Ilustração: Davi Augusto
capa | bolsa
38 | www.exame.com
crime na bolsa
O uso de informações privilegiadas para negociar ações é uma praga no mercado financeiro brasileiro. por que ninguém vai para a cadeia por isso?
m thiago bronzatto
arcos Torres, também conhecido por seus colegas da Bolsa de Valores de São Paulo como “Delegado”, tem uma missão tão nobre quanto enlouquecedora. Aos 50 anos, o economista paraense é um caçador de criminosos que operam na quinta maior bolsa de valores do mundo, a Bovespa. Um de seus principais objetivos é flagrar quem estiver comprando ou vendendo ações com base em informações que ainda não foram divulgadas ao mercado — prática mais conhecida pelo termo em inglês insider trading. É um crime que pode levar um investidor à cadeia, e coibir esse tipo de malandragem é fundamental para que um mercado financeiro funcione direito. Torres e sua equipe — e é aqui que o caráter enlouquecedor de sua missão aparece — analisaram quase meio bilhão de transações em 2013. Ele tem a seu lado 110 profissionais e um avançado sistema de rastreamento que detecta qualquer anomalia na negociação de ações brasileiras: gente comprando demais, ritmos de negócios pouco
3 de setembro de 2014 | 39
suais, valorizações repentinas, quedas u abruptas. Mas o número de problemas detectados é chocante, coisa demais mesmo para uma equipe tão grande. Somente no ano passado, o sistema detectou 91 000 indícios de irregularidades na bolsa. Praticamente a cada minuto de pregão, portanto, algo suspeito acontece. Hoje, o problema mais preocupante é o insider trading. “O volume de irregularidades envolvendo o uso de informação privilegiada aumentou junto com o crescimento do mercado de capitais no Brasil”, diz Torres, diretor de autorregulação da Bovespa. O uso de informações privilegiadas é crime financeiro. Nada põe tanto em risco a credibilidade de um mercado do que a percepção de que um punhado de ricaços bem relacionados se dá bem à custa do pequeno investidor, o coitado que é sempre o último a saber. São executivos que vendem ações de suas empresas sabendo que em dois dias será anunciado um resultado pavoroso; investidores que sabem de uma aquisição iminente e se entopem de ações da companhia a ser comprada; gente que tem acesso à última pesquisa eleitoral 5 horas antes de sua divulgação. A metodologia é extensa. “Esse tipo de prática gera uma série de desequilíbrios no mercado”, diz Eugene Fama, economista da Universidade de Chicago e um dos ganhadores do Prêmio Nobel de 2013. O preço de uma ação é formado pelas informações que o mercado tem a respeito de uma empresa, seu setor, seu país e, claro, sobre o que acontece no mundo. Por isso, é cláusula pétrea para que o mercado acionário funcione que as empresas deem informações relevantes a todos os investidores simultaneamente. O insider destrói, assim, a própria fundação sobre a qual o mercado de capitais se construiu. E, sem uma bolsa forte, é quase impossível desenvolver uma economia de mercado sólida. No Brasil, os indícios de insider estão por todos os lados. Em 14 das 31 aquisições realizadas por empresas abertas brasileiras no ano passado, as ações de pelo menos uma das companhias envolvidas foram negociadas de forma 40 | www.exame.com
Germano Lüders
capa | bolsa
O crime em números
As pesquisas que ajudam a quantificar o uso de
38%
45%
30%
das ações das 56 principais empresas da Bovespa tiveram oscilação atípica dez dias antes do dia seguinte à divulgação dos resultados. O volume de negócios nesse dia ficou acima da média histórica, segundo a FGV
dos papéis de empresas envolvidas em fusões e aquisições em 2013 tiveram um volume de negociações acima da média dez dias antes do anúncio, segundo levantamento realizado por EXAME
das descobertas de poços da Petrobras entre 2001 e 2008 vazaram para o mercado. As ações tiveram alta igual ou superior a 2% antes do anúncio, segundo a Universidade de Brasília
