Os desenhos de Dürer
Texto de Heinrich Wölfflin parcialmente traduzido, com comentários, por Ana Lúcia Beck. Original: DRAWINGS OF ALBRECHT DÜRER Selected and with an introductory essay by Heinrich Wölfflin. Nova Iorque: Dover Publications, 1970.
A importância histórica de Dürer enquanto artesão deve-se a seu estilo de construção puramente linear da forma enquanto fundamento da moderna representação tridimensional do mundo real. Todos os desenhos movimentam-se entre estes dois pólos de expressão pela linha e expressão através de áreas ou massas tonais. Com o passar do tempo, é claro, a linha não precisa estar totalmente ausente, mas ela não se torna importante por sua própria conta. Rembrandt também utilizou a pena1, mas o traço individual não é apresentado enquanto operação final por seu próprio direito, mas enquanto elemento incorporado na impressão criada pelo desenho como um todo. O espectador não acompanha o percurso de uma linha individual, e nem conseguiria, pois a linha pára a todo momento, desviando sua atenção; ou então complica-se ao ponto de se tornar inextrincável: as massas 1
No original pen que tradicionalmente referia-se ao bico de pena, mas que, na atualidade, é utilizado para a “caneta”.
servem para formar a mensagem, não são moldura das linhas2. Com Dürer ocorre o oposto: o desenho é a configuração cristalina em cada traço, estabelecida com pureza e perspicácia. Ele não somente tem a função de definir a forma, como possui sua própria beleza ornamental. Não é suficiente louvar o poder da linha de Dürer e depor sobre uma expressão inteiramente dependente da inter-relação (interconexão) entre as linhas principais e a ondulação de sua direção. Para além disso, há o desenvolvimento do traço enquanto aspecto decorativo3 na figura geral. Este estilo não está presente entre seus contemporâneos. O século XV ainda não o possuía, e há desenhos do jovem Dürer que tem uma aparência mais “pictórica” que seus desenhos da maturidade. É aceitável que as simpatias modernas recaiam sobre estes primeiros desenhos, mas isto não altera o fato de que foi o estilo puramente linear de Dürer que fez de sua “arte” a pedra fundamental da arte do século XVI. Não existem linhas na natureza. Qualquer principiante pode apreender isto ao sentar-se em frente a sua casa com um lápis e tentar reduzir o que vê a uma série de linhas. Tudo se opõe a esta empreitada: a folhagem das árvores, as ondulações da água, as nuvens no céu. E se parece evidente que um telhado está claramente exposto contra o céu, ou um tronco escuro de árvore pode certamente ser reconhecido em seu contorno; mesmo nestes casos fica logo evidente que a linha só pode ser uma abstração. Pois não são as linhas que vemos, mas massas. Massas claras e massas escuras que contrastam com o fundo de uma cor diferente. Afinal, não existem linhas pretas percorrendo os limites dos objetos4. É estranho, entretanto, que ainda assim seja possível estabelecer uma expressão do mundo real em linhas. Nossos olhos se acostumaram à abstração linear. Graças aos esforços de gerações, existe uma linguagem da linha através da qual tudo, ou quase tudo, pode ser dito5. Dürer é um dos grandes descobridores disto. Ele estendeu a expressividade da linha em todas as direções e encontrou uma formula insuperável de modelar (ou renderizar) certos fenômenos. Existem dois sentidos pelos quais podemos falar de linha no desenho: existem linhas de contorno e existem linhas de modulação e modelagem ou sombreamento. Existem contornos em qualquer desenho, mas a maior ou menor acentuação destas linhas faz toda a diferença. Quanto mais significativas são para a definição da forma 2
Não sei que desenhos de Rembrandt o Wölfflin viu para estabelecer tais afirmações e comparações. Pessoalmente, não concordo com esta colocação de Wölfflin. Seja porque sou apaixonada pelo desenho de ambos, seja porque há inúmeros desenhos de Rembrandt que podem e devem ser percebidos extamente no aspecto de “beleza singular da linha”. O diferencial que se pode notar, entretanto, é que Rembrandt utiliza muito mais do que Duerer a mancha enquanto elemento formal e constitutivo do desenho ao ponto da própria linha, por vezes, romper o limite que a diferenciaria da mancha. 3 Cabe notar que o termo “decorativo” não possui o caráter pejorativo com que tantas vezes o associamos à arte. Trata-se de uma tentativa de Wölfflin de ressaltar a natureza lúdico-expressiva de uma linha que não é apenas um “instrumento”, mas é o que poderíamos chamar de “elemento poético”. Elemento que, assim como ocorre na poesia, torna a forma e o conteúdo indissociáveis tal como comcebe Paul Valéry em Variedades. 