A ex-empregada domĂŠstica Ema Farro gosta de passar o tempo lendo romances, como Madame Bovary, o clĂĄssico de Gustave Flaubert
Elas por elas
5 capítulo
“Não vou para o asilo de jeito nenhum”
A octogenária Ema Farro, como muitos idosos, oscila entre dois mundos: o da plena lucidez e outro
mais sombrio, povoado por fantasias persecutórias, pequenas obsessões e comentários indiscretos. Embora amargue diversas limitações físicas, a ex-empregada doméstica teima em morar sozinha na periferia de São Paulo. Viúva, não aceita se mudar para uma casa de repouso, situação que angustia seus familiares. Ela é mãe do hippie João Sapienza Neto, sogra da psiquiatra Tânia Bitancourt e avó de Marina, Flora e Carol, personagens da série de cinco reportagens sobre as fases da vida feminina que CLAUDIA publica desde agosto e se encerra nesta edição. armando antenore
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A ex-empregada domĂŠstica Ema Farro gosta de passar o tempo lendo romances, como Madame Bovary, o clĂĄssico de Gustave Flaubert
Elas por elas
O
ce contra a moral burguesa”. Imagine o senhor que a hesenhor vê aquela cabeça de alho roína do livro também se chama Ema. Só que vive em que pus dentro do cinzeiro? EsParis. Chique a moça! Casou-se com um médico, mas tá logo ali, em cima da mesinha arrasta a asa para outro cara. Safada! Não sei ainda se preta. Vê? Claro que sim! Jorvai trair o marido. Aposto que vai. Estudei muito pouco. nalista repara em tudo, não reConcluí o terceiro ano do primário e abandonei a escola. para? O senhor trabalha no jorMesmo assim, peguei afeto pela literatura. Quando exinal desde quando? Ah, não é bem besteira na televisão, desligo a porcaria e cato um jornal? É revista! Eu costumava livro. Já não enxergo com o olho esquerdo. O direito, em ler reportagens na juventude. compensação, segue na ativa. Vai quebrando o galho, Agora não leio mais. Só leio histórias de amor... Sabe para principalmente depois que operei a catarata. Notou que que serve a cabeça de alho? Para afastar a inveja. Tem muisão azuis? “Lindos, Ema!” O pessoal elogia à beça os to olho gordo por aqui. Os vizinhos... Eles querem invadir meus olhos. “Um par de diamantes!” Bobagem... Não a minha casa. Todas as noites andam no telhado. Fazem tem par de diamantes nenhum. Tem apenas dois olhos uma barulheira horrível! Toc, toc, toc! No telhado, a noite azuis. Aliás, o senhor se importa de pingar três gotas dainteira... Pretendem roubar o que é meu. Uma judiação... quele colírio em cada um dos meus diamantes? Eu xingo os desgraçados: “Cachorros! Vou avisar a polícia!” Não resolve. Eles permanecem no telhado, à procura de uma brecha que os conduza diretamente para o meu oje é sábado. A madame não trabalha. quarto. Meses atrás, invadiram o quintal dos fundos. Se Ela só aparece nos dias úteis. Chega de bobear, invadirão o da frente também. Quanto mais xingo, manhã e, à tarde, pica a mula. Não dormais os vagabundos se assanham. Toc, toc, toc! Por isso, a me aqui, não. Vida mansa a da madacabeça de alho. E os incensos. Guardo uma porção de inme... Faz um serviço tão porco que me censos na gaveta. O povo garante que incenso afugenta a irrita: não passa a roupa, limpa mal o banheiro, tira a maldade. Minhas netas não me levam a sério: “Fique calpoeira dos móveis como o nariz dela e cozinha quando ma, vó! Os vizinhos gostam da bem entende. Deve ter parensenhora. Ninguém vai ocupar a tesco com o bicho-preguiça. casa”. Ninguém?! Elas são ótimas Nos meus tempos de doméstimeninas, mas inocentes como a ca, a banda tocava de outro Virgem Santíssima. Havia, sim, jeito. Fui copeira e arrumauma vizinha que me adorava, a deira. Não descuidava das midona Coisa. Qual é mesmo o nonhas obrigações nem se o pame da dona Coisa? O senhor conpa mandasse. Caprichava desegue descobrir? Que mulher mamais na limpeza. Esfregava o A história de como Tânia ravilhosa! Uma amizade de cinco chão, varria os tapetes, asseaBitancourt conheceu João décadas. Sempre me trazia comiva as panelas. E ainda dormia Sapienza Neto e deu origem da a dona... Eurides! Lembrei! no emprego, o senhor acredià família que protagoniza esta série. Coitadinha, morreu recentementa? Pena que as patroas não te. Foi queimada. Não, queimame deixavam ficar com meus Tânia faz um balanço da, não. Foi cremada! Virou fugarotos, o Walter e o João. Por dos erros cometidos na maça, pó, cinzas. Restaram sosorte, a caçula, Valquíria, naseducação das duas filhas. mente os invasores. Ordinários! ceu depois que larguei a proJesus do céu, parece que vou fissão. Trambolho de geladeidesmaiar. Me sinto zonza, zonra! A parte de baixo não funFlora Bitancourt, a caçula de Tânia, explica za. Opa! Se não me agarro no ciona mais. Coloco as verdupor que se casou cedo. senhor, acabo caindo. Que horas ras ali e nada de esfriarem. O são? Às 6 em ponto preciso tofogão também já não vale um mar o remédio da labirintite. centavo. Das quatro bocas, Carol Sapienza, meia-irmã de Flora, reflete sobre a Devo botar o despertador? Esapenas uma acende. Tudo desretomada da carreira após tou lendo um livro bacana, Mamoronando à minha volta... interrompê-la para ser mãe. dame Bovary. É de um francês, Que mãe, em sã consciênGustavo... Exato! Gustave Flaucia, desejaria se afastar dos bert! Conhece? Escute o que diz filhos? Eu não desejava. Mas a orelha: “Flaubert escreveu, no o senhor pensa que me ofereséculo 19, um magnífico romanciam alternativa? Ninguém