(1) Pesquisa da Associação de Investidores no Mercado de Capitais (Amec) com 15 gestoras estrangeiras
operadores na BM&F bovespa: uma área da bolsa destinada a fiscalizar o mercado detectou 91 000 irregularidades em 2013
informações privilegiadas na bolsa brasileira
61
15%
25%
investidores foram investigados pela Comissão de Valores Mobiliários por suspeitas de negociar ações usando informações privilegiadas entre 2009 e 2013. Desses, 26 foram condenados a pagar multa
têm sido a alta média do volume de negócios com ações que fazem parte do Ibovespa no dia anterior à divulgação das pesquisas eleitorais neste ano, de acordo com um um levantamento de EXAME
dos principais investidores estrangeiros que aplicam na Bovespa apontam o uso de informação privilegiada como o maior problema do mercado de capitais brasileiro, segundo a Amec(1)
Fontes: Amec, FGV, Insper, Levy & Salomão e UnB
atípica antes de a operação se tornar pública, de acordo com um levantamento feito por EXAME. Por atípico, entenda-se um volume de negócios pelo menos 20% maior do que a média dos 12 meses anteriores. Não dá para saber se houve ou não crime em todos esses casos — isso só uma investigação da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), órgão regulador do mercado de capitais, poderia responder. Mas uma movimentação tão acima da média sugere algo estranho. Foi o que aconteceu com os papéis da JBS, maior processadora de carnes do mundo: dois pregões antes do anúncio da compra da Seara, o volume de negociação das ações ficou 82% acima da média. Procurada, a JBS disse que “não foi detectado nenhum tipo de anormalidade que possa configurar uma irregularidade” e que a empresa não “foi notificada ou chamada pela CVM”. Uma pesquisa semelhante da escola de negócios Insper concluiu que há indícios de que 33% das fusões e aquisições envolvendo companhias abertas de janeiro de 2003 a março de 2007 tenham vazado para o mercado. “Informação privilegiada é muito mais frequente do que se imagina. O vazamento pode ocorrer até nos cursos de MBA. No intervalo da aula, alguém pode comentar com um amigo a operação que está tocando, e isso pode se propagar de forma incontrolável”, diz Priscila Marcos Cassandre, autora do estudo e vice-presidente de fusões e aquisições da gestora Credit Suisse Hedging-Griffo. eleições
Uma pesquisa do Centro de Estudos em Finanças da Fundação Getulio Vargas (FGV), feita a pedido de EXAME, mostra que nem mesmo as maiores empresas da bolsa estão imunes a uso de informação privilegiada. É sempre mais difícil detectar indícios de insider em ações muito negociadas — por definição, o grande volume de transações ajuda a esconder compras ou vendas suspeitas. A FGV investigou o que acontece nos dez dias que antecedem o anúncio de resultados trimestrais de 56 empresas abertas brasileiras cujos pa3 de setembro de 2014 | 41
capa | bolsa
42 | www.exame.com
Os suspeitos
Empresários, executivos de empresas, bancos e investidores que estão sendo investigados pela Comissão de Valores Mobiliários, pela Polícia Federal e pelo Ministério Público, suspeitos de usar informações privilegiadas para negociar ações
Grupo X
(petróleo e indústria naval) Eike Batista, dono do grupo EBX, é alvo de dois processos sobre uso de informação privilegiada. Um investiga se ele vendeu
197 milhões de reais em ações da petroleira OGX entre
maio e junho de 2013, pouco antes de a empresa anunciar que alguns de seus campos eram improdutivos. Os advogados de Eike negam. Outro processo apura por que ele vendeu
34 milhões de reais
Divulgação
em papéis da companhia naval OSX, antes de uma mudança no plano de negócios, que diminuiu o tamanho da empresa. Em sua defesa, Eike alega que a operação foi feita para se adequar às regras de mercado.
