imagens sem dúvida, mas que dificilmente se reduz a elas. De fato, diversos trabalhos têm se apresentado hoje como conjuntos articulados, multiplicados, como um sistema de relações. Neles, a imagem perde parte de sua centralidade, pois não passa de um termo num diagrama, num campo de forças heterogêneo que põe em jogo uma diversidade de atores, forças e instâncias. Aqui, ela se torna parte de um processo mais amplo que ao mesmo tempo a possibilita e ultrapassa. Se há algo que caracteriza essa nova geração, portanto, é o fato de se engajarem no domínio dos processos, dos eventos e modalidades. E este movimento nos força a repensar hoje a velha e querida categoria do fotográfico. Pois, de um lado, a fotografia passa a ser entendida, cada vez mais, como algo intensivo. Quer dizer, como um acontecimento, uma relação, um evento que envolve não apenas o momento do clique — o instante “mágico” em que o obturador pisca, deixando a luz entrar na câmera e sensibilizar o dispostivo — mas todo um antes e um depois, um processo amplo e abrangente que excede, como veremos, a própria imagem, o objeto-foto. De outro lado, o dispositivo fotográfico passa a ser visto menos como um “uma máquina ou um relógio de ver” — segundo a célebre expressão de Roland Barthes – uma ferramenta que simplesmente estende nossa visão, e mais como um dispositivo afetivo e relacional, um instrumento disparador de encontros, capaz de nos abrir ao Outro, ao imponderável de toda alteridade.
Os ciclos de vida e morte da imagem Emblemática nesse sentido é a obra de Rosângela Rennó, sem dúvida uma das principais expoentes da arte contemporânea brasileira. Curiosamente, Rennó é uma fotógrafa que não fotografa. Sua obra é quase toda construída a partir da apropriação e do deslocamento de imagens já existentes. Normalmente, imagens anônimas e desconhecidas que a artista coleciona, classifica, inventaria e, posteriormente, interfere para produzir novos arranjos, olhares até então imprevistos,
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improváveis. A matéria prima de Rennó já é, portanto, uma matéria segunda, imagens de imagens, clichês revistos. A artista deixa em segundo plano o momento emblemático do clique, o instante “mágico” da captura — momento sob o qual se debruçou boa parte das teorias ontológicas da fotografia, de Bazin a Barthes passando por Cartier-Bresson, Schaffer e Baqué — para se concentrar em outros aspectos menos visados do processo fotográfico. À Rennó interessa, sobretudo, o processo de circulação da imagem, os ciclos de vida da fotografia, o modo como ela circula, como se insere em determinados contextos, circuitos e o papel que cumpre aí. Tal como Mitchell (2005) em seu belíssimo livro, What do Pictures Want?, Rosângela procura responder a uma série de questões primordiais para todos aqueles que trabalham com imagens. Afinal, de onde vem as imagens? Para onde vão ou a quem se destinam? Quais são seus desejos, suas pulsões, seus amores? Através do gesto da apropriação, a artista intervém nesses ciclos, tentando produzir pequenos deslocamentos, pequenos desvios de sentido. Tratase de impulsionar novas rotas, outras possibilidades de leitura à vida, um tanto desgastada, de alguns grupos de imagens. Pois, antes de mais nada, é preciso perceber que as imagens são objetos migratórios. Elas circulam, transitam e estão, desse modo, sempre mudando de sentido, de natureza e/ou utilidade. Nesse processo, muitas caducam, são abandonadas, desaparecem. Rennó se dedica então a reunir e reorganizar essas imagens de modo a lhes dar uma nova vida. Imagens de contextos histórico-culturais específicos, já carregadas de afetos, marcas e memórias, são apropriadas, retrabalhadas, deslocadas para novos contextos. Seu trabalho se encontra, assim, fortemente ligado à uma estética da ressignificação, à prática da reatribuição de sentidos e isto ocorre por meio da apropriação de arquivos e repertórios anônimos – conjuntos de imagens que estavam esquecidos, abandonados e para os quais a artista traça novas estratégias de visibilidade. É o que acontece, por exemplo, com as obras Imemorial (1994) e Cicatriz (1995 - 1997). Em ambos os casos, a atriz recupera negativos que estavam esquecidos há meio século, imagens completamente abandonadas em arquivos de jor-
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nais, hospitais e penitenciárias. No primeiro caso, trata-se de fotografias de candangos mortos na construção de Brasília, que a atriz recolheu, tratou e (re)organizou para a exposição “Revendo Brasília”. O resultado é uma instalação sombria e inquientante, apresentando 40 retratos em película ortocromática pintada e 10 retratos em fotografia em cor, em papel resinado, dispostos em bandejas de ferro. Já em Cicatriz (19951997), Rennó se apropria de inúmeros negativos, produzidos entre os anos de 1910 e 1950, pelo Departamento de Medicina e Criminologia da Penitenciária do Estado de São Paulo, para fins de estudo de psicologia criminalista. Negativos que estavam descartados nos porões do antigo complexo do Carandiru. Como se vê, o que está em jogo aqui não é a produção de mais uma imagem, uma nova imagem, seguindo a ética modernista (e algo esquizofrênica) da busca desenfreada pelo novo, mas promover fissuras, interrupções, frestas de sentidos nos ciclos de vida e morte das imagens. De fato, Rosangêla não está interessada na “captura” ou na criação de novas formas visuais. Ela se insere numa linhagem de artistas que, a partir dos anos 1970, deslocam sua atenção da imagem em si mesma para suas condições de existência, seus modos de produção e circulação, sua história ao mesmo tempo material, social e política. Nesse programa, a artista opera tentando extrair novas leituras, instaurar pequenos entorses nas redes de sentido através do deslocamento dessas imagens, agora recuperadas e retiradas de seus contextos de origem. Para Beatriz Furtado (2010, p. 5): São imagens que estavam à margem, arruinadas e que passam para outro circuito, onde se inventa um outro lugar, que não é mais (ou não propriamente) o da memória. O arquivo serve ao propósito do apagamento da primeira referência, em que as imagens abrem espaços de visibilidade de uma outra forma e não como repetição do que foram.
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As imagens ganham, portanto, uma nova vida e, neste gesto é possível perceber a dimensão marcadamente política do trabalho da artista. Uma dimensão que se deixa a ver, de um lado, na atenção que ela atribui à história dos vencidos, ou seja, na preocupação metódica de reunir, recolher e recuperar a imagem dos oprimidos, de conferir expressão visual àqueles que foram sistematicamente reprimidos, negados, esquecidos, produzindo uma inquietante e ao mesmo tempo poética versão fotográfica daquilo que o filósofo e teólogo alemão Walter Benjamin chamou de “história a contrapelo”. De outro lado, a força política dessa obra encontra-se no próprio gesto da apropriação, naquilo que Michel De Certeau chamou de estética do uso. Em A invenção do cotidiano (1994), De Certeau descreve e defende uma certa astúcia do uso, um movimento de apropriação, de reutilização “desabusada” ou desautorizada de linguagens, tecnologias, espaços e saberes. A partir dessa apropriação – intimamente ligada ao cotidiano e visível em diversas práticas artísticas e sociais contemporâneas — novos sentidos e funções podem ser propostos para objetos normalmente aprisionados em certas redes semânticas, em projetos políticos e institucionais por demais enrijecidos e interessados. “Essas astúcias próprias do cotidiano”, nos diz André Brasil, “formam a rede de uma antidisciplina, que se contrapõe às normas e estratégias” (Brasil, 2008: 28). Por meio delas, podemos restabelecer a questão da liberdade — o lugar da invenção e do jogo, o espaço da imaginação — num mundo marcado pelo automatismo generalizado, pela repetição cega clichês, pelos programas de toda ordem (Flusser, 1985). O uso ganha aqui, portanto, uma função eminentemente tática, o sentido de uma bricolagem ou de uma desprogramação, ou seja, de uma utilização livre e contingencial dos objetos do mundo, de maneira a se recriar o próprio mundo. Como já disse certa vez Gagnebin: Crianças e artistas se põem a experimentar com o mundo, isto é, a destruí-lo e a reconstruí-lo, a montá-lo e desmontá-lo, porque não o consideram como definitivamente dado. Essas brincadeiras essenciais
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implicam uma noção de ação política que não visa uma transformação do mundo segundo normas prefixadas, mas segundo exercícios e tentativas nos quais a experiência humana, a espiritual e inteligível como a sensível e corporal, também assume outras formas. (GAGNEBIN, 2008, p. 125).
Na obra de Ronsâgela Rennó, portanto, a fotografia é tomada como um processo amplo e abrangente, um acontecimento que envolve não só o momento do clique, mas todo um antes e um depois, os ciclos de vida e morte da imagem. Nesse contexto, o estatuto e o lugar do fotógrafo passam por uma transformação radical. Pois ele aparece aqui menos como um “caçador de imagens”, um arqueiro-zen à espera do disparo certeiro, à procura do “momento decisivo” e mais como um alquimista, uma espécie de crítico-colecionador trabalhando a partir de retalhos, fragmentos, sobras de sonhos e imagens, procurando criar algo de inesperado, a partir da releitura, da bricolagem, da combinação lúdica das peças disponíveis.
Um dispositivo relacional, uma arte do encontro Outro trabalho que tem revolucionado o campo fotográfico, nos forçando a repensar continuamente seus limites e potencialidades, é o do fotógrafo e artista plástico paraense Alexandre Sequeira. Em suas palestras, Sequeira gosta de se apresentar como um andarilho e contador de histórias, mas não é difícil entrever em suas obras uma postura marcadamente antropológica. De fato, basta alguns minutos diante de suas exposições para percebermos que a lei do antropólogo, a máxima antropofágica de Oswald de Andrade — “só me interessa o que não é meu” — constitui, ao mesmo tempo, a força e forma de suas imagens, a arquitetura secreta de suas instalações. Sequeira toma a fotografia, antes de tudo, como um dispositivo relacional, uma máquina afetiva capaz de promover encontros imprevisíveis, de atrair e aproximar as culturas mais distintas. Em suas obras, ela aparece, com efeito, não como uma “máquina de ver” — um dispositivo de registro ou
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de captura — e sim como uma potente ferramenta de aproximação e desvendamento do Outro, um instrumento disparador de encontros, capaz de nos abrir ao Outro, de nos lançar rumo ao imponderável de todo encontro, de toda alteridade. A fotografia é tomada aqui, portanto, como um elo, um comutador: aquilo que dispara uma relação, que garante a instauração de trocas, passagens, cruzamentos. Um aparelho, enfim, que produz acontecimentos nas imagens e no mundo. Como já observou André Rouillé (2009), “o processo fotográfico é precisamente o acontecimento”. É ele que proporciona o encontro entre a máquina e o mundo, entre o eu e o Outro, a imagem e seus referentes. E nas obras de Sequeira tudo o que envolve o encontro — a interação, a troca, a teia de afetos que aí se cria — tende, de algum modo, a ser preservado. Tudo o que atravessa e permite o surgimento das imagens, mas que, ao mesmo tempo, as excede, ultrapassa, tende a se materializar, a ganhar vida. Por isso suas obras se apresentam, na maior parte das vezes, como dispositivos, jogos, conjuntos articulados. Elas estruturam-se não como imagens singulares ou objetos isolados, mas como um campo de forças, um sistema de relações que envolve imagens sem dúvida, mas que as ultrapassa, fazendo delas apenas um termo num diagrama mais amplo e complexo. É o que vemos, por exemplo, em Meu Mundo Teu. Nesse trabalho, Sequeira convida dois adolescentes que não se conhecem a trocarem impressões sobre suas realidades através de cartas e fotografias. A mescla dessas visões de mundo apresentadas por Jefferson Oliveira, morador da ilha do Combú na região amazônica, e Tayana Wanzeler, moradora do bairro do Guamá na cidade de Belém, compõe então uma série de 15 fotografias que revelam uma nova realidade construída a partir do diálogo estabelecido entre os dois adolescentes. Nesse processo, o artista atua, sobretudo, como um mediador. É ele quem propõe e conduz os encontros fotográficos com cada um dos adolescente. É ele também que estabelece as regras, dispara o jogo e conduz, com extrema sensibilidade, o processo de experimentação e de troca fotográfica. Ao longo do ano de 2007, Sequeira convida os adoles-
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centes a produzirem registros fotográficos com câmeras artesanais de dois orifícios e com câmeras convencionais de dupla exposição. O resultado são imagens híbridas fascinantes, construções que (con)fundem diferenças e semelhanças num todo que aponta para novas significações, novas visões de mundo adquiridas a partir do encontro. Para o crítico Eder Chiodetto, o grande mérito de Sequeira está no processo, na proposição e manutenção, sempre arriscada, sempre instável, dessa teia de afetos que é encontro. Sequeira leva cada um dos adolescentes, e ele próprio, a mergulhar numa jornada de autoconhecimento por um jogo de contrastes entre culturas e realidades diferentes. Por meio de um processo fotográfico artesanal materializa-se a metáfora do encontro de dois seres, dois mundos, potencializando-se a afetividade e a riqueza que a amizade propicia (CHIODETTO, 2012).
Como resultado, o artista paraense monta uma exposição na qual as fotografias são apresentadas juntamente com as cartas trocadas pelos adolescentes. Estas últimas são expostas em caixas de vidro, pequenas vitrines que dão grande destaque ao objeto-texto: os diferentes tipos de papel utilizados, a caligrafia própria de cada adolescente, todas as marcas, os rastros, vestígios carregados de afeto e memória. Circulando pela exposição, nos surpreendemos ao ouvir fragmentos dessas cartas lidos pelos próprios adolescentes. São frases soltas, transmitidas por altofalantes, que nos relatam suas impressões sobre a vida, o amor e a amizade. Em Meu Mundo Teu, portanto, texto, som e imagem se associam de modo polissêmico e polifônico, criando uma rede de conexões e referências, um conjunto articulado que procura presentificar na instalação toda a riqueza dessas trocas, a multiplicidade da experiência compartilhada, as memórias e os afetos produzidos pelos encontros e desencontros de mundos, aparentemente, tão distantes. Como se vê, Meu mundo Teu ultraprassa em muito o domínio do objeto. Dito de outro modo, a potência da obra não
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se reduz à imagem em si mesma. A imagem é aqui parte de um processo mais amplo e complexo, parte de um dispositivo (maquinaria e maquinação) que inclui os adolescentes, as câmeras, as cartas, a dinâmica das trocas e da interação, a teia de afetos que aí se constrói, além, obviamente, da mediação e da montagem de Sequeira. A força e a beleza da instalação não se reduz a nenhum desse autores, de um a outro, ela oscila. Claro que cada foto participa e reflete esse processo que a forja, mas ela não passa de um termo nessa relação. É ali, no intertício, no seio heterogêneo e difuso da experiência, que ela se insinua, nunca sozinha ou isolada. Sequeira deixa de lado, portanto, o domínio das fotoobjetos ou das obras-imagens para se engajar no caminho dos processos, do evento, das modalidades. Sua obra se apresenta mais como um jogo, uma experimentação dispersa e criativa, uma prática coletiva ligada, como em Rennó, a uma certa “estética do uso”, a uma poética do cotidiano. Uma proposta, enfim, que não remete mais a concepções tradicionais da arte, mas a novas práticas estéticas a meio caminho entre bricolagem, jogo, experimentação e crítica. Destarte, não é só outra apreensão da fotografia que está em jogo aqui, mas, no limite, outra apreensão do estético. Não podemos dizer com certeza, por exemplo, que se trata de uma exposição de Alexandre Sequeira. Afinal, Meu Mundo Teu é um conjunto composto por fotografias, cartas e fragmentos sonoros criados pelos próprios adolescentes. Sequeira concebe e conduz o dispositivo, mas trata-se, antes de mais nada, de um exercício coletivo, um jogo compartilhado. Tal dispositivo, como vimos acima, articula uma multiplicidade de fatores e se apresenta como uma rede, um diagrama, uma bricolagem que torna indiscerníveis as dimensões individual e coletiva, humana e maquínica da exposição. Se, no trabalho de Rosângela Rennó, o problema da autoria estava ligado, principalmente, à apropriação e ressignificação de imagens existentes, era sua maneira, digamos, de compartilhar a autoria, de transformar a experiência estética em jogo coletivo e, repensar a noção de criação e de deleite artístico, em Meu Mundo Teu, Sequeira transfere para o jogo/dispositivo essa responsabilidade. Não se trata aqui da reapropriação de
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imagens, em uma postura duchampiana, mas de compartilhar autorias de maneira poética, afetiva e problemática. O artista paraense atua aqui, portanto, como um grande mediador. Ele dispara o acontecimento e, depois, coordenada os encontros, ora se aproximando ora se afastando do dispositivo. Problematiza, assim, tanto a questão da autoria quanto a concepção tradicional da fotografia como uma arte de registro, como um dispositivo de captura. Ao comentar suas obras, Sequeira assegura que “mais do que o registro de um estado de coisas”, o que sempre o moveu “foi a possibilidade de estabelecer, por meio da fotografia, uma relação que promovesse contatos e permutas” (SEQUEIRA, 2012, p. 144). Mais do que fabricar uma nova imagem, portanto, apenas uma imagem — conforme a expressão de Godard — o que está em jogo é a instauração de novas relações com o mundo. Retração do objeto e afirmação da vida. Tal como em Rirkrit Tiravanija, é o que acontece entre as pessoas que importa aqui: o evento, a troca, a interação social prevalecem à fabricação dos objetosimagem. De modo espectral, cada imagem participa desse processo que a forja, mas é ao mesmo tempo ultrapassada por ele. Percebo que, a cada novo trabalho que desenvolvo, distancio-me do ato de fotografar propriamente para, através da fotografia, tratar de questões que surgem das relações que estabeleço com as pessoas ou grupos em minhas ações. É para o encontro propiciado pela fotografia que dirijo minhas atenções, para dele conceber minha prática no campo das artes. E assim, cada nova experiência aponta para um horizonte de novas questões que só o desenrolar da ação é capaz de elucidar (SEQUEIRA, 2012, p. 152).
O jogo, o lúdico e a reinvenção da fotografia Sabemos o lugar que o conceito de jogo ocupa hoje em algumas propostas e legitimações da arte contemporânea. Ele
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estaria ligado, fundamentalmente, à idéia da interatividade, do humor, de um retorno tecnológico ao belo e ao sublime, um desejo de reconciliação com espectador, através das facilidades oferecidas pelas novas mídias e dispositivos. O jogo figuraria, neste contexto, a distância que se toma hoje em relação à crença modernista no radicalismo da arte e nos seus poderes de transformação. De acordo com Jacques Rancière, o lúdico e o jogo estariam “no centro das atenções quando se trata de caracterizar uma arte que teria absorvido os contrários: a gratuidade do divertimento e a distância crítica, o entertainment e a deriva situacionista” (RANCIÈRE, 2012, p. 25). Ora, o sentido que tomamos aqui está fundamentado, sobretudo, na filosofia estética de origem alemã, no trabalho de autores como Friedrich Schiller, Johan Huizinga, Walter Benjamin e Vilem Flusser. Trata-se de uma concepção que nos desloca para o mais longe possível dessa visão pós-modernista e desencantada de jogo. Pois, para esses autores, o jogo é a própria humanidade do homem, é o que o define acima de tudo: “o homem só é um ser humano quando joga” (SCHILLER, 1943, p. 205). O jogo, nos diz Schiller, é uma atividade lúdica que se desenvolve de maneira livre e desinteressada. Uma atividade que se opõe, portanto, tanto à servidão do trabalho quanto às ações que pretendem qualquer tomada de poder efetiva sobre as coisas e sobre as pessoas. Trata-se de um momento de suspensão da experiência cotidiana, um ritual “mágico” cuja principal característica é não ter finalidade, não ter alvo ou meta, além daquela estipulada pelo próprio jogo, pelo prazer livre e desinteressado de interagir com as formas, com o movimento, o outro e o mundo. Por isso, Schiller afirma que jogo é puro movimento, é “a realização do movimento como tal”, um estado de pura liberdade. E acrescenta: é um impulso que “se exerce acima das necessidades naturais da vida e independentemente dos interesses práticos. É uma manifestação de ordem espiritual, que se apresenta, sobretudo, como jogo estético”(Schiller apud NUNES, 2002, p. 55). Finalidade sem fim, portanto, pura gratuidade, a atividade lúdica do brincar é realizada pelo simples prazer que proporciona e deve ser compreendida como um estado do
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homem, uma qualidade definidora do humano — momento em que este se apresenta de maneira correlata à liberdade, relacionando-se com esta em seu mais algo grau. Para o filósofo techo-brasileiro, Vilém Flusser — cuja obra dedica uma atenção especial à relação entre fotógrafo e aparelho, ressaltando a importância de recolocarmos o problema da liberdade no contexto da arte e da vida contemporâneas — é justamente no espaço lúdico do jogo, no que ele guarda de atividade livre e desinteressada, no que há nele também de comportamento inventivo e irreverente, que podemos encontrar novamente a experiência do imprevisto, do improvável, a afirmação libertária e criadora do imaginário, a capacidade de invenção num mundo que se encontra, cada vez mais, “aparelhado”, programado, mundo onde os roteiros, as normas, os automatismos de toda ordem avançam sistematicamente sobre todas as esferas da vida.2 Segundo Flusser, o jogo representaria a possibilidade de escaparmos aos roteiros, de torcermos as limitações, a ordenação do visível, contrabandeando “na fotografia elementos estéticos, políticos e epistemológicos não previstos no programa” (FLUSSER, 1985, p. 28). “Jogar contra o aparelho”, portanto: eis aí sua fórmula, a um só tempo estética, ética e política. Nela reside o desafio e a tarefa de todo criador contemporâneo: não se submeter aos programas, não endossar a produtividade programada pelos aparelhos, operar nas brechas, nas dobras, subvertendo os códigos, desarticulando as referências, rompendo com os modelos instituídos. Já Walter Benjamin via na experiência do jogo, na vivência do lúdico, da brincadeira, a segunda metade da arte. Para o filósofo alemão, toda atividade artística-mimética se encontra cindida entre duas forças, dois pólos que a impulsionam dialeticamente. De um lado, a busca pela forma, a conquista da bela aparência (schöner Schein), um interesse que prevaleceu em toda arte clássica do belo. De outro, o impulso ao jogo, 2 Ver a este respeito a perspectiva de Jean-Louis Comolli, sobre a roteirização crescente de todas as esferas da vida a partir das mídias, da sociedade do espetáculo. COMOLLI, JeanLouis. Ver e Poder. A inocência perdida: cinema, televisão, ficção, documentário. Belo Horizonte: UFMG, 2008.
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à experimentação, à bricolagem, à capacidade de brincar, de se perder, de se colocar no lugar do outro. Numa longa nota da segunda versão da Obra de Arte na Época de sua Reprodutibilidade Técnica, Benjamin nos diz que: Aquele que imita só faz a coisa na aparência. Também se pode dizer: essa coisa ele a brinca/representa brincando (spielt). Assim se descobre a polaridade que reina na mimesis. Os dois lados da arte: a aparência e o jogo/a brincadeira (Spiel) estão como dormindo dentro da mimesis, estreitamente dobrados um no outro, tais as duas membranas da semente (Benjamin apud GAGNEBIN, 2008, p. 125).
Para Benjamin, essa segunda metade da atividade artístico-mimética tende a prevalecer na arte contemporânea, principalmente no universo da performance, dos happenings, das intalações e da arte conceitual. A partir dos anos 80, entretanto, ela começa a se fazer visível também no campo das práticas fotográficas. Inúmeras obras passam a se oferecer como dispositivo, acontecimento, como conjuntos ou sistemas articulados, uma experiência a meio caminho entre o jogo, a bricolagem e a experimentação, uma criatividade lúdica e dispersiva da qual, nos diz Gagnebin (2008: 122), “não se pode garantir o caráter revolucionário, mas que desenha uma outra apreensão do estético”. Nessas obras, a fotografia não aparece mais como imagem-relíquia, imagem-rastro, suposta emanação do real no coração da técnica. Aqui não se trata mais de evocar a nostalgia da bela aparência, de restaurar uma beleza inacessível, uma imagem aurática — o objeto a ser cultuado, contemplado — mas de instaurar bons encontros, produzir acontecimentos, criar práticas que se apresentem como um exercício coletivo, uma experiência ao mesmo tempo estética e política, mais ligada às noções de experimentação e de jogo do que aos arcaicos conceitos de contemplação e beleza. Nas palavras do próprio Benjamin, “nas obras de arte, o que é acarretado pelo
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murchar da experiência, pelo declínio da aura, é um ganho formidável para o espaço de jogo (Spiel-Raum)” (Benjamin apud GAGNEBIN, 2008, p. 125). Essa dimensão lúdica, esse jogar com e contra o aparelho, tem levado à fotografia a um lugar limítrofe, a uma zona de indiscernibilidade entre linguagens, artes e saberes. De fato, esses trabalhos balançam as velhas certezas da estética fotográfica, nos forçando a repensar a categoria do fotográfico, a questionar seus limites e pontecialidades, redefinindo radicalmente nossa maneira de perceber e de lidar com o meio. Em essência, obras como as de Alexandre Sequeira e Rosângela Rennó se apresentam como um enigma, um problema e nos levam a perguntar hoje não mais o que é, mas, principalmente, o que pode a fotografia. Apotam assim para o futuro, ensaiam novas possibilidades para um meio que, há quase dois séculos, nos ajuda a compor novas formas de ver e, simultaneamente, de estar-no-mundo.
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FLUSSER, Vilém. Filosofia da Caixa Preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. São Paulo: Hucitec, 1985. ______________. O Universo das Imagens Técnicas: um elogio à superfície. São Paulo: Annablume, 2008. FURTADO, Beatriz. Notas sobre uma estética do desaparecimento na obra de Rosângela Rennó. In: Revista Contemporânea, v.8, n1, julho de 2010. GAGNEBIN, Jean-Marie. “Da estética da visibilidade à estética da tatibilidade em Walter Benjamin”. In: Formas de percepção estética na modernidade. Org. Edvaldo Souza Couto e Carla Milani Damião. Salvador (Bahia): Quarteto Editora, 2008. MITCHELL, W. J. T. What do Pictures Want? The Lives and Loves of Images. Chicago, IL: University of Chicago Press, 2005. NUNES, Benedito. Introdução à filosofia da arte. São Paulo: Ática, 2002. RANCIÈRE, Jacques. A estética como política. In: Revista Devires. V.7, n2, p.14-36, Jul/dez. Belo Horizonte, 2010. ROUILLÉ, Andre. A fotografia entre documento e arte contemporânea. São Paulo: Senac, 2009. SEQUEIRA, Alexandre. “Imagem, realidade e fabulação: a reinvenção da memória na Vila de Lapinha da Serra”. In: Catálogo – Prémio Diário Contemporâneo de Fotografia. Belém: Diário do Pará, 2012.
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Ficção e encenação na fotografia contemporânea Susana Dobal Susana Dobal é fotógrafa e professora na Universidade de Brasília. Fez mestrado em fotografia (International Center of Photography/New York University) doutorado em História da Arte (CUNY/GC), pós-doc na Université Paris 8. Participou de mais de trinta exposições em Brasília, Rio de Janeiro, São Paulo, New York, Madrid, Buenos Aires e Nice. Publicou artigos sobre fotografia, cinema, arte e o livro Peter Greenaway and the Baroque: writing puzzles with images (Berlin, LAP, 2010). Desenvolve um blog dedicado a narrativas fotográficas: www.fotoescritas.blogspot.com.br.
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Quando nos primórdios do fotojornalismo brasileiro as fotografias da Guerra do Paraguai chegavam ao jornal carioca Semana Ilustrada para serem copiadas, impressas e divulgadas, importava menos saber quem tinha realizado a fotografia do que quem tinha sido o mensageiro a trazê-la. A ausência de crédito do fotógrafo era sinal da crença de que este teria apenas estado presente na cena e deixado à luz a tarefa de registrar o que havia à frente. O mensageiro, um militar ou personagem da política, era fonte mais segura a ser mencionada para legitimar a imagem no texto do jornal (ANDRADE, 2004). Do século XIX até hoje, a concepção da fotografia mudou muito não só por causa das transformações técnicas que aumentaram as possibilidades de apreensão e de divulgação da imagem como pela evidência de que a fotografia constitui uma espécie de escrita com nuances próprias que a afastam do mero registro do real. Ou, em outras palavras, a ficção infiltrou-se no documento. Uma presença recorrente em qualquer compêndio de História da Fotografia, Os dois modos de vida (The Two Ways of Life, 1859), de Oscar Gustav Rejlander, lembra que a ficção esteve presente já bem no começo da história da fotografia (anunciada vinte anos antes). Essa combination print de Rejlander obtida a partir da combinação de cerca de trinta negativos diferentes mostra uma cena alegórica em que dois filhos partem da vida familiar para a cidade sendo que um escolhe o bom caminho do trabalho, da família e da fé e o outro escolhe o caminho dos prazeres e da perdição. Embora a imagem seja a mais citada, ela está longe de ser a única do gênero já que a fotografia encenada era comum em retratos e tableaux vivants montados para a câmera fotográfica, principalmente na Inglaterra – o próprio Rejlander é autor também de uma fotografia da cabeça de São João Batista sobre uma bandeja, remetendo ao fato de que outro gênero comum na fotografia daquela época era a referência a temas bíblicos, mitológicos e literários. Nem todas aquelas imagens tinham o caráter moralizante da fotografia mais famosa de Rejlander, como se verá mais adiante. A fotografia encenada foi, no entanto, uma tendência que logo desapareceria da produção fotográfica que predominou no século XX e que será mais associada ao rea-
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lismo. No século XXI, porém, a unanimidade da abordagem realista parece abalada. Importante primeiramente definir o que se entende aqui por realismo e por ficção no contexto da fotografia para se chegar a como os dois se misturaram na época atual. O realismo da fotografia ficou identificado com a apreensão da realidade sem intervenção na cena — o que naturalmente não implica em total isenção do fotógrafo na composição da cena a ser registrada pois sabe-se que o momento, o enquadramento, o assunto são escolhas deliberadas e determinantes de quem está com o olho atrás do visor. Uma boa parte, senão a maior parte da produção fotográfica do século XX, sobretudo as imagens associadas à fotografia documental, foi realizada dentro desse parâmetro de captação da cena pelo fotógrafo com o mínimo de intervenção nela. Por ficção entende-se aqui o oposto, ou seja, a manipulação da cena a fim de se passar uma ideia pretendida, o que pode ser feito involuntariamente ou ocorrer de maneira deliberada. A emergência da ficção na fotografia contemporânea tem uma dupla manifestação: por um lado práticas aparentemente despretensiosas da fotografia como um registro de presidiários ou a fotografia de família, por exemplo, são retomadas para que se revele nelas as suas estratégias de representação. O realismo mostrase portanto como uma involuntária manipulação da realidade para se transmitir uma aparente espontaneidade do registro. Por outro lado, a encenação tem se tornado prática corrente mesmo no domínio da fotografia documental onde haveria uma expectativa de captação da realidade sem intervenção na cena diante da câmera. Esse duplo movimento de desvendar o caráter fictício de toda construção do real e de explicitamente simular a realidade é o que se verifica na obra de alguns fotógrafos contemporâneos cujas criações apontam para um retorno da ficção da fotografia. As imagens escolhidas aqui não esgotam e sim apenas exemplificam tendências que podem ser identificadas também na obra de outros fotógrafos e artistas que não serão mencionados. Em 1965, Pierre Bourdieu e um grupo de sociólogos franceses desvendavam o caráter convencional das fotos de família descrevendo-as como um fenômeno social relacionado a rituais
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de classe, no famoso livro Un Art Moyen – essai sur les usages sociaux de la photographie. Naquela obra, os autores demonstravam a consistência da prática fotográfica no contexto doméstico e a maneira como ela era usada para reforçar a integração familiar. Naquela mesma época, entre 1962 e 1966 com retomada do tema mais tarde, o pintor Gerhard Richter produzia uma série de pinturas em preto e branco baseadas em fotografias tiradas por anônimos, por ele mesmo ou publicadas na mídia. Em vez do discurso teórico dos sociólogos franceses, Richter adotava a linguagem artística para olhar para a fotografia de maneira distanciada e trazer à tona com seus quadros a vasta presença da imagem fotográfica como criadora de uma identidade social e histórica. Suas fotopinturas reproduzem não só as fotos de família tão parecidas com as que poderiam ser encontradas nas caixas repletas de pequenas fotos em preto e branco dos nossos pais, como também todo um universo de anúncios e reportagens que poderiam ir desde a mera curiosidade sobre o mundo animal até o crime ou o atentado marcante para a história. Tudo era reproduzido nos quadros com a mesma uniformidade borrada em preto e branco, ou em cor no caso de anúncios, que deixava explícita a dupla natureza da obra ao mesmo tempo pintura e fotografia. Esses quadros se distanciam da fotografia dando um passo para trás e transferindo-a para a pintura a fim de mostrar não o assunto fotografado, mas a prática fotográfica e o universo de conforto que ela era capaz de criar ao reafirmar seja o elo familiar ou os laços afetivos de maneira geral, seja o universo em volta ecoando na mídia, ou ainda os anúncios que ofereciam também conforto e parafernália material para contribuir na constituição da identidade do consumidor. O realismo das fotopinturas de Gerhard Richter refere-se não à cópia da realidade com o menor grau de intervenção possível, mas à reprodução do repertório de imagens que constitui ele sim, uma realidade em segundo grau não menos real. As fotopinturas se distanciam do ato fotográfico de captação da realidade ao mesmo tempo em que tornam a fotografia o assunto a ser representado. O aspecto fictício emerge desse deslocamento do real para a sua encenação. Paradoxalmente, tal movimento não parece se distanciar da realidade, ao contrário, afasta-se para estar mais perto dela.