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Nos capítulos anteriores
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CLAUDIA
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A família de ema
Ema Farro
Maria Luiza Barreto Goes (a Iza)
Osvaldo Sapienza
Laura Valadão Azevedo
Carlos Lauro Bitancourt
Tânia Bitancourt
João Sapienza Neto (o Niran)
tem a guarda de
Carol
Marina
Ivan
Daniel
Flora
Bruna
contratava empregada com duas crianças. Só me restou largar o Walter num orfanato. Ô dureza... As patroas toleravam, no máximo, um menino. Dois, de maneira nenhuma! Conservei o João do meu lado e... Pobre Walter... Pagou o pato por ser o mais velho. Falta muito para as 6? Não posso esquecer o remédio da labirintite, pelo amor de Deus! Nem o do coração. Hoje passa Ratinho no SBT? Preciso tomar as pílulas de cálcio assim que terminar o programa do homem. Calcule agora o tamanho do absurdo: as patroas não me permitiam criar o Walter e o João simultaneamente. No entanto, pediam que zelasse pelos filhos delas. Certa ocasião, trabalhei para uma família alemã. O garoto da casa quase nunca saía da cama. Era paralítico. Cuidei do anjinho como se tivesse o meu sangue. Duvido que a madame descascaria um abacaxi desses. Onde enfiei as chaves do presídio? Para enfrentar os invasores, tranco com cadeados e correntes o portão que dá acesso à casa. Não sou maluca de confiar apenas na fechadura. Cautela e caldo de galinha... O senhor já ouviu o ditado, não? Melhor viver numa prisão do que correr riscos. O problema é que, de vez em quando, perco as chaves dos cadeados e nem São Longuinho me tira do buraco. Procuro por todo canto. Mexo, remexo, e as malditas continuam invisíveis. De repente, saem do esconderijo, gozando da minha cara. Lazarentas! O Walter reclama: “Por que se trancafiar assim, mãe? Suponha que a senhora tenha um piripaque e não consiga abrir o portão. Co-
mo entrarei?” Sei lá de que modo o Walter vai entrar. Ele que se vire. Use a cabeça, Walter! Com invasor não se brinca! No telhado, de madrugada... Toc, toc, toc! O João morreu de tanto beber. Penou muito, muito. Era lindo, o mais bonito do bairro. Marina e Flora, minhas netas, herdaram as feições dele. Eu dizia: “Não beba, rapaz!” Adiantava? Droga nenhuma! “Tão careta a senhora...”, me respondia. Fazer o quê? Larguei mão. Que Deus o guarde em bom lugar. O João pagou um preço alto pela beleza. Homem com jeito de galã acaba se tornando festeiro e mulherengo. Conselho não lhe faltou. Teimoso, teimoso... Quase morri junto quando meu filho partiu. Uma tragédia! Ele me idolatrava. Pegava o ônibus onde estivesse só para me visitar. Três dias antes da morte, se despediu pelo telefone: “Obrigado, mãe, por me educar”. O João suspeitava que não iria longe. Ai, ai... Saudade mata devagarinho, como o álcool. Mantenho uma fotografia do meu filho sobre aquela estante ali. Nós dois conversamos o tempo inteiro.
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avei uma porção de roupa pela manhã. Se a madame não aparece, me estrepo. Ou o senhor acha que vou deixar as fronhas e os lençóis sujos? Eu, hein! À noite, sozinha, me dá medo de usar o banheiro. Os invasores... Então urino na cama mesmo. Quando acordo, vou me arrastando até a lavanderia DEZEMBRO 2014
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e coloco tudo dentro da máquina. Caminho com dificuldade porque as costas doem. As pernas também. Desconfio que meus ossos derreteram... Adivinha quantas vezes já me arrebentei no chão. Três! Plaft, plaft, plaft! A madame – valha-me, Cristo! – folga nos fins de semana. Ela não quer nada com a Hora do Brasil! Sobra para mim, claro. Vou deixar as fronhas e os lençóis fedidos? Um lixo a máquina de lavar! Está pior do que a geladeira. O senhor aceita uma bala de leite? E uma banana? Sempre que a tristeza aperta, chupo uma bala de leite. Não deveria. Sou diabética. Mas evito cumprir à risca o que os médicos determinam. Obedecer para quê? Cansei de sofrer. Logo, logo baterei as botas. Vou completar 86 anos e tomo 41 comprimidos por dia! É mole? Amanhã preciso comprar adoçante... Houve uma época em que trabalhei como operária numa fábrica de chocolates, a Sönksen. Excelente marca! Uma lástima não existir mais. Comi tanto chocolate naquela fábrica que enjoei. Não consigo nem ver brigadeiro, bombom, ovo de Páscoa. Já balas de leite...