Brasil Pharma (farmácia)
As ações da empresa
7%
em 27 de março, um caíram dia antes de ela divulgar que havia tido um prejuízo de 40 milhões de reais no quarto trimestre de 2013 — e que sua geração de caixa havia caído
63% . A área de fiscalização da bolsa identificou indícios de
oscilações atípicas, e a CVM investiga se há evidências de uso de informação privilegiada. Procurada, a empresa não comentou.
Germano Lüders
péis estão entre os mais negociados da Bovespa. As ações de 21 delas se comportaram de maneira estranha pelo menos uma vez. “As ações analisadas são muito negociadas. Para que um volume atípico apareça, é preciso que haja uma grande quantidade de ordens de compra ou venda fora do padrão. Por isso, considero esse dado preocupante”, diz Thiago Bonato, um dos autores da pesquisa, feita em conjunto com o professor William Eid. A FGV não divulga o nome das empresas nem os ganhos ou as perdas dos investidores com as operações, mas um exemplo ocorrido neste ano ajuda a ilustrar o estudo. Em março, as ações da rede de farmácias Brasil Pharma caíram 7% um dia antes de a empresa publicar seus resultados do quarto trimestre de 2013. Entre investidores e operadores de mercado, circulava a informação de que a companhia publicaria um número “bastante negativo” — o que, de fato, aconteceu. A companhia teve prejuízo de 40 milhões de reais e sua geração de caixa caiu 63%. Após a divulgação, as ações caíram mais 11%. Segundo EXAME apurou, o caso está sendo analisado pela CVM. A empresa não comentou. Se há tipos de insider tão antigos quanto a bolsa, nenhum está tão na moda no Brasil quanto descobrir, antes da divulgação, o conteúdo de uma pesquisa eleitoral. As ações brasileiras têm oscilado fortemente a cada pesquisa de intenção de voto — quando a chance de vitória da oposição aumenta, a bolsa, e especialmente os papéis de empresas estatais e de setores regulados, valoriza. Um levantamento feito por EXAME mostra que o volume de negócios realizados com ações que compõem o Ibovespa ficou acima da média dos últimos 12 meses um dia antes do anúncio de pelo menos oito pesquisas eleitorais, realizadas pelos institutos Datafolha, Ibope e Sensus neste ano. Entre 17 e 18 de junho, o volume de negócios com esses papéis aumentou 113%. No dia seguinte, o Ibope divulgou que o percentual da população que avalia a gestão de Dilma como ótima ou boa recuou de 36% para 31%, enquanto a fatia que considera seu man-
BTG Pactual (banco)
Andre Penner/Agência O Dia
Mundial
(bens de consumo)
com a venda de papéis da companhia em junho de 2013, antes da divulgação do cancelamento da oferta de fechamento do capital da empresa. O BTG assessorava Eike Batista na época. Em sua defesa, o banco diz que o gestor não sabia da operação e que teve prejuízo com a venda das ações.
Após a alta de quase
Divulgação
3 000% das ações da empresa em 2011, a CVM
abriu um processo para investigar se Michael Ceitlin, presidente da empresa, e o investidor Rafael Ferri usaram informações privilegiadas para negociar os papéis — e se tentaram manipular o mercado para forçar uma valorização. Eles também são réus em um processo criminal, conduzido pelo Ministério Público Federal com a ajuda da Polícia Federal. Em sua defesa, Ceitlin e Ferri negam as acusações.
HRT
(petróleo e gás) Neste ano, foram abertos dois processos na CVM contra pessoas ligadas à empresa. Entre os acusados estão: Márcio Rocha Mello, fundador da HRT, Milton Romeu Franke, atual presidente da companhia, e dois ex-conselheiros. Segundo os processos, eles fizeram operações de compra e venda de papéis da petroleira em maio de 2012 e agosto de 2013, antes da divulgação de informações relevantes para o mercado. Numa dessas transações, Rocha Mello adquiriu
1 milhão de reais em ações da HRT, que subiram 25% nos dias seguintes ao anúncio da contratação de sondas para perfuração de seus poços na costa da Namíbia, em maio de 2012. Os executivos negam as acusações.