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Estratégias parecidas podem ser encontradas na obra de Rosângela Rennó, que utiliza a fotografia jamais como fotógrafa e sim como colecionadora de imagens que uma vez recontextualizadas adquirem novo sentido. A artista coloca em destaque a utilização da fotografia em diversas das suas obras como um gesto social, afetivo, um exercício cognitivo onde o que conta é menos a captação do real do que a organização da experiência por meio da imagem. A realidade está, portanto, no gesto fotográfico ressaltado para destacar temas como a busca da identidade, os laços afetivos, o controle social, a construção da memória e o esquecimento. Em Cicatriz (1995), por exemplo, ela se apropria de uma seleção de imagens de um acervo de cerca de 1800 fotos realizadas provavelmente entre 1910 e 1940 na Penitenciária do Estado localizada no Complexo Carandiru em São Paulo. As imagens fazem um mapeamento do corpo organizado segundo o tema das tatuagens retratadas. Quando expostas na galeria resta o torso (cabeça excluída no enquadramento) classificado e marcado, resta sobretudo o gesto do psiquiatra que os fotografou para enquadrar os corpos desprovidos de subjetividade (FABRIS, 1998). Novamente o gesto fotográfico reemerge em Atentado ao Poder (1992), onde se vê treze fotografias expostas no chão de corpos assassinados durante o evento Rio 92. As fotos provenientes de jornais populares comentam tanto o jornalismo sanguinário de onde provêm as imagens quanto a morte banalizada em situações de marginalização bastante conhecidas no cenário brasileiro. Há aqui tanto o gesto do jornal quanto o gesto da artista que coloca as imagens no chão iluminadas com uma luz verde como uma forma de acentuar o deslocamento que ressignifica os corpos prostrados. Em outras obras, a fotografia aparece em sua materialidade seja enquanto álbuns de família expostos em vitrines (Bibliotheca, 2002), ou câmeras expostas junto com a derradeira foto realizada nela no projeto A Última Foto (2006). Em outras obras, a câmera marca presença pela sua ausência, como em Private Eye (1995) que traz um dicionário em cujo interior foi escavado o formato de uma câmera fotográfica acentuando o caráter devorador e colecionador da fotografia, ou ainda na obra Hipocampo (1995) onde nenhuma imagem é exposta, apenas o
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texto descrevendo a bomba de napalm e uma criança correndo, impresso em pigmento fosforescente que brilha no escuro depois de ser exposto à luz — um temporizador regula a oscilação entre luz e escuridão e o título dessa obra evanescente remete à parte do cérebro responsável pela memória (HERKENHOFF, 1998). De maneira geral, em diversas das suas obras, Rosangela Rennó também usa recursos para indicar o caráter evanescente da imagem e o papel da fotografia enquanto formadora tanto da memória quanto do esquecimento seja pela seleção do que será lembrado seja pela banalização do excesso de imagens dispersas e desconectadas do contexto que originalmente lhes deram uma significação. A sua obra excede em recursos para fazer ver a imagem fotográfica, ora deslocando a sua materialidade para suportes diversos que podem ir desde a utilização da fotografia em si à impressão em monocromos onde a imagem quase desaparece, ora trabalhando com a mera sugestão da imagem pelo texto. O que se vê nessas diversas reapresentações do gesto fotográfico é a encenação de fatos reais sempre deslocados do seu contexto original para fazer emergir a constituição da memória e da identidade da qual a fotografia participa. Em obras mais recentes, Rosângela Rennó trabalha com vídeo, como em Espelho Diário (2001), que interessa aqui por fazer ver mais uma vez o jogo entre ficção e verdade. Nessa obra a fotógrafa reuniu personagens que tinham o mesmo nome dela e cujas histórias ela colecionou durante oito anos a partir de notícias de jornal (BIASS-FABIANI, 2009). Ela depois pediu à escritora Alicia Duarte Penna que escrevesse monólogos referentes às 133 Rosângelas selecionadas. O texto representado por Rosangela Rennó é projetado em tela dupla em uma instalação em que o processo de duplicação chama a atenção mais uma vez para o próprio mecanismo de representação1. Há ainda mais do que duplicação, pois uma multiplicação em tantas Rosângelas termina oferecendo um panorama social bem heterogêneo ao mesmo tempo em que Nos vídeos as telas ora projetam a mesma imagem, ora apresentam uma ligeira defasagem. Trecho do vídeo de duas horas pode ser visto em http://www.rosangelarenno.com.br/obras/ view/26/1 Acessado em 19.5.2013. 1
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testemunha sobre os processos de identificação e emancipação de si presente em todo mecanismo ligado à ficção. No seu ensaio “O que pode a literatura?”, Tzvetan Todorov menciona casos reais em que o papel da literatura teria sido o de permitir a reconexão com o mundo após uma experiência traumática e ressalta ainda a importância da ficção como uma forma de a pessoa colocar-se na posição do outro. Verdadeira ou fictícia, a obra de um historiador ou de um romancista concidiriam na capacidade de construir uma explicação coerente do mundo, sendo que no caso da literatura, sob a perspectiva de um personagem (TODOROV, 2012). A obra de Rosângela Rennó lembra esse mesmo mecanismo em jogo também por meio das palavras mas principalmente pela imagem. Sua encenação das inúmeras Rosângelas remete também ao processo de identificação com que nos reconhecemos nas fotopinturas de Gerhard Richter, afinal, trata-se sempre de encontrar os laços que nos significam seja pelo espelhamento no outro, seja pelo repertório de imagens das notícias, dos anúncios, dos álbuns, dos inúmeros acervos que nos circundam e que terminam por também nos significar. Podemos então voltar à presença da ficção na fotografia do século XIX com essa mesma perspectiva de procurar identificar nela uma cultura compartilhada. O realismo da fotografia do século XX relegou talvez rápido demais essa produção ao esquecimento devido ao seu caráter artificial para os olhos acostumados com a fotografia documental. Os tableaux vivants reproduzidos em fotografias do século XIX na Inglaterra eram, no entanto, uma prática que existia independente da fotografia, o que garante que a sua utilização era no mínimo o registro de uma performance recorrente em um segmento da sociedade britânica. Essa prática trazida da França e da Alemanha ganha novo fôlego com o romance As Afinidades Eletivas (1809), de Goethe, em que os personagens se divertem com a representação de tabeaux vivants baseados em quadros de Van Dick, Poussin e Terborch. Qualquer conhecedor da história da fotografia associará o nome de Roger Fenton imediatamente ao seu registro fotográfico da Guerra da Crimeia. Em 1854 ele foi convocado, porém, para tarefa mais lúdica. Depois de terem visitado a primeira exposição da
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London Photographic Society do qual eram patronos, a rainha Vitória o e o príncipe Albert chamaram Fenton, que era membro dessa sociedade, para registrar seus filhos em uma série de tableaux vivants inspirados no poema The Seasons de James Thomson.2 A utilização da fotografia, no entanto, não se resumia ao mero registro pois logo os fotógrafos se tornariam diretores da encenação para obter o máximo de expressividade na cena.
Julia Margaret Cameron. Mariana: “She said I am aweary aweary I would that I were dead” *, 1875.
A obra de Julia Margaret Cameron (1815-1879) é representativa dessa prática e também do costume de se fazer retratos em que a pessoa posava como algum personagem. Uma A menção aos tableaux vivants foi baseada no catálogo da exposição no Musée d’Orsay: Tableaux Vivants. Fantaisies photographiques victoriennes (1840-1880). Paris, Éditions de la Réunion des musées nationaux, 1999. * (verso do poema Mariana de Alfred Tennyson) Albúmen 356 x 279 mm 2
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consulta às fotos publicadas do acervo de fotografias dela no Paul Getty Museum, em Los Angeles, revela que a fonte para as suas fotografias eram personagens de peças e romances conhecidos, personagens e cenas bíblicas ou mitológicas, representação de versos de poemas, tipos exóticos referentes ao contexto colonial, referências a pinturas diversas, representações de cenas históricas, lado a lado com meros retratos em que a pessoa representava apenas a si mesma porém registrada sob luz cuidadosamente preparada (CAMERON, 1996). Cientistas, poetas, pintores, familiares, ocasionais visitas e empregados que faziam parte da vida de Cameron eram convidados a posar para o que se tornou um acervo do imaginário da época vitoriana. A pintura pré-rafaelita, o teatro e a fotografia compartilhavam desse mesmo repertório de cenas em que se vê principalmente figuras femininas de cabelo solto envoltas em tecidos igualmente lânguidos. Tudo são encenações: o sobrinho-neto vira querubim, a filha adotiva é uma bacante, o pintor William Holman Hunt e o diplomata William Gilford Palgrave evocam, de turbante e túnica, o exótico Oriente Médio, dois dos seis filhos da fotógrafa ajudam a compor a cena histórica em que a rainha Filipa roga ao rei Eduardo III que poupe a vida dos burgueses de Calais. Os olhos contemporâneos certamente olharão com mais condescendência para as montagem de cenas por Lewis Carroll com crianças, como no seu divertido São Jorge e o Dragão em que se vê a encenação deliberada e tosca, porém evocativa do universo infantil que transita mais facilmente para a ficção. A obra de Julia Margaret Cameron e de tantos outros que fotografaram tableaux vivants e retratos encenados no século XIX merece, no entanto, ser reavaliada senão pelo depoimento histórico que trazem de uma remota prática que aliava fotografia e ficção, então pelo simples motivo de que tal prática hoje é retomada mesmo nos domínios onde ela pareceria menos aceitável. A tradição da fotografia documental começa com a própria história da fotografia, como atesta a obra do citado Roger Fenton e seu registro da Guerra da Crimeia ainda com a técnica do colódio que exigia, assim como fazia Julia Margaret Cameron, a preparação da placa sensível com colódio (uma mistura de nitrato de celulose, éter e álcool) e nitrato de prata
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no momento de se fotografar, além de longo tempo de exposição da placa ainda úmida. Embora hoje as imagens de Fenton sejam vistas como tendenciosas pois evitavam mostrar a guerra de maneira que fosse desagradável aos olhos da coroa inglesa, ali já se configurava o início da fotografia documental a começar pela escolha do tema a ser fotografado — um assunto que ia além da esfera privada e tinha repercussão para a população dos países envolvidos. Fenton pode ser perdoado pelo fato de que até hoje pode-se argumentar sobre a isenção de qualquer cobertura de guerra divulgada na mídia. As dificuldades técnicas também limitavam as cenas a serem apreendidas, embora não possam ser consideradas como justificativa para tudo o que as suas imagens deixaram de mostrar. O mérito de Fenton e de todos os que fotografaram no século XIX foi utilizarem uma tecnologia difícil em situações muitas vezes de acesso complicado. A câmera ficaria cada vez mais ágil e rápida permitindo a produção de imagens e consolidação da fotografia documental com as seguintes características gerais: cenas flagradas com luz ambiente ou flash, síntese do acontecimento com a escolha do enquadramento e da cena a ser registrada, temas que tivessem repercussão social seja pelo fato de constituirem uma denúncia ou por ajudarem na divulgação de notícias ou de temas mais aprofundados, no caso dos ensaios fotográficos. A agilidade da câmera e a expectativa de realismo por parte dos leitores dessas imagens garantiram a confiança nesse tipo de registro em que o fotógrafo está preferencialmente na situação de personagem invisível na cena. O suposto realismo da fotografia documental foi, no entanto, abalado pelo reconhecimento e mesmo pela busca de um estilo próprio de cada fotógrafo, evidente tanto pela sua escolha temática como pela sua maneira de fotografar. Uma característica mais inusitada, no entanto, vem também abalar o realismo documental quando a encenação começa a fazer parte desse mesmo acervo de imagens. Em 2012, o Jardim Gramacho, o maior aterro sanitário da América Latina localizado no município de Duque de Caxias no Rio de Janeiro, foi desativado após 35 anos de existência.
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A situação era propícia para a cobertura jornalística: além da miséria em volta havia o problema dos cerca de mil e quinhentos catadores de lixo que trabalhavam com reciclagem no local e que precisariam de assistência. O assunto repercutiu em diversas reportagens na mídia, a maioria com imagens flagradas no local mostrando a multidão de catadores em meio à imensa quantidade de lixo acumulado e uma revoada de urubus. Foi ocasião também para o jornal francês Le Monde publicar um portfólio sobre o assunto do fotógrafo Fred Merz, com características diferenciadas. Nas fotos, os catadores apareciam centralizados e iluminados com luz artificial em meio ao lixão, sempre com seus rostos ocultados da maneira mais natural possível com sacos de lixo ou enquadramentos estratégicos. Em entrevista, o fotógrafo declara que prefere ter um trabalho preciso com a luz e usar uma iluminação que lembra o cinema a fim de conseguir o máximo de nitidez ao retratar o personagem e seu ambiente.3 O ensaio de Fred Merz chama a atenção por sugerir uma encenação dos próprios personagens no ambiente deles, porém com um tratamento estético distante do padrão da fotoreportagem. Olhos vigilantes de um © Fred Merz / Rezo.ch)
Fred Merz. Catadores, Jardim Gramacho (RJ), Brasil. 2010. Para o portfólio publicado no Le Monde ver http://www.lemonde.fr/planete/portfolio/2012/05/17/rio-de-janeiro-jardim-gramacho-la-plus-grande-decharge-d-amerique-dusud_1702498_3244.html ; para um vídeo com entrevista com o fotógrafo ver http://www. youtube.com/watch?v=-8mbzhNbfUM Acessados em 19.5.2013. 3
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padrão de fotojornalismo poderiam acusá-lo de maquiar o assunto, porém as legendas bem escritas expõem o problema de maneira eficiente, pelo menos no caso da galeria que traz essas fotos no jornal Le Monde. Em 2010, o evento Paraty em Foco trouxe ao Brasil uma exposição do argentino Alejandro Chaskielberg que, assim como Fred Merz, tem pouco mais de trinta anos, graduou-se em fotografia e realiza imagens documentais também com iluminação artificial. Os temas do premiado fotógrafo são, por exemplo, a vida da população que vive às margens do Rio Paraná no lado argentino, ou a vida de uma comunidade agrícola em Turkana, no Quênia. Chaskielberg arma cuidadosamente suas cenas, ensaia com os retratados, passa uns vinte dias preparando suas fotos para realizá-las depois em um ou dois dias. Ele tem preferência por cenas noturnas iluminadas com a luz da lua, com flash e luz artificial direcionada durante o tempo de exposição para as partes que o fotógrafo quer iluminar, captadas com câmera de grande formato e longo tempo de exposição — cinco a dez minutos. Chaskielberg comenta que quer trabalhar “na borda da realidade, criando roteiros fictícios com pessoas e situações reais, tentando forçar os limites da fotografia documental com processos técnicos para transformar a percepção natural da luz, das cores e espaços”.4 Assim como na série de Fred Merz, os temas são tipicamente da tradição da fotografia documental mas os retratados são convidados a encenar a si mesmos. O flagrante foi substituído pela vontade de produzir uma imagem com melhor definição e iluminação irreal para os padrões da fotografia documental – não por acaso, a oficina de Chaskielberg oferecida no Paraty em Foco chamava-se “Documental mágico – novos olhares na fotografia”.
“Chaskielberg says he intends to work “on the border of reality, creating fictional scenarios with real people and situations, trying to push the limits of documentary photography, using technical processes to transform the natural perception of light, colours and spaces.” in “Brighton Photo Biennial: Alejandro Chaskielberg” in www.bjp-online.com/ british-journal-of-photography/interview/1736687/brighton-photo-biennial-alejandrochaskielberg#ixzz2TltAf1r2 O mesmo link traz também uma entrevista com o fotógrafo. Para as fotografias de Chaskielberg ver www.chaskielberg.com Acessados em 19.5.2013. 4
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©Delphine Balley
Le pot au feu - M. C. retrouva sa femme grièvement brûlée par le plat de pot-au-feu. Il réfléchit jusqu’au lendemain soir avant d’annoncer sa mort à la police.
Delphine Balley, da série Histoires Vraies, 2006.*
O caráter mágico emerge de forma mais evidente na obra de duas fotógrafas que também trabalham com a encenação de maneira a oscilar mais claramente entre a realidade e ficção. Se o passado evocado nas fotografias britânicas do século XIX remetia a acontecimentos históricos ou à literatura medieval, a fotógrafa francesa Delphine Balley recorre também a familiares e amigos para reencenar o passado, porém aqui trata-se de evocar a época contemporânea às fotografias dos tableaux vivants. Suas cenas registradas também com câmera de grande formato e deliberadamente posadas retratam, * (Cortesia da Galerie Suzanne Tarasieve) O Cozido – M.C. encontrou sua esposa gravemente queimada pelo cozido. Ele refletiu até a noite seguinte antes de anunciar a morte dela à polícia.
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por exemplo, na série Histoires Vraies (2006), personagens supostamente relacionados a notícias de crimes publicadas em jornais como o francês Matin e reconstituídas em fotografias que seriam dos personagens envolvidos ou do próprio crime. Na série Álbum de Família (2005-2010) são também seus familiares que posam em cenas surreais sempre com uma expressão séria e em situações intrigantes que provocam estranhamento no ambiente doméstico. A fotografia de família do século XIX serviu de fonte para suas fotografias, o que pode ser conferido na pose hierática dos seus personagens, agora imersos em uma atmosfera estranha e misteriosa. A referência ao crime em uma das séries lembra a presença iminente de alguma grave transgressão em meio a rigidez da pose dos personagens. O mundo cotidiano da vida doméstica em família ou das notícias de jornal está sempre prestes a ser desestruturado nas suas encenações meio verdadeiras porque baseadas ora na sua própria vida ora em faits divers cuidadosamente colecionados, e também meio falsas porque se trata sempre de uma ficção baseada em fatos reais. Em New York, a mexicana Dulce Pinzón também recorre à encenação para retratar um tema mais próximo da fotografia documental: a vida dos mexicanos imigrantes na cidade e o dinheiro que conseguem arrecadar com o trabalho, para enviar à família. Cada um dos imigrantes foi fotografado com uma legenda em que consta quanto conseguem economizar, a região do México de origem e a atividade que exercem em New York, geralmente ligada a um subemprego. Cada um aparece, porém, retratado em ação na atividade que exerce vestido de algum super-herói em pleno meio urbano: homem-aranha limpa as janelas de um prédio alto, Robin é um michê em Times Square e a mulher-gato é uma babá. Todos parecem muito à vontade flagrados em plena atividade – há humor nessas fotografias ao mesmo tempo em que a legenda transforma o aspecto lúdico da imagem em uma realidade mais árdua.5 Os tableaux vivants de Dulce Pizón mesclam situações verdadeiras com um repertório de personagens oriundos não da literatura, da mitologia ou da bíblia e sim da indústria cultural. Para a série Super-heróis de Dulce Pinzón ver www.dulcepinzon.com/superheroes.htm Acessado em 19.5.2013. 5
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Na China, o fotógrafo Maleonn percorreu trinta e cinco cidades em 2012 e produziu 1600 retratos de voluntários que quisessem ser fotografados na sua van transformada em estúdio ambulante fantasiados, devidamente registrados em cenário específico para melhor caracterizá-los com as roupas que achassem na van de Maleonn ou que eles mesmos trouxessem.6 A série Studio Mobile foi toda postada no Weibo, a versão chinesa do Twitter. O estúdio ambulante era equipado com uma impressora de onde saía o retrato oferecido à pessoa fotografada. Maleonn afirma querer evitar assim o mercado da arte e atingir as pessoas comuns, ser útil a elas oferecendolhes um retrato de si mesmas. Não faltaram adeptos para a ideia dele – curiosamente, as pessoas se animaram em ser fotografadas como personagens históricos, super-heróis, personagens de contos de fada ou da literatura chinesa, ou ainda vestindo trajes típicos da China ou da Ásia de maneira geral.7 Estamos assim de volta a uma prática muito parecida com as fotografias vitorianas, sendo que a fonte para a fantasia contemporânea foi deslocada para a indústria cultural e temas ou tipos mais atuais. Embora os tableaux vivant e os retratos encenados tenham conhecido maior popularidade na Inglaterra da segunda metade do século XIX, a encenação nunca esteve totalmente ausente da história da fotografia. O norte-americano Edward
Para o ensaio do fotógrafo ver galeria no The Guardian (26.3.2012): www.guardian.co.uk/ world/gallery/2013/mar/26/maleonn-mobile-studio-china-pictures#/?picture=406193357 &index=5 Para outras imagens do mesmo ensaio no site do fotógrafo ver www.maleonn. com/works/609.html 7 A tradição da fotografia encenada com grupos é particularmente fértil na China, como pode ser verificado na obra mais conhecida do fotógrafo Wang Qingsong e suas encenações com grupos numerosos representando diversos aspectos da cultura chinesa. No seu História de Monumentos, por exemplo, o fotógrafo trabalhou com 200 modelos para produzir um mural fotográfico de 42 m mostrando de forma irônica o gosto chinês pelo monumento, onde não faltam também referências igualmente irônicas à cultura ocidental. Aqui dei preferência às fotografias de Maleonn por estar mais ligado ao retrato e trabalhar de maneira despretensiosa e original na escolha dos meios para conseguir interagir com as pessoas e despertar nelas uma imagem fictícia (?) de si mesmos. O trabalho de Wang Qingsong, no entanto, merece ser lembrado pela maneira teatral com que usa a fotografia para retratar a China contemporânea. 6
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(©Maleonn)
Maleonn, da série Maleonn’s Photo Studio, 2011.
Curtis fez amplo registro fotográfico dos índios do seu país em elegantes retratos posados e cenas ao ar livre também claramente posadas. Seu trabalho é muitas vezes visto com certa desconfiança pela antropologia, mas para o olhar da história da fotografia a ficção de Curtis não deixa de ser um documento tanto sobre os índios como de uma atitude particular perante eles. No Brasil, o fotógrafo francês Jean Manzon, que trabalhou na revista O Cruzeiro entre 1943 e 1951, trabalhava com iluminação artificial e cenas aparentemente flagradas, porém mais provavelmente posadas. O artificialismo de Manzon já foi denunciado tanto pelo seu caráter formal (Nadja Peregrino contrasta as fotos de Jean Manzon com as do seu contemporâneo José Medeiros que adotava a atitude do fotógrafo invisível predominante do século XX – PEREGRINO, 1991), quanto pelo seu caráter ideológico (Helouise Costa analisa como o Brasil representado por Jean Manzon atendia às expectativas gloriosas e nacionalistas da sua época — COSTA, 1998). O que se verifica hoje, porém, são mais do que aparições esporádicas de uma outra atitude frente ao realismo da fotografia documental. Tais manifestações são coerentes com
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discursos paralelos seja de teóricos que estudam a fotografia e apontam a sua transformação rumo a conscientização dos seus próprios recursos expressivos (ROUILLÉ, 2009), seja do meio artístico ou entre fotógrafos que trabalham de maneira mais livre em relação aos parâmetros de objetividade da fotografia documental. Há ainda uma tendência a abalar o realismo que pode ser verificada também na curadoria de exposições, como a exposição “Documentário Imaginário” organizada por Eder Chiodetto em setembro de 2012 (Oi Futuro, Rio de Janeiro), ou ainda na pesquisa acadêmica (LOMBARDI, 2007). A reentrada da ficção no domínio da fotografia documental não deve ser vista apenas como um abalo da crença na objetividade fotográfica, mas também como um reconhecimento de que, assim como as estratégias do realismo são historicamente determinadas �������������������������������������������������������� -������������������������������������������������������� o que lhes dá um caráter temporário e fictício, a ficção traz um realismo próprio ao representar por vias indiretas uma época, suas referências, sua cultura. Isso é o que pode ser verificado com mais facilidade quando investigamos as fotografias encenadas do século XIX a partir do ponto de vista privilegiado de quem olha de outro momento histórico; isso é também o que as obras de Gerhard Richter e de Rosângela Rennó demonstram ao olharem com mais distanciamento para a produção fotográfica mais recente e deslocarem essas imagens para um contexto em que passam a ser vistas não apenas pelas cenas que mostram, mas por si mesmas, pelas suas estratégias de representação da suposta realidade.
Referências ANDRADE, Joaquim Marçal Ferreira de. História da fotorreportagem no Brasil: a fotografia na imprensa do Rio de Janeiro de 1839 a 1900. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. BIASS-FABIANI, Sophie. “Rosângela Rennó: memórias refletidas”. In MACIEL, Kátia (org.) Transcinemas. Rio de Janeiro: Contracapa, 2009. p. 321-325. CAMERON, Julia Margaret. Julia Margaret Cameron: photographs from the J. Paul Getty Museum. Los ������� An-
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geles, Califórnia: J. Paul Getty Museum, 1996. COSTA, Helouise. “Palco de uma história desejada: o retrato do Brasil por Jean Manzon”. In Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. N. 27 – Fotografia, 1998. p. 139-159. FABRIS, Annateresa. “Identidades Seqüestradas”. In SAMAIN, Etienne (org.) O Fotográfico. São Paulo: Hucitec/CNPq, 1998, p. 273-279. HERKENHOFF, Paulo. “Rennó ou a beleza e o dulçor do presente”. In RENNÓ, Rosângela. Rosângela Rennó. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1998. LAURENT, Olivier. “Brighton Photo Biennial: Alejandro Chaskielberg”. In Brithish Journal of Photography. 1.10.2010. www.bjp-online.com/british-journal-of-photography/ interview/1736687/brighton-photo-biennial-alejandrochaskielberg#ixzz2TltAf1r2 Acessado em 19.5.2013 LOMBARDI, , Katia Hallak. Documentário imaginário: Novas potencialidades na fotografia documental contemporânea. Dissertação de mestrado, UFMG, 2007. Disponível em bocc. ubi.pt/pag/lombardi-katia-documentario-imaginario.pdf ROUILLÉ, André. A fotografia entre documento e arte contemporânea. São Paulo: Senac, 2009. PEREGRINO, Nadja. O Cruzeiro: a revolução da Fotorreportagem. Rio de Janeiro: Dazibao, 1991. Tableaux Vivants. Fantaisies photographiques victoriennes (1840-1880). Catálogo de exposição realizada no Musée d’Orsay. Paris: Éditions dela Réunion des musées nationaux, 1999. TODOROV, Tzvetan. A literatura em perigo. Rio de Janeiro: DIFEL, 2012.
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Sites sobre fotógrafos e artistas consultados: CHASKIELBERG, Alejandro. www.chaskielberg.com Entrevista com o fotógrafo: www.bjp-online.com/britishjournal-of-photography/interview/1736687/brighton-photobiennial-alejandro-chaskielberg#ixzz2TltAf1r2 MALEONN www.maleonn.com The Guardian (26.3.2012): www.guardian.co.uk/world/gallery/2013/mar/26/maleonn-mobile-studio-china-pictures#/? picture=406193357&index=5 MERZ, Fred Ensaio fotográfico no jornal Le Monde: “Rio de Janeiro : Jardim Gramacho, la plus grande décharge d’Amérique du Sud” www.lemonde.fr/planete/portfolio/2012/05/17/rio-de-janeiro-jardim-gramacho-la-plus-grande-decharge-d-ameriquedu-sud_1702498_3244.html Entrevista com o fotógrafo Fred Merz: www.youtube.com/ watch?v=-8mbzhNbfUM PINZÓN, Dulce. www.dulcepinzon.com/superheroes.htm RENNO, Rosângela www.rosangelarenno.com.br
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Documentação fotográfica: do registro objetivo à descrição visual densa1 Milton Guran Milton Guran é antropólogo e fotógrafo���������������������� , doutor em Antropologia (EHESS - França, 1996) e mestre em Comunicação Social (UnB, 1991). É professor visitante do Progama de Pós-Graduacao em História da UFF e pesquisador do LABHOI – Laboratório de História Oral e Imagem da UFF e do Departamento de Ciências Sociais da UFPR. Realizador e coordenador geral do FotoRio – Encontro Internacional de Fotografia do Rio de Janeiro e realizador dos Encontros sobre Inclusão Visual do Rio de Janeiro. Membro do Comitê científico Internacional do Projeto rota do Escravo da Unesco e da diretoria executiva da RPCFB – Rede de Produtores Culturais da Fotografia no Brasil.
1 Agradeço à Profª Ana Maria Mauad (LABHOI – UFF) pelas preciosas sugestões feitas à primeira versão desse texto.
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Para copiar os milhões e milhões de hieróglifos que cobrem, também no lado exterior, os grandes monumentos de Tebas, Menfis, Karnak etc seriam necessárias várias vintenas de anos e legiões de desenhistas. Com o daguerreótipo um só homem poderia dar conta da tarefa.
Com essas palavras, diante da Câmara dos Deputados da França e, logo depois, na sessão de apresentação do invento de Daguerre à Academia de Ciências de Paris, o astrônomo e político François Arago sublinhou a importância do novo procedimento de produção de imagem para a ciência, não apenas no campo da arqueologia, como citado, mas também no da astronomia, fotometria, topografia, medicina, dentre outros (ARAGO, 1839, p. 28-30). De fato, a fotografia rapidamente se impôs como uma ferramenta da ciência moderna. Como explica Rouillé (2009, p.109), funcionando ela própria conforme princípios científicos, a fotografia vai contribuir para modernizar o conhecimento; em particular, o saber científico. (...) É na astronomia e na microfotografia, ciências ao mesmo tempo dinâmicas e habituais usuárias de instrumentos óticos, que o aparelho fotográfico é primeiramente utilizado.
