MatrizCaldas. Fluxo. Cidade. Arte. 2012-1512

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MatrizCaldas é um projecto integrado de arte contemporânea e animação museológica para comemoração dos 500 anos da Vila de Caldas da Rainha (1511-2011) e da assinatura do Livro do Compromisso pela Rainha D. Leonor (1512-2012). O projecto posiciona-se como programa de contacto com a arte que vai de encontro aos valores espaciais de um lugar, às propriedades terapêuticas das suas águas e às potencialidades comunicacionais de uma instituição que, assim, procura celebrar no quotidiano dos caldenses e dos milhares de turistas que visitam as Caldas novos laços com os cidadãos – em torno das questões do fluxo (como vitalidade), da cidade (como sistema complexo) e da arte (como encontro).



DIRECÇÃO DE PROJECTO Dora Mendes CURADORIA Mário Caeiro EQUIPA DO MUSEU Tânia Jorge Pedro Batim EQUIPA PALAVRÃO André Teles Rosa Quitério Francisca Monteiro Sara Gonçalves

AGRADECIMENTOS Susana Rodrigues, directora da ESAD.CR Direcção da PALAVRÃO Pessoal do Museu e do Hospital Simeon Nelson Projecto Travessa da Ermida Hugo Paquete Patrícia Craveiro Lopes Abel Ribeiro Chaves e Bazar do Vídeo Alunos de Projecto em Arte Pública do ano lectivo de 2009-2010 Alunos de Edição de Livros do ano lectivo de 2010-2011 Artistas, autores de textos e colaboradores

IMAGEM MATRIZCALDAS Palavrão sobre imagem de Simeon Nelson e discentes de Edição de Livros ESAD.CR: Micael Carreira, Tânia Forreta, Filipa Orfão, Débora Ramos.

A presente edição – MatrizCaldas Fluxo. Cidade. Arte. Caldas da Rainha 2012-1512 , é parte integrante da Programação MATRIZCALDAS em Março de 2012.

EDIÇÃO Palavrão, Associação Cultural

ISBN: 978-989-97559-7-0 D. L.: 357308/13

DESIGN EDITORIAL Rosa Quitério Francisca Monteiro FOTOGRAFIA Sara Gonçalves Ângelo Pacheco (Piscina da Rainha, pp. 4, 5) Artistas intervenientes www.palavrao.net

Organização

Apoios





500 Anos da Villa de Caldas da Rainha 500 Anos do Livro do Compromisso

Com o objectivo de assinalar duas datas marcantes nos anais da história do Hospital Termal Rainha D. Leonor, o Centro Hospitalar do Oeste Norte através do Museu do Hospital e das Caldas associou-se à Associação Palavrão, ao Professor Mário Caeiro e à ESAD.CR para desenvolver o projecto MatrizCaldas (1511-2011 / 1512-2012). O próprio nome do programa adopta na sua designação os conceitos chave para a apreensão da origem não apenas do Hospital Termal Rainha D. Leonor, mas, e de forma consequente, da própria cidade de Caldas da Rainha. É pois no elemento “água”, que Caldas encontra a Matriz da sua própria génese. O surgimento do Hospital de Nossa Senhora do Pópulo, em 1485, motivou a fundação da própria vila em 1511. A necessidade de criar um núcleo urbano, potenciado pela necessidade de dotar o hospital de todos os bens necessários, foi uma das preocupações de D. Leonor. Estavam assim criadas as condições para o crescimento de ambas as instituições, reflectindo, cada uma delas, o próprio desenvolvimento da outra. Embora a história seja muitas vezes conflituosa ao nível dos interesses comuns e em particular no que toca a esferas de responsabilidade comunitária, esta foi uma narrativa feita a par. Por tudo isto não podia o Centro Hospitalar do Oeste Norte, através deste projecto, deixar de assinalar a data (1511-2011) em que se celebram os 500 anos da Villa de Caldas da Rainha. Assumindo-se como uma das instituições assistenciais mais notáveis do país a nível organizacional, funcional e patrimonial, sendo considerada como única no seu género, o então Hospital de Nossa Senhora do Pópulo apoia-se no seu Compromisso para