(banco)
Hypermarcas
(varejista)
Germano Lüders
8 milhões de reais
credit suisse
Em março de 2012, João Alves de Queiroz Filho, dono da Hypermarcas, comprou
41 milhões de reais em ações da empresa dois dias antes
da divulgação de um fato relevante que anunciava a criação da Bionovis, uma associação entre quatro farmacêuticas, de acordo com uma investigação da CVM. A autarquia apura se houve irregularidade na transação, intermediada pelo banco Credit Suisse, que também é réu no caso. Os acusados não comentaram.
PDG
(incorporadora)
Seis ex-executivos
são investigados por ter feito, entre fevereiro e março de 2012, operações no mercado futuro para proteger de uma eventual queda as ações da empresa, que recebiam como bônus. A CVM apura se eles fizeram essas transações antes do anúncio da revisão do orçamento das obras, que levou a empresa a fechar no prejuízo. Entre os acusados estão Zeca Grabowsky, ex-presidente, e Michel Wurman, exdiretor financeiro. Eles não comentaram.
3 de setembro de 2014 | 43
Bruno Fernandes/Folhapress
O banco é alvo de um processo da CVM que apura suspeitas de uso de informação privilegiada com ações da mineradora CCX, do empresário Eike Batista. Nessa investigação, a CVM aponta que o fundo FIM CP LS Investimento no Exterior, administrado pelo BTG Pactual, evitou um prejuízo de
capa | bolsa dato ruim ou péssimo aumentou de 27% para 33%. Procurado, o Ibope disse que “diversos fatos econômicos ocorreram para levar o Ibovespa a fechar em seu maior nível do ano até aquele momento e que não se pode atribuir o grande volume de negócios à divulgação de uma pesquisa eleitoral”. O diretor de pesquisas do Instituto Sensus, Ricardo Guedes, afirmou que a alta no volume de negócios com ações do Ibovespa antes da divulgação das pesquisas é um movimento especulativo. “Eu já recebi ligações de pessoas pedindo um ‘cheirinho’ da pesquisa a ser publicada”, diz. O diretor-geral do Datafolha, Mauro Paulino, afirmou que “um dos principais facilitadores da especulação financeira é a lei eleitoral, que obriga os institutos a registrar as pesquisas cinco dias antes da divulgação”. A CVM diz que “supervisiona diretamente o assunto”, mas nenhum caso havia sido julgado até hoje. dividendos maiores
A impressão de que o mercado acionário é um bangue-bangue em que as leis valem pouco pode atrapalhar o desenvolvimento de um país. O investidor — não só o pequeno, mas sobretudo o estrangeiro — fica, naturalmente, com um pé atrás na hora de colocar seu dinheiro num ambiente desses. Uma pesquisa recente da Associação de Investidores no Mercado de Capitais com investidores estrangeiros mostrou que, para 25% deles, o uso de informação privilegiada é o maior problema do mercado brasileiro. Estudos revelam que, para atrair investidores reticentes, as empresas de países como o Brasil são obrigadas a oferecer dividendos mais generosos, o que diminui sua capaci dade de investimento. Ao adotar leis mais rigorosas contra os crimes na bolsa, nos anos 70, o Canadá conseguiu reverter essa situação, e os dividendos pagos pelas empresas abertas caíram. Se há tantas suspeitas de crime e se as consequências para o país são tão nefastas, por que não há mais condenados por comprar ou vender ações com informação privilegiada? O maior problema, pelo que EXAME apurou 44 | www.exame.com
como pegar um insider
Como a BM&F Bovespa e a Comissão de Valores
1 O CRIME
Um investidor recebe uma informação sigilosa sobre uma empresa — por exemplo, que ela vai comprar um concorrente.