Reconhecida desde o berço, portanto, como preciosa para as ciências exatas, a fotografia foi, aos poucos, se mostrando também útil a um novo campo de conhecimento, o das ciências sociais, que surgia justamente no mesmo momento, como destacou Howard Becker, em um artigo onde aborda a divulgação do invento da fotografia em paralelo à publicação, em 1840, do texto de Auguste Comte que marca o nascimento da sociologia (BECKER, 1974, 1986). Ambas vinham, de certa forma, responder à demanda da sociedade da época por um autoconhecimento e por meios da objetivação do mundo visí-
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vel diante de um impasse cultural e da crise de representação plástica vigente (FLUSSER, 2002, p. 17-18). A fotografia, então, apareceu como uma ponte entre a realidade do dia-a-dia das pessoas e a representação dessa realidade. Esta foi a principal demanda social, por assim dizer, a que fotografia veio responder. Por sua vez, as pessoas também não entendiam o rumo da sociedade naqueles dias de profundas transformações e a sociologia veio responder a esta demanda de entendimento sobre como a sociedade se organizava. Mais adiante, ao longo do último quartel do século XIX, a Europa se lançou na política de ocupação colonial da África e da Ásia e, com isso, um novo ramo das ciências sociais surgiu, buscando uma forma de conhecer e entender o ‘outro’, aquele indivíduo que é completamente diferente do europeu. Essa necessidade de entender para dominar, é bom lembrar, mobilizou a intelectualidade da época no sentido de desenvolver estudos específicos sobre populações completamente diferentes da matriz cultural européia. E, assim, nasceu a etnologia ou antropologia social, na denominação de tradição anglo-saxônica. Tomada como uma testemunha da verdade, a fotografia “ampliou a visão das massas”, como destacou Gisèle Freund (1995) ao se lançar, desde logo, à tarefa de documentar terras distantes e costumes. Um dos exemplos mais expressivos são as expéditions photographiques financiadas pelo governo francês. Há, por exemplo, aquela a cargo de Maxime du Camp2 que, ainda na década de 1840, foi encarregado de percorrer o Oriente Próximo e registrar monumentos e “curiosidades” daquela região, o que fez, em parte, em companhia do escritor Gustave Flaubert. Mais tarde, fotógrafos viajantes deram a conhecer aos europeus (justamente “ampliando a visão das massas”) os costumes do Oriente, como o escocês John Maxime du Camp foi um fotógrafo e intelectual francês que empreendeu as primeiras viagens com o objetivo de registrar fotograficamente terras distantes. Em 1844 e 1845 viajou pela Europa e Oriente Médio, e em 1849 e 1851 documentou o Egito e percorreu o norte da África e o Oriente próximo com Gustave Flaubert, o que rendeu a ambos várias obras de destaque. Em 1851 fundou a Revue de Paris e, em 1880, entrou para a Academia Francesa. Seus livros de viagem estão entre as primeiras obras a incluírem fotografias. 2
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Thomson,3 que fotografou principalmente a China e o Caboja, e os italianos Felice Beato e Adolfo Farsari, que fotografaram o Japão.4 Nesta mesma época, a fotografia dava os primeiros passos na documentação de grandes eventos, com o trabalho de Roger Fenton5 na Guerra da Criméia e de Mathew Brady6 e sua equipe na Guerra de Secessão dos Estados Unidos da América. Ainda no século XIX, a fotografia documental desempenharia um papel de relevância pelo trabalho de Jacob Riss, dinamarquês estabelecido em Nova Iorque, e de Lewis Hine, dentre outros exemplos (SOUZA, 2000). É nesse contexto que a fotografia foi incorporada aos estudos etnográficos ainda no tempo em que estes eram praticados em gabinetes, baseados em relatórios administrativos e militares do poder colonial e em digressões de viajantes e aventureiros, já que facilitava não só a descrição física de pessoas, objetos, artefatos e residências, como também era de grande valia para a descrição dos rituais. E, mais ainda, era a forma mais eficaz e evidente de dar a conhecer aspectos do ‘outro’, daquele indivíduo que pelas suas feições e práticas culturais era completamente diverso do europeu. John Thomson (1837-1921) foi fotógrafo, geógrafo e viajante, tendo angariado ampla reputação pelo seu trabalho no Oriente. Foi membro da Royal Ethnological Society e da Royal Geographical Society. 3
Felice Beato foi um súdito britânico de origem veneziana (são incertos o lugar e as datas do seu nascimento e morte), que na segunda metade do século XIX fotografou o Oriente Próximo e a Ásia. Sua documentação da Guerra da Criméia é considerada a primeira reportagem de guerra. Foi também pioneiro na documentação de tipos, costumes e paisagens do Japão, onde influenciou uma série de fotógrafos, entre eles o seu meio compatriota Adolfo Farsani (1841-1898). Este manteve um estúdio em Yokohama, onde mantinha em estoque imagens de Beato, e notabilizou-se pelo registro mesmo tipo de foto que Beato, utilizando inclusive a mesma técnica que este para pintura a mão de cópias em albumina. 4
Roger Fenton, fotógrafo britânico, foi para a Guerra da Criméia em 1855, financiado pelo governo britânico, com o compromisso de não mostrar os horrores da guerra. Apesar das dificuldades de se produzir fotografia na época, retornou com 350 negativos de grande formato, dos quais expôs 312 em Londres, com grande sucesso. 5
Mathew Brady, fotógrafo norte-americano e de origem irlandesa, notabilizou-se pela publicação, em 1850, do álbum Gallery of Illustrious Americans. Em 1856, criou o que seria considerado o primeiro anúncio publicitário moderno, ao oferecer, no New York Herald, seus serviços de fotógrafo. Com a colaboração de vários fotógrafos, documentou a Gerra Civil e é considerado um dos pais do fotojornalismo. 6
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Uma das primeiras expedições organizadas com o intuito deliberado de prospectar informações sobre esta alteridade foram as expedições de Alfred Cort Haddon ao Estreito de Torres, em 18987. Quando ele foi a campo no Estreito de Torres, no mais ambicioso projeto de pesquisa de campo até então empreendido pela academia européia, levou consigo aparelhos fotográficos e um cinematógrafo, que tinha acabado de ser inventado. Assim fizeram também antropólogos que, nas primeiras décadas do século XX, empreenderam estudos sobre as populações autóctones para as potências coloniais. É o caso do alemão Karl Weule que, nas suas pesquisas na África Ocidental, além do registro de pessoas e objetos, foi um dos precursores na utilização de séries de fotografias para descrição de tecnologias e rituais (WEULE, 2000); e do polonês Bronislaw Malinowski. A serviço da antropologia britânica, ele pesquisou durante anos nas Ilhas Trobiand, na Nova Guiné, o que lhe permitiu desenvolver o método da observação participante, base da moderna antropologia (MALINOWSKI, 1976). Outro marco na utilização da imagem é o trabalho do casal Gregory Bateson e Margareth Mead, autores de Balinese Character – A photographic analysis, obra seminal da dita antropologia visual publicada em 1942. Nas décadas seguintes, a aplicação da fotografia, sobretudo nos Estados Unidos, se desenvolveu bastante e motivou uma obra hoje clássica que é o Visual Anthropology - Photography as a Research Method, de John Colier Jr. (1986). Cabe lembrar que os exemplos citados constituem referências, mas não modelos, até porque são baseados em diferentes condições de trabalho de campo. Entretanto, essas experiências foram fundamentais para a constituição do campo da fotografia documental, tanto na parte técnica e operacional quanto estética, comprometido com a percepção crítica do mundo visível (EDWARDS, 1992).
Organizada pela Universidade de Cambridge, esta expedição é um marco fundador da antropologia britânica. Nela, Haddon contou com a participação de alguns dos grandes nomes da antropologia tais como W. H. R. Rivers e C. G. Seligman. 7
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A fotografia como instrumento de pesquisa nas Ciências Sociais Ao contrário do que sugere o título do livro do Collier, a fotografia não se constitui em um método, e sim em um instrumento da metodologia antropológica e é nesse sentido que a incorporo às minhas pesquisas. Grosso modo, temos duas maneiras de utilizar a fotografia na pesquisa antropológica, que correspondem a duas etapas distintas da pesquisa: um primeiro momento em que ela aparece como um instrumento para se prospectar informações e um segundo momento em que traz a sua contribuição na descrição do fenômeno estudado e no enunciado das conclusões, das reflexões sobre esse fenômeno (GURAN, 1987, 1989, 1990, 1994,1996, 2000, 2011). Isso posto, a questão que se coloca é se qualquer fotografia serve para esse fim. Em que pese o fato de que todo e qualquer documento fotográfico é, em si, fonte de informação, dependendo de como for interrogado, não é qualquer fotografia que vai responder a essa demanda específica das ciências sociais. O que queremos enfatizar é que nem toda fotografia funciona bem em uma pesquisa. Aliás, da mesma forma que não é qualquer fotografia que atende aos requisitos da identificação policial ou da informação jornalística, e assim por diante. Para melhor identificar e compreender que tipo de fotografia nos interessa de fato, desenvolvi o conceito de fotografia eficiente. Por fotografia eficiente compreendo aquela fotografia que não é boa, nem espetacular, nem “parece uma pintura”, mas que é eficiente na sua função de transmitir uma informação para uma determinada finalidade (GURAN, 2000). Um bom exemplo é a sempre citada fotografia da identificação policial, na qual a face do retratado deve ser uniformemente iluminada dos dois lados, a objetiva tem que estar na altura do olho, o cabelo tem que estar por trás da orelha e o fundo deve ser contrastante com a figura, que deve necessariamente olhar para a objetiva. Com isso, os departamentos policiais do mundo inteiro querem saber se há cicatrizes, estrabismo, tatuagem, se falta orelha, querem ver com clareza o perímetro da cabeça. Uma fotografia feita nessas condições, padrão 3x4 ou formato passaporte, é
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extremamente eficaz para a polícia mas, no entanto, se for publicada num jornal, independente do assunto que levou à publicação — por exemplo, uma premiação, ou uma grande conquista no campo da ciência — induz, num primeiro momento, a uma leitura completamente oposta. Porque quem vê uma fotografia dessas tende a interpretá-la como parte de um obituário, já que, jamais, um personagem de notícia é apresentado dessa maneira. Como enfatizamos, uma foto eficiente para uma coisa não o é necessariamente para outra. No que toca à pesquisa em ciências sociais, seja na antropologia, na sociologia, ou mesmo na história, sobretudo na história oral, cuja prática de campo é cada vez mais compartilhada com antropologia, a fotografia que para nós aparece como eficiente é aquela que expõe com clareza um aspecto de uma cena que nos permite ter acesso a uma informação útil para os objetivos da pesquisa. A fotografia pode cumprir várias funções no âmbito de uma pesquisa, tanto na prospecção de dados quanto no enunciado das conclusões (GURAN, 2000). Na sua prática de campo, certamente incorpora toda a experiência acumulada pelos fotógrafos flâneurs da fotografia humanista de tradição francesa, pelos praticantes da street photography na tradição anglo-saxônica, pelo fotojornalismo e pela fotografia de documentação. Em outras palavras, toda a experiência fotográfica de diálogo com o mundo visível tem sido reformatada pela antropologia — e também pela história oral, para nos limitarmos ao nosso foco principal — para responder às demandas metodológicas da disciplina. O que vemos acontecer cada vez mais, é o reaproveitamento dessa experiência fotográfica pelo fotografia documental. Da mesma forma, a fotografia documental, que era considerada praticamente extinta há vinte anos, tem conhecido um desenvolvimento surpreendente devido, em grande parte, à popularização da imagem digital e à ampliação dos circuitos de distribuição e consumo da informação visual que essa tecnologia colocou à disposição de todos. Mesmo fora do domínio da internet — consta que somente no Facebook houve um bilhão e meio de uploads nos primeiros momentos deste ano de 2013 — são inúmeros os sinais da importância da fotografia
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documental, expressa por livros e publicações especializadas. É o caso da revista francesa 6 Mois,8 inteiramente dedicada à fotografia de reportagem e documentação, que não apresenta anúncios publicitários, sobrevivendo unicamente da venda ao público. Outro exemplo é a espanhola Exit, que publicou recentemente um número exclusivamente dedicado ao “Novo documentarismo”.9 No campo da arte contemporânea, a fotografia documental tem firmado terreno, tanto na sua expressão vernacular (ver, por exemplo, a landart e bodyart) ou recriada, como uma ficção documental reivindicada e plenamente assumida. Um dos autores mais expressivos dessa corrente que ficciona uma cena testemunhada, com todos os requintes de uma produção fotográfica, é Mahomed Bourouissa, que produziu uma série sobre as favelas cariocas. 10 Toda essa experiência documental encontrou boa acolhida nos projetos que visam, sobretudo, a dar conta de uma situação socialmente complexa, articulando testemunhos orais e fotografia. Uma das primeiras e mais expressivas obras do gênero é Let Us Now Praise Famous Men, de James Agee com fotografia de Walker Evans, publicado em 1939. Embora este livro tenha marcado um gênero sempre seguido, foi a partir dos anos 1980, sobretudo nos Estados Unidos da América, que começaram a proliferar publicações de fotografia documental que dialogam diretamente com as propostas da história oral, de forma mais rigorosa ou simplesmente intuitiva.11 8
Revista bianual dirigida por Laurent Beccaria e Patrick de Saint-Exupéry, www.6mois.fr.
Exit Imagen y cultura - Nuevo documentarismo/New documentalism - N. 45, 2012. Publicação trimestral da editora Olivares y Associados, Madri. 10 www.mohamedbourouissa.com. A série sobre as favelas cariocas, intitulada “Periféricos”, foi apresentada no FotoRio 2009 (http://www.fotorio.fot.br/2009/). 11 É o caso, para citarmos alguns exemplos mais recentes, de Local Heros – Changing America (2000), organizado por Tom Rankin, dentro de um projeto do Center for Documentary Studies da Duke University em colaboração com o Center for Creative Photography da Universidade do Arizona; de Doner la parole / Hear them speak, de Raymond Depardon (Paris: Fondation Cartier pour l’Art Contemporain / Steidl, 2008); e de Refugee Hotel, com fotografia de Gabriele Stabiel e texto de Juliet Linderman (San Francisco: Voice of Witness / McSweeney’s Books, 2012). Todos esses livros apresentam testemunhos e histórias de vida das pessoas fotografadas. 9
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A descrição visual densa como método de documentação Dentro dessa linha de atuação, na busca de uma prática de trabalho de campo que, ainda que com limitações de tempo, desse conta de apresentar fenômenos sociais complexos de forma rigorosa, desenvolvemos um procedimento de fotografia documental que denominamos de uma descrição visual densa, numa aproximação estendida do consagrado método preconizado pelo antropólogo Clifford Geertz.12 Tratando das especificidades do trabalho do etnólogo, Geertz explica que o que o etnógrafo enfrenta, de fato (...) é uma multiplicidade de estruturas conceptuais complexas, muitas delas sobrepostas ou amarradas umas às outras, que são simultaneamente estranhas, irregulares e inexplícitas, e que ele tem que, de alguma forma, primeiro apreender e depois apresentar. (...) Fazer a etnografia é como tentar ler (no sentido de “construir uma leitura de”) um manuscrito estranho, desbotado, cheio de elipses, incoerências, emendas suspeitas e comentários tendenciosos, escrito não com os sinais convencionais do som, mas com exemplos transitórios de comportamento modelado. (GEERTZ, 1978)
Apoiada nesse princípio, a prática fotográfica assume a função precípua de se colocar a serviço do registro mais minucioso possível de todos os aspectos explícitos e implícitos da vida social, associando-o a relatos dos atores sociais envolvidos com o assunto fotografado e a uma contextualização das condições de produção do material. Na produção das imagens, o fotógrafo deve ter em mente que seu trabalho vai contribuir 12
GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978.
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para a pesquisa em dois eixos distintos mais conexos, que são o levantamento de informações e a descrição do fenômeno estudado. Ou seja, ele deve “fotografar para descobrir” — o registro do que representa o cerne ou aspectos destacados do fenômeno estudado e “fotografar para contar” — quando as imagens são fundamentais para dar conta da complexidade do fenômeno, ainda que apoiadas por um texto.13 A associação do registro visual aos relatos de histórias de vida das comunidades fotografadas amplia o universo de referências da pesquisa, possibilitando a criação de narrativas coordenadas onde o visual e o oral se complementam na produção do texto significativo. Adota-se, assim, o princípio da intertextualidade segundo o qual todos os textos sociais são lidos e interpretados com base em outros textos que lhes fornecem sentido e permitem a sua interpretação pela coletividade (KRISTEVA, 1969) Essa proposta está sendo implementada, pela primeira vez de forma ampla e conclusiva no projeto Nordestes Emergentes desenvolvido pela a Fundação Joaquim Nabuco (PE), que tem como objetivo levantar subsídios para redefinir a proposta museográfica do Museu do Homem do Nordeste.14 Para melhor entendermos a aplicação do método proposto, cabem algumas informações sobre o projeto no qual está sendo aplicado. Sabemos que um conjunto bastante diverso de novas relações sociais está se construindo a partir de novos parâmetros estabelecidos por um intenso — embora irregular — desenvolvimento econômico, aliado a práticas inovadoras oriundas das novas tecnologias e a novos parâmetros de produção e troca de informação. Paralelamente, a interação extremamente ativa da região Nordeste, com o restante do país e com o mundo, em função das possibilidades oferecidas pelas novas mídias, somadas aos canais tradicionais de comunicação de massas, acelerou as transformações sociais dos últimos 20 anos. GURAN, Milton. “Fotografar para descobrir, fotografar para contar”, In: Cadernos de Antropologia e Imagem, Rio de Janeiro, 10(1), 2000. p. 155-165. 14 O projeto Nordestes Emergentes, iniciado efetivamente em fevereiro de 2013 com duração até o final de junho do mesmo ano, é coordenado pela antropóloga Ciema Mello, do Museu do Homem do Nordeste, e por mim, com produção executiva do Estúdio Madalena (SP). 13
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Esse processo é, de certa forma, inerente à própria natureza do funcionamento das sociedades; o que faz a diferença neste caso é a intensidade e a rapidez com que ele vem se desenvolvendo. Podemos dizer que a cultura tradicional nordestina vai se reinventando, absorvendo e transformando novas formas de pensar e agir socialmente, e assim criando ou adaptando novas formas de sociabilidade que, na maioria das vezes, se acoplam ou se superpõem às tradicionais, sem eliminá-las de todo. Neste Nordeste que cresce a taxas chinesas se constrói, na mesma velocidade e intensidade, uma cultura perfeitamente sintonizada com práticas sociais cosmopolitas e transnacionais, sem deixar de ser essencialmente nordestina. Assim sendo, para efeito desse Projeto, reconhece-se como “Nordestes Emergentes”, um conjunto de fenômenos sociais em curso na região geopolítica do Nordeste, definíveis principalmente por oposição aos nordestes residuais. Estas duas categorias — emergente e residual — enunciadas por Raymond Williams (1979) em sua obra clássica, só podem ser corretamente entendidas se considerarmos a sua terceira dimensão, a categoria do “dominante”. Senão, vejamos. Williams, com propriedade, afirma que a complexidade de uma cultura se encontra não apenas em seus processos variáveis e suas definições sociais — tradições, instituições e formações — mas também nas inter-relações dinâmicas, em todos os pontos do processo de elementos historicamente variáveis.
E, mais adiante, continua: (...) Na análise histórica autêntica, é necessário, em todos os pontos, reconhecer as inter-relações complexas entre movimentos e tendências, tanto dentro como além de um domínio específico e efetivo. É necessário examinar como estes se relacionam com a totalidade do processo cul-
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tural, e não apenas com o sistema dominante selecionado e abstrato. (WILLIAMS, 1979, p. 124)
Para levar adiante uma “análise histórica autêntica”, o autor trabalha com as três categorias citadas, que correspondem, como ele destaca, às relações dinâmicas internas de qualquer processo social. O “dominante” é o hegemônico, que define um aspecto de determinado processo social, é efetivo no presente mas, naturalmente, calcado no tradicional. Já o “residual”, “(...) foi efetivamente formado no passado, mas ainda está ativo no processo cultural, não só como elemento do passado, mas como um elemento efetivo do presente”. O autor nos alerta, no entanto, que o residual “(...) pode ter uma relação alternativa ou mesmo oposta à cultura dominante”, o que difere de outra manifestação ativa do residual, distinto do arcaico, “que foi incorporado, em grande parte ou totalmente, pela cultura dominante” (Idem, p.125). O residual, então, desempenha quase sempre um papel conservador, de reação a novas propostas. Partindo do princípio que “novos significados e valores, novas práticas, novas relações e tipos de relação estão sendo constantemente criados” é que se conceitua a categoria “emergente”. No entanto, o próprio autor nos alerta que “é excepcionalmente difícil distinguir entre os [fatos e práticas sociais] que são realmente elementos de alguma fase nova da cultura dominante (...) e os que lhes são substancialmente alternativos ou opostos: emergentes no sentido rigoroso, e não simplesmente novo”. Até porque, “como estamos sempre considerando relações dentro do processo cultural, as definições do emergente, bem como do residual, só podem ser feitas em relação com um sentido pleno do dominante” (Idem, p.126). Estabelecer quais práticas sociais em ocorrência no território geográfico e cultural do Nordeste brasileiro serão contempladas na categoria de emergente — portanto, paradigmáticas das transformações latentes nesse intenso processo social atualmente em curso — e construí-las como objeto de pesquisa apresenta-se como o nosso primeiro grande desafio. Em face desse desafio e tendo em vista o curto período disponível para a realização desta fase do projeto, optamos
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por implementar expedições fotográficas pautadas pela proposta de produção de uma descrição visual densa dos fenômenos sociais enfocados. Para tanto propomos a formação de uma equipe composta por um fotógrafo e um pesquisador encarregado de coletar os dados básicos sobre o fenômeno em questão, entrevistar os principais personagens e produzir uma descrição textual complementar às imagens.15 Cada fotógrafo deve apresentar um conjunto de 300 imagens, das quais são editadas cem que, acompanhadas do memorial descritivo do trabalho de campo do fotógrafo e do relatório do pesquisador vão se constituir no corpus de dados sobre o fenômeno enfocado. Esses dois textos não só informam sobre as condições em que os dados foram produzidos como instrumentalizam a leitura das imagens, permitindo a percepção e o tratamento de uma informação mais rica e qualificada. Nesta prática, nos apoiamos, naturalmente, nos pressupostos teóricos e metodológicos da antropologia, porém com uma forte contribuição da história oral, campo relativamente novo, que recobre em grande parte a prática de pesquisa de campo tradicional na antropologia. No entanto, a história oral, por sua vez, agrega a preocupação inerente à própria disciplina de produzir documentos que balizem reflexões mais amplas e aprofundadas sobre os fenômenos estudados. Trazemos para o nosso campo de preocupações a compreensão de que a fotografia é uma fonte histórica que demanda por parte do historiador um novo tipo de crítica. O testemunho é válido, não importando se o registro fotográfico foi feito para documentar um fato ou representar um estilo de vida. No entanto, parafraseando Jacques Le Goff, há que se considerar a fotografia, simultaneamente como imagem/ documento e como imagem/monumento. No primeiro caso, considera-se a fotografia como índice, como marca de uma Foram contratados especialmente para esse projeto os fotógrafos André Dusek, Iatã Cannabrava, João Castilho, Emiliano Dantas, Fernanda Chemale, Gleide Selma, Gustavo Moura, Paula Sampaio, Rogério Reis e Tiago Santana. Compuseram a equipe de pesquisa os pesquisadores da Fundaj Cesar Pereira, Ciema Mello, Cleide Galiza, Helenilda Cavalcanti, Luiz Romani, Maurício Antunes, Renato Athias, Rubia Lossion e Verônica Fernandes. 15
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materialidade passada, na qual objetos, pessoas, lugares nos informam sobre determinados aspectos desse passado — condições de vida, moda, infra-estrutura urbana ou rural, condições de trabalho etc. No segundo caso, a fotografia é um símbolo, aquilo que, no passado, a sociedade estabeleceu como a única imagem a ser perenizada para o futuro. Sem esquecer jamais que todo documento é monumento, se a fotografia informa, ela também conforma uma determinada visão de mundo. (MAUAD, 2008, p.20) Tal perspectiva remete ao circuito social da fotografia nos diferentes períodos de sua história, incluindo-se, nesta categoria, todo o processo de produção, circulação e consumo das imagens fotográficas. Só assim será possível restabelecer as condições de emissão e recepção da mensagem fotográfica, bem como as tensões sociais que envolveram a sua elaboração. Desta maneira, texto e contexto estarão contemplados. Os textos visuais, inclusive a fotografia, são resultado de um jogo de expressão e conteúdo que envolvem, necessariamente, três componentes: o autor, o texto propriamente dito e um leitor. Cada um destes três elementos integra o resultado final, à medida que todo produto cultural envolve um lócus de produção e um produtor, que manipula técnicas e detém saberes específicos à sua atividade, um leitor ou destinatário, concebido como um sujeito transindividual cujas respostas estão diretamente ligadas às programações sociais de comportamento do contexto histórico no qual se insere, e por fim um significado aceito socialmente como válido, resultante do trabalho de investimento de sentido (Idem, p. 25). Trata-se, portanto, de levar adiante um projeto multidisciplinar de documentação fotográfica dentro do campo das Ciências Sociais e da História, articulado com a proposta da Museologia Social, baseada no conceito de autoridade compartilhada preconizado pela História Oral (FRISCH, 1990). Desta feita, constitui-se em um projeto absolutamente singular e inovador. A documentação fotográfica contextualizada que propomos tem por função dar materialidade ao que definimos anteriormente como os “Nordestes Emergentes”, criando uma base concreta para o desenvolvimento de uma reflexão sobre
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o tema, rumo a pesquisas mais aprofundadas. Pela sua própria natureza, a imagem — embora o nosso foco seja a imagem fixa, devido a versatilidade dos novos equipamentos, não descartamos a produção de vídeos curtos, segunda as circunstâncias — se constitui na forma mais eficaz de transportar para dentro de um museu uma amostragem dos fenômenos identificados pelo projeto. A metodologia empregada, descrita a seguir, garante o caráter de documento do material resultante da pesquisa de campo, o que é assegurado pelo emprego rigoroso dos protocolos da história oral e da antropologia. Não se trata, portanto, de um conjunto de ensaios temáticos, mas sim de documentos visuais sobre esses temas, com a força de fontes primárias para a compreensão dos fenômenos enfocados. Neste caso, a documentação fotográfica é uma técnica de registro, ou seja, um instrumento de ação a serviço dos pressupostos teóricos e metodológicos da antropologia e da história oral. Essas duas disciplinas, tal como vêem sendo praticadas nos últimos anos, têm um imenso terreno comum, sobretudo no que toca ao trabalho de pesquisa de campo. Ao recorrermos à história oral buscamos reforçar a proposta de produzir um material visual que se constitua em documentos, no sentido historiográfico, podendo assim ser utilizado para fins científicos e museológicos sem qualquer restrição. Neste sentido, a problemática central da pesquisa circunscreve as seguintes questões: a noção de documento; o debate sobre a História Oral como campo de pesquisa; e a relação entre visualidade e oralidade como conceitos operacionais da proposta. Portanto, o objetivo central deste projeto é, por meio da produção de documentos fotográficos e orais, identificar e documentar, em regiões específicas dos nove estados do Nordeste, fenômenos sociais que configuram a existência de Nordestes Emergentes, os quais se sobressaem pelo grau de diferença que apresentam em relação aos Nordestes residuais, e com os quais convivem na geografia, embora aparentemente não convi-
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vam na mesma temporal idade histórica.16
Para efetivar os seus objetivos, o Projeto se desenrola em torno de dois eixos temáticos, o que agrupa os Temas Principais, e aquele que trata dos Temas Transversais. Consideramos como Temas Principais uma seleção de fenômenos sociais de grande escala ocorrentes em localidades específicas que são paradigmáticos das transformações sociais que caracterizam os Nordestes Emergentes. Já os Temas Transversais são os fenômenos que ocorrem em várias regiões, de forma concentrada ou diluída, e que só podem ser corretamente apreendidos se registrados na sua extensão geográfica de ocorrência. Demandam uma observação mais atenta a sutilezas, porque podem ser mais fluidos na sua manifestação. É o caso da transformação radical dos ritos funerários ou da progressiva implantação de uma “cultura de shopping center”, para citarmos apenas alguns exemplos. A esses fenômenos se somam outros que representam tendências ou reorientações urbanísticas, como a verticalização desmesurada das cidades ou a criação de áreas padronizadas de lazer no estilo das grandes metrópoles do sul do país, que, apesar de serem tratados como temas principais podem, por ocorrem em diversos estados, ser tratados também como temas transversais, como veremos. Eles farão parte da pauta de todos os grupos de pesquisa e serão tratados em conjunto no final da pesquisa. Acreditamos que uma vez reunidos poderão nos proporcionar elementos importantes para aprofundarmos ainda mais a nossa reflexão, além de nos dar subsídios para a descrição visual da situação atual que buscamos estudar.
Considerações sobre a documentação fotográfica Para que a documentação fotográfica seja eficiente – isto é, cumpra uma função informativa sobre o fenômeno estudado, e sirva como instrumento de busca de dados e de apresenDocumento Nordestes Emergentes – Pesquisa, documentação e exposições (versão 12.09.2012), Museu do Homem do Nordeste, Fundação Joaquim Nabuco. 16
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tação das conclusões da pesquisa — é preciso que o fenômeno estudado funcione como “um personagem” sempre presente nas cenas fotografadas. Em outras palavras, é preciso que algum aspecto direto ou indireto do fenômeno em questão esteja fotograficamente representado da forma mais explícita possível. Há que se observar que, embora uma imagem-síntese de um aspecto do fenômeno tenha sempre um papel destacado, nós trabalharemos por conjuntos de imagens, privilegiando sempre o discurso visual baseado em séries de imagens. As séries de imagens, por sinal, podem ser constituídas por descrições de um determinado evento ou um conjunto de fatos correlatos ocorridos no mesmo espaço geográfico e registrados por um mesmo fotógrafo; ou por imagens que, recolhidas por diferentes autores em diferentes locais, uma vez reunidas produzam um sentido específico no âmbito da pesquisa. Será, certamente, o caso das imagens ligadas aos Temas Transversais. De maneira geral, as imagens podem ser classificadas em dois grandes grupos: as eminentemente objetivas (mas que nem por isso dispensam uma carga de subjetividade) e as eminentemente subjetivas (mas que, paradoxalmente, não deixam de ser também objetivas pela sua própria natureza). No primeiro grupo encontramos a imagem-síntese, acima referida, e a imagem descritiva, tais como as que enfocam diversas fases de um procedimento técnico, a descrição de locais e de indumentárias, identificação de personagens etc. As imagens objetivas sempre representam evidências ou sintomas do fenômeno enfocado. Já as imagens subjetivas são de conceituação mais sutil e por isso mais difíceis de serem apreendidas por palavras, embora sejam íntimas dos fotógrafos. Poderíamos classificá-las como indícios ou rastros do fenômeno em questão. Os indícios são aspectos de uma cena que contêm, de forma latente ou embrionária, elementos visuais que sinalizam para uma transformação possível ou já em andamento. Às vezes, apresentam elementos característicos de uma outra configuração cultural que se infiltraram na cena como que a sinalizar que uma determinada transformação está em vias de se materializar. Seriam, por assim dizer, “emergentes” pela própria natureza. Já os ras-
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tros obedecem à mesma lógica operacional, mas representam o oposto, são aspectos “residuais”, testemunhos da presença de uma realidade social que está em vias de ser suplantada, ou que já o foi, mas que ainda guarda, como uma espécie de lembrança, aspectos bastante visíveis de sua constituição. Consideramos, portanto, que uma documentação fotográfica é formada por um conjunto de imagens que se constituem em discurso, cada imagem ou tipo de imagem cumprindo uma função específica na produção de sentido do conjunto. Assim sendo, em torno das imagens ditas centrais ou sínteses — que definem e apresentam o fenômeno estudado — se agrupam as imagens de contextualização, que visam a precisar a definição do fenômeno, facilitando a sua compreensão, as descrições, indícios e rastros. A educação visual a que estamos todos submetidos nos últimos dez anos abriu os mais diversos e inesperados caminhos, dando ao leitor infinitas possibilidades de apreensão de sentido de uma imagem. No entanto, ainda vale o antigo preceito de que, quanto mais próxima da observação direta, maior a impressão de credibilidade que a imagem passa para o leitor, sendo também mais fácil o entendimento da sua mensagem. É, portanto, recomendável o uso da objetiva normal, salvo nos casos em que o uso da grande angular ou da teleobjetiva seja um impositivo técnico de factibilidade. Esta norma, naturalmente, não impede que cada autor busque a sua própria colocação espacial em relação ao que quer fotografar, utilizando a objetiva pertinente para o seu caso; o que se pretende com essa observação é apenas alertar contra os abusos de linguagem. Da mesma forma que é recomendável que o flash só seja utilizado quando for imprescindível para a realização de uma foto também imprescindível. Deve ser utilizado o equipamento mais discreto possível. Aliás, o fotógrafo deve ser sempre o mais discreto possível. Não buscamos fotos bonitas nem “artísticas”, para usarmos uma expressão bem difundida pelo senso comum. No nosso caso, a fotografia que nos interessa é aquela que apresenta e descreve, de forma eficiente, algum aspecto relevante do fenômeno social enfocado. E a foto eficiente é aquela que decorre da correta utilização da linguagem fotográfica (GURAN, 1994, 2011).