4 Compreender este fato e trabalhar a partir deste entendimento é uma das primeiras tarefas de todo desenhista iniciante. Mas, para todo desenhista iniciante que tenha pinturas como parâmetros de análise para desenhos, ou que não possui uma ampla referência de imagens na história do desenho, será mais difícil aceitar este fato. Esta não aceitação acaba implicando na dificuldade de entendimento do desenhista iniciante de outra premissa fundamental do desenho, a de que o certo e o errado em desenho não existem. 5 O autor está fazendo menção ao fato de que a arte não é apenas uma “cópia” da realidade, mas sim uma representação, ou seja, um “sistema” que, operando com componentes tais como linhas, manchas, tonalidades, contrastes e semelhanças, elabora uma imagem que pode ser associada ao mundo que vemos mas que não é de fato o que vemos.
– ou seja, quanto mais a figura se aproxima de uma silhueta objetiva – maior será a importância do contorno em comparação com as outras linhas. (Por silhueta entenda-se não somente o contorno externo da figura; formas internas também possuem silhueta) O significado da linha de contorno é incrementado quando ganha independência enquanto voz melódica. Isto é o que ocorreu no século XVI. Às vezes mais, outras vezes menos enfatizado, o contorno é de qualquer maneira uma marca certa e clara, fundamentalmente belo por seu próprio direito, ele contém a interpretação da forma. Quando este estilo linear torna-se mais pictórico, o contorno perde rapidamente sua importância. Evita-se de toda maneira que o olho o utilize enquanto ferramenta de observação. Finalmente, tudo o que resta são poucos fragmentos de linhas ou pontos. Na sua segunda aplicação, a linha é utilizada para elaborar o modelado6. Para ficar claro, a linha não é uma maneira “auto” evidente de representar luz e sombra, mas o espectador não levanta objeções ao ver uma área escura de uma superfície volteada, ou parte de um quarto que está na sombra, transformados em um sistema de linhas e traços individuais. Aqui também o século XVI é o primeiro século de decidida linearidade. Se inicialmente traços mais longos ou mais curtos são colocados lado a lado e uns sobre os outros para indicar a forma de uma massa, a técnica torna-se mais refinada ao final do século XV, e o artista linear clássico fez desta, regra: que os sistemas de linhas de áreas sombreadas permanecessem perfeitamente transparentes e abertos, de forma que cada traço carregasse seu próprio peso. Mais uma vez, evidenciar a forma e a beleza decorativa andam lado a lado. O traço que modela é sentido como ornamental, mas ao mesmo tempo seu movimento é condicionado pela necessidade da linha de percorrer a forma dada. A linha em uma forma volteada é diferente da linha em uma forma plana. Uma área escura e vazia em um quarto não é caracterizada da mesma maneira que a sombra produzida por um corpo7. De fato, é possível comunicar as qualidades de texturas através de significados puramente lineares, para expressar dureza e maciez, a firmeza muscular do torso de um homem e a maneira gentil como o corpo de uma mulher pede para ser tocada8. Então, sob a influência de tendências pictóricas, o esquema se torna confuso. A linha individual se perde na massa geral. Alienada da forma, ela não mais retêm qualquer significado ornamental especial, e apenas a grande escala de manchas e tons das áreas permanece para contar a estória. O desenho abre mão de sua transparência, mas da mesma maneira seu poder para diferenciar texturas aumentou e a luz e a sombra adquirem misteriosa vida própria. Dürer utilizava uma grande variedade de meios9. Há desenhos a pena e desenhos a pincel; trabalhava com carvão e giz; e juntamente com a ponta de metal, a antiga ponta de prata é encontrada. As ferramentas mudam de acordo com o momento e a situação. Por exemplo, enquanto a “ponta de prata” se tornou cada vez mais o instrumento de Dürer durante suas viagens na realização de esboços rápidos, é necessário ressaltar que 6
O modeling, na versão inglesa, refere-se não somente à identificação da forma básica do contorno de um objeto, mas trata da elaboração da forma do objeto enquanto realidade total: forma constituída por contorno, volume, textura, iluminação. Ou seja, as características básicas de qualquer objeto observado em ambiente tridimensional. 7 Ou a sombra percebida em um corpo. 8 É interessante perceber o caráter sexista implícito nesta observação. 9 O autor se refere aos diferentes tipos de materiais, media em inglês, com os quais o artista trabalhava. Em português usa-se muitas vezes os termos “meio” ou “mídia” como correspondente ao termo inglês. Wölfflin se refere aos materiais empregados e não às “técnicas” segundo as quais são utilizados.