2 A INVESTIGAÇão
A CVM e a BM&F Bovespa tentam descobrir se o investidor é ligado a profissionais que podem ter passado ilegalmente as informações sigilosas (por exemplo: se conhece funcionários da empresa que está prestes a comprar um concorrente).
Mobiliários investigam suspeitos de negociar ações com informação privilegiada Em seguida, compra ou vende ações da companhia tentando antecipar o que vai acontecer quando a notícia for divulgada.
3 A punição
Se for considerado culpado pela CVM, o investidor é condenado a pagar uma multa de três vezes o valor do lucro obtido com a operação irregular. Também pode ser banido do mercado financeiro. Foi o que aconteceu com Rafael Palladino, ex-presidente do banco Pan, condenado a desembolsar 877 200 reais.
Além disso, o juiz pode condenar os acusados à prisão de um a cinco anos e a pagar uma nova multa semelhante à cobrada pela CVM. Mas, até hoje, ninguém foi preso por uso de informação privilegiada no Brasil. Nos Estados Unidos, há diversos casos de prisão, como do investidor Raj Rajaratnam, que foi condenado a 11 anos de reclusão.
3 de setembro de 2014 | 45
Ilustração: Davi Augusto
Com provas de que houve irregularidade, a CVM abre um processo administrativo sancionador. Os acusados podem propor um acordo e pagar uma multa para encerrar o caso ou esperar o julgamento. A CVM pode acionar o MPF e a Polícia Federal — que, ao final de suas investigações, podem encaminhar uma denúncia à Justiça.
Se o investidor tiver um lucro acima da média, poderá entrar no radar da BM&F Bovespa. A bolsa tem uma área de fiscalização (a BSM), que analisa todas as negociações do mercado e detecta se alguém fez uma compra ou venda de ações atípica. Quando isso acontece, a BSM manda as informações para a Comissão de Valores Mobiliários, que decide se vale a pena investigar.
capa | bolsa com duas dezenas de banqueiros, advogados, professores, analistas e gestores de fundos, é a falta de estrutura da CVM para investigar os indícios de irregularidades. A autarquia é responsável por fiscalizar e regular o mercado financeiro brasileiro — soberana, portanto, na hora de dizer se houve ou não crime em casos de informação privilegiada. A tarefa é incompatível com o pífio aparato que a CVM tem para cumpri-la. A autarquia tem cerca de 20 analistas para fiscalizar 363 companhias abertas e quase 600 000 investidores individuais. Nos Estados Unidos, pelo menos 1 000 técnicos da Securities and Exchange Comission (SEC) ficam de olho nas irregularidades do mercado de capitais. falta tecnologia
O mercado americano é muito maior do que o brasileiro, mas a diferença de estrutura é gritante mesmo em termos relativos. Em seu relatório de gestão de 2008, a CVM somou todos os seus funcionários e concluiu que cada um deles era responsável por analisar 71 fundos e empresas abertas, enquanto nos Estados Unidos essa proporção era de um para 13. A autarquia também sofre com a defasagem dos sistemas de tecnologia. Em 2006, o Tribunal de Contas da União recomendou a instalação “urgente” de um sistema eletrônico que permitisse a análise dos negócios realizados por investidores em tempo real na bolsa. O pedido só foi atendido em 2012, e o sistema está sendo adaptado até hoje. “Damos ênfase