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Nossa proposta é produzir um corpus de dados (visuais, sonoros e textuais) que, pelo seu rigor de produção, possa ser considerado como um verdadeiro documento à luz da história, da antropologia, da museologia e das demais disciplinas afins, respondendo assim às metas do Projeto Nordestes Emergentes. Portanto, no que toca ao seu conteúdo específico, as fotos devem ser criteriosamente identificadas, informando data, local, assunto principal e personagens. Os conjuntos de fotos devem ser objeto de observações específicas por parte do fotógrafo sempre que este sentir necessidade de informações complementares para ampliar a compreensão da informação visual. O trabalho do fotógrafo se completa com um memorial descritivo da sua ação em campo. Este documento deve informar sobre como o autor viu o fenômeno e como decidiu abordá-lo (de que forma o construiu como objeto), seus procedimentos em campo, qual o equipamento utilizado, períodos de trabalho e aspectos relevantes da sua relação com as pessoas envolvidas, inclusive o colega de equipe. Esse memorial é fundamental para permitir o estabelecimento de um padrão de análise comparativa do material produzido. Ao pesquisador cabe levantar os dados necessários à contextualização do fenômeno em questão, atendendo aos critérios enunciados para a documentação fotográfica. Vale destacar que do diálogo efetivo entre o pesquisador e o fotógrafo depende o sucesso da pesquisa. O pesquisador deve acompanhar de perto os principais personagens da documentação fotográfica e o fotógrafo deve estar atento às pistas levantadas pelo pesquisador. Nesse sentido, a expectativa com relação ao trabalho dos pesquisadores em campo é de percepção e descrição do fenômeno enfocado. A fotografia, por certo, além do seu papel inquiridor, produz evidências, descreve situações e posturas, complementa inventários. Assim fazendo, traz à frente do discurso fontes primárias que são compartilhadas com o leitor ao mesmo tempo em que são interpretadas, o que permite, ao menos em tese, uma leitura mais rica dos propósitos enunciados. Mais do que isso, por serem evidências produzidas rigorosamente dentro de uma proposta metodológica clara, constituem uma extensão documental da observação direta do pesquisador.
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A descrição visual densa, ao articular a imagem ao seu contexto social através do depoimento do fotógrafo – o memorial descritivo — e do relatório do pesquisador sobre o fenômeno enfocado, permite a constituição de um documento dos mais completos sobre uma determinada realidade social.
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O Espaรงo Repensado Fotograficamente
Reinvenção da memória na Vila de Lapinha da Serra Alexandre Sequeira
Alexandre Sequeira. Artista plástico e fotógrafo, é Mestre em Arte e Tecnologia pela UFMG e professor do Instituto de Ciências da Arte da UFPa. Desenvolve trabalhos que estabelecem relações entre fotografia e alteridade social, tendo participado de diversas exposições e festivais no Brasil e exterior, podendo-se destacar “Une certaine amazonie” em Paris/França; Bienal Internacional de Fotografia de Liège/Bélgica; Exposição no Centro Cultural Engramme em Quebec/Canadá; X Bienal de Havana/Cuba; Paraty em Foco 2009; FotoFestPoa 2010 e 2011; Festival de Fotografia de Recife 2010; Simpósio e exposição “Brush with Light”, na Universidade de Arte Mídia e Design de NewPort no Reino Unido, Festival Internacional de Fotografia de Pingyao/China, exposição “Gigante pela própria natureza” em Valência na Espanha; “Geração 00 — a nova fotografia brasileira; e Projeto Portfólio no Itaú Cultural em São Paulo/Brasil. Tem obras no acervo do Museu da UFPa, Espaço Cultural Casa das 11 Janelas; Coleção Pirelli/MASP e Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul.
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Introdução Quem de nós ousaria contestar o valor documental de uma fotografia? Que enquanto mecanismo de apreensão de dados concretos ela traz, em sua própria constituição, o fiel registro de uma impressão luminosa, ou, nas palavras de Barthes (BARTHES, 2006, p.14), “do referente que adere”? Desde sua invenção na primeira metade do século XIX, a fotografia sustentou a expectativa de atender de modo inequívoco, a eterna busca do homem por representar as coisas do mundo, agregando a esta representação o mais alto nível de detalhamento e precisão até então experimentados. Muito por seu caráter indicial, a ela foi atribuída certa reputação documental que a diferenciava das demais formas de expressão �������� —������� passíveis de manipulação pelos juízos de valor do homem. Tal particularidade converteu-se, de certo modo, num pesado fardo, condenando-a por certo tempo à condição de registro mecânico, privando-a assim de uma abordagem mais subjetiva. Talvez o que de mais instigante a história da fotografia nos revele seja, não os incríveis avanços tecnológicos empreendidos no aperfeiçoamento de equipamentos e procedimentos de captação da imagem, mas sim, a sistemática revisão interpretativa do produto dessa operação. O assombro e encantamento pela contemplação de um duplo, gradativamente dava lugar a outra mirada, onde a semelhança passava a ser analisada no interior de um conjunto de outras formas de visibilidade e protocolos de inteligibilidade. Ao longo dos quase duzentos anos que separam seu surgimento de nossos dias, foram muitas as revisões de conceitos e valores que norteiam nosso modo de perceber o mundo: o sentido de realidade e fabulação, ao evidenciar um sentido de relativização dos fatos, pelo reconhecimento da pluralidade de possíveis verdades que podem ser atribuídas ao registro fotográfico. Ou nosso sentido de identidade, ao ser irreversivelmente afetado a partir da relação que experimentamos ao nos depararmos com nosso duplo, e tantas outras questões, por vezes sutis, quase imperceptíveis, mas nem por isso menos importantes. Mas talvez, especialmente uma, den-
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tre tantas revisões de valores, tenha se dado de modo mais enfático, determinando, segundo Lissovsky (2008) a origem da fotografia moderna:nossas relações espaço/temporais. Segundo ele: Embora a fotografia permaneça indissoluvelmente ligada ao instante do qual proveio, o intervalo de tempo que o separa de nossa apreciação passa irreversivelmente a ser preenchido por nossa expectativa de que as diferenças emerjam do campo imanente de possibilidades, do vazio que insiste em refluir o tempo para fora da imagem. (LISSOVSKY, 2008, p.31)
Vivemos hoje sob a égide do império do visível. É difícil alguém, nos dias de hoje, não ter ao alcance de suas mãos algum tipo de equipamento de captura de imagem — seja uma sofisticada máquina fotográfica, um modelo compacto ou mesmo um aparelho de telefonia móvel que também agregue essa função. Este último, para alguns, prenúncio da ruína da fotografia enquanto manifestação artística, decorrente da banalização do click e de uma consequente avalanche de imagens sem qualidade e esmero estético. Para outros, uma nova perspectiva, ao promover uma nova relação entre o homem e a fotografia, agora vista menos como arte do instante e mais como arte do devir. Uma distensão temporal que é também uma distensão da objetividade pela incorporação da câmera como uma prótese que se agrega ao corpo. Esta simbiose estabelece uma confusão onde antes só havia o instante singular. Pela incorporação dessa nova prótese resistimos a qualquer ponto focal, atordoados talvez pela novidade, movendo nosso olhar — agora robótico —, sobre as coisas do mundo sem encontrar qualquer repouso. Fotografamos a tudo e a nós mesmos de maneira frenética e muitas vezes desconexa, quem sabe, como meio de afirmar nossa própria existência. Segundo Flusser:
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Foi através da fotografia — e mais especificamente de sua socialização —, que a existência humana passou a abandonar a estrutura linear, própria dos textos, ou da história convencional, para assumir a estrutura do saltear quântico, próprio dos aparelhos e do tempo labiríntico que rege a vida em nossos dias. (FLUSSER, 1985, p.64)
Tais pontuações, longe de desmerecer a importância ou a eficácia das incontáveis aplicações da fotografia em nossos dias, buscam na verdade declarar o fascínio pelo saber que a mesma produz. Saber paradoxal que é tão mais vinculado à realidade quanto mais exercita sua autonomia em relação a ela; que é tão mais penetrante e abrangente quanto mais aberto e especulativo. Um saber capaz de, talvez, nos sugerir novos rumos que façam alcançar um novo entendimento para as coisas do mundo, e nos possibilite assim reconhecê-lo como singular e pessoal. O presente artigo se dirige a possibilidades poéticas de transgressão da dicotomia realidade/ficção no campo fotográfico, ao lançar mão de estratégias de suspensão de limites que separam essas duas instâncias. Explorar a intrincada rede de ramificações e conexões que sustenta e oferece coerência para uma imagem — seja ela fotográfica ou não —, demanda, quase sempre, um mergulho em relações muitas vezes não aparentes, dúbias e complexas. É como analisar um mapa alegórico, que se configura a partir de traços de uma proposta diferenciadora, gerada pelo que falta, pelo que se perdeu e pela conexão dos restos do que poderia ter sido e que não foi. Dessas relações é que emergem imagens coerentes com uma estratégia ficcional que cria, mas que se deixa em aberto, a fim de permanecer sempre em articulação com novas relações significantes. E assim vacilamos perdidos por tempos diferentes: o tempo efetivo, objetivo, do acontecido; e o tempo vivido, a duração subjetiva que vivemos ao fotografar. Tempo plural que agrega ao nosso documento fotográfico uma camada de imprecisão, convertendo-o em sonhos criadores.
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Quanto ao que aconteceu realmente, isso pouco nos importa. Nossa reconstrução, menos verdadeira ou falsa, é afetiva: um diário íntimo repleto de pormenores que se recusam a ser a memória fiel do passado. Assim, as imagens resultantes não têm qualquer intenção descritiva, afastando-se do compromisso de registro fiel para dirigirem-se a um campo aberto de inúmeras interpretações e recepções. Delas irradia uma noção de duração, de ação, de uma atmosfera que reina. É por essa aura poética, por essa incompletude, e não por um compromisso de registro fiel que essas imagens ganham valor. E assim, na medida em que seu raio de ação se amplia, quanto mais a experiência se torna coletiva, o que se tem é um grande impacto diante do empenho em decifrar a lógica que a contém. Talvez por isso a fotografia ainda nos intrigue e fascine quase duzentos anos depois de seu surgimento. Talvez por isso estejamos ainda hoje refletindo sobre nossa relação com a fotografia enquanto importante elemento de elaboração de um sentido de memória que paradoxalmente surge do encontro de duas particularidades do fazer fotográfico, aparentemente antagônicas: sua natureza indicial, nos acenando como uma garantia de verdade; e o ato de fotografar enquanto gesto performativo, subvertendo essa segurança e se apresentando como um desafio a nosso compromisso com essa verdade. As reflexões aqui contidas surgem do encontro entre duas pessoas, tendo como elo de aproximação a fotografia e o interesse particular que cada uma nutria por ela. O local do encontro é o pequeno vilarejo de Lapinha da Serra localizado na Serra do Cipó, município de Santana do Riacho, no estado de Minas Gerais. O encontro se deu ao longo dos anos de 2009 e 2010. Os dois personagens são: Rafael Oliveira de Jesus, um adolescente franzino de 13 anos de idade nativo de Lapinha da Serra e eu, Alexandre Sequeira, na época, aluno do curso de Mestrado de Arte e Tecnologia da UFMG. Movido pela possibilidade de conhecer novos lugares no interior do estado e, quem sabe encontrar algo que me estimulasse a desenvolver um novo trabalho artístico, percorri pequenas estradas poeirentas que serpenteiam a Serra do
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Cipó até, em uma dessas empreitadas, alcançar a vila de Lapinha da Serra e lá encontrar Rafael, com quem estabeleceria uma estreita relação ao longo desses dois anos.
Um jogo de descobertas Meu encontro com Rafael se deu logo em meus primeiros minutos no vilarejo, enquanto procurava algum lugar onde pudesse almoçar. O garoto franzino que caminhava por uma pequena viela imediatamente se prontificou a me levar a uma casa onde sua avó, complementava a renda familiar vendendo refeições a turistas — público cada vez mais crescente no vilarejo. Ali mesmo, enquanto aguardávamos a chegada da refeição, Rafael pediu-me o bloco de anotações que trazia comigo e me presenteou com o desenho de um mapa de Lapinha da Serra, que guardei cuidadosamente e que, futuramente retornaria à vila resignificado (Figura1). Após o almoço, Rafael convidou-me para, naquele resto de tarde, conhecer um pouco dos encantos de Lapinha da Serra. Descemos a Rua do Batuque rumo ao lago e à montanha, onde pude perceber curiosas placas escritas à mão, que revelavam por seu conteúdo um provável conflito de valores entre moradores e visitantes, como eu, fruto do crescimento do turismo no local. Iniciava-se ali uma amizade que marcaria, definitivamente, grande parte das lembranças que tenho dos momentos vividos naquele lugar.
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Figura 1- Rafael Oliveira, Mapa de Lapinha da Serra, 2009.
Em nossa primeira tarde juntos ������������������������ —����������������������� eu, na condição de visitante, e ele, na de guia —, fui surpreendido por um roteiro de apresentação do lugar com particularidades que só uma criança seria capaz de propor. Ao percorrermos uma pequena trilha que nos leva montanha acima, era, muitas vezes, surpreendido por diferentes personagens que meu pequeno guia incorporava: ora um super-herói; ora um lutador de artes marciais que saltava de algum seriado infantil de televisão. Em outros momentos repletos de delicadeza e sensibilidade, Rafael apresentava-me, teatralmente, quedas d’água, flores do cerrado ou ninhos de pássaros escondidos nos pequenos arbustos. Olhar de criança que investiga o mundo sem nenhuma pretensão, sem pressa, sem saber direito que nome dar às coisas. A máquina fotográfica que trazia comigo logo também foi alvo de sua curiosidade. Rapidamente, passamos a dividir o equipamento fotográfico, alternando registros, entremeados por conversas que se estendiam pelos mais diversos assuntos. No fim da escalada, ao alcançarmos um ponto no qual se pode ter uma visão privilegiada da região, fui surpreen-
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dido por uma imagem de grande significado para mim. Por alguns minutos, Rafael manteve-se sobre uma pedra no topo da montanha, com o olhar perdido no horizonte. Saltei no tempo e me reencontrei com o errante personagem de um quadro de Caspar David Friedrich (Figura 2) que tantas vezes encarnei em minha infância ao folhear os livros de arte, e de quem, certamente, Rafael jamais ouvira falar.1
Figura 2 - Alexandre Sequeira (registro de pesquisa) O mesmo olhar, 2009.
Curiosa sensação de bem-estar e conforto ao reconhecer, não na fisionomia, mas numa atitude, meu vulto interposto no gesto de alguém. Como um vertedouro que se abre repentinamente e nos surpreende, ao estender para além de nós sentimentos quase secretos, situações que, até então, acreditávamos ser somente de nosso domínio. 1
Viajante sobre o mar de nuvens, de 1818, faz parte do acervo da Kunsthalle (Hamburgo/ Alemanha). Na tela, uma figura solitária contempla uma imponente paisagem alpina de cima de um pico rochoso. A obra sintetiza as idéias românticas sobre o lugar que o homem ocupa no mundo, como seu isolamento diante das forças da natureza. A imagem tornou-se um ícone do indivíduo romântico.
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Movido pela satisfação daquela breve presença que se desfazia, mas que inscrevia um importante dado nas páginas que registravam nosso primeiro encontro, firmei com Rafael, naquele instante, silenciosamente, um pacto de companheirismo, escolhendo-o como meu novo parceiro de devaneios. Nossos momentos naquela tarde seguiram-se como no ritmo de um jogo, na livre flutuação do pensamento de uma criança, numa evasão da vida real para outro campo, mas que, curiosamente, constitui-se um complemento da mesma, ampliando-a, devido às associações simbólicas e ao valor expressivo que encerra. Na base da montanha, Rafael apontoume uma extensa pradaria que, segundo ele, em noites sem lua, servia de campo de pouso para discos voadores. Ao indagar posteriormente para outros moradores sobre tal relato, todos foram enfáticos em afirmar que tudo não passava de fantasias de meu curioso guia. Rafael, no entanto, preferia acreditar na versão que caracteriza o vilarejo como lugar de visitação de seres de outros planetas – opinião que fez questão de reafirmar posteriormente, ao desenhar sobre uma fotografia noturna que realizei do vilarejo a presença ameaçadora de um luminoso disco voador. Naquela mesma tarde, ao tentarmos alcançar a praça central por uma estreita viela sem nome e cercada de mato, fui aconselhado por Rafael a correr sem parar e não olhar para trás. Ao alcançarmos a praça, exausto, pedi explicações a Rafael e fui por ele informado que ali, naquele caminho, havia uma grande mangueira onde, segundo ele, costumava aparecer a “Mulher do pé de manga”, um dos inúmeros personagens que povoavam o imaginário de Rafael. Exaustos e com o coração em sobressalto diante dessa última e inesperada surpresa de nosso passeio, nos despedimos, seguindo cada um para sua casa. Na manhã seguinte teria que voltar para meus afazeres na cidade grande. Minha segunda ida a Lapinha da Serra coincidiu com a semana de aniversário de Rafael. Resolvi presenteá-lo com uma pequena máquina fotográfica. Sabia do encanto que tinha por tais equipamentos e do quão fascinante seria, para
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mim, conhecer mais sobre a vida da vila a partir de seu olhar desinteressado. Começamos, a partir de então, a estreitar nossos laços afetivos, tendo a fotografia como elemento agregador. Nossas excursões passaram a ser, a partir de então, mais silenciosas. As imagens que capturávamos com nossas máquinas e mostrávamos um para o outro substituíam, muitas vezes, as palavras. Esses significados compartilhados eram a liga, o amálgama que nos unia cada vez mais. Uma relação dialógica num plano tácito, que pressupunha a possibilidade e a aceitação de infinitos pontos de vista. Em nossos diálogos imagéticos, não jogamos um contra o outro, mas sim um com o outro. Não tentávamos mudar nada, mas apenas estar atentos a tudo. Nesse jogo, ambos vencíamos. Nada parecia ser capaz de interferir em nosso plano de convívio, por serem exclusivamente nossos os processos com que conduzíamos esses momentos. Nem percebíamos as horas passarem, em nosso passatempo de olhar para as coisas através do visor das máquinas fotográficas, em forma de visualizações ocasionais, vindas em instantes dispersos, fragmentos substanciosos — ora nos proporcionando um conhecimento literal, ora nos indicando peripécias —, mas que, aproveitados por nossas mentes elaboradoras, tornavam-se válidas para o enredo que construíamos a quatro mãos. Essas parcelas de um mesmo argumento, surgidas sem ordem temporal, agrupavam-se em nós, cada uma em seu verdadeiro lugar, de maneira a tramar, com limpidez, uma nova lógica para os acontecimentos que juntos experimentávamos. Se nesse devaneio abríamos mão das palavras, deixando que sobre nós pairasse o silêncio, era porque as imagens amoldavam-se melhor ao nosso espírito, buscando ajustar-se, em todas as digressões que os olhos empreendiam, numa ordem que, em certos casos, não correspondia à realidade original, mas autenticava uma série de outras ficções idealizadas. Mesmo o que para alguns se constitui erro ou falta de domínio técnico no instante do registro, convertia-se, ali, em documento fiel do acaso e da errância. Em virtude desse desvio favorável, as imagens desprendiam-se de qualquer rigor ou compromisso formal, pousando e repousando nos pensamentos que elas mesmas sugeriam, repletas de formas inéditas.
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E assim o pequeno Rafael garimpava, com sua pequena máquina fotográfica digital, numa experiência mais vidente que evidente, mais criadora que reprodutora, elementos visuais significantes ou não. Foi desse modo, numa experiência estética reverberada no cotidiano, como uma mediação entre o sujeito e o mundo, que Rafael escreveu e reescreveu com sua pequena máquina fotográfica uma crônica visual sobre os acontecimentos que animavam nosso convívio em Lapinha da Serra. Os meses que se seguiram reforçam os laços que me uniam a Rafael e confirmava a imagem como elo principal dessa união. Um convívio em que o espírito de companheirismo e intimidade se adensava na medida em que mergulhávamos na experiência de partilhar nossas visões de mundo. Relação dialógica que produzia uma curiosa articulação no mais íntimo de cada um de nós, tornando-nos capazes de reconhecer algo do outro em nós mesmos. Bastava que no interior do mundo do outro se esboçasse um gesto que identificássemos como semelhante ao nosso. Rafael me presenteava a cada nova visita que fazia a Lapinha da Serra com arquivos digitais repletos de imagens que captura com sua pequena máquina durante minha ausência, fazendo questão que eu as descarregasse em meu computador. Eram fotos das mais variadas situações e que, pela despretensão com que eram executadas, obrigavamme, o tempo todo, a experimentar novas formas de leitura e interpretação como meio de acesso àquele universo tão particular. Foram centenas de imagens, fixas e em movimento (seu equipamento registrava também vídeos de pequena duração), que se avolumavam no disco rígido de meu computador, fazendo com que me debruçasse em anotações sobre inúmeras possibilidades de ordená-las — fosse por data, por assunto ou por alguma particularidade. Minhas reflexões ora descreviam círculos cada vez mais amplos, ora cada vez mais estreitos e, invariavelmente, caminhavam rumo a um perfeito vazio. A dúvida me devolvia a indagação: como escolher ou editar esse material? Sob que estatuto me credenciava a imobilizar em
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pastas e arquivos um conjunto que, no “acaso” da ordem das tomadas, poderia ser lido e relido num percurso sem regras fixas e, a cada nova incursão, revelar outra ordem que não era mais a do espaço nem a do tempo, mas a do inconsciente?Só então me dei de conta que mais do que o registro de um estado de coisas, o que sempre me moveu nos momentos partilhados com Rafael foi a possibilidade de estabelecer, por meio da fotografia, uma relação que promovesse contatos e permutas, mesclando a produção de imagens com a possibilidade de fabular e, pela eloquência das inúmeras feições e contornos que se configuravam, atestar a evidência de um mundo amplo de sentidos. Um acontecimento foi determinante para a configuração de uma ação que efetivamente devolveria à vila a fantasia de Rafael revestida de um novo sentido. Rafael voltou ao tema dos discos voadores e me apresentou um projeto para a construção de uma armadilha capaz de capturar os discos voadores que ameaçavam a tranquilidade da vila (Figura 3). Percebi a importância daquela questão para ele e me dispus a ajudá-lo na empreitada de realizar seu projeto. Orientado por Rafael, coletei o material necessário e, no ponto determinado por ele, construí a tão sonhada armadilha.
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Figura 3 - Rafael Oliveira, Projeto e execução de Armadilha para discos voadores, 2009.
Logo que a viu pronta, Rafael se jogou ao chão e, com a máquina fotográfica em punho, aguardou a aproximação de um eventual disco voador. A realização da armadilha de discos voadores me uniu mais a Rafael, fazendo com que nos lançássemos em uma nova empreitada: capturar uma imagem da tão temida “Mulher do Pé de Manga”, imagem essa que, depois de realizada, retornou à vila na forma de um cartaz com os seguintes dizeres: A Mulher do pé de manga. Quem acredita nela? A ação acabou resultando, para a satisfação de Rafael, no resgate de uma lenda desprezada por quase todos os moradores da vila, mas cultuada solitariamente por ele (Figura 4). A partir da Mulher do pé de Manga, outras imagens produzidas por Rafael retornaram também à vila, agora na forma de cartões postais, ganhando novo valor pelos nativos, na medida em que eram disputados pelos turistas.
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Figura 4 Rafael Oliveira, A mulher do pé de manga, 2009.
Certamente, foi a curiosidade por conhecer um novo lugar, seus moradores, hábitos e costumes o que inicialmente fez com que me lançasse por caminhos desconhecidos com tão somente algumas indicações e um ponto demarcado em um mapa. Mas foi com o passar do tempo, a partir de minha permanência e dos contatos que estabeleci, que meu papel pôde ganhar contornos mais definidos. Não havia como se considerar um roteiro prévio; prever como minha estada se daria. Era na disposição ao encontro e à troca que eu poderia vir a ser acolhido e, pelos laços de confiança e afeto construídos, tornar-me amigo. E, assim, na condição de mais um, quem sabe pudesse a partir de meu ofício e junto ao grupo, contribuir na tessitura da delicada rede de valores que sustentam a vida do lugar.
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Confesso que custei a perceber que as escolhas e ações do pequeno Rafael refletiam, em sua essência, o dilema que a vila de Lapinha da Serra enfrentava. Com a curiosidade de quem se lança a desvendar o mundo, meu pequeno companheiro dirigia suas atenções para as novidades que o futuro anunciava. Seu temor por um ataque alienígena certamente representava uma projeção infantil das ameaças decorrentes da chegada do progresso. Do mesmo modo, o respeito e importância por ele atribuídos às figuras do imaginário coletivo da vila, como a Mulher do Pé de Manga, se apresentavam em perfeita sintonia com os valores do passado cultuados por sua família e por antigos moradores do lugar. Questões que dizem respeito às instâncias que sustentam a diversidade de valores que regem a vida do lugar.
Conclusão Percebo que, a cada novo trabalho que desenvolvo, distancio-me do ato de fotografar propriamente, para através da fotografia, tratar de questões que surgem das relações que estabeleço com as pessoas ou grupos em minhas ações. É para o encontro propiciado pela fotografia que dirijo minhas atenções, para dele conceber minha prática no campo das artes. E assim, cada nova experiência aponta para um horizonte de novas questões que só o desenrolar da ação é capaz de elucidar. Por dirigir o foco de minhas investigações poéticas para o campo da vivência, tenho encontrado no relato a melhor forma de apresentação de minha prática artística. Meus trabalhos têm assumido, cada vez mais, uma conformação final de espaços de narrativa, como estímulo imaginativo suficientemente capaz de, através de palavras e/ou imagens compartilhadas, conduzir o outro a um espaço de imanência – território de subjetivações capaz de recriar o momento vivido e assim potencializar outras novas vivências. Descrever um acontecimento ou um encontro é a melhor forma de prestigiálo, imprimindo-lhe nuances talvez ocultas no instante em que ocorreu, reforçando, assim, o privilégio de haverem existido.
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Mas, já que efetuar registros concretos não se constitui um hábito cotidiano, uma vez que poucas pessoas vivem a vida atentas a preservá-los, busco registrar na memória alguns momentos. Não tenho a pretensão de uma averbação do que efetivamente aconteceu, mas sim de somar personagens e fatos ao meu repertório particular, reunindo pequenos gestos, olhares e palavras numa trama alegórica, para que possa, num momento futuro como este, reconvocá-los em diferentes graus e matizes, na crônica de minha vida. Tessitura que se faz da escolha e edição de fragmentos de momentos significativos vividos. Momentos como esses me fazem almejar um sentido de documento capaz de acolher tantas formas de interpretação do real quantas possíveis. Documentos — sejam eles visuais ou não —, que reconheçam, por exemplo, o direito à existência de discos voadores ou da Mulher do Pé de Manga.
Referências BARTHES, Roland. A câmara clara. Nota sobre a fotografia. Manuela Torres (Trad.). Lisboa: Edições 70, 2006. BERGSON, Henri. Matéria e Memória. Ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. Coleção Tópicos. Paulo Neves (Trad.). 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. FLUSSER. Vilém. Filosofia da caixa preta. São Paulo: Hucitec, 1985. LISSOVSKY, Mauricio. A máquina de esperar. Origem e estética da fotografia moderna. Rio de Janeiro: Mauad X, 2008. ROUÍLLE, André. A fotografia entre documento e arte contemporânea. Iraci D. Poleti e Regina Salgado Campos (Trad.). São Paulo: Editora SENAC, 2009. SOULAGE, François. Estética da Fotografia. Perda e Permanência. Constancia Egrejas (Trad.). São Paulo: Editora SENAC, 2010.
Lisboa, Anos 50: Victor Palla e Costa Martins vislumbram novas fronteiras para a fotografia Marcelo Feijó
Marcelo Feijó é fotógrafo e Professor do quadro permanente da Universidade de Brasília (UnB). Graduado em jornalismo (UnB – 86), Mestre em Artes (UnB – 1996) e Doutor em História Cultural (UnB/Universidade de Lisboa – 2004). Realizou projeto de pós-doutoramento na Universidade de Lisboa 2009. Publicou os livros Imagens de Lisboa no Espelho da Fotografia, Editora Sala de Convergência, em 2011; O homem que inventava cidades ou Fotografias para uso dos pássaros, com o apoio do FAC-DF, em 2008; Itinerário Cora Coralina (UNESCO–Programa Monumenta), em 2008; Goiás, Cerrados e Veredas, Fundação Casa de Cora Coralina, em 2001; Ex- Votos deTrindade – Arte Popular, 1998, Editora UFG.
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Proponho um diálogo entre o tema proposto para o Colóquio Fronteiras e Transgressões na fotografia contemporânea, e a obra publicada por Victor Palla e Costa Martins, Lisboa Cidade Triste e Alegre , em 1959; e, a partir deste diálogo, sugiro que o hibridismo das imagens, que hoje, na segunda década do século XXI, predomina, tem seus antecedentes nos diversos momentos da história da fotografia . Vale iniciar a reflexão lembrando que a obra de Palla e Martins, como não poderia deixar de ser, encontra seus antecedentes, por exemplo, nas montagens de Oscar Rejlander, em meados do século XIX, nos primórdios mesmo da fotografia (ou daquilo que convencionamos chamar fotografia), nas manipulações dos construtivistas russos nas décadas de 20 e 30 do século XX, nos experimentos dos fotógrafos da Bauhaus, entre outros exemplos, em que o “real fotográfico” passou a ser sobretudo a matéria prima a ser posteriormente trabalhada e fundida com outras linguagens (do cinema, das artes gráficas etc). Desta forma, este artigo, que nasce do encantamento absoluto de seu autor com a obra de Palla e Martins, é um farol apontado para o passado lembrando que por mais surpreendentes que sejam os novos meios, não estamos em um território de novidades absolutas, mas sim reconfigurando tradições que, neste presente momento histórico, voltam a nos falar de maneira contundente. A obra fotográfica de Victor Palla e Costa Martins, materializadas no livro Lisboa, Cidade Triste e Alegre, título retirado de verso do poeta Fernando Pessoa, impôs-se de maneira avassaladora para este pesquisador. Quando encontrei na Biblioteca da Fundação Calouste Gulbenkian este livro, construído a quatro mãos e múltiplas linguagens, encontrei o outro lado da lua, o qual até então estava encoberto, e era o que buscava. Surgiu nas páginas do livro uma Lisboa vista de dentro, habitada por gente frente a uma câmara fotográfiUma reprodução completa do livro analisado pode ser encontrada no endereço www. imagensdelisboanoespelhodafotografia.wordpress.com 2 Este artigo é parte de uma pesquisa mais ampla realizada no contexto de um pósdoutoramento em Lisboa com a supervisão do professor Vitor Matias Ferreira. 1
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ca integrada na paisagem, próxima e íntima dos personagens que significam a Cidade. Neste livro nos deparamos com uma sociedade na contramão da mediocridade salazarista, plena, viva, alegre, triste, sobretudo urbana em contraposição à ideia de ruralidade (Deus, pátria e família) sempre evocada pelo ideal de Portugal proposto por Oliveira Salazar, o poderoso primeiro-ministro de 1932 a 1968. Nas minhas leituras sobre a história de Portugal, algo não se coadunava no discurso salazarista com a Lisboa que eu encontrava em fragmentos na obra de diversos fotógrafos (e também artistas plásticos, músicos etc) deste período. Encontrei a resposta inteira na obra de Victor Palla e Costa Martins. O trabalho que viria a resultar no livro Lisboa, Cidade Triste e Alegre, precedido por duas exposições igualmente revolucionárias, foi desenvolvido ao longo de três anos, a partir de 1956, quando os dois então jovens arquitetos deixaram a arquitetura em segundo plano para passar dias e noites perambulando pelas ruas, avenidas, becos, bares e praças de Lisboa para produzir as imagens deste projeto. Foram cerca de seis mil fotografias, das quais os autores escolheram pouco mais de duzentas para integrar as exposições, no ano de 1958, primeiro na galeria do Jornal Diário de Notícias, em Lisboa, e logo a seguir na galeria Divulgação, no Porto. Tanto nas exposições quanto no projeto gráfico do livro, as fotografias foram diagramadas em diálogo com poesias de autoria de Fernando Pessoa (Álvaro de Campos e Ricardo Reis), António Botto, Almada Negreiros, Camilo Pessanha, Mário de Sá-Carneiro, Alberto de Serpa, Cesário Verde, Gil Vicente, e inéditos de Eugénio de Andrade, David Mourão-Ferreira, Alexandre O’Neill, Jorge de Sena, entre outros nomes da cena literária portuguesa de então, precedidas de texto de abertura de José Rodrigues Miguéis. A forma de lançamento do livro foi também inovadora, em sete fascículos mensais, os quais se completaram, ao final, num único livro, da mesma forma que a assinatura do livro por dois autores era também pouco usual num momento de extrema preocupação com a autoria das imagens no ambiente
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dos Foto Clubes e Salões. Não é o caso de cair no clichê de dizer que foi um trabalho à frente de sua época, pois nasceu do embate com a realidade. Mas, sem dúvidas, continha algo de visionário na sua produção e formatação, como que a antever já nos anos 50 a retomada da democracia que aconteceria vinte anos depois, com o povo nas ruas, na Revolução dos Cravos. Não é o caso também de fazer uma separação maniqueísta entre uma fotografia oficial e pró-regime, que seria divulgada no espaço dos Salões e dos Foto Clubes, em oposição a uma fotografia vanguardista, representada na nossa pesquisa pela obra de Palla e Martins. A realidade foi e é sempre mais complexa, até porque os Salões fotográficos foram um fenômeno mundial e não apenas português, onde fotógrafos, na sua maioria amadores, praticavam uma fotografia “naturalista” e idealizada, sem maiores inquietações formais. Ainda assim, dentre estes, muitos evoluíram para um trabalho mais questionador e experimental, até porque os seres humanos também são sempre seres em transformação. De qualquer forma, no caso português, um outro núcleo de fotógrafos organizou-se paralelamente aos Foto Clubes, com outros ideais de partida, com destaque para o Surrealismo, onde sobressai o talento de Fernando Lemos, os experimentos abstratos de Fernando Taborda, Carlos Calvet, Carlos Afonso Dias, bem como no Neo-Realismo de Gerard-Castello Lopes e Adelino Lion de Castro, entre outros. Convém dizer que a fotografia portuguesa dos anos 50 está representada em uma coleção muito bem constituída no Museu Nacional de Arte Contemporânea (Museu do Chiado), sobre o qual foi publicado também um excelente trabalho de autoria de Emília Tavares (2009). Este acervo reconstitui o pano de fundo que demonstra que Palla e Martins estavam sintonizados com o cenário internacional das artes e da fotografia, bem como com outros artistas da vanguarda portuguesa. Estavam à margem do discurso oficial, mas integraram um movimento espontâneo de arejamento na vida portuguesa. Eles não economizaram experimentações, com desfoques, enquadramentos insólitos, cortes ousados e abusados, tudo que contrariasse o conformismo e a mediocridade na fo-
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tografia. E, sobretudo, a marca maior do trabalho, estiveram próximos das pessoas e da Cidade em uma visão múltipla e fragmentada. Nas palavras da curadora Lúcia Marques, que realizou um importante estudo sobre o livro e organizou uma reedição, em 2004, do livro até então quase esquecido: Estas fotografias propunham um percurso imagético que negava a visão globalizante do plano e exponenciava a natureza subjectiva do fragmento, do editing. Era uma outra cidade aquela que então se mostrava, a cidade habitada, em renovado crescimento arquitectónico e humano, sintomaticamente com particular atenção às mulheres e às crianças. (MARQUES, 2004, p. 4)
Já na sua capa, o livro apresenta seus propósitos, com uma imagem panorâmica de um dos mirantes de Lisboa, em suave contraluz, onde vários grupos de homens e mulheres conversam animadamente em uma cena decididamente urbana. Não é possível reconhecer os rostos das pessoas, apenas suas posturas e diálogos corporais. Na primeira página uma criança nos olha de uma janela. Na página dupla seguinte, surge uma cena de final de tarde, acompanhada de versos de Armindo Rodrigues. Os primeiros versos como que antecipam a estética do livro: “Não raramente, com certeza/ a razão resiste/ em encontrar beleza”. O trabalho de Palla e Martins fala sobretudo à emoção. É um mergulho na pedras da cidade com sua gente dentro. É um jogo de imagens onde os autores demonstram sintonia com a nova linguagem fotográfica de meados do século XX, demonstram influências do novo cinema europeu na sobreposição de imagens, e antecipam questões que seriam fundamentais no discurso fotográfico nas primeiras décadas do século XXI, com a “invasão” definitiva e o predomínio absoluto da fotografia eletrônica e digital. É intrigante e surpreendente a repetição de algumas imagens com pares diferentes, como, por exemplo, logo nas páginas 10,
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11, 12, 13, 14 e 15 onde as fotografias das crianças aparecem, depois desaparecem, para ressurgir outra vez, permanecendo e desaparecendo de nossas retinas num jogo de ocultar e mostrar tão característico do grande cinema (e da grande fotografia). Depois, as imagens ficam outra vez pequenas, contidas na página, cercadas de branco, o silêncio entre as imagens, para depois outra imagem “sangrar” na página com um grupo de crianças a brincar de roda. E assim o livro vai se construindo, num bric-à-brac, em uma brincadeira de montar, sugerindo ao leitor (espectador) possibilidades várias de leituras e surpresas, como as páginas pretas ou amarelas que despontam no meio do livro, como que a lembrar que qualquer forma de ver está submetida a um filtro pessoal e intransferível, como que a lembrar ao leitor (espectador) que aquela Lisboa é sim Lisboa, mas filtrada pela subjetividade dos fotógrafos, por suas escolhas e decisões. É especialmente interessante a representação da mulher no livro Lisboa, Cidade Triste e Alegre. Este é um tema difícil. Possivelmente, muitas e muitos estudiosos do assunto venham a discordar, possivelmente também com alguma razão, com maior embasamento sociológico, mas a mulher que surge nas páginas do livro é uma mulher urbana, livre, que olha para a câmera fotográfica sem medo, sem subserviência. Não é a mulher da propaganda Salazarista que espera seu marido em casa, no recato do recesso do lar, esta que surge nas imagens de Palla e Martins. É a mulher trabalhadora. É a mulher conversadeira nos cantos da cidade. É a mulher mãe levando pelas ruas os seus filhos. É a linda mulher sentada num café com ares de sonhadora. É a mulher ativa e independente, que compartilha a cidade com homens, crianças e velhos, em condições de igualdade que identificamos em belíssimos instantâneos captados pela dupla de fotógrafos. Os velhos estão também, quase que como um fio condutor ao longo de todo o livro. Afinal, o que seria de Lisboa sem seus velhos? E sem o Tejo, não apenas presente, mas onipresente ao longo de todo o livro, nos barcos, nas varinhas, nos pescadores, na alma de Lisboa. Nas últimas páginas, surge a Lisboa noturna, dialogando
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com os versos do Fado para a lua de Lisboa, de David Mourão-Ferreira: “Denuncia nas valetas as sombras que tu arrastas:/ prostitutas, proxenetas,/ silhuetas de pederastas…/Colos brancos. Rendas pretas./Casas tortas. Pedras gastas./”. Entre os versos, uma Lisboa de sombras, poucas luzes, em experimentações formais e técnicas radicais, apoiadas na valorização das possibilidades da fotografia na representação do mundo. É uma fotografia contaminada pelo cinema, pela linguagem das artes gráficas e da publicidade, e por isto mesmo, puríssima fotografia, sem medo de se misturar também com as palavras. Os 32 excertos literários distribuídos ao longo do livro são fundamentais na construção de sentidos da obra, onde nas páginas finais, em tom de confissão, os próprios fotógrafos revelam as influências recebidas de fotógrafos consagrados na época, nomes hoje consolidados na história da fotografia, tais como Irving Penn, Richard Avedon, Eisenstaedt e Cartier-Bresson, bem como de cineastas como Felini e Carl Dreyer. Ótimas influência sem dúvidas. Ainda assim, por mais universal que seja esta obra, ela contém, intacta, outra face que lhe dá o sabor e o valor maior, talvez justificando a velha máxima de que “quanto mais regional a arte mais universal ela se torna”. É Lisboa que se revela nas imagens, frente à frente consigo mesma, refletindo seu próprio espírito. Algo se apresenta pelo visível que não se revela ao primeiro olhar, mas os fotógrafos decidem compartilhar, de dentro, com quem puder neste abismo mergulhar. Talvez este espírito esteja também no texto inicial de José Rodrigues Miguéis: “Lisboa é este rio imenso, este horizonte de apelos sem fim, e não se pode ter nascido aqui, vivido aqui, ou ser-lhe assimilado, sem lhe sofrer o influxo, sem ficar para sempre marcado duma vocação, dum desgarramento e fatalismo, dum anseio de partir e tornar, duma sensual melancolia.” A seguir, nos arriscaremos a repassar, página a página, o livro de Palla e Martins, dialogando com as observações que os próprios deixaram impressas no índice da publicação, na tentativa de abrir novas portas para as múltiplas interpretações que surgem destas imagens: Página 1: A partir desta primeira página os fotógrafos
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afirmam: “não acreditamos que as palavras possam somar (nem tampouco diminuir, valha a verdade) seja o que for à obra plástica”. Concordamos, há uma irredutibilidade à palavra na grande fotografia. Ela se basta. Mas, paradoxalmente, ela nos instiga a pensar e a formular outras imagens com palavras, entre seus ditos e não-ditos, como que a nos lembrar que “no princípio era o verbo”. E do verbo construímos nosso mundo, e também nossas imagens. Os fotógrafos acrescentam: “a quem mais poderia interessar, por exemplo, que esta fotografia tivesse sido feita pela tardinha, no verão, com uma Leica equipada com uma objetiva 50 mm e filme Tri-X”. Realmente, não sabemos a quem poderia interessar, mas, transportados a esta tarde de verão, costuramos palavras, enquanto a menina retratada (até hoje) nos olha da janela da sua casa. Páginas 2 e 3: Nesta imagem em página dupla, Palla e Martins demonstram estar em sintonia com os questionamentos técnicos e estéticos que nortearam a melhor produção fotográfica de meados do século XX, materializados, por exemplo, no livro The Americans, do fotógrafo suiço radicado nos Estados Unidos, Robert Frank, lançado em 1958. Nesta obra, hoje considerada fundamental por todos os historiadores da fotografia, Frank apresenta imagens fora do padrão aceito para a “boa fotografia”. A maior parte das imagens são desequilibradas, instáveis, fora de foco, com enquadramentos inusitados e recortes inesperados. Esta linguagem é resultado de seu projeto de apresentar aos americanos uma face sombria e realista do país que propagava aos quatro cantos do mundo a perfeição cinematográfica de Hollywood. O seu interesse, incorporado em suas imagens, era a solidão, a melancolia das luzes noturnas, o isolamento das pessoas em imagens estáticas, em diálogo com um mundo em movimento. Vale o registro de que esse livro foi muito mal recebido nos EUA quando por lá lançado em 1959, curiosamente o mesmo ano do lançamento da obra de Palla e Martins em Portugal. Esta imagem, abrindo as páginas 2 e 3, também se apresenta “fora dos padrões”, excessivamente granulada e levemente desfocada. No índice, os autores deixaram registrado que a “perfeição técnica, ao fim e ao cabo, só pode querer dizer que a técnica
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usada foi a que mais perfeitamente se adequava à ocasião, ao tema, e à intenção do autor”. O resultado ficou nesta imagem do anoitecer, na intimidade de um casal acompanhando o acender das luzes, em dia enevoado, do alto do Miradouro de Santa Catarina. Páginas 4 a 9: Nessas imagens salta a motivação primeira da obra de Palla e Martins, nas palavras dos mesmos: “o povo, as pessoas”, sempre com um olhar apurado pela busca do “momento decisivo”, mas de alguma forma também já ampliando esse conceito (formulado por Cartier-Bresson), ao fundir e confundir o que vemos, estabelecendo um pano de fundo permanente, criado pelo reconhecimento de que a fotografia cria novas realidades. Sempre com um olhar autêntico, próximo das pessoas, que olham diretamente para a câmera, longe do “pitoresco”, tantas vezes perseguido por fotógrafos entre as ruas dos bairros das cidades históricas. Páginas 10 a 19: uma sequência de imagens de crianças em movimento, escondendo-se a aparecendo outra vez, em arranjos propostos pelo projeto gráfico do livro, para tudo terminar em uma linda imagem ampliada de um grupo de crianças brincando de roda. Páginas 20 a 24: Nas palavras dos fotógrafos: “No mundo misterioso das crianças há por vezes estes momentos de completa absorção”. As crianças estão concentradas, compenetradas, vivendo suas fantasias. Para tanto, os fotógrafos relatam: “tentamos reduzir o nosso equipamento ao mínimo...a máquina nua na mão...”. Página 25: “As condições de luz eram deficientes”. Desta deficiência, eles tiraram partido com uma teleobjetiva, para captar os namorados, “sozinhos numa bicha de dezenas de pessoas”. Páginas 26 a 34: Desfilam por estas páginas, nas palavras dos autores “personagens em diferentes versões duma peça velha como o mundo”. O ser humano, a condição humana, o amor, a solidão, a solidariedade, estão entre estas imagens. Mas a abordagem vem por uma linguagem nova, fotográfica, cinematográfica. Os autores revelam que a tentativa foi “arrumar cinematograficamente” o olhar sobre a cidade. Esta proposta fica clara na página dupla 31 e 32, por exemplo: uma
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larga panorâmica quase 180 graus é sobreposta a um close-up em arrojada composição. Os autores confidenciam: “só pode haver vantagens na inter-influência das artes de nosso tempo, que têm muito que aprender umas com as outras”. Páginas 35 a 46: Pela imagem impressa na página 35, nas palavras de Palla e Martins, “pela alta ruazinha entramos nos velhos bairros de Lisboa”. E o que se segue, página após página, é um mergulho no abismo das ruas, paredes, pedras de uma Lisboa quase que atemporal, mas sempre com gente dentro. São sempre as pessoas que orientam o percurso dos fotógrafos. A filha do sapateiro, na página 37, talvez até hoje esteja lá (ou seria outra?), assim como os homens sentados na rua, na página 40, em frente à moça que encara a câmera fotográfica e nos olha para sempre na página 45. Páginas 46 a 73: Os fotógrafos, sem que se afastem um centímetro da temática, aventuram-se em enquadramentos inusitados (pág. 59), de baixo para cima (pág. 48), de cima para baixo (pág 51), por vezes usam um desfoque absolutamente abusado (pág. 47) e assim constroem uma narrativa. Segundo suas palavras “Do fluxo do livro, do decorrer de seu tema, derivaram experiências de escolha, de ritmos, de cortes e enquadramentos, de repetições, de ‘rimas’, de cores e valores”. A sensação é de uma correnteza atravessando Lisboa, ainda que cada fotografia contenha seu abismo. Páginas 74 a 96: E de repente, o rio ocupa as páginas do livro, como que a nos lembrar que Lisboa somente é Lisboa graças ao Tejo. O rio é a cidade, a cidade é o rio, e os dois — rio e cidade — se atravessam para construir a “cidade das águas”. Talvez por isto o Tejo surja, entre a sequência de imagens, sem nenhum aviso, sem nenhuma cerimônia. De repente também, entre as páginas 78 e 89, tudo fica amarelo. Um filtro amarelo cobre todas as imagens e o branco deixa de existir. Os fotógrafos nos sugerem um lapso de tempo, um tempo paralelo que somente existe na beira do rio, no Cais da Ribeira. São eles que dizem a respeito da imagem da página 96: “É a última fotografia do rio...vamos sair dum cais onde as mulheres e homens não se vestem de maneira muito diferente da de há cinqüenta, cem anos, para
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entrar numa Baixa feita de contrastes...”. Páginas 97 a 113: Chegamos à Baixa Lisboeta, e caminhamos ao lado de mulheres bem vestidas, olhando vitrines, no burburinho urbano. Nas páginas 104 e 105, nas palavras dos fotógrafos, “a forma binária, a mais elementar maneira de compor conjuntos de fotografias, que consiste no simples colocar lado a lado duas cenas que qualquer parentesco une, e cuja aproximação provoca efeitos...”. Vale dizer que o trabalho de Palla e Martins, utiliza-se com maestria destes efeitos simples, a forma binária, por exemplo, mas com muita ousadia nas escolhas, para obter seus efeitos mais significativos. E chegamos às páginas 111 e 113, onde em outra forma simples, três imagens justapostas, três grupos esperam a passagem das procissões lisboetas. Página 114 a 141: Entre essas páginas surgem as festas populares, feiras, procissões e romarias, tão entranhadas na alma lisboeta. Nas páginas 116 e 117, um contraponto revelador da poética dos fotógrafos: “Tudo justificava – exigia – uma nova arquitetura gráfica. Não era mais necessário colher imagens, mas escolher, cortar e dispor elementos existentes, dando corpo a um ‘divertissement’ visual que espelhasse o espírito e a forma do poema de Mourão-Ferreira”. O resultado é uma página dupla com sombras e relevos. Logo depois, sem nenhuma cerimônia, nas páginas seguintes, grupos de mulheres conversam, uma rapariga atende a um cliente, bonecos de barro misturam-se a figuras humanas, crianças nos olham, velhos seguram seus netinhos, mulheres cortam alimentos...as ruas de Lisboa estão em festa... aqui e ali vislumbramos uma ponta de melancolia. Páginas 142 a 152: Revelam os fotógrafos: “Desta página em diante, só aparecerão fotografias conseguidas de noite, dentro ou fora de casa, mas sempre à luz ambiente, aproveitando as situações sem qualquer espécie de ensaio ou encenação”. Assim, entre luzes, sombras e penumbras, surgem a “Mulher que vende pentes na Rua da Palma”, a “Vendedora de laranjas”, a “Rapariga na esquina”, e entre suas sombras, outras sombras, em formas humanas, se esgueirando nas bordas das ruas. E terminamos nosso percurso por dentro da Lisboa de
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Palla e Martins, entre imagens difusas, entre a vigília e o sonho... Uma música, antes baixinha, agora chega límpida aos nossos ouvidos. É o “Fado para a lua de Lisboa”…E as imagens se sobrepõem, se fundem, se misturam, impregnadas de futuro.
Referências
FERREIRA, Vitor Matias. A cidade de Lisboa, de capital do império a centro da metrópole. Lisboa, Editora Dom Quixote, 1987. MARQUES, Lúcia “A construção fotográfica da cidade: Lisboa, cidade triste e alegre (1956-59/1982)” in Cultura Urbana - Imagem e Fotografia. Porto: Associação Cultural Instituto, 2004. PAVÃO, Luis. The photographers of Lisbon, Portugal. Dissertação de mestrado apresentada ao Museum of Photography at George Eastman House, Rochester, New York, 1990. JANEIRO, Maria João. Lisboa Revisitada, Lisboa: Editorial Presença, 1999. ROSAS, Fernando (Coord.), “O Estado Novo (1926-1874)”. In: MATTOSO, José (Dir.), História de Portugal, Sétimo Volume. Lisboa: Círculo de Leitores, 2009. VICENTE, António Pedro. Los Albores del Arte fotografico em Portugal. Madrid: Espasa-Calpe Edições, 1986. SENA, António. Uma História da imagem fotográfica em Portugal. Porto: Porto Editora, 2008. TAVARES, Emília. Batalha de Sombras. Vila Franca da Xira: Edição do Museu do Neo-Realismo, 2009.
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Entre olhar o turista e olhar para o que ele olha Lívia Aquino
Lívia aquino, Fotógrafa, professora e pesquisadora do campo da imagem. É doutoranda em Artes Visuais e mestre em Multimeios pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Bacharel em Psicologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Atualmente é professora na pós-graduação em Fotografia da FAAP em São Paulo. Foi docente no bacharelado e na pós-graduação em Fotografia do Centro Universitário Senac em São Paulo (2000-2008). Atuou nas disciplinas Modos de Recordar e Celebrar, O suporte como discurso, Orientação de Projetos e Seminários de Pesquisa. Em 2003 ganhou o Prêmio Porto Seguro Revelação com o ensaio De quando revelei minhas memórias, em 2012 foi selecionada para o III Prêmio Diário Contemporâneo com Como falam as fotografias. Participou de exposições no Centro Cultural São Paulo, na Casa da Fotografia Fuji, no Centro Cultural da Caixa, no Instituto Tomie Ohtake e na Fototeca de Cuba. Em 2009 foi selecionada para a mostra Descubrimientos no Festival PhotoEspaña com o trabalho Poeira da terra e do tempo daquele lugar. É editora do blog Dobras Visuais.
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Quebrar as armadilhas do mundo é, antes de mais, quebrar o mundo de armadilhas em que se converteu nosso próprio olhar Mia Couto
A fotografia encontra-se implicada ao turismo com as modificações do tempo-espaço na modernidade, ganhando fluxo na vida social por meio de rituais e modos de ação diversificados na experiência da viagem. Fotografia e turismo atravessam o século XX forjando operações que comportam, entre outras, a invenção dos lugares, a ocupação do tempo, o acúmulo dos clichês e a roteirização da memória. No final desse período, as concepções acerca da fotografia começam a serem revistas em um contexto no qual o mundo aparenta ter sido varrido por ela. Em Sobre fotografia (1977), a crítica americana Susan Sontag trata da relação entre a fotografia e o turismo e sinaliza as implicações de transformar o vivido durante a viagem em um registro obsessivo de imagens e o quanto elas funcionam aparentemente como prova do programa cumprido. A onipresença das fotos produz um efeito incalculável em nossa sensibilidade ética. Ao munir este mundo, já abarrotado, de uma duplicata de mundo feita pelas imagens, a fotografia nos faz sentir que o mundo é mais acessível do que é na realidade. A necessidade de confirmar a realidade e de realçar a experiência por meio de fotos é um consumismo estético em que todos, hoje, são viciados. (...) Ter uma experiência se torna idêntico a tirar dela uma foto, e participar de um evento público tende, cada vez mais, a equivaler a olhar para ele, em forma fotografada (SONTAG, 2004, p. 34).
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Segundo a autora, a experiência da viagem passa a equivaler-se à imagem naquilo que nomeia como um evento, ou seja, algo que merece atenção e, portanto, também uma fotografia. Assim, considera que, nesse campo do turismo, tudo existe para terminar em uma foto e fotografar passa a ser tão importante quanto estar lá, implicando um modo de viajar que pressupõe a presença de um sujeito seduzido por lugares, pessoas, objetos. Dessa maneira é que o turista passa a conferir um caráter de acontecimento no enunciado de um mundo-imagem no qual a fotografia é a promessa de sua imortalidade. Desse modo, a partir da modernidade, fotografar uma viagem torna-se um ritual que envolve modos de ação, gestos e circunstâncias que fazem emergir um discurso por meio da imagem. Esse protocolo social da fotografia faz-se coercivo no decorrer do tempo e impele o turista a registrar e presumir conhecer o mundo por meio dela. Logo, esse sujeito também passa a decidir sobre o seu destino de férias baseando-se em todo um repertório visual criado pelo turismo e, semelhante a um jogo, inventa um circuito de ações como ver, conhecer, experimentar, registrar e gerar memória dos lugares e dos passeios. A partir dos anos 1980, e nas últimas duas décadas especialmente, artistas começam a problematizar o turismo nessa relação com a fotografia, apontando questões sobre o conteúdo e as formas de ver, a serialização, o esgotamento, a posse e a pose. Nota-se nessa perspectiva um processo de reconhecimento e registro de tensões entre os dois campos, bem como um exercício crítico acerca das imagens ao deslocá-las no tempo e no espaço de seus usos, restituindo enunciados dos modos de operação da fotografia, principalmente aquela produzida por amadores, e produzindo novos modos de percepção e subjetivação sobre a experiência da viagem. Esse artigo aborda um pequeno percurso no qual a própria fotografia é posta como uma questão, inicialmente no registro do fotógrafo que aborda a produção em massa dos turistas e, posteriormente, quando ressignificada por meio das apropriações feitas por artistas. Para tanto, parte-se de três anotações apontadas por Sontag, destacadas como subtítulos,
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para traçar essa trajetória que perpassa olhar o turista e olhar para o que ele olha no contexto dessa produção assinalada anteriormente.
“Pare, tire uma foto e vá em frente” Em 1986, o inglês Martin Parr publica o livro The Last Resort, um dos primeiros a mostrar o turista como objeto, destacando esse sujeito que viaja com o intuito de descansar do trabalho e aproveitar o tempo livre. O fotógrafo mantém o foco no comportamento do turista que se sujeita aos balneários, restaurantes, alojamentos e transportes lotados em New Brighton, na Inglaterra. Essa região retratada por Parr tornou-se uma estância muito popular, a serviço das cidades industriais próximas a Liverpool e Lancashire, durante o século XIX. Após a Segunda Guerra Mundial, ela perde aos poucos sua fama para outros lugares. No ensaio de cunho sarcástico, Parr demonstra questões como uma superlotação que diminui a qualidade da experiência do visitante e um conflito entre o prazer das férias e a estrutura decadente dos locais escolhidos, que se apresentam com grande quantidade de lixo, falta de higiene e espaço para os turistas. Entretanto, em Small World, outro ensaio que realiza durante a década de 1990, em diferentes sítios turísticos nos cinco continentes, Martin Parr amplifica a crônica da vida moderna retratada no balneário inglês. Com o mesmo tom ardiloso, mas agora em escala global, ele trata de lugares, comportamentos e objetos que se repetem e se acumulam à exaustão. As imagens evidenciam os mais diversos lugares – cidades, praias, montanhas – criados, transformados ou simulados em sítios turísticos, como os cassinos e hotéis de Los Angeles e o Tobu World Square no Japão. Neles circulam toda sorte de gente, sujeita a aeroportos, ônibus e restaurantes abarrotados, consumindo souvenirs e fotografando personagens representantes de outros tempos, como o índio americano ou o soldado romano. Para o mundo pequeno de Martin Parr, o turista é homogeneizado, semelhante em gestos e desejos em todos os locais do mundo.
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Em Small World, na Torre de Pisa, a mesma pose se repete, e na Acrópole um grupo é fotografado em frente ao monumento enquanto outro se reúne em torno da leitura do guia, de modo que naquele instante ninguém olha para a edificação que motiva a vista. O fotógrafo coloca em destaque um comportamento envolvendo as fotografias de viagem no qual várias câmeras registram simultaneamente o mesmo agrupamento. Assim, o turista também é um fotógrafo em Small World, registra seu deslocamento a cavalo na Turquia, contorce o pescoço para fazer uma boa composição da Torre Eiffel, clica crianças pobres da África ou as ensina a fotografar na Itália. Ao mesmo tempo, é um sujeito que põe em circulação objetos carregados e alimentados pelo circuito das imagens por meio de guias, folders, roupas e souvenirs com estampas de mapas e dos mais variados clichês. Martin Parr reconhece um sujeito turista e aponta uma espécie de sintoma do mundo em fins de século em sua condição de grande fluxo de pessoas na busca por imagens. Entretanto, o risco que o artista corre com sua ironia localiza-se na fronteira entre a alegoria das performances dos turistas e o esvaziamento de um legado deixado pela fotografia com um protocolo que implica um tipo de perseguição do objeto do olhar, como se ele próprio fizesse parte das anotações de Sontag: “pare, tire uma foto e vá em frente”.
“Viajar torna-se uma estratégia para acumular fotos” As apropriações e extrações da fotografia de seu contexto aplicado tornam-se mais frequentes a partir dos anos 1980. São trabalhos que reconhecem coleções e conjuntos de imagens produzidas e consolidados na cultura moderna, condensados no cotidiano pelo sentido de seus usos. No contexto do turismo, destacam-se três ensaios que realizam essa operação. Em 2006, a artista americana Penelope Umbrico apresenta o mural Suns From Flickr, quase seiscentas mil imagens do por do sol feitas por fotógrafos amadores e coletadas de um site de compartilhamento. Como se trata de um work in progress, a cada exposição novas fotografias são adicionadas e a
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legenda com o número é atualizada. Ainda hoje é crescente. Umbrico escolhe milhões de fotografias de um único evento, denunciando sua condição de clichê. Por vezes desdobra essa coleção de poentes em pequenas séries nas quais cria categorias, como Honeymoon Suites (2008) uma seleção de fotos tiradas a partir de janelas de hotéis por pessoas em lua de mel, ou ainda Sunset Portraits (2011) com a silhueta de pessoas na contraluz.
Penelope Umbrico, Sunset Portraits, 2011.
Outro artista, o alemão Joachim Schmid, segue um procedimento semelhante ao de Umbrico, especialmente em duas séries, no caso do turismo. Em Archiv (1986) começa a trabalhar com apropriações de todos os tipos, com certo destaque para fotografias de viagem, por meio de cartões postais ou propagandas de revistas para criar categorias por semelhança com temas como monumentos, aeroportos, sítios turísticos e praias. Expõe os conjuntos em murais que também destacam a condição de repetição das imagens. Em 2007 em outro trabalho intitulado Meeting, faz uma seleção de fotos publicadas em anúncios de hotéis, nas quais casais posam felizes nas locações, demonstrando um ideal do tipo de modelo e comportamento para essa ocasião de férias. Esses dois artistas operam com a extração de conjuntos de imagens de diferentes
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situações e os expõe lado a lado demonstrando o clichê por meio do assunto ou de seu uso. Logo, o que se repete é tratado como categoria na montagem da obra. Já Corinne Vionnet, na série Photo Opportunities iniciada em 2005, retira as fotografias de seu lugar e as sobrepõe de modo a criar camadas de centenas de tomadas repetitivas dos mesmos lugares. A artista suíça também coleta as imagens feitas por turistas em sites de compartilhamento ratificando um olhar construído: repete-se o enquadramento, o ângulo e a distância da tomada. Porém, quando superpõe as fotografias, Vionnet tira a opacidade de cada uma e faz com que as camadas apareçam sutilmente de modo a criar uma nova imagem. O aspecto quase onírico do desfoque gerado com as sobreposições coloca o monumento em suspensão, como se flutuasse no espaço que se reconhece de antemão por tantas outras fotografias vistas em cartões postais e guias turísticos como as do Taj Mahal, das pirâmides do Egito, da Sagrada Família ou do Coliseu. Os três artistas apontam para o processo de acumulação e repetição sobre os quais a viagem torna-se uma estratégia. São trabalhos que trazem à tona a condição de clichê das imagens por meio da uniformização das tomadas, dos estereótipos estéticos e dos modos como são utilizadas. Logo, em certa medida, essas obras também evidenciam a natureza de reprodutibilidade da fotografia e do valor do múltiplo que passa a vigorar nas artes visuais.
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©Corinne Vionnet
Corinne Vionnet, Al-Gizah, da série Photo Opportunities, 2006.
“O mundo-imagem sobrevive” Quando os personagens Ulysses e Miguel Ângelo, no filme Les carabiniers (1963), voltam para casa da guerra trazendo apenas uma pequena mala, dizem que dentro dela há tesouros do mundo exibidos em cartões-postais de monumentos, meios de transporte, lojas, obras de arte, indústrias, riquezas da terra, maravilhas da natureza, paisagens, animais, continentes e até planetas. Enfatizam que, naturalmente, cada parte se divide em vários pedaços, que por sua vez se repartem em outros. Eles começam então a colocar na mesa essas pequenas porções de mundo, em um movimento compulsivo que aos poucos delata sua crença de que aqueles artefatos representam lugares que lhes pertencem. Muito embora o filme retrate uma viagem para uma guerra, faz uma analogia sobre o valor e o lugar das imagens, por meio desses souvenirs que os fazem crer, ingenuamente, na posse do mundo que percorreram. Em parte, são as fotografias que sugerem a permanência da experiência do mundo-imagem desenhado com a
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modernidade e Les carabiniers lembra a todos sobre isso em tempos de desenvolvimentos do turismo de massa.
Marcelo Pedroso, Pacific (frame do filme), 2009.
Todavia o documentário Pacific (2009), do cineasta brasileiro Marcelo Pedroso, aborda o cotidiano de uma excursão de navio por meio de imagens realizadas pelos próprios passageiros. Junto com a tripulação, os produtores identificam aqueles que registram e, ao final, pedem o material para o filme. O trajeto entre Recife e Fernando de Noronha é realizado no feriado de final de ano, sendo que a narrativa entrecruzada começa com as famílias saindo de férias e termina no que seria o ápice, a festa na hora da virada, dia que coincide com a chegada ao arquipélago. A dupla, filmagem e fotografia, é tratada como uma ação semelhante, registra-se tudo para que a experiência seja mediada pela imagem, estática ou em movimento. O turista de Pacific deixa evidências de que viajar pressupõe carregar uma câmera, um tipo de gesto ritual capaz de chancelar a viagem. Diferente do cartão postal de Les carabiniers, a ação de fazer a própria fotografia é que se torna um souvenir na medida em que funciona como prova de inscrição e memória da experiência, como no registro do casal que encena para a câmera em diversos momentos: na cabine, no salão do navio ou no mirante na ilha.
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A estratégia de montagem do filme permite fazer emergir os procedimentos comuns dos turistas, um registro constante e sequencial de suas atividades e dos momentos esperados. Dessa maneira, ao seguir o fluxo da viagem, Pedroso sobrepõe camadas de histórias por meio dos diferentes sujeitos e situações: a saída do aeroporto, a chegada ao porto, o reconhecimento da cabine, os serviços oferecidos, a estrutura do navio, os rituais e os passeios. Entretanto, junto com isso, sobretudo expõe um turista excitado diante do novo e que, paulatinamente, entedia-se com a piscina que não funciona tão bem ou com a comida pouco farta, mas que mesmo assim fotografa. Pacific revela um tipo de registro privado, que muito embora tenha encontrado oportunidade de tornar-se público na atualidade com as redes sociais, surge circunscrito à história dos indivíduos e suas famílias. Nesse sentido, o filme desvela a intimidade de pequenos gestos e sonhos encenados para a câmera, tornados possíveis e permitidos no espaço do navio, um pouco por ser fechado sobre si mesmo, como se existisse uma permissão nesse tempo e espaço da viagem. Os “momentos inesquecíveis que guardarão na memória”, segundo sugestão do guia antes do embarque, são criados como tal principalmente por meio dessas representações de seus passageiros, revelando uma subjetividade atravessada pela construção das imagens. Todos ali sabem performar para a câmera, com maior ou menor desenvoltura, não importa, mas mantêm-se atentos aos códigos aprendidos em outros momentos como, por exemplo, na cena em que o casal faz uma brincadeira com o filme Titanic ou posando para a fotografia com um comandante que frustra as expectativas do galante personagem construído, em parte, pelo cinema. No mundo-imagem apresentado em Pacific todos os eventos tornam-se dignos de serem registrados, das encenações ao roteiro realizado por alguns mostrando os dez andares do navio, com detalhes cuja relevância torna-se difícil de avaliar a partir de quais experiências os limites de quantidade e qualidade são estabelecidos nessa relação com as fotografias durante os passeios. Um dos guias de Fernando de Noronha sugere um só caminho para pensar essa ambivalência. Após
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a chegada à ilha para passar um dia, após três de viagem, um passageiro o questiona sobre quanto tempo podem permanecer naquela praia. Sua resposta rápida garante, “aqui é só foto mesmo”.
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O tempo e o ensino da fotografia reconfigurados
Sobreposições e atravessamentos entre o analógico e o digital Antonio Fatorelli
Antonio Fatorelli possui graduação em Sociologia e Política pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1982), mestrado (1994) e doutorado (1999) em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e Pós-dourado pela Princeton University (2006). Realizou várias exposições de fotografia e de imagem digital em que predominam a dimensão experimental e conceitual. É professor da ECO/UFRJ e pesquisador da imagem e das novas mídias. É pesquisador do Núcleo N-Imagem (ECO/UFRJ) e coordenador do Seminário Temático Cinema como arte, e vice-versa, da SOCINE. Publicou recentemente os livros Limiares da Imagem tecnologia e estética na cultura contemporânea, Fotografia e Novas Mídias e O que se vê, o que é visto - uma experiência transcinemas. Os temas mais freqüentes na sua produção científica e artístico-cultural são: Imagem e cultura digital, Subjetividades contemporâneas, Tendências estéticas e conceituais no contexto das novas tecnologias, Imagem e pensamento, Cognição e Processos de temporalização da imagem. Coordena o projeto Midiateca da ECO/UFRJ, financiado pela Secretaria Estadual de Cultura do Rio de janeiro.
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Apresentação As mutações estéticas e éticas promovidas pela cultura digital colocam em perspectiva as definições tradicionalmente associadas aos meios fotográfico, videográfico e cinematográfico, enquanto estabelecem as condições favoráveis à emergência de um pensamento crítico. Neste momento de transição, renovam-se os desafios para o criador de imagens e também para o crítico da cultura visual. O objetivo é apreender esses deslocamentos provocados pelas tecnologias digitais no âmbito do pensamento crítico e da prática artística.
O duplo devir da fotografia Uma das primeiras imagens fixas fotomecânica, View of the boulevard du Temple, de 1838, um daguerreótipo realizado por Louis-Jacques-Mandé Daguerre, o mago dos espetáculos ilusionistas naquele início de século, exibe algumas das ambiguidades instauradas pela representação instantânea. Ao tempo que exibe fielmente os contornos figurativos das edificações urbanas e da paisagem natural, esse daguerreótipo condena à invisibilidade todos os elementos que se encontravam em movimento no momento da tomada. Obtida desde a janela da Maison du Diorama, na Rue des Marais, essa imagem demandou uma exposição de aproximadamente um minuto, tempo longo o suficiente para obliterar a presença da população que circulava nessa agitada avenida parisiense, repleta de cafés, teatros e museus.
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Louis-Jacques-Mandé Daguerre. Vista do Boulevard du Temple,1838.
Com exceção do pedestre posicionado no primeiro plano, imóvel diante de um engraxate por um longo período, todas as demais marcas da mobilidade urbana, características da experiência moderna, encontram-se definitivamente ausentes da imagem. A ponto de podermos considerar que Daguerre, nesse clichê, logrou dar visibilidade às formas arquitetônicas da capital francesa sem, entretanto, notabilizar o espírito moderno que a diferenciou das outras metrópoles europeias. O modo habitual pelo qual avaliamos as imagens fotográficas desconsidera, com frequência, esses outros domínios não tão evidentes, mas igualmente implicados, da representação instantânea. Domínios que compreendem desde a subtração literal de partes substanciais da cena, como verificado nesse daguerreótipo, à inscrição, na forma de borrões e de fantasmas, de evidências parciais do movimento, a meio caminho entre
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a presença e a desaparição. As fotografias comportam esse duplo devir, simultaneamente mostrativo e furtivo, ao passo que nossos hábitos perceptivos e as convenções comumente associadas ao meio persistem em considerar isoladamente as marcas das evidências figurativas. O trabalho de crítica das imagens é muitas vezes investido do propósito de desnaturalizar a percepção, de modo a fazer ver a imagem nos seus desdobramentos internos, suas potências e suas inconsistências. Esse daguerreótipo exibe, de modo manifesto, algumas das tensões temporais manifestas em inúmeras fotografias do século XIX e, também, na iconografia atual. Esse tempo de tomada excessivamente dilatado encontra-se em posição antagônica, na cadeia da evolução tecnológica, ao instantâneo obtido em milésimos de segundos. Entretanto, ainda que diminuto, esse tempo veloz de obturação comporta, igualmente, um intervalo de tempo. O efeito de apagamento de parte substancial da imagem nesse daguerreótipo evidencia que a condição temporal das fotografias, inclusive das fotografias ditas instantâneas, oscila entre um maior ou menor lapso de tempo. As noções de ‘instante decisivo’, de ‘instante pregnante’ e de ‘instante congelado’, constituem tentativas de caracterizar os diferentes modos de ocorrência do instante fotográfico, muitas vezes a partir da compreensão do instante como um ponto geométrico, um tipo de ausência, ou de grau zero do tempo. Desse modo espacializado, figurado como um ponto na linha do tempo cronológico, o instante oferece a falsa impressão de um estado temporal em suspensão, destituído de espessura. Entretanto, o instantâneo fotográfico comporta um intervalo, uma duração ainda que breve, onde se inscrevem múltiplas temporalidades — um passado, um presente e um futuro —, a mesma bifurcação do tempo descrita por Bergson ao analisar a percepção subjetiva (BERGSON, 1990, p. 133), quando o presente se desdobra simultaneamente num passado imediato e num futuro iminente. As cronofotografias de Marey, Muybridge e Londe atestam essa natureza processual do instante. Resultantes das altas velocidades de obturação, essas sequências fotográficas proporcionaram a apreensão de dezenas de micro aconteci-
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mentos no lapso de um breve instante, dando a entrever a existência de outros infinitos instantes, ainda mais efêmeros. É o que atestam as surpreendentes cronofotografias realizadas por Harold Edgerton, a partir do final da década de 1930, no MIT, utilizando um flash estroboscópico, que propiciava a obtenção de mais de 120 instantâneos por segundo e, recentemente, as fotografias ultra rápidas obtidas por Andrew Davidhaze. O efeito realista da fotografia encontra-se na dependência da inscrição, na superfície da imagem, dos contornos figurativos da cena representada. Todavia, esse é um efeito facultativo, que pode ou não preponderar, a depender da velocidade de registro utilizada. Expandida, ao ponto de obliterar a fixação na imagem dos corpos em movimento, como nessa imagem de Daguerre, ou contraída na fração de milésimos de segundos, quando os detalhes figurativos se encontram plenamente definidos. Essas opções temporais extrapolam o domínio técnico, deixando entrever, além dos limiares temporais da inscrição fotográfica, diferentes configurações de natureza estética. Como, por exemplo, quando as opções formais proporcionam a expressão de um imaginário metafórico ou onírico, ao invés da precisão descritiva e documental. Como observamos nas fotos borradas ou tremidas de Jacgues-Henri Lartigue, Clarence John Laughlin e Willian Klein que, de diferentes maneiras, exploraram o potencial subjetivo e psicológico da imagem. Portanto, além das ocorrências verificadas nos extremos dos efeitos visuais, entre a desaparição literal e a precisão descritiva, delineia-se todo um território intermediário, assinalado pelas formas de inscrição, como o borrão, o tremido, o desfocado e as sobreposições de imagens. Uma iconografia amplamente disseminada e decididamente influente desde o advento da fotografia. Esse território intermediário entre a acuidade descritiva e a apagamento surge como um paradoxo, pelo menos no enfoque das formulações da forma na fotografia, fundamentadas numa suposta função duplicadora da imagem. Mas como conceber toda essa iconografia, com infinitas nuanças, que exibe uma configuração visual original, sem qualquer precedente
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no mundo visível? Ao considerar que a magia do tremido está em ‘apreender um efeito do real, sem nunca se passar pela realidade’ (BELLOUR, 1997, p. 105), Raymond Bellour confere uma especial importância às inscrições do movimento na imagem fixa, percebendo no tremido o viés pelo qual a fotografia pode se pensar: “Enfim, do mesmo modo que a foto se anima burlando sua aparência de imobilidade, o cinema se interrompe e se congela para refletir as alterações de sua condição” (BELLOUR, 1997, p. 103). Uma operação de mão dupla, que vai da fotografia em direção ao cinema, e do cinema para a fotografia, originando configurações pouco previsíveis, como o borrado e o tremido, ou o congelamento da imagem e as modificações de ritmo da imagem em movimento, como a câmera lenta e o close. Toda uma nova maneira de pensar e de fazer imagem decorre dessas aproximações e sobreposições entre o cinema e a fotografia, um território incerto, de passagens, significativamente expandido pelo vídeo e pelas tecnologias digitais, nomeado por Bellour, como vimos, de ‘entre-imagens’. Nesse território instável, a indagação sobre os modos de temporalização da fotografia não se circunscreve, exclusivamente, às opções técnicas disponibilizadas pelo aparelho fotográfico, como as velocidades mais ou menos rápidas de obturação. Demanda, de outro modo, refazer as tramas das relações entre a fotografia e o cinema desde os seus primórdios, as influências recíprocas e os empréstimos, desde os primeiros dispositivos de projeção, como o praxinoscope e o zoetrope, passando pela trajetória emblemática de Laszlo-Moholy Nagy, os filmes e as fotografias produzidas pelos movimentos de vanguarda e, no período posterior à segunda grande guerra mundial, os inúmeros experimentos híbridos combinando fotografia, cinema e vídeo. Uma rede de influências que começa a se delinear antes mesmo do advento da fotografia, na trajetória múltipla de Daguerre, inventor do Diorama, o grande teatro de ilusões do século XIX, comumente considerado precursor do dispositivo cinematográfico e, também, um dos inventores da fotografia.
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A promessa da inscrição indicial no analógico e no digital A instalação San Marco Flow, de David Hokeby, exibe uma representação gráfica da Piazza San Marco, em Veneza, ponto central dessa cidade ímpar no continente europeu. As imagens em vídeo, projetadas em duas grandes telas contíguas, foram capturadas por uma câmera posicionada em uma das extremidades laterais da praça, de modo a proporcionar uma ampla vista da sua extensão e do conjunto arquitetônico ao seu entorno.1 Esse procedimento formal remete diretamente à retórica das câmeras de vigilância e parece destinado ao tipo de registro passivo e impessoal proporcionado por esses dispositivos panópticos. Impressão reforçada pelo lento deslocamento horizontal da câmera – a mesma trajetória empreendida pela ação de varredura desses dispositivos –, e pelos efeitos de realidade proporcionados pelo registro em tempo real. Percebe-se, já à primeira vista, tratar-se da representação da progressão no espaço de situações geográficas e arquitetônicas familiares, entretanto registradas na forma de rastros e traços sinuosos. As imagens videográficas dessa instalação exibem, de modo paradoxal, os efeitos óticos do borrado e do tremido, diretamente associados ao modo de funcionamento do aparelho fotográfico. Entretanto, distendendo-os, submetendo-os aos efeitos do transcorrer do tempo, como se tendessem à condição de fluidez do movimento natural. Essa intensificação do flou e do borrado na imagem em movimento encontra-se fortemente referenciada, no outro extremo, às novas temporalidades criadas pelos híbridos eletrônicos-digitais, a meio caminho entre a estase da imagem fixa e a mobilidade da imagem em movimento. Mas San Marco Flow desestabiliza as convicções associadas aos meios analógicos para além dos pressupostos técnicos e formais. Numa subversão dos atribuPara a obra San Marco Flow de David Rokeby ver www.youtube.com/watch?v=45Nrv4CYQig Acessado em 2.6.2013 1
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tos arquitetônicos, e em diálogo com a tradição figurativa das tecnologias analógicas, esse vídeo exibe o deslocamento dos corpos em movimento, ao tempo que torna imperceptível a totalidade dos objetos estáticos, as edificações e os monumentos, entre eles. Inicialmente concebida para ser apresentada na Bienal de Arquitetura de Veneza, essa instalação desperta a inquietação ao delinear um conceito social de arquitetura, mais referido às manifestações dinâmicas dos seres vivos do que a um conjunto de obras perenes, como se sucede, por exemplo, com os monumentos históricos. E o faz de modo incisivo, configurando a imagem a partir do rastro ideogramático do calor emitido pelos corpos em movimento. Portanto, no sentido oposto ao clichê de Daguerre, em que os componentes móveis da cena não eram percebidos e, também, das configurações habituais da representação fotográfica, em San Marco Flow um único elemento estático, um monumento vertical posicionado no primeiro plano, apresenta-se visível, enquanto os deslocamentos dos seres vivos, pessoas e pombos, produzem as alterações nas imagens, suas rarefações e suas condensações. Encontramos, nessa forma muito particular de inscrição dos traços figurativos da imagem, uma ultrapassagem relativamente ao registro fotográfico convencional. Nessa instalação, as imagens videográficas conferem visibilidade a uma propriedade invisível do mundo material, imperceptível tanto ao olho humano quanto ao filmes fotossensíveis. Mais ao modo dos termômetros, esses aparelhos destinados a aferir as variações térmicas dos corpos, do que das máquinas analógicas de figuração automática — como a fotografia, o cinema e a televisão —, esses vídeos registram uma propriedade objetiva da matéria, entretanto interdita aos modos de representação tradicionais, baseados na analogia óptico perceptiva. Cabe considerar que as imagens analógicas da fotografia e do cinema encontram-se condicionadas à instância visual de modo bem distinto das imagens digitais, uma condição constitutiva que podemos perceber plenamente apenas na atualidade, a partir das singularidades produzidas pelas recentes tecnologias da imagem digital. E é justamente sobre esse estatuto
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singular das imagens digitais que trabalha essa instalação de Hokeby, ao representar as condições de mobilidade dos corpos por meio das oscilações termográficas, interditas à percepção visual. Enquanto as imagens analógicas subordinam-se a uma lógica ótica, as imagens digitais vinculam-se a uma lógica paradoxal (VIRILIO, 1994 e COUCHOT, 2004), e são essas alterações substanciais expressas nas polarizações conceituais entre o analógico e o digital, o moderno e o contemporâneo, o atual e o virtual, a representação e a simulação, o tempo cronológico e o tempo crônico, entre inúmeras outras chaves de compreensão conceitual dessa passagem, que San Marco Flow atualiza, desde a perspectiva estética. Em consideração às suas configurações plásticas, essa obra confronta a iconografia das imagens analógicas precedentes, desde a ótica dessa diferença constitutiva, do seu modo singular de dar a ver uma propriedade dos corpos inacessível à percepção ocular e ao registro fotoquímico. Uma disposição que, do ponto de vista conceitual, sinaliza que a imagem digital encontra-se referida a um regime particular do sensível, de natureza sinestésica, que convoca além do olhar, o corpo multissensorial. Portanto, uma confirmação de que, nesse momento de transição do analógico para o digital, o que está em conta não é o abandono do real, a criação de mundos artificiais ou a emergência de uma nova modalidade de ilusão, mas a relativização da importância do ótico e do visual, em direção a um regime em que o corpo encontra-se implicado na sua complexidade sensorial e sinestésica. San Marco Flow pode significar uma ultrapassagem das formas tradicionais de figuração miméticas, apenas no sentido muito preciso de que a tecnologia digital assimila as tecnologias anteriores — a fotografia e o cinema, entre elas —, inclusive mantendo a ilusão de realidade que proporcionam sem, entretanto, circunscrever-se aos seus imperativos ótico perceptivos. Os procedimentos de simulação eletrônica e de pós-produção digital alteraram substancialmente as suposições históricas predominantes sobre o modo de funcionamento das mídias analógicas. A instalação Tu, do crítico e artista francês Thierry Kuntzel, combina, de modo paradigmático, oito foto-
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grafias e um vídeo. Dispostos de modo circular e consecutivo, os oito painéis iniciais exibem retratos fotográficos em preto e branco do artista, em um formato reconhecidamente característico dos álbuns de família. Essas oito fotografias conservam o mesmo ponto de vista, ligeiramente oblíquo, e um enquadramento também recorrente, numa configuração que não deixa dúvidas tratar-se de registros obtidos sequencialmente, no curso de breves intervalos de tempo. O nono, e último, painel é uma projeção em vídeo, em movimento muito lento, inicialmente imperceptível ao visitante, das oito poses vistas anteriormente, agora exibidas processualmente, na forma de imagem animada. Submetidos ao processamento digital conhecido como efeito morfing, os oito fotogramas recolhidos das coleções familiares ganharam uma versão em movimento, em um formato incompatível com os recursos tecnológicos disponíveis na época em que foram realizados. O software morfing marca os pontos proeminentes das bordas das imagens e, a seguir, calcula matematicamente os percursos entre as poses individuais, de modo a proporcionar a representação do percurso de transição entre os fotogramas. Um movimento ausente nos registros fotográficos, gerado por simulação, em uma etapa de pós-produção reconhecidamente facultativa. De modo bem diferente do decorrido na representação fotográfica, quando podíamos prever a efetiva presença do modelo diante da câmera, o processo de renderização digital acontece numa etapa posterior, na ausência do retratado e do fotógrafo. Circunstância em que o movimento acrescentado à imagem estática adquire o efeito singular de comprovar o tratamento digital. Enquanto a imagem ótica, de natureza analógica, pressupõe uma relação de dependência física e pontual com a ocorrência externa, a imagem digital registra, e também produz, espaços e tempos virtuais, por vezes imperceptíveis. É essa característica do digital que prevalece em Tu, obra em que o cálculo matemático executado pelo computador confere visibilidade às regiões intermediárias entre as poses, em uma operação em muitos aspectos semelhante à executada pelo cérebro, que também percebe o que não está imediatamente
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presente no campo visual. A similitude entre o código digital e a linguagem do cérebro foi extensamente desenvolvida por Rotzer, fundamentado na noção de que eles não calculam “nem fótons nem quanta de luz, mas impulsos nervosos que são eles mesmos de caráter não-específico, cujas características nada dizem sobre o tipo de estímulo” (ROTZER, 1996, p. 17). Nessa perspectiva, a fotografia estaria naturalmente associada ao modo de funcionamento do olho, essencialmente duplicador, enquanto o código digital encontraria paralelo nas operações do cérebro, que complementariam, de modo ativo e por simulação, as informações obtidas pela retina. Entretanto, observamos que essas distinções teóricas não possuem validade universal: a imagem analógica pode desempenhar esse papel criativo atribuído ao cérebro e, de modo inverso, também a imagem digital pode se circunscrever aos códigos da representação perspectiva, vindo a desempenhar as funções de duplicação atribuídas à fotografia. Certamente, considerar de modo categórico que a imagem analógica encontra-se dependente dos sinais de luz, enquanto a imagem de síntese institui-se em conformidade aos sinais eletrônicos, com as polarizações implicadas nessa distinção, não qualifica os modos de existência singulares das imagens. A transição da imagem ótica à imagem eletrônica possibilita a revisão crítica das crenças tradicionalmente associadas à representação analógica, ao tempo que cria novas temporalidades, diretamente referidas ao hiato entre o instantâneo fotográfico e o movimento contínuo do cinema. O efeito morfing utilizado em Tu recobre essa região instável entre a fixidez da pose e a instabilidade do movimento, expondo a tensão latente do fotograma em direção à imagem em movimento, e da imagem em movimento em direção à imobilidade. Essa região intermediária proporcionada pelas tecnologias digitais recobre os procedimentos variáveis de dilatação temporal da imagem instantânea e de retardo da imagem-movimento. Modulares e flexíveis, as imagens digitais convertem indistintamente sons, imagens instantâneas, imagens movimento, eventos e textos em informação processual. Uma das conse-
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quências decisivas proporcionada pela conversão dessas diferentes formas de expressão em sinais codificados, é o surgimento de um efeito de camadas, de vários níveis e de estratos sobrepostos, indicativo do modo singular de temporalização associado às novas tecnologias imagéticas. Duas tendências associadas a essa condição da imagem são determinantes na identificação da maneira como as tecnologias eletrônicas e digitais assimilam e reformulam as mídias analógicas: de um lado, uma submissão hierárquica das formas analógicas, como o cinema e a fotografia, ao modelo híbrido digital, que passa a redimensionar os modos de atuação presencial do cinema e o modelo clássico de representação fotográfica, como observou Thomas Levin (LEVIN, 2006, p. 206). Ratificando, de modo irreversível, que as formas cinematográficas e fotográficas analógicas encontram-se relegadas ao status de subconjunto da mídia digital. Tal reconfiguração dos papéis entre as imagens fixas e as imagens em movimento, no âmbito da reportagem jornalística, assinala certas dinâmicas no interior das formas de expressão visual, sem contudo, pressupor a sobreposição de umas sobre as outras. O que pode ser aferido pela enorme profusão de imagens fixas em outros domínios, como o das narrativas autobiográficas, coditianamente compartilhadas em redes sociais como o Flickr e o Instagram. No fluxo desses deslocamentos destaca-se a tendência ao hibridismo, à configuração de modelos miscigenados, que comportam diferentes modalidades de passagens e de atravessamentos entre as imagens, instaurando, no caso da relação fundamental entre a fotografia e o cinema, toda uma nova disposição de consequências técnicas e estéticas irredutíveis, localizadas nesse lugar intermediário entre a dilatação do instantâneo e os procedimentos de retardo ou de suspensão do movimento da imagem cinematográfica. Mais do que inaugurar novas modalidades de passagens entre as imagens, ocasionando inflexões temporais singulares, esses empréstimos mútuos sinalizam a expansão e o redimencionamento das convenções realistas da fotografia, tradicionalmente condicionadas à estética do instantâneo, como sustentada por Henri Cartier-Bresson e pelos partidários da fotografia pura.
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No âmbito da investigação científica e da informação, as tecnologias digitais proporcionaram uma extraordinária expansão do visível e do cognoscível, não exatamente recobrindo as funções indiciais de reconhecimento e de testemunho previamente exercidas pelas tecnologias analógicas, mas estendendo esse domínio a novos territórios. De modo bem diverso do pressuposto nos primórdios da era digital, quando a imagem de síntese esteve fortemente associada ao universo onírico e à criação de mundos fantásticos, os usos correntes das ferramentas digitais encontram-se frequentemente associados à representação objetiva. Esta notável expansão do universo visível proporcionada pela apreensão de novas faces do mundo material, relacionadas a comprimentos de onda invisíveis ao olho humano, como o infra-vermelho e os raios X e, no domínio da produção artística, a virtualização de novos domínios da experiência, sinaliza que as tecnologias digitais incorporaram os códigos realistas da representação perspectiva, de modo similar ao verificado nas mídias analógicas, como a fotografia e o cinema. As tecnologias digitais instauram uma nova noção de realidade e não o fim do real. Uma realidade fragmentada, construída, dependente das interfaces e subordinada aos procedimentos de modelização e de simulação, produto e efeito de novas partilhas entre o ver e o saber, e entre o visível e o invisível. De certo, as tecnologias imagéticas recentes não produzem uma imagem de natureza puramente mental, alucinatória ou dissociada do real, e nem tampouco reconfiguraram a visão em um plano fora do observador humano e sem referência ao mundo real. Convém, de modo bem diverso, observar como as mudanças processuais e perceptivas decorrentes das transformações tecnológicas implementadas desde a modernidade e, em especial, as novas lógicas de criação e de circulação das imagens ocasionadas pela fotografia e pelo cinema e, mais recentemente, pelas tecnologias eletrônicas e digitais, estão reencenando os modelos realistas e, simultaneamente, ampliando o poder produtivo do corpo no processo de aquisição perceptiva. Mais especificamente, trata-se de considerar o
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modo como os dispositivos híbridos foto-cine-vídeo-digitais reafirmam, em várias instâncias, os códigos e as convenções realistas historicamente associadas ao modelo de representação analógica e, por outro lado, ressaltar como esses mesmos dispositivos são mobilizados e expandidos em obras como Tu e San Marco Flow.
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Estados fotográficos, fósseis e fantasmas1 Claudia Linhares Sanz
Cláudia Linhares Sanz é doutora em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense com pesquisa no Instituto Max Plank de História da Ciência em Berlim; Mestre em Comunicação pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense; pós-graduada em Fotografia pela Universidade Cândido Mendes; jornalista e fotógrafa graduada pela Universidade Federal Fluminense. Tem experiência na área da imagem, com ênfase em fotografia, subjetividade e tecnologia. Professora da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília e pesquisadora associada da Pós-Graduação em Comunicação da Universidade de Brasília.
Adaptação do texto publicado em Prefácio, livro do coletivo fotográfico Cia de Foto com texto de Cláudia Linhares Sanz e Ronaldo Entler, dezembro de 2012. Parte do texto foi publicado no site Icônica (http://iconica.com.br/blog) 1
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Da série de fatos inexplicáveis que são o universo ou o tempo, acrescentaria a fotografia − espécie de gabinete mágico, à espera de que algo aconteça para, enfim, despertar. Sua sobrevivência histórica é ainda mais enigmática. Hoje, em meio a tantas tecnologias inovadoras, tantos hibridismos imagéticos, como poderia a fotografia não ter sido totalmente tragada pelas famílias de imagens que não cessam de se multiplicar e se fundir? A despeito dos prognósticos mais acurados de teóricos e pensadores da mais alta qualidade, que avistavam apenas o declínio histórico da fotografia e seu desuso prático; a despeito da diminuição de sua eficácia e de seu poder, a fotografia hoje salga. Salga porque, como a carne, se sacrifica por outra. Mas salga também porque, nesse sacrifício, parece conservar o trânsito da voz que, um dia, teria já entoado. Salga como os alimentos, que têm sua decomposição ralentada – salga porque se compõe enquanto se decompõe. Mas como se haveria de salgar? Sua persistência acontece disseminada, dissimulada, transmutada em várias imagens, vários objetos. Uma persistência da qual só conhecemos restos, vestígios da carne que foi convertida em “outramentos”, como aqueles fósseis que criam sua própria sedimentologia. Sedimentada – em todos os instantes que transcorreram entre os dias em que primeiro veio a ser e os de nossa atualidade – a experiência fotográfica carrega a projeção em retrospectiva das diferenças e das sincronias entre aquilo em que ela se constituiu e o que já não pode mais ser. Entre aquela crise temporal que a configurou e uma profunda alteração tanto no diagrama da temporalidade do mundo quanto da imagem. Entre um estado intensivo que efetiva o tempo de acontecimentos – aquele que a cronologia não consegue devorar – e as dificuldades que as fotografias contemporâneas apresentam em disponibilizar tal experiência. Provavelmente, a fotografia atual se tornou o fóssil da convivência de dois regimes concomitantes, duplamente relativos, posto que um só pode se dizer em relação ao outro. Dois regimes que compartilham em segredo a tensa coexistência entre o que podia e o que já não pode mais.
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Os fósseis são objetos maravilhosos. Arqueólogos, historiadores e filósofos como Walter Benjamin sabem disso. Encontrar um fóssil supõe que o solo seja remexido: o assentamento se desorganiza, os minerais se recombinam, acontecem novas acomodações orgânicas, novas composições geológicas. O ar entra em contato com o que, antes, estava soterrado e hermético ¬– outros buracos, outros minúsculos vãos no novo afofar da terra. São composições que não nos oferecem apenas pistas de tempos passados, posto que se nos revelam, só o fazem declarando simultaneamente suas próprias locações, o lugar em que se acomodaram no presente. Como Benjamin afirmava, os fósseis são sempre atuais, pois o inventário do velho faz emergir o gesto presente: as imagens que se levantam não devem tanto explicar o passado quanto descrever precisamente o lugar onde tomamos posse dele.2 Só no presente o encontro do passado pode existir, mas nesse encontro nem passado nem presente permanecem intactos; ambos se alteram mutuamente. O resultado da busca é sempre uma interseção de tempos, integração de cronologias e anacronias. A história de nossas imagens está alojada nesse fóssilfotografia. Cristalizada numa ruína que, esvaziada de seu aspecto original, configura um deslocamento contínuo. A fotografia se tornou um objeto de sedimentação, petrificado e simultaneamente transpirante, que nos instiga a pensar o hoje como descontinuidade epistêmica. Esse fóssil (que faz conviver vários regimes foto-temporais) testemunha um “estado de forças” em meio ao qual florescem novos problemas que, provavelmente, não poderiam emergir no estado das forças moderno. Em outras palavras, esse fóssil constitui uma dialética própria na imobilidade, um estado vibrátil em suspensão. Na suposta estabilidade de uma imagem fotográfica contemporânea sobrevive uma pele estriada, múltipla – verdadeiro emaranhado de tempos superpostos.