em seus últimos anos o pastel foi utilizado tão significativamente quanto o pincel no período médio. Ao longo dos anos, entretanto, a pena foi o instrumento de desenho favorito de Dürer: ela é especialmente adaptável para satisfazer o desejo de dar vida independente para traços individuais. É estranhamente estimulante observar o curso distinto de tratamento de cada técnica utilizada por Dürer. A cada vez em que é confrontado com a natureza, Dürer se coloca outro problema, e os resultados obtidos com um desenho a carvão são basicamente diferentes daqueles requeridos por um desenho a pena. Naturalmente, o propósito final do desenho é o fator decisivo10. Estudos para figuras de uma pintura não terão a mesma aparência de desenhos preliminares para uma xilogravura. Isto não significa, entretanto, que o estilo gráfico da gravura obteve influência determinante sobre o desenho; de fato, trata-se do contrário: Dürer desenvolve a xilogravura ao nível do desenho a pena, “seu” desenho a pena11. Os desenhos de Dürer não devem ser julgados a partir de premissas naturalistas. Eles jamais poderão ser apreciados de maneira honesta se a sua intenção absolutamente distinta não for compreendida. Dürer se movimenta em todas as direções à procura de organismos lineares que são ao mesmo tempo decorativos e independentes; e o desenho parte conscientemente, às vezes mais, outras menos, da aparência natural ou real. Existem floreios e passagens de cor em sua arte, elevações e afiações da linha que servem para dar a este sistema linear um valor próprio que se confronta com a natureza. Mas a beleza do todo não reside isoladamente na figura, mas na rede de linhas na qual a figura se encontra, de alguma maneira, envolta.
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Wölfflin está fazendo menção ao fato de que é o olhar do artista, seu interesse específico por um tema, seus interesses específicos de conhecimento de algo que determinam a maneira como o artista elabora determinadas soluções gráficas. É neste sentido que um artista pode ser considerado criativo. Não se trata de aplicar um método de representação com maior ou menor domínio “fotográfico”, ou de utilizar um determinado tipo de solução técnica para cada tema ou assunto, mas sim de tentar, experimentar, elaborar, definir, enfim criar maneiras de “tornar visível” através do desenho. 11 Creio que Wölfflin está correto nesta afirmação. Em exposição de gravuras apresentada no CCBB São Paulo em dezembro de 2006 (Impressões Originais: A Gravura Desde o Século XV), chamou-me muito a atenção a absoluta delicadeza e sutileza das xilogravuras de Dürer. Fiquei um bom tempo, atônita em frente a elas, tentando acreditar que se tratavam realmente de xilogravuras e não de gravuras em metal. Digo isso porque as linhas impressas eram muito finas, e chegavam, realmente a formar um desenho que lembra uma renda pela sua delicadeza a aparente fragilidade. Quando olhamos os desenhos a pena de Dürer constatamos que a mesma paciência e precisão utilizada na execução de desenhos está presente nestas xilogravuras, tão detalhistas que chegam a sugerir um olhar absolutamente “obcecado”.