aos casos em que os indícios (de irregularidades) são mais claros, em que os volumes envolvidos são mais relevantes e em que as oscilações de preço são mais expressivas”, diz Leonardo Pereira, presidente do órgão regulador. Ele informou que a CVM foi “autorizada a contratar 69 candidatos aprovados no último concurso”. “Vamos alocar esse contingente em áreas onde claramente pode haver aperfeiçoamentos de processo. Parte desse efetivo será direcionada às funções de supervisão e fiscalização.” A quantidade de casos ignorados pela CVM é impressionante. Uma pesqui46 | www.exame.com
O funil do mercado
A CVM investiga uma fração dos indícios de irregularidades. A CVM abriu sete processos para julgar irregularidades na bolsa no ano passado Indícios de irregularidades(1)
91 000 processos abertos pela CVM(2)
7
Dos dez processos de insider trading concluídos pela CVM em 2013, dois resultaram em condenação (% do total dos casos)
7Os acusados fizeram um acordo
1
Os acusados foram absolvidos
2
Os acusados foram condenados a pagar multa
(1) Detectados pela área de fiscalização da bolsa (2) Processos sancionadores. Nem todos partiram da análise inicial da área de
sa da Universidade de Brasília aponta que as descobertas de poços da Petrobras são outra fonte de insider. De acordo com o estudo, há indícios de que 30% das descobertas anunciadas de 2001 a 2008 vazaram antes para o mercado: nesses casos, as ações da estatal tiveram alta igual ou superior a 2% dez dias antes de a empresa divulgar os novos po-
ços. Procurada, a Petrobras não comentou. O caso não foi julgado. Com a fusão da rede de supermercados Pão de Açúcar com a varejista Casas Bahia em dezembro de 2009, aconteceu fenômeno parecido. Um dia antes do anúncio da operação, as ações da Globex, dona da rede de eletrodomésticos Ponto Frio, do Pão de Açúcar, subiram 35%. A CVM
Rick Maiman/Getty Images
Raj Rajaratnam: o investidor foi condenado pela Justiça americana a 11 anos de prisão por negociar ações com dicas de informantes
Isso se deve, em grande parte, à falta de estrutura As maiores multas aplicadas pela CVM por insider trading são muito inferiores às da SEC, nos Estados Unidos (valores em milhões de dólares) Maior multa da CVM, em 2007, ao banco Safra
16
Maior multa da SEC, em 2013, à gestora SAC Capital
600
As diferenças de estrutura entre a CVM e a SEC são evidentes Total de empresas e fundos que cada funcionário tem de monitorar
71
Brasil
Estados Unidos
13
fiscalização da bolsa (3) Foi usada a cotação do dólar do fim de 2007 Fontes: BM&F Bovespa, CVM e SEC
disse que investigaria o caso e pediu a lista dos envolvidos na operação. Mas, até hoje, nenhum processo formal foi aberto. Apenas o então diretor de relações com os investidores da Globex, Orivaldo Padilha, foi alvo de um processo que apurava o porquê de a companhia não ter divulgado fato relevante enquanto os papéis subiam. A investi-
gação foi arquivada após o executivo concordar em pagar multa de 200 000 reais. “A CVM precisa elevar as multas para coibir a prática de insider, seguindo os passos de mercados como o americano”, diz Luiz Cantidiano, ex-presidente da autarquia. “Não seremos um país evoluído se não tivermos um mercado evoluído, sem esse tipo de prática.”