Benjamin, Walter. Escavando e Recordando. In Rua de mão única. Obras Escolhidas II. São Paulo: Brasiliense, 1987: 239. 2
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Se a fotografia cometeu suicídio (como pensou a pesquisadora norte-americana Abigail Solomon-Godeau), é esse fantasma que avisto por aí. Ser instável que, de acordo com Maurício Lissovsky, habita o limiar entre passado e presente, o vivo e o morto, nunca está inteiramente no passado ou no presente: Estão aqui e agora, conosco, e no mesmo momento, nos fornecem o testemunho da nossa irremediável diferença em relação ao que foi. São, como disse uma vez o filósofo italiano Giorgio Agamben dos fantasmas e dos brinquedos, história em estado puro. São a própria operação histórica em ato, mesmerizada pela atualidade do que foi. As fotografias atravessam os tempos como os fantasmas atravessam paredes, ambos condenados a fazer a incessante mediação entre o que foi, o que é, e o que será. (LISSOVSKY, 1987, p. 239)
Espírito teimoso que, ao vagar pela história, ri quando adentra os lugares sem ser convidado. Ri quando se apodera das casas; dos contos dos escritores; dos garçons e da cigarras. Espírito do ar que vaga principalmente na vida cotidiana. Viajando, ele carrega em sua bagagem aquele enigma de fazer o tempo abismar por uma espécie de voo suspenso, distensão do tempo na contração do movimento. É esse enigma que ele tenta disseminar, soprando no ouvido das dezenas de milhares de pessoas que seguram câmeras (já não estritamente fotográficas): Fo...to...gra...fi...a... Então, quando percebemos a profunda aderência entre a vida comum contemporânea e a imagem, ele novamente sopra: Fo...to...gra...fi...a..., e quando vemos que a imagem abdicou do acontecimento e preferiu a banalidade, lá vem ele novamente: Fo...to...gra...fi...a... Era essa a profecia de Lissovsky: “toda fotografia um dia irá nos assombrar”. (LISSOVSKY, 2011) Pois bem, assombra e declara....fo...to...gra.................fia.
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Talvez sejam anjos também, mas, sobretudo, ele, esse fantasma. Talvez o que os anjos façam seja apenas guardar a sorte dessa alma vagante. Entendido, então. É o sussurro dele, tentando manter sob seu domínio toda a compulsividade imagética que se integra ao cotidiano contemporâneo; é seu reclame que, diante da naturalização com que os dispositivos imagéticos se impõem hoje à vida do homem comum, ainda nos faz pronunciar, ecoando seu sopro, Fo...to...gra... fia. O ritmo, a frequência, a quantidade e o destino das imagens atuais e todo esse deslocamento das representações... e o fantasma insiste: fo...to...gra...fia. Quando a imagem assume o caráter monumental no mundo contemporâneo, ele ainda repete: fo...to...gra...fia. Sopra principalmente ao ouvido dos passantes da vida ordinária – que, desatentos, só repetem o anúncio. O Espírito ri (decerto). Ri sobretudo quando faz os mais atentos sentirem sua presença no momento exato em que já se vai. Sua gargalhada ecoa no espaço, e, enquanto repetimos sua sentença, nossa voz já não nos faz mais sentido. Fotografia?? Ele ri e sai porque sabe que está sempre ameaçado, passível de desaparecimento. O eco de seu riso é, então, a convivência paradoxal de dois regimes de visibilidade. Sua sobrevivência é trágica porque não nos permite esquecer; trágica porque nos coloca diante do destino das imagens e do nosso destino. Por que vagaria ainda a voz do fantasma? Viva e, simultaneamente, morta; potência sem corpo, a fantasmagoria do estado fotográfico nos faz pesar o fato de ainda sermos tomados por estados fotográficos quando já não sabemos se podemos suportar sua experiência; quando já não podemos esperar nem hesitar para clicar; quando já não desejamos lidar com a ausência do movimento; quando o instante já não parece poder interromper o fluxo, nem o acontecimento parece querer instaurar a ruptura. Não parece ser fácil livrarmo-nos dele. Faz-nos indagar se estaríamos livres de seus ecos se, como aconteceu com outros sujeitos, as imagens fotográficas de todos os nomes perdidos tivessem pouco a pouco desaparecido, sem deixar
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pegadas ou vestígios. Talvez o fantasma nem saiba que, no fundo, a história lhe concedeu o privilégio do abandono: esquecido nos arquivos, nos álbuns, nas casas, nos olhares. Escapando por vezes da lei compulsória da mudança, ficou por aí, se movendo entre as imagens, rindo de nós, fazendo com que sua presença seja sentida toda vez que nos deparamos com uma vertigem temporal concentrada, com a força abismal que, liberta do movimento, a duração dispara. O fantasma então nos atingiu com seu estado fotográfico para nos forçar a enfrentar — como em outros momentos em que o tempo se torna vertiginoso — o impacto de encontrar a coexistência de forças opostas da vida. Pois essa é a crise que o estado fotográfico disponibiliza. Nos deparamos com o limite de nosso pensamento porque o que emerge nessa experiência emerge em paradoxo. Nos retira do fluxo habitual e nos faz ingressar numa duração sem medidas espaciais. Se o movimento acontece no tempo, não consegue, entretanto, explicar o tempo, nem os estados fotográficos. Se enfrentamos a imagem petrificada de nossa eternidade, também a lucidez nos ocupa e, num estalo, percebemos que essa é desde já a imagem do esquecimento que seremos. O estado fotográfico requer, então, que se concilie a inscrição dos rastos de nós mesmos, as cicatrizes da memória com a vastidão do esquecimento que elas implicam. Instalase a suspensão: andaria o tempo apenas de ida? Caminhos entrelaçados nesse enredo fotográfico nos dirigem ao passado, como se andássemos para trás, e, simultaneamente, nos aproximam do fim. Como se entrássemos no fim pelo caminho de trás, como se as pontas do tempo se tocassem através de um pequeno buraco de agulha. Nesse abismo que já não se pode medir com o deslocamento dos ponteiros do relógio, emerge a crueldade que reivindica o fantasma da fotografia: o enigma de um tempo sem movimento. Pois me parece que a perversidade desse vulto, senhor de estados fotográficos, está em instalar dobras temporais infinitas sem que nada necessariamente se mova. Dobras en-
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tre ciência e magia; poesia e pensamento; tristeza e alegria; entre os tempos passados, presentes e futuros; entre perda e vida; destruição e preservação; escrita e seus sucessivos apagamentos. O fantasma, assim, nos coloca diante de um labirinto de dobras, num conjunto de percursos intrincados que, desorientados, tentamos percorrer sem que de fato algo se desloque. Já não é mais a história com sua decorrência cronológica que nos separa do que encontramos na imagem. Já não se pode seguir linearmente a história para distinguir a minha da presença do passado; já não transitamos na extensão. Desenrolamos virtualmente os fios de novelos contorcidos e bifurcantes em um território sem centímetros, que flui verticalmente, fora das réguas. Trágico que ele ainda exista: toda vez que sopra pelo ar o vulto fo...to...gra...fia e consegue fazer disparar estados fotográficos, que já não dependem sequer da existência de uma única fotografia, nos exige lidar com o precipício de um tempo intensivo. Sem que de fato habite plenamente o presente, obriga-nos a lembrar a fragilidade de nossa existência e nosso limite em pensá-la. Nos coloca em perigo porque testemunha que os caminhos do labirinto da fotografia e do tempo são como caminhos no mar, fugitivos da métrica.
Referências BENJAMIN, Walter. «A pequena história da fotografia. In _________________. Obras Escolhidas I. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1995. _________________. «Rua de mão única». In _______Obras Escolhidas II. São Paulo: Brasiliense, 1987. _________________. «Sobre alguns temas em Baudelaire». In Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. Obras escolhidas III. São Paulo: Brasiliense,1994. _________________. As passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo,
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2006. FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo: Editora Martins Fontes, 1987. _________________. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2001. LISSOVSKY, M. . Dez Proposições acerca do futuro da fotografia e dos fotógrafos do futuro. FACOM (FAAP), v. 23, p. 04-15, 2011. _________________. Rastros na paisagem: a fotografia e a proveniência dos lugares. Contemporanea (UFBA. Online), v. 9, p. 136-155, 2011. LINHARES SANZ, Cláudia. Tempo e fotografia: vertigem e paradoxo, 2010: 207f. Tese (Doutorado em Comunicação) Universidade Federal Fluminense Programa de Pós-Graduação em Comunicação Instituto de Artes e Comunicação Social, Niterói, 2010.
Ensino da fotografia: percurso e desafios Duda Bentes
Duda Bentes é professor assistente na Universidade de Brasília - UnB e leciona fotografia na Faculdade de Comunicação. Mestre em Comunicação pela UnB, também aí foi formado em Ciências Sociais com habilitação em Antropologia. Foi fotógrafo profissional e repórter fotográfico. Como jornalista fez parte da direção da AGIL Fotojornalismo. Posteriormente, trabalhou para o Governo do Distrito Federal lotado no Departamento do Patrimônio Histórico e Artístico da Secretaria de Cultura onde organizou o acervo Mario Moreira Fontenelle do Museu Vivo da Memória Candanga. Endereço para contato: bentes@unb.br
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A partir do tema proposto para o colóquio, Fronteiras e transgressões na fotografia contemporânea, faço uma reflexão sobre as formas e as estruturas do ensino da fotografia no Brasil sob o signo da atualidade. A reflexão não se baseia em uma pesquisa dedicada a esmiuçar o fenômeno, mas procura fixar uma experiência no ensino da fotografia para futuros comunicadores sociais: jornalistas, publicitários e realizadores audiovisuais. Nos preocupa, também, as condições com que são criados os curso de fotografia, principalmente aqueles inaugurados pelas Instituições de Ensino Superior, que devem primar pela formação intelectual de seus alunos, mais do que deles fazer operadores de botões. O tema em si não é novo, mas parece relevante diante dos desafios colocados pelas novas tecnologias que demandam atualizações no fazer e no pensar. A fotografia, que nasceu sob o regime da reprodutibilidade técnica e como tal se colocou como forma de expressão, hoje, se coloca sob um novo regime tecnológico, o da simulação. O novo padrão não altera a função original dada à fotografia, a reprodução, mas altera suas força de expressão que não encontra limites de natureza física para sua criação e circulação. Desde o início do século XX, a fotografia já havia conquistado seu lugar na sociedade como meio de documentação, expressão e comunicação, mas estava limitada (fronteiras) em sua condição material e representação do real. As novas tecnologias desenvolvidas a partir de então permitiram que esta, a fotografia, fosse assumida como forma de expressão a romper (transgressões) seus limites como o material e o real, para se tornar virtual e realizarse como símbolo, representação de uma realidade imaginada. Sob o império da informação digital e da comunicação em rede, a fotografia deve ser transformada para que responda aos desafios de um novo tempo. A informação fotográfica precisa se adaptar à linguagem das máquinas eletrônica e auxiliar no registro de dados onde as máquinas viessem a substituir o homem em suas conquistas. Daí as experiências feitas para o programa espacial norte-americano que, em 1965, faz o registro das primeiras imagens da superfície de Marte. Tal como a internet, a fotografia digital também interessava à
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indústria cultural, sendo incorporada aos meios de comunicação a partir das Olimpíadas de Los Angeles, em 1984, e sua popularização como objeto de consumo de massa nas mãos do cidadão (consumidor e produtor de conteúdos), dando continuidade aos rituais da fotografia doméstica (cotidiano, principalmente os de viagem turísticas). Hoje a fotografia digital alcança um patamar de estabilidade e deixa de ser comparada com a fotografia analógica. A fotografia digital já supre as demandas de representação nos procedimentos onde esta tenha sido incorporada. Daqui para diante, a nova tecnologia nos desafia a pensar novos horizontes, para os quais teremos que repensar o significado do fotográfico e seu poder de significação. Consequentemente, o próprio ensino da fotografia precisa ser pensado, assim como o papel das instituições que se colocam como responsáveis para tanto.
A fotografia e seu ensino Não foi possível, para o momento, estabelecer quando o ensino da fotografia se inicia, mas podemos assumir que o primeiro professor foi Daguerre, quando elabora o primeiro manual de operação de seu invento fotográfico, o daguerreótipo, entregue ao Estado Frances, que lhe concedeu uma pensão vitalícia, para que sua invenção ficasse sob domínio público. A importância desse ato é prática e simbólica. Além de marcar o nascimento da fotografia a 19 de agosto de 1839, o invento, adotado por inúmeros praticantes devido à facilidade de operação em face ao desenho e à pintura, dinamiza o comércio da representação pela imagem e a indústria de artefatos ópticos, químicos e acessórios. E assim nos demais países industrializados, onde a fotografia tenha feito parte dos procedimentos de registro e comunicação para o comércio e a indústria. Reunidos em sociedades fotográficas e de posse de seus manuais, os amantes das imagens podiam operar seus dispositivos com facilidade e alcançar êxitos em suas aventuras estéticas. Certamente, as sociedades fotográficas foram as primeiras “escolas”, tendo como modelo a Sociedade Fotográfica de Londres, fundada em 1853.
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O desenvolvimento da fotografia no século XIX levou ao aperfeiçoamento dos processos desde a captura até sua materialização como imagem objeto. Isso fez aumentar o número de praticantes da fotografia e também com que ela chegasse à toda uma sociedade a partir de sua reprodutibilidade técnica com aparecimento das similigravuras, isto é, as técnicas de reprodução gráfica feitas pelas fotogravuras, já no final do mesmo século. Não mais se tinha contato com a fotografia objeto, mas sua reprodução gráfica fotograficamente realizada. O clichê na tipografia, a rotogravura e a impressão offset permitiram que a imagem fotográfica fosse reproduzida e chegasse aos olhos dos leitores de jornais e revistas ilustradas. Uma nova maneira de se comunicar por imagem é inaugurada e se impõe como meio de comunicação de massa a educar o cidadão envolto por diferentes representações de visões de mundo. A fotografia, em seu sentido mais amplo, o do signo que veicula uma mensagem, assume lugar estratégico no embate entre as ideologias e deixa de ser um espelho da realidade para se tornar uma janela para a alma. Assim, Walter Benjamin recupera de seu amigo László Moholy-Nagy o dito de que “o analfabeto do futuro não será quem não sabe escrever, e sim quem não sabe fotografar” (1986, p. 107). Mas Benjamin, a partir de sua visão crítica e dialética, observa, acertadamente, uma necessidade maior que saber fotografar, saber “ler” uma fotografia. Isto é, saber ler uma fotografia como objeto da indústria cultural veiculados nos produtos impressos (jornais, revistas, livros etc.) e, até mesmo, como cinema. Com a lembrança do dito de Moholy-Nagy, Benjamin nos indica, indiretamente, aquela que intuímos ter sido a primeira instituição de ensino superior a incorporar a fotografia como matéria em seu currículo, a Bauhaus (1919-1933). Esse centro de ensino se caracterizou pela sua posição de vanguarda, reunindo artistas e artesãos representantes de diferentes técnicas de expressão e do fazer que, reunidos, propunham soluções para os desafios colocados pela indústria voltada para o consumo de massa e uma nova estética dada pelos novos materiais incorporados às linhas de produção e às novas tecnologias de reprodução. Dessa forma, a fotografia faz parte
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da oficina de artes gráficas coordenada por Moholy-Nagy, ele mesmo pintor e fotógrafo. Como professor dos alunos que ali se formaram, Nagy estimulou a utilização da fotografia como técnica para o estudo de formas e volumes, registro das atividades acadêmicas que se estendiam às atividades de lazer e a experimentação estética na criação de imagens para peças gráficas dedicadas à comunicação visual na publicização de novos produtos. A importância da Bauhaus para a história da fotografia está registrada na produção dos fotógrafos alemães ali formados e na influência que ela exerceu para a codificação do fotográfico. Assim, não poderíamos pensar no ensino da fotografia sem nos atentarmos para essa experiência e, de alguma forma, reproduzi-la em seus aspectos didáticos (MARZONA & FRICKE, 1986. A ascensão do Nazismo na Alemanha forçou o fechamento da escola que se transfere para Chicago, nos Estados Unidos da América do Norte, em 1938. Sob a direção de MoholyNagy ela foi denominada como Institute of Design, levando as experiências pedagógicas para aquela nação que assumia a liderança entre os países industrializados. Nesse momento da história, os Estados Unidos já dominavam a indústria da imagem fotográfica. Seja por terem sido responsáveis pelo desenvolvimento de novas técnicas e tecnologias de representação, ou por terem feito da fotografia uma forma de construção de sua identidade, temos, também, que nos Estados Unidos a fotografia fez parte das estratégias de comunicação de massa por parte do Estado e instituições privadas que visavam a mobilização da sociedade norte-americana. Da Guerra da Secessão à Segunda Grande Guerra, passando pela conquista do Oeste à campanha de subsídio aos pequenos fazendeiros durante à Grande Depressão de 29, os principais momentos da história norte-america foram registrados e guardados em arquivos públicos e privados, hoje acervo de bibliotecas e museus. Assim, para que a fotografia pudesse ser produzida e avaliada em suas qualidades técnicas e simbólicas, surgem, a partir de 1949, publicações de toda ordem a ensinar como fotografar e apreciar uma fotografia. Tais publicações supriam a demanda de material didático para as escolas se-
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cundárias e superiores que formaram uma nova geração de fotógrafos e pensadores da fotografia que, a partir de então, dominaram o cenário cultural e editorial. (NEWHALL, 1978 e ROSENBLUM, 1984) No Brasil, a experiência com o ensino da fotografia não foi diferente, a não ser pelo atraso com que os eventos aconteceram. Apesar de a fotografia também ter sido inventada em terras brasileiras no mesmo momento de seu invento na França e na Inglaterra, Hercules Florence, seu inventor, não teve mesmo sucesso de Daguerre e Talbot. A invenção da fotografia no Brasil ficou incógnita até 1980, quando Boris Kossoy, fotógrafo e historiador da fotografia, publica sua tese de doutorado (KOSSOY, 1980). Até esse momento a fotografia brasileira foi uma cópia retardada da fotografia que se fazia no mundo, sem com isso querermos desqualificar a qualidade do que se produzia, ou realizava-se como imagem técnica e de expressão. Até meados dos anos 1970 o ensino da fotografia acontecia nos entre pares, fosse entre os praticantes do fotoclubismo, ou aqueles que aprendiam os “segredos” da fotografia entre os profissionais do comércio e da indústria. (COSTA e SILVA, 2004) É certo que a fotografia já estava presente em algumas instituições de ensino superior, tal qual a Universidade de Brasília, que, desde 1965, tinha a fotografia como base para o ensino do Cinema e da Arquitetura, mas a preocupação de seu ensino sistemático e formal, para além de uma disciplina entre outras, temos notícia, data de 1975. Tem-se aí, nos cursos de nível técnicos, uma preocupação com a disseminação de um conhecimento para a prática profissional, nada que contribuísse, no entanto, para uma reflexão sobre os significados da tecnologia por ela engendrada, muito menos sobre os efeitos da sua produção para as ciências e as artes. Mas o Brasil vivia momentos de terror sob o regime militar que ditava a ordem política e econômica e muitos dos jovens estudantes universitários que tinham aprendido a fotografar e a se expressar tal qual os fotógrafos que ilustraram os principais acontecimentos do século XX, abandonaram seus cursos e se engajaram nos movimentos sociais para resistir à ditadura e lutar pela redemocratização do país. Da mesma
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maneira que os repórteres fotográficos dos anos 1950, essa nova geração, intelectualmente melhor formada, encontrou na fotografia de imprensa o lugar para o exercício de sua expressão. Em 1983, quando o arquiteto e fotógrafo Luis Humberto publica seu primeiro livro, Fotografia: universos e arrabaldes, o ensino da fotografia já havia encontrado seu lugar nas instituições de nível superior, não como matéria autônoma, mas como disciplinas em diferentes cursos dedicados às ciências, às artes e à comunicação. Em seus textos, Luis Humberto observa as condições precárias da formação do fotógrafo brasileiro, que mesmo tendo acesso às técnicas e teorias da fotografia em seus respectivos cursos superiores, “a falência dos métodos” colocava em risco a formação de profissionais “realmente habilitados e, principalmente, conscientes de seu tempo” (HUMBERTO, 1983, p. 23). Para o fotógrafo e professor, o propósito básico na formação do fotógrafo deveria ser a criação de condições para o aparecimento daqueles que se apresentassem como talentosos para o ofício e para a Arte. Temos então que a fotografia brasileira se fazia representar nas galerias e páginas impressas por fotógrafos, muitos, de grande talento, mas em um contexto de “autodidatismo deficiente e desorganizado” (HUMBERTO, 2000, p. 26). De fato, a preocupação de Luis Humberto em suas reflexões sobre o ensino da fotografia não se prende à formação de fotógrafos profissionais, mas a todo aqueles que se interessam pela comunicação visual e por sua reprodutibilidade técnica. De acordo ele, oferecer “um conjunto de meios orientados para familiarizar, informar e proporcionar experiências àqueles que irão utilizar ou conviver com a fotografia a vários níveis de interesse, sejam jornalistas, diretores de arte, artistas, programadores visuais ou qualquer outro tipo de atividade semelhante” (HUMBERTO, 1983, p. 26). Passados 30 anos, podemos dizer que as palavras de Luis Humberto foram semeadas em solo fértil, já que desde então, a fotografia se consolidou como disciplina nos curso de Comunicação e Artes. Temos também que, desde 1999, um grande número de cursos de nível superior em Fotografia foram criados ofere-
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cendo diferentes níveis de formação entre bacharelados, especializações e pós-graduação.1 Hoje, são mais de 26 cursos superiores em todo território nacional, note-se, no entanto, todas particulares, e caras!2 Mas, ao que vieram tais cursos? De acordo com o projeto pedagógico de um dos cursos pioneiros, este tem a duração de quatro anos e propõe “formar fotógrafos para os diversos segmentos de mercado: retrato, moda, gestão de acervos (conservação de memória de órgãos públicos culturais e de empresas), fotografia científica, fotojornalismo, audiovisual, fotopublicidade, arquitetura e corporativa, crítica em fotografia, poéticas e processos gráficos”. Se este programa for modelo para os demais cursos, podemos dizer que, do ponto de vista da produção e crítica fotográfica, a sociedade brasileira está muito bem servida. Faltaria, ainda, resolver o atraso tecnológico ao qual nos demos ao luxo, ao desconhecermos por longas datas as descobertas e os inventos feitos entre nós: a descoberta da fotografia no Brasil, por Hercules Florence, em 1832, e a invenção do rádio, por Roberto Landell de Moura, em 1861. Chamo a atenção para esses acontecimentos, pois sem uma indústria fotográfica, isto é, uma indústria de bens e insumos fotográficos, nós estaremos, sempre, seguindo programas dados por uma indústria estrangeira, trabalhando nos limites de uma tecnologia feita para resolver os problemas de outrem. Podemos até nos destacar como criativos a dar sentido ao que não havia sido pensado pelos inventores e descobridores das novas tecnologias, mas estaremos sempre dependentes das caixas-pretas de segunda mão deixadas à disposição de nossa capacidade para reciclar o que já está dado como obsoleto É dessa data, 1999, a criação do Curso de Graduação em Fotografia do Centro Universitário Senac em São Paulo. De acordo com o professor João Kulcsar em entrevita sítio Guia do Estudante: “O curso foi criado em 1999 e é o primeiro do tipo na América Latina.” Disponível em http://guiadoestudante.abril.com.br/blogs/pordentrodasprofissoes/conheca-ocurso-de-fotografia-do-senac/, acessado em 08 de maio de 2013. 2 Dados do censo sobre o ensino superior feito pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira – Inep, disponível em http://portal.inep.gov.br/superior-censosuperior-sinopse, acessado em 05 de maio de 2013. Conferir quadro Anexo II. 1
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pelos gestores do futuro de nossa sociedade de consumo. Mas esta talvez seja uma outra história Um diagnóstico sobre os cursos superiores de fotografia Dadas as condições para o surgimento dos cursos superiores para a formação em Fotografia, cumpre-nos analisar o cenário presente, para que possamos a partir daí vislumbrarmos o futuro do ensino da fotografia. Para aqueles que estão envolvidos com a regência de disciplinas de fotografia e que participam da administração escolar nos últimos anos, em que uma grande quantidade de instituições particulares e federais foram criadas, espanta-nos algumas tomadas de decisões que primam pelo oportunismo de mercado, isto é, pela oferta de cursos que atendem aos modismos em detrimento de um projeto maior para a sociedade. Que seja, talvez, um mercado de trabalho que sustente um número significativo de profissionais liberais que assumam, em sua posição dita superior, os desafios de seu tempo. Para tanto, considerei interessante a conferência dos números divulgados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira – Inep sobre o Censo da Educação Superior em sua Sinopse Estatísticas da Educação Superior – Graduação (2011).3 A sinopse nos apresenta uma variedade de tabelas com números representando todos os cursos de graduação oferecidos por Instituições de Ensino Superior, públicas e privadas, com cursos presenciais e a distância. Nas tabelas, as categorias administrativas das IES são cruzadas por Áreas Gerais, Áreas Detalhadas e Programas e/ou Cursos, assim, a Fotografia se encontra entre os programas e cursos que compõe a área detalhada Técnicas audiovisuais e produção de mídia que, por sua vez, está colocada na área geral Humanidades e Artes. Na primeira tabela, Dados Gerais, ficamos sabendo que são 19 as instituições que oferecem o curso de Fotografia, Dados do censo sobre o ensino superior feito pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira – Inep, disponível em http://portal.inep.gov.br/ superior-censosuperior-sinopse, acessado em 05 de maio de 2013. 3
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todas privadas, que são 26 os cursos oferecidos pelas mesmas, todos presenciais, onde estão matriculados 2.398 alunos e que 394 concluíram o curso. Ainda na mesma tabela fica-se sabendo que são oferecidas 3.095 vagas no total e que dos 4.696 inscritos somente 1.715 foram os que ingressaram (no ano de 2011). Dos dados apresentados, nos chama a atenção a grande diferença entre o número de ingressantes, 1.715, e concluintes, 394. Estes números podem dizer duas coisas, ou a evasão é alta, ou que houve um aumento de oferta de vagas no ano de 2011. De fato, no momento, não temos como conferir a primeira hipótese, a não ser observar de forma geral que em 2011, foi detectado que o índice de evasão dos cursos tecnológicos chegava próximo de 50%.4 A principal causa seria a frustração entre o curso idealizado e o recebido, enfim, como são curso pagos, um investimento muito alto para uma perspectiva profissional frustrada. A sinopse não nos apresenta a informação sobre quais as IES que oferecem o curso de fotografia, mas em outra fonte do MEC foi possível encontrar esses dados e eles nos mostraram que a grande maioria dos cursos se encontram nos Estados do Sul e do Sudeste. Atualmente, são 31 cursos os cursos de fotografia distribuídos em quatro regiões brasileiras: dois no Centro-Oeste, dois no Nordeste, 16 no Sudeste (13 em São Paulo) e 11 no Sul (cinco no Rio Grande do Sul e quatro em Santa Catarina).5 Mas o que se destaca no quadro de nossa sociedade é que no ano de 2011 dois Projetos de Lei estão sendo discutidos para a regulamentação da profissão do fotógrafo e ambas, a PL 5187/20096 e a PL2176/2011,7 prevêem a obrigatoriedade do curso superior para o exercício da fotografia profissional. Tais iniciativas não são novas, já houve outras no passado “Evasão em cursos de tecnologia contribui para déficit de mão de obra”, disponível em http://www1.folha.uol.com.br/multimidia/podcasts/900138-evasao-em-cursos-de-tecnologia-contribui-para-deficit-de-mao-de-obra.shtml , acessado em 20 de maio de 2013. 5 Fonte sítio MEC, Instituições de Educação Superior e Cursos Cadastrados, disponível http://emec.mec.gov.br/ , acessado em 04 de junho de 2013. 4
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que foram arquivadas por irem de encontro a uma política do executivo em limitar o número de profissões regulamentadas e pelo próprio texto dos projetos que deixam a desejar quanto à definição do que seja um profissional da fotografia e o cerceamento de expressão que ela implica. Enfim, é de se levantar a hipótese de que houve um ação de oportunidade por parte das IES privadas em oferecer um curso que imaginaram haver uma demanda para além da formação para a expressão estética, mas um curso que habilitasse o candidato à uma profissão regulamentada por uma Lei que exige um diploma de curso superior.
Uma interpretação a título de conclusão. Em nosso percurso passamos um pouco sobre a história da fotografia e como ela foi sendo orientada para uma formação amadora, técnica e de nível superior. Duas forças se manifestaram, por um lado, as sociedades de fotógrafos que se reuniam para a troca de informações e identificação de seus trabalhos, por outro, instituições de ensino que buscam enquadrar a fotografia dentro de projetos nem sempre promissores. A experiência das sociedades de fotógrafos e fotoclubes não pode ser descartada, pois nelas o fotógrafo amador encontra o ambiente propício para seu desenvolvimento, fazendo da fotografia uma ato de criação e, até mesmo, sua formação profissional. Por seu turno, as IES são bem vindas, mas que venham atender uma demanda legítima na formação de um profissional de nível superior, que mais que operar um aparato técnico, ou uma tecnologia, precisa pensar a técnica e a tecnologia. Resta uma reflexão sobre o impacto das novas tecnologias digitais. Certamente que os manuais de fotografia foram atualizados no que diz respeito aos modos de operar os novos equipamentos (hardwares) e programas (softwares). Uma Disponível em http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposic ao=433437, acessado em 20 de maio de 2013. 7 Disponível em http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposic ao=518047, acessado em 20 de maio de 2013. 6
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nova rotina (workflow) se impõe e esta precisa ser conhecida e aplicada nos ambientes de formação e produção. Dissemos no início que o regime do fotográfico, antes sob o império da representação, hoje, encontra-se sob o império da simulação. Antes um referente material se fazia necessário para a criação fotográfica, hoje basta a imaginação, o que nos obriga a refletir sobre os valores que se apresentam a partir do imaginário com a qualidade do fotográfico. Assim, para fechar nossa reflexão, faço ecoar as lições de László Moholy-Nagy e Walter Benjamin que anunciaram os novos valores advindos das novas tecnologias e chamaram a atenção para o cuidado com as mesmas.
Referências : BENJAMIN, Walter. «Pequena história da fotografia». In W. BENJAMIN, Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. (S. P. Rouanet, Trans., 2 ed., Vol.1 Obras Escolhidas, p. 91-107). São Paulo: Brasiliense, 1986. COSTA, Helouise & SILVA, Renato R. da. A fotografia moderna no Brasil. São Paulo: Cosac Naify, 2004. HUMBERTO, Luis. Fotografia, a poética do banal. Brasília; São Paulo: Editora Universidade de Brasília; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2000. ________________. Fotografia: universos e arrabaldes. Rio de Janeiro: FUNARTE, Núcleo de Fotografia, 1983. KOSSOY, Boris. Hercules Florence: a descoberta isolada da fotografia no Brasil (2 ed.). São Paulo: Duas Cidades, 1980. MARZONA, Egidio, & FRICKE, Roswitha. Bauhaus photography. (H. L. Mendelson, F. Sanson, & J. Seligman, Trans.) Cambridge, Massachusetts: Massachusetts Institute of Technology Press, 1986.
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NEWHALL, Beaumont. The history of photography: from 1839 to the present day (4 ed.). New York: The Museum of Modern Art, 1978. ROSENBLUM, Naomi. A world history of photography. New York: Abbeville Press, 1984.
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Caderno de Imagens Coletânea de imagens utilizadas para a confecção das capas do livro Fotografia Contemporânea - Fronteiras e Transgressões
Marcelo Feijó, Brasília, 2004.
Marcelo Feijó, Brasília, 2009.
Julia Margaret Cameron, Rainha Filipa intervĂŠm pelos burgueses de Calais. Henry Herschel Hay Cameron, Ewen Cameron, dois desconhecidos e Louise Trench,1872 (DomĂnio Publico).
(©Maleonn)
Maleonn, Da série Maleonn’s Photo Studio, 2011.
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Duda Bentes, Espelhos 1, BrasĂlia, 2008.
Duda Bentes, Espelhos 2, BrasĂlia, 2008.
Osmar Gonçalves, Istambul, Turquia. Da série (Extra)ordinário cotidiano, 2012.
Dobal e Gonçalves (orgs.)
Osmar Gonçalves é doutor em Comunicação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), com bolsa-sanduíche na Bauhaus Universität-Weimar (Alemanha), financiada pelo DAAD/CAPES. Pesquisador e fotógrafo, possui graduação (2001) e mestrado (2003) pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG. É Professor do Programa de Pós-graduação em Comunicação Social e do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Ceará (UFC), concentrado principalmente nas áreas de fotografia, teoria da imagem, semiótica e estética do audiovisual.