Como minha nora não conseguia engravidar, falei com Iemanjá: “Ajude a Tânia. Ela merece”
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anta Maria, que calor dos infernos! O senhor gostaria de uma chuveirada? Ontem pintei as unhas das mãos. Escolhi um esmalte cor-de-rosa bem clarinho. A manicure me cobrou 100 reais. Uma fábula! Mas paguei, né? Marquei consulta no hospital e não quero estar desarrumada quando o doutor me examinar. Velhas podem perder tudo, menos a vaidade. Na adolescência, nadei à beça. Não saía da água. Por isso, tinha um corpo jeitoso. Nadava na represa de Guarapiranga e no Corinthians. Ia de bonde à piscina do clube. A passagem custava 1 real. Só que, naquele tempo, não se dizia 1 real. Falava-se 1 cruzeiro. Para que time o senhor torce? Sou corintiana roxa desde pequena. Meu pai, no entanto, se rasgava pelo Palestra Itália. Um palestrino doente. Chamava-se Amleto Farro e ganhava a vida como soldado da Guarda Civil. Um dia, o assassinaram em frente à estação de trem. Bandido sem alma! Encheu meu pai de punhaladas meses depois que nasci. Minha mãe, Benedita, não aguentou o tranco e também morreu cedo. Desgosto mata mais rápido que saudade. À beira dos 5 anos, fiquei totalmente órfã, com dois irmãos. Moramos de favor em casa de parentes, cortiços e porões. Nem vale a pena recordar... Por que o senhor usa barba? Não lhe cai bem, não. O pé de arruda que comprei está murchando. Vou arranjar um novo depressinha. Costumo benzer as pes174
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soas. Primeiro, faço o sinal da cruz. Em seguida, rezo uma Ave-Maria e um Padre-Nosso daqueles fortíssimos. Para arrematar, prendo um galhinho de arruda na orelha do cidadão. Não há quem desaprove. Tenho fé em todas as religiões – na dos crentes, no catolicismo e na umbanda. O senhor, por acaso, é pagão? Tânia, minha nora, acredita no candomblé. Quando se casou, não conseguia engravidar. Eu viajei até Santos e conversei com Iemanjá: “Ajude a Tânia. Ela merece”. Funcionou. Tânia e João geraram duas preciosidades, a Marina e a Flora. Como gosto da minha família! Às vezes, peço para a madame estourar pipoca e deixá-la embaixo da goiabeira, no quintal dos fundos. Meus guias adoram oferendas. Apreciam um bocado de coisas, mas se lambuzam mesmo é com pipoca. Já bateram 6 horas? Cadê o remédio da labirintite? Zonza, zonza... Eu ando tão solitária... Queria que os parentes me visitassem mais. O Walter vem todo domingo. Um sujeito muito correto, viu? Carinhoso e ajuizado. O senhor tem crianças? Nem cachorro o senhor tem? Faz semanas que não encontro a Flora. Preciso botar meu colar de pedras azuis. Não pergunte a razão, mas sempre que o coloco a Flora aparece. E o senhor, vai sumir? Agora que nos conhecemos, trate de me paparicar.
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ão dei sorte com os homens. O pai do Walter se perdeu no mundo e o do João nunca aceitou o filho. Resultado: fui mãe solteira duas vezes. Quando imaginei que ficaria chupando o dedo, arrumei o Augusto. Ele trabalhava de mecânico na CMTC, a antiga companhia municipal de ônibus, e me propôs um relacionamento sério: “Ponho você e os meninos para dentro de minha casa”. Corajoso, não? Juntos, concebemos a Valquíria e dividimos um teto durante... Quarenta anos? Ou 30? O bom é que larguei o emprego e me dediquei à educação da criançada. O ruim é que o sem-vergonha do Augusto se engraçou com uma sirigaita. Sabe aquela pastelaria da esquina? A sirigaita ciscava por lá. Homem nenhum presta. O Walter, a Tânia, a Marina, a Flora e todos os outros cismaram de me levar para um asilo. Não vou! Prefiro me atirar embaixo de um carro. “Vá, Ema! No asilo, cuidarão melhor da senhora.” Mentira! O Augusto morreu num lugar desses. Pensam que sou besta? Daqui só saio para o cemitério. Estou errada? O senhor não quer mesmo tomar um banho?