O curioso é que as leis que punem o crime de insider trading são duras no Brasil. No limite, o condenado pode passar cinco anos preso. Mas a verdade é que isso nunca aconteceu. No ano passado, a CVM concluiu dez casos envolvendo uso de informação privilegiada — desses, sete terminaram em acordo, e houve uma absolvição e apenas duas condenações. Um dos condenados foi Rafael Palladino, ex-presidente do banco Pan (antigo Panamericano), vendido ao banco BTG Pactual em 2011 prestes a quebrar. Ele foi obrigado a pagar multa de 877 000 reais por ter vendido ações da instituição antes de divulgar ao mercado que tomaria um empréstimo com o Fundo Garantidor de Créditos, em 2010. Nos Estados Unidos, a SEC apertou a regulação depois da crise financeira de 2008. Foi aprovada uma lei que destinou meio bilhão de dólares à SEC e ao Departamento de Justiça, entre outros órgãos. Depois disso, a SEC ampliou uma parceria com o Departamento de Justiça e o FBI para investigar crimes financeiros. Alguns agentes do FBI se infiltraram em Wall Street, disfarçados de gestores e investidores, para investigar suspeitos. Também obtiveram autorização para grampear telefones (antes disso, a Justiça americana só autorizava grampos em investigações de tráfico de drogas e terrorismo) e apreender computadores e documentos. Quando os casos começaram a ir para a Justiça, as penas se tornaram mais duras — para “dar o exemplo”. Em outubro de 2009, o gestor Raj Rajaratnam, do fundo de hedge Galleon, foi preso e condenado a 11 anos de prisão e a pagar multa de 93 milhões de dólares por ter negociado ações com dicas de informantes ligados às empresas nas quais investia (só em 2013, mais 14 pessoas foram presas). Em abril, a SAC Capital Advisors foi condenada a pagar multa de 1,8 bilhão de dólares à Justiça americana e de 600 milhões de dólares à SEC por motivos semelhantes. A SAC foi fundada por Steve Cohen, dono de um patrimônio de 11 bilhões de dólares. Mesmo sem ter sido acusado direta3 de setembro de 2014 | 47
capa | bolsa mente, Cohen enfrenta processos que podem proibi-lo de administrar dinheiro de terceiros por toda a vida. Nos últimos anos, a CVM bem que tentou parecer mais agressiva em suas investigações. Assinou acordos de cooperação com o Ministério Público Federal, em 2008, e com a Polícia Federal, em 2010 — que também podem realizar escutas telefônicas e apreensões. Mas, de lá para cá, houve apenas uma operação da PF para desmantelar uma suspeita de uso de informação privilegiada e outros crimes envolvendo as ações da fabricante de alicates Mundial. Até hoje apenas duas pessoas foram condenadas por uso de informação privilegiada pela Justiça brasileira. Luiz Gonzaga Murat Júnior, ex-diretor de finanças e relações com investidores da empresa de alimentos Sadia, e Romano Ancelmo Fontana Filho, ex-membro do conselho de administração da companhia, foram acusados de comprar ações da Sadia na bolsa de Nova York antes do anúncio da oferta pela concorrente Perdigão, em 2006. A investigação foi iniciada pela SEC nos Estados Unidos — e contou com a ajuda da CVM. Os executivos foram condenados a pagar multas de 254 000 a 303 000 reais e à prisão em regime aberto, convertida em prestação de trabalhos sociais. São condenações que dificilmente se encaixariam no tipo destinado a transmitir medo entre aqueles que pretendam usar informações privilegiadas. Atualmente, segundo os executivos do mercado ouvidos por EXAME, o crime compensa. Mesmo quem é pego no flagra se safa com um acordo — e, pelas regras do acordo, não se declara a culpa ou a inocência do réu. Como é um crime movido exclusivamente pela ganância, chegou-se à conclusão em países como Estados Unidos e no Reino Unido que apenas punições que de fato doam no bolso podem inibir outros de fazer o mesmo. Visto dessa ótica, nenhum processo em curso na CVM carrega tanta expectativa quanto o que investiga o empresário Eike Batista. Entre maio e junho de 2013, Eike 48 | www.exame.com
para ele, está tudo Bem Leonardo Pereira, presidente da CVM, elogia o trabalho dos investigadores que analisam as operações suspeitas na bolsa e diz que age sempre que necessário
À
va é consequência de estarmos focados em desenvolver um trabalho sério, concreto e da melhor maneira possível.