Nos últimos anos, a fotografia teceu relações renovadas com as artes e outros campos culturais, redefinindo radicalmente nossa maneira de lidar com ela. Uma linguagem fotográfica diferenciada está emergindo, um novo projeto estético e semiótico vem sendo colocado em prática nas obras de artistas e fotógrafos contemporâneos. A imagem consolidou-se em meio a uma tormenta de possibilidades expressivas que liberaram a fotografia de um vínculo rígido com o referente, sem no entanto abrir mão do uso da imagem como meio de reflexão sobre a contemporaneidade. Os artigos reunidos nesse livro fizeram parte de um colóquio na Universidade de Brasília que se propôs a pensar o que está em jogo nesse processo de transformação. Se existe, de fato, uma nova ordem visual, um novo regime de visualidade em andamento, o que o caracterizaria? Nossa hipótese é de que essas mudanças não têm um caráter formal apenas, mas trazem implicações múltiplas, ao mesmo tempo, estéticas, éticas e políticas.
Fotografia Contemporânea: Fronteiras e Transgressões
Susana Dobal é fotógrafa e professora na Universidade de Brasília. Fez mestrado em fotografia (International Center of Photography/New York University) doutorado em História da Arte (CUNY/GC), pós-doc na Université Paris 8. Participou de mais de trinta exposições em Brasília, Rio de Janeiro, São Paulo, New York, Madrid, Buenos Aires e Nice. Publicou artigos sobre fotografia, cinema, arte e o livro Peter Greenaway and the Baroque: writing puzzles with images (Berlin, LAP, 2010).
FotO GrafiA cOn Tem PoRA Nea frOn TeI rAs e Trans Gres Soes Susana Dobal Osmar Gonçalves (orgs.)
O 1º Colóquio de Fotografia da Universidade de Brasília – Fotografia contemporânea: Fronteiras e Transgressões, reuniu pesquisadores das cinco regiões do país e um convidado internacional que debateram sobre temas que norteiam atualmente a teoria e a prática da fotografia. A imagem digital, o uso da fotografia em instalações, a encenação, experiências com o tempo fotográfico, tendências da fotografia documental, são alguns dos temas tratados. Muitos dos palestrantes são também fotógrafos que desenvolvem pesquisa com imagem – tivemos a preocupação de promover o diálogo entre diversas perspectivas vindas de diversas origens. ALEXANDRE SEQUEIRA (UFPa) ANDRÉ ROUILLÉ (Université Paris 8) ANTÔNIO FATORELLI (UFRJ) CLÁUDIA SANZ (UnB) DUDA BENTES (UnB) LÍVIA AQUINO (FAAP) MARCELO FEIJÓ (UnB) MARIA IVONE DOS SANTOS (UFRGS) MILTON GURAN (UFF) OSMAR GONÇALVES (UFC) SUSANA DOBAL (UnB)
Foto: Maleonn
professora na Universidade de Brasília. Fez mestrado em fotografia (International Center of Photography/New York University) doutorado em História da Arte (CUNY/GC), pós-doc na Université Paris 8. Participou de mais de trinta exposições em Brasília, Rio de Janeiro, São Paulo, New York, Madrid, Buenos Aires e Nice. Publicou artigos sobre fotografia, cinema, arte e o livro Peter Greenaway and the Baroque: writing puzzles with images (Berlin, LAP, 2010).
Osmar Gonçalves é doutor em
Dobal e Gonçalves (orgs.)
Comunicação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), com bolsa-sanduíche na Bauhaus Universität-Weimar (Alemanha), financiada pelo DAAD/CAPES. Pesquisador e fotógrafo, possui graduação (2001) e mestrado (2003) pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG. É Professor do Programa de Pós-graduação em Comunicação Social e do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Ceará (UFC), concentrado principalmente nas áreas de fotografia, teoria da imagem, semiótica e estética do audiovisual.
Nos últimos anos, a fotografia teceu relações renovadas com as artes e outros campos culturais, redefinindo radicalmente nossa maneira de lidar com ela. Uma linguagem fotográfica diferenciada está emergindo, um novo projeto estético e semiótico vem sendo colocado em prática nas obras de artistas e fotógrafos contemporâneos. A imagem consolidou-se em meio a uma tormenta de possibilidades expressivas que liberaram a fotografia de um vínculo rígido com o referente, sem no entanto abrir mão do uso da imagem como meio de reflexão sobre a contemporaneidade. Os artigos reunidos nesse livro fizeram parte de um colóquio na Universidade de Brasília que se propôs a pensar o que está em jogo nesse processo de transformação. Se existe, de fato, uma nova ordem visual, um novo regime de visualidade em andamento, o que o caracterizaria? Nossa hipótese é de que essas mudanças não têm um caráter formal apenas, mas trazem implicações múltiplas, ao mesmo tempo, estéticas, éticas e políticas.
Fotografia Contemporânea: Fronteiras e Transgressões
Susana Dobal é fotógrafa e
FotO GrafiA cOn Tem PoRA Nea frOn TeI rAs e Trans Gres Soes
O 1º Colóquio de Fotografia da Universidade de Brasília – Fotografia contemporânea: Fronteiras e Transgressões, reuniu pesquisadores das cinco regiões do país e um convidado internacional que debateram sobre temas que norteiam atualmente a teoria e a prática da fotografia. A imagem digital, o uso da fotografia em instalações, a encenação, experiências com o tempo fotográfico, tendências da fotografia documental, são alguns dos temas tratados. Muitos dos palestrantes são também fotógrafos que desenvolvem pesquisa com imagem – tivemos a preocupação de promover o diálogo entre diversas perspectivas vindas de diversas origens. ALEXANDRE SEQUEIRA (UFPa) ANDRÉ ROUILLÉ (Université Paris 8) ANTÔNIO FATORELLI (UFRJ) CLÁUDIA SANZ (UnB) DUDA BENTES (UnB) LÍVIA AQUINO (FAAP) MARCELO FEIJÓ (UnB) MARIA IVONE DOS SANTOS (UFRGS) MILTON GURAN (UFF) OSMAR GONÇALVES (UFC) SUSANA DOBAL (UnB)
Susana Dobal Osmar Gonçalves (orgs.)
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Dobal e Gonçalves (orgs.)
Osmar Gonçalves é doutor em Comunicação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), com bolsa-sanduíche na Bauhaus Universität-Weimar (Alemanha), financiada pelo DAAD/CAPES. Pesquisador e fotógrafo, possui graduação (2001) e mestrado (2003) pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG. É Professor do Programa de Pós-graduação em Comunicação Social e do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Ceará (UFC), concentrado principalmente nas áreas de fotografia, teoria da imagem, semiótica e estética do audiovisual.
Nos últimos anos, a fotografia teceu relações renovadas com as artes e outros campos culturais, redefinindo radicalmente nossa maneira de lidar com ela. Uma linguagem fotográfica diferenciada está emergindo, um novo projeto estético e semiótico vem sendo colocado em prática nas obras de artistas e fotógrafos contemporâneos. A imagem consolidou-se em meio a uma tormenta de possibilidades expressivas que liberaram a fotografia de um vínculo rígido com o referente, sem no entanto abrir mão do uso da imagem como meio de reflexão sobre a contemporaneidade. Os artigos reunidos nesse livro fizeram parte de um colóquio na Universidade de Brasília que se propôs a pensar o que está em jogo nesse processo de transformação. Se existe, de fato, uma nova ordem visual, um novo regime de visualidade em andamento, o que o caracterizaria? Nossa hipótese é de que essas mudanças não têm um caráter formal apenas, mas trazem implicações múltiplas, ao mesmo tempo, estéticas, éticas e políticas.
Fotografia Contemporânea: Fronteiras e Transgressões
Susana Dobal é fotógrafa e professora na Universidade de Brasília. Fez mestrado em fotografia (International Center of Photography/New York University) doutorado em História da Arte (CUNY/ GC), pós-doc na Université Paris 8. Participou de mais de trinta exposições em Brasília, Rio de Janeiro, São Paulo, New York, Madrid, Buenos Aires e Nice. Publicou artigos sobre fotografia, cinema, arte e o livro Peter Greenaway and the Baroque: writing puzzles with images (Berlin, LAP, 2010).
FotO GrafiA cOn Tem PoRA Nea frOn TeI rAs e Trans Gres Soes Susana Dobal Osmar Gonçalves (orgs.)
O 1º Colóquio de Fotografia da Universidade de Brasília – Fotografia contemporânea: Fronteiras e Transgressões, reuniu pesquisadores das cinco regiões do país e um convidado internacional que debateram sobre temas que norteiam atualmente a teoria e a prática da fotografia. A imagem digital, o uso da fotografia em instalações, a encenação, experiências com o tempo fotográfico, tendências da fotografia documental, são alguns dos temas tratados. Muitos dos palestrantes são também fotógrafos que desenvolvem pesquisa com imagem – tivemos a preocupação de promover o diálogo entre diversas perspectivas vindas de diversas origens. ALEXANDRE SEQUEIRA (UFPa) ANDRÉ ROUILLÉ (Université Paris 8) ANTÔNIO FATORELLI (UFRJ) CLÁUDIA SANZ (UnB) DUDA BENTES (UnB) LÍVIA AQUINO (FAAP) MARCELO FEIJÓ (UnB) MARIA IVONE DOS SANTOS (UFRGS) MILTON GURAN (UFF) OSMAR GONÇALVES (UFC) SUSANA DOBAL (UnB)
Foto: Duda Bentes
Dobal e Gonçalves (orgs.)
Osmar Gonçalves é doutor em Comunicação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), com bolsa-sanduíche na Bauhaus Universität-Weimar (Alemanha), financiada pelo DAAD/CAPES. Pesquisador e fotógrafo, possui graduação (2001) e mestrado (2003) pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG. É Professor do Programa de Pós-graduação em Comunicação Social e do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Ceará (UFC), concentrado principalmente nas áreas de fotografia, teoria da imagem, semiótica e estética do audiovisual.
Nos últimos anos, a fotografia teceu relações renovadas com as artes e outros campos culturais, redefinindo radicalmente nossa maneira de lidar com ela. Uma linguagem fotográfica diferenciada está emergindo, um novo projeto estético e semiótico vem sendo colocado em prática nas obras de artistas e fotógrafos contemporâneos. A imagem consolidou-se em meio a uma tormenta de possibilidades expressivas que liberaram a fotografia de um vínculo rígido com o referente, sem no entanto abrir mão do uso da imagem como meio de reflexão sobre a contemporaneidade. Os artigos reunidos nesse livro fizeram parte de um colóquio na Universidade de Brasília que se propôs a pensar o que está em jogo nesse processo de transformação. Se existe, de fato, uma nova ordem visual, um novo regime de visualidade em andamento, o que o caracterizaria? Nossa hipótese é de que essas mudanças não têm um caráter formal apenas, mas trazem implicações múltiplas, ao mesmo tempo, estéticas, éticas e políticas.
Fotografia Contemporânea: Fronteiras e Transgressões
Susana Dobal é fotógrafa e professora na Universidade de Brasília. Fez mestrado em fotografia (International Center of Photography/New York University) doutorado em História da Arte (CUNY/ GC), pós-doc na Université Paris 8. Participou de mais de trinta exposições em Brasília, Rio de Janeiro, São Paulo, New York, Madrid, Buenos Aires e Nice. Publicou artigos sobre fotografia, cinema, arte e o livro Peter Greenaway and the Baroque: writing puzzles with images (Berlin, LAP, 2010).
FotO GrafiA cOn Tem PoRA Nea frOn TeI rAs e Trans Gres Soes Susana Dobal Osmar Gonçalves (orgs.)
O 1º Colóquio de Fotografia da Universidade de Brasília – Fotografia contemporânea: Fronteiras e Transgressões, reuniu pesquisadores das cinco regiões do país e um convidado internacional que debateram sobre temas que norteiam atualmente a teoria e a prática da fotografia. A imagem digital, o uso da fotografia em instalações, a encenação, experiências com o tempo fotográfico, tendências da fotografia documental, são alguns dos temas tratados. Muitos dos palestrantes são também fotógrafos que desenvolvem pesquisa com imagem – tivemos a preocupação de promover o diálogo entre diversas perspectivas vindas de diversas origens. ALEXANDRE SEQUEIRA (UFPa) ANDRÉ ROUILLÉ (Université Paris 8) ANTÔNIO FATORELLI (UFRJ) CLÁUDIA SANZ (UnB) DUDA BENTES (UnB) LÍVIA AQUINO (FAAP) MARCELO FEIJÓ (UnB) MARIA IVONE DOS SANTOS (UFRGS) MILTON GURAN (UFF) OSMAR GONÇALVES (UFC) SUSANA DOBAL (UnB)
Foto: Susana Dobal
Dobal e Gonçalves (orgs.)
Osmar Gonçalves é doutor em Comunicação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), com bolsa-sanduíche na Bauhaus Universität-Weimar (Alemanha), financiada pelo DAAD/CAPES. Pesquisador e fotógrafo, possui graduação (2001) e mestrado (2003) pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG. É Professor do Programa de Pós-graduação em Comunicação Social e do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Ceará (UFC), concentrado principalmente nas áreas de fotografia, teoria da imagem, semiótica e estética do audiovisual.
Nos últimos anos, a fotografia teceu relações renovadas com as artes e outros campos culturais, redefinindo radicalmente nossa maneira de lidar com ela. Uma linguagem fotográfica diferenciada está emergindo, um novo projeto estético e semiótico vem sendo colocado em prática nas obras de artistas e fotógrafos contemporâneos. A imagem consolidou-se em meio a uma tormenta de possibilidades expressivas que liberaram a fotografia de um vínculo rígido com o referente, sem no entanto abrir mão do uso da imagem como meio de reflexão sobre a contemporaneidade. Os artigos reunidos nesse livro fizeram parte de um colóquio na Universidade de Brasília que se propôs a pensar o que está em jogo nesse processo de transformação. Se existe, de fato, uma nova ordem visual, um novo regime de visualidade em andamento, o que o caracterizaria? Nossa hipótese é de que essas mudanças não têm um caráter formal apenas, mas trazem implicações múltiplas, ao mesmo tempo, estéticas, éticas e políticas.
Fotografia Contemporânea: Fronteiras e Transgressões
Susana Dobal é fotógrafa e professora na Universidade de Brasília. Fez mestrado em fotografia (International Center of Photography/New York University) doutorado em História da Arte (CUNY/ GC), pós-doc na Université Paris 8. Participou de mais de trinta exposições em Brasília, Rio de Janeiro, São Paulo, New York, Madrid, Buenos Aires e Nice. Publicou artigos sobre fotografia, cinema, arte e o livro Peter Greenaway and the Baroque: writing puzzles with images (Berlin, LAP, 2010).
FotO GrafiA cOn Tem PoRA Nea frOn TeI rAs e Trans Gres Soes Susana Dobal Osmar Gonçalves (orgs.)
O 1º Colóquio de Fotografia da Universidade de Brasília – Fotografia contemporânea: Fronteiras e Transgressões, reuniu pesquisadores das cinco regiões do país e um convidado internacional que debateram sobre temas que norteiam atualmente a teoria e a prática da fotografia. A imagem digital, o uso da fotografia em instalações, a encenação, experiências com o tempo fotográfico, tendências da fotografia documental, são alguns dos temas tratados. Muitos dos palestrantes são também fotógrafos que desenvolvem pesquisa com imagem – tivemos a preocupação de promover o diálogo entre diversas perspectivas vindas de diversas origens. ALEXANDRE SEQUEIRA (UFPa) ANDRÉ ROUILLÉ (Université Paris 8) ANTÔNIO FATORELLI (UFRJ) CLÁUDIA SANZ (UnB) DUDA BENTES (UnB) LÍVIA AQUINO (FAAP) MARCELO FEIJÓ (UnB) MARIA IVONE DOS SANTOS (UFRGS) MILTON GURAN (UFF) OSMAR GONÇALVES (UFC) SUSANA DOBAL (UnB)
Foto: Susana Dobal
Dobal e Gonçalves (orgs.)
Osmar Gonçalves é doutor em Comunicação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), com bolsa-sanduíche na Bauhaus UniversitätWeimar (Alemanha), financiada pelo DAAD/CAPES. Pesquisador e fotógrafo, possui graduação (2001) e mestrado (2003) pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG. É Professor do Programa de Pós-graduação em Comunicação Social e do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Ceará (UFC), concentrado principalmente nas áreas de fotografia, teoria da imagem, semiótica e estética do audiovisual.
Nos últimos anos, a fotografia teceu relações renovadas com as artes e outros campos culturais, redefinindo radicalmente nossa maneira de lidar com ela. Uma linguagem fotográfica diferenciada está emergindo, um novo projeto estético e semiótico vem sendo colocado em prática nas obras de artistas e fotógrafos contemporâneos. A imagem consolidou-se em meio a uma tormenta de possibilidades expressivas que liberaram a fotografia de um vínculo rígido com o referente, sem no entanto abrir mão do uso da imagem como meio de reflexão sobre a contemporaneidade. Os artigos reunidos nesse livro fizeram parte de um colóquio na Universidade de Brasília que se propôs a pensar o que está em jogo nesse processo de transformação. Se existe, de fato, uma nova ordem visual, um novo regime de visualidade em andamento, o que o caracterizaria? Nossa hipótese é de que essas mudanças não têm um caráter formal apenas, mas trazem implicações múltiplas, ao mesmo tempo, estéticas, éticas e políticas.
Fotografia Contemporânea: Fronteiras e Transgressões
Susana Dobal é fotógrafa e professora na Universidade de Brasília. Fez mestrado em fotografia (International Center of Photography/New York University) doutorado em História da Arte (CUNY/ GC), pós-doc na Université Paris 8. Participou de mais de trinta exposições em Brasília, Rio de Janeiro, São Paulo, New York, Madrid, Buenos Aires e Nice. Publicou artigos sobre fotografia, cinema, arte e o livro Peter Greenaway and the Baroque: writing puzzles with images (Berlin, LAP, 2010).
FotO GrafiA cOn Tem PoRA Nea frOn TeI rAs e Trans Gres Soes Susana Dobal Osmar Gonçalves (orgs.)
O 1º Colóquio de Fotografia da Universidade de Brasília – Fotografia contemporânea: Fronteiras e Transgressões, reuniu pesquisadores das cinco regiões do país e um convidado internacional que debateram sobre temas que norteiam atualmente a teoria e a prática da fotografia. A imagem digital, o uso da fotografia em instalações, a encenação, experiências com o tempo fotográfico, tendências da fotografia documental, são alguns dos temas tratados. Muitos dos palestrantes são também fotógrafos que desenvolvem pesquisa com imagem – tivemos a preocupação de promover o diálogo entre diversas perspectivas vindas de diversas origens. ALEXANDRE SEQUEIRA (UFPa) ANDRÉ ROUILLÉ (Université Paris 8) ANTÔNIO FATORELLI (UFRJ) CLÁUDIA SANZ (UnB) DUDA BENTES (UnB) LÍVIA AQUINO (FAAP) MARCELO FEIJÓ (UnB) MARIA IVONE DOS SANTOS (UFRGS) MILTON GURAN (UFF) OSMAR GONÇALVES (UFC) SUSANA DOBAL (UnB)
Foto: Susana Dobal
Dobal e Gonçalves (orgs.)
Osmar Gonçalves é doutor em Comunicação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), com bolsa-sanduíche na Bauhaus Universität-Weimar (Alemanha), financiada pelo DAAD/CAPES. Pesquisador e fotógrafo, possui graduação (2001) e mestrado (2003) pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG. É Professor do Programa de Pós-graduação em Comunicação Social e do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Ceará (UFC), concentrado principalmente nas áreas de fotografia, teoria da imagem, semiótica e estética do audiovisual.
Nos últimos anos, a fotografia teceu relações renovadas com as artes e outros campos culturais, redefinindo radicalmente nossa maneira de lidar com ela. Uma linguagem fotográfica diferenciada está emergindo, um novo projeto estético e semiótico vem sendo colocado em prática nas obras de artistas e fotógrafos contemporâneos. A imagem consolidou-se em meio a uma tormenta de possibilidades expressivas que liberaram a fotografia de um vínculo rígido com o referente, sem no entanto abrir mão do uso da imagem como meio de reflexão sobre a contemporaneidade. Os artigos reunidos nesse livro fizeram parte de um colóquio na Universidade de Brasília que se propôs a pensar o que está em jogo nesse processo de transformação. Se existe, de fato, uma nova ordem visual, um novo regime de visualidade em andamento, o que o caracterizaria? Nossa hipótese é de que essas mudanças não têm um caráter formal apenas, mas trazem implicações múltiplas, ao mesmo tempo, estéticas, éticas e políticas.
Fotografia Contemporânea: Fronteiras e Transgressões
Susana Dobal é fotógrafa e professora na Universidade de Brasília. Fez mestrado em fotografia (International Center of Photography/New York University) doutorado em História da Arte (CUNY/ GC), pós-doc na Université Paris 8. Participou de mais de trinta exposições em Brasília, Rio de Janeiro, São Paulo, New York, Madrid, Buenos Aires e Nice. Publicou artigos sobre fotografia, cinema, arte e o livro Peter Greenaway and the Baroque: writing puzzles with images (Berlin, LAP, 2010).
FotO GrafiA cOn Tem PoRA Nea frOn TeI rAs e Trans Gres Soes Susana Dobal Osmar Gonçalves (orgs.)
O 1º Colóquio de Fotografia da Universidade de Brasília – Fotografia contemporânea: Fronteiras e Transgressões, reuniu pesquisadores das cinco regiões do país e um convidado internacional que debateram sobre temas que norteiam atualmente a teoria e a prática da fotografia. A imagem digital, o uso da fotografia em instalações, a encenação, experiências com o tempo fotográfico, tendências da fotografia documental, são alguns dos temas tratados. Muitos dos palestrantes são também fotógrafos que desenvolvem pesquisa com imagem – tivemos a preocupação de promover o diálogo entre diversas perspectivas vindas de diversas origens. ALEXANDRE SEQUEIRA (UFPa) ANDRÉ ROUILLÉ (Université Paris 8) ANTÔNIO FATORELLI (UFRJ) CLÁUDIA SANZ (UnB) DUDA BENTES (UnB) LÍVIA AQUINO (FAAP) MARCELO FEIJÓ (UnB) MARIA IVONE DOS SANTOS (UFRGS) MILTON GURAN (UFF) OSMAR GONÇALVES (UFC) SUSANA DOBAL (UnB)
Foto: Marcelo Feijó
Dobal e Gonçalves (orgs.)
Osmar Gonçalves é doutor em Comunicação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), com bolsa-sanduíche na Bauhaus Universität-Weimar (Alemanha), financiada pelo DAAD/CAPES. Pesquisador e fotógrafo, possui graduação (2001) e mestrado (2003) pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG. É Professor do Programa de Pós-graduação em Comunicação Social e do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Ceará (UFC), concentrado principalmente nas áreas de fotografia, teoria da imagem, semiótica e estética do audiovisual.
Nos últimos anos, a fotografia teceu relações renovadas com as artes e outros campos culturais, redefinindo radicalmente nossa maneira de lidar com ela. Uma linguagem fotográfica diferenciada está emergindo, um novo projeto estético e semiótico vem sendo colocado em prática nas obras de artistas e fotógrafos contemporâneos. A imagem consolidou-se em meio a uma tormenta de possibilidades expressivas que liberaram a fotografia de um vínculo rígido com o referente, sem no entanto abrir mão do uso da imagem como meio de reflexão sobre a contemporaneidade. Os artigos reunidos nesse livro fizeram parte de um colóquio na Universidade de Brasília que se propôs a pensar o que está em jogo nesse processo de transformação. Se existe, de fato, uma nova ordem visual, um novo regime de visualidade em andamento, o que o caracterizaria? Nossa hipótese é de que essas mudanças não têm um caráter formal apenas, mas trazem implicações múltiplas, ao mesmo tempo, estéticas, éticas e políticas.
Fotografia Contemporânea: Fronteiras e Transgressões
Susana Dobal é fotógrafa e professora na Universidade de Brasília. Fez mestrado em fotografia (International Center of Photography/New York University) doutorado em História da Arte (CUNY/ GC), pós-doc na Université Paris 8. Participou de mais de trinta exposições em Brasília, Rio de Janeiro, São Paulo, New York, Madrid, Buenos Aires e Nice. Publicou artigos sobre fotografia, cinema, arte e o livro Peter Greenaway and the Baroque: writing puzzles with images (Berlin, LAP, 2010).
FotO GrafiA cOn Tem PoRA Nea frOn TeI rAs e Trans Gres Soes Susana Dobal Osmar Gonçalves (orgs.)
O 1º Colóquio de Fotografia da Universidade de Brasília – Fotografia contemporânea: Fronteiras e Transgressões, reuniu pesquisadores das cinco regiões do país e um convidado internacional que debateram sobre temas que norteiam atualmente a teoria e a prática da fotografia. A imagem digital, o uso da fotografia em instalações, a encenação, experiências com o tempo fotográfico, tendências da fotografia documental, são alguns dos temas tratados. Muitos dos palestrantes são também fotógrafos que desenvolvem pesquisa com imagem – tivemos a preocupação de promover o diálogo entre diversas perspectivas vindas de diversas origens. ALEXANDRE SEQUEIRA (UFPa) ANDRÉ ROUILLÉ (Université Paris 8) ANTÔNIO FATORELLI (UFRJ) CLÁUDIA SANZ (UnB) DUDA BENTES (UnB) LÍVIA AQUINO (FAAP) MARCELO FEIJÓ (UnB) MARIA IVONE DOS SANTOS (UFRGS) MILTON GURAN (UFF) OSMAR GONÇALVES (UFC) SUSANA DOBAL (UnB)
Foto: Marcelo Feijó
Dobal e Gonçalves (orgs.)
Osmar Gonçalves é doutor em Comunicação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), com bolsa-sanduíche na Bauhaus Universität-Weimar (Alemanha), financiada pelo DAAD/CAPES. Pesquisador e fotógrafo, possui graduação (2001) e mestrado (2003) pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG. É Professor do Programa de Pós-graduação em Comunicação Social e do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Ceará (UFC), concentrado principalmente nas áreas de fotografia, teoria da imagem, semiótica e estética do audiovisual.
Nos últimos anos, a fotografia teceu relações renovadas com as artes e outros campos culturais, redefinindo radicalmente nossa maneira de lidar com ela. Uma linguagem fotográfica diferenciada está emergindo, um novo projeto estético e semiótico vem sendo colocado em prática nas obras de artistas e fotógrafos contemporâneos. A imagem consolidou-se em meio a uma tormenta de possibilidades expressivas que liberaram a fotografia de um vínculo rígido com o referente, sem no entanto abrir mão do uso da imagem como meio de reflexão sobre a contemporaneidade. Os artigos reunidos nesse livro fizeram parte de um colóquio na Universidade de Brasília que se propôs a pensar o que está em jogo nesse processo de transformação. Se existe, de fato, uma nova ordem visual, um novo regime de visualidade em andamento, o que o caracterizaria? Nossa hipótese é de que essas mudanças não têm um caráter formal apenas, mas trazem implicações múltiplas, ao mesmo tempo, estéticas, éticas e políticas.
Fotografia Contemporânea: Fronteiras e Transgressões
Susana Dobal é fotógrafa e professora na Universidade de Brasília. Fez mestrado em fotografia (International Center of Photography/New York University) doutorado em História da Arte (CUNY/ GC), pós-doc na Université Paris 8. Participou de mais de trinta exposições em Brasília, Rio de Janeiro, São Paulo, New York, Madrid, Buenos Aires e Nice. Publicou artigos sobre fotografia, cinema, arte e o livro Peter Greenaway and the Baroque: writing puzzles with images (Berlin, LAP, 2010).
FotO GrafiA cOn Tem PoRA Nea frOn TeI rAs e Trans Gres Soes Susana Dobal Osmar Gonçalves (orgs.)
O 1º Colóquio de Fotografia da Universidade de Brasília – Fotografia contemporânea: Fronteiras e Transgressões, reuniu pesquisadores das cinco regiões do país e um convidado internacional que debateram sobre temas que norteiam atualmente a teoria e a prática da fotografia. A imagem digital, o uso da fotografia em instalações, a encenação, experiências com o tempo fotográfico, tendências da fotografia documental, são alguns dos temas tratados. Muitos dos palestrantes são também fotógrafos que desenvolvem pesquisa com imagem – tivemos a preocupação de promover o diálogo entre diversas perspectivas vindas de diversas origens. ALEXANDRE SEQUEIRA (UFPa) ANDRÉ ROUILLÉ (Université Paris 8) ANTÔNIO FATORELLI (UFRJ) CLÁUDIA SANZ (UnB) DUDA BENTES (UnB) LÍVIA AQUINO (FAAP) MARCELO FEIJÓ (UnB) MARIA IVONE DOS SANTOS (UFRGS) MILTON GURAN (UFF) OSMAR GONÇALVES (UFC) SUSANA DOBAL (UnB)
Foto: Osmar Gonçalves
Dobal e Gonçalves (orgs.)
Osmar Gonçalves é doutor em Comunicação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), com bolsa-sanduíche na Bauhaus Universität-Weimar (Alemanha), financiada pelo DAAD/CAPES. Pesquisador e fotógrafo, possui graduação (2001) e mestrado (2003) pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG. É Professor do Programa de Pós-graduação em Comunicação Social e do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Ceará (UFC), concentrado principalmente nas áreas de fotografia, teoria da imagem, semiótica e estética do audiovisual.
Nos últimos anos, a fotografia teceu relações renovadas com as artes e outros campos culturais, redefinindo radicalmente nossa maneira de lidar com ela. Uma linguagem fotográfica diferenciada está emergindo, um novo projeto estético e semiótico vem sendo colocado em prática nas obras de artistas e fotógrafos contemporâneos. A imagem consolidou-se em meio a uma tormenta de possibilidades expressivas que liberaram a fotografia de um vínculo rígido com o referente, sem no entanto abrir mão do uso da imagem como meio de reflexão sobre a contemporaneidade. Os artigos reunidos nesse livro fizeram parte de um colóquio na Universidade de Brasília que se propôs a pensar o que está em jogo nesse processo de transformação. Se existe, de fato, uma nova ordem visual, um novo regime de visualidade em andamento, o que o caracterizaria? Nossa hipótese é de que essas mudanças não têm um caráter formal apenas, mas trazem implicações múltiplas, ao mesmo tempo, estéticas, éticas e políticas.
Fotografia Contemporânea: Fronteiras e Transgressões
Susana Dobal é fotógrafa e professora na Universidade de Brasília. Fez mestrado em fotografia (International Center of Photography/New York University) doutorado em História da Arte (CUNY/ GC), pós-doc na Université Paris 8. Participou de mais de trinta exposições em Brasília, Rio de Janeiro, São Paulo, New York, Madrid, Buenos Aires e Nice. Publicou artigos sobre fotografia, cinema, arte e o livro Peter Greenaway and the Baroque: writing puzzles with images (Berlin, LAP, 2010).
FotO GrafiA cOn Tem PoRA Nea frOn TeI rAs e Trans Gres Soes Susana Dobal Osmar Gonçalves (orgs.)
O 1º Colóquio de Fotografia da Universidade de Brasília – Fotografia contemporânea: Fronteiras e Transgressões, reuniu pesquisadores das cinco regiões do país e um convidado internacional que debateram sobre temas que norteiam atualmente a teoria e a prática da fotografia. A imagem digital, o uso da fotografia em instalações, a encenação, experiências com o tempo fotográfico, tendências da fotografia documental, são alguns dos temas tratados. Muitos dos palestrantes são também fotógrafos que desenvolvem pesquisa com imagem – tivemos a preocupação de promover o diálogo entre diversas perspectivas vindas de diversas origens. ALEXANDRE SEQUEIRA (UFPa) ANDRÉ ROUILLÉ (Université Paris 8) ANTÔNIO FATORELLI (UFRJ) CLÁUDIA SANZ (UnB) DUDA BENTES (UnB) LÍVIA AQUINO (FAAP) MARCELO FEIJÓ (UnB) MARIA IVONE DOS SANTOS (UFRGS) MILTON GURAN (UFF) OSMAR GONÇALVES (UFC) SUSANA DOBAL (UnB)
Foto: Julia Margaret Cameron