Qual é sua avaliação a respeito das investigações da CVM de suspeitas de uso de informações privilegiadas? O número de processos é adequado? É função da CVM regular e fiscalizar o mercado de capitais no Brasil. Também é importante destacar o trabalho de investigação em parceria com o Ministério Público Federal e a Polícia Federal, nas esferas civil, pública e criminal, que vem sendo ampliado e fortalecido. A questão quantitati-
Executivos de mercado criticam a atuação da CVM. Um estudo de 2009 mostra que há indícios de que algumas descobertas de campos de petróleo e gás da Petrobras vazaram antes para alguns investidores. A CVM já analisou isso? A CVM acompanha e analisa as informações e as movimentações envolvendo o mercado como um todo e, sempre que necessário, toma as medidas que são cabíveis. Os processos administrativos abertos pela autarquia que tenham a Petrobras ou qualquer outra companhia aberta envolvida podem ser acessados em nosso site, se já forem públicos.
frente da Comissão de Valores Mobiliários desde novembro de 2012, Leonardo Pereira, ex-vice-presidente financeiro da empresa aérea Gol, diz o que leva a CVM a investigar suspeitos de negociar ações com informações privilegiadas. Ele deu a seguinte entrevista por e-mail.
José Pedro Monteiro/Agência o dia
LEONARDO PEREIRA: segundo ele, a CVM “dá mais ênfase” aos casos em que os indícios de problemas são mais claros
Nem sempre a CVM pede às empresas envolvidas em fusões ou aquisições que enviem o nome dos profissionais que participam do processo. Não é uma brecha que pode facilitar o uso de informação privilegiada? O uso de informação privilegiada é crime e trata-se de um dos pontos que devemos sempre fiscalizar. É uma irregularidade que atrapalha o bom andamento do mercado. Nosso papel, além de regular, é fiscalizar. Dessa forma, sempre que necessário ou útil, a CVM analisa eventuais operações realizadas por administradores de companhias abertas — e todas as informações pertinentes ao negócio —, inclusive nas apurações de uso indevido de informação privilegiada. É comum que os analistas das corretoras visitem as empresas
que acompanham e troquem informações com os profissionais da companhia. Fazendo isso, podem ter acesso a dados que outros colegas não têm. Como a CVM regula esse tipo de prática? A instrução CVM 358/02 regula, entre outros assuntos, a divulgação e o uso de informações sobre ato ou fato relevante relativo às companhias abertas. A divulgação de informação relevante a analistas antes da divulgação por meios oficiais representa uma infração à lei e a essa instrução. Uma vez identificada, torna-se passível de apuração de responsabilidades. Para essa identificação são utilizados meios como o acompanhamento do mercado, a movimentação dos papéis e a fiscalização da conduta dos participantes. A CVM solicita esclarecimentos tão logo identifica a ocorrência de possível vazamento de informações.
vendeu ações da OGX pouco antes de a empresa anunciar que boa parte de seus campos era economicamente inviável (de lá para cá, as ações caíram 76% e valem hoje 19 centavos na Bovespa). Em setembro de 2013, voltou a vender pouco antes de ele próprio divulgar que não tinha recursos suficientes para capitalizar a companhia, um compromisso assumido em outubro do ano anterior. Para a CVM, Eike lucrou pelo menos 124 milhões de reais com a operação. Ainda em abril de 2013, o empresário vendeu ações da OSX quatro dias antes de o conselho de administração aprovar uma mudança no plano de negócios, que incluía uma série de cortes de funcionários e encerramento de projetos. A decisão só foi
as leis que punem o insider no brasil são duras. mas a aplicação é branda comunicada ao mercado em maio, quando os papéis da empresa caíram 27%. Ao vender antes, Eike evitou um prejuízo de 10,5 milhões de reais, também de acordo com a CVM. Ele nega as acusações. Se for considerado culpado, pode ser condenado a pagar multa de quase 400 milhões de reais — equivalente a três vezes o lucro que obteve com as negociações supostamente ilegais — e à prisão por até cinco anos. Eike não deu entrevista. Aqueles 91 000 indícios de irregularidades na bolsa detectados no ano passado por Marcos Torres e sua equipe se transformaram em 185 processos. Quase um quarto deles era suspeita de insider trading. A CVM abriu sete investigações em 2013. É difícil não ficar frustrado. n 3 de setembro de 2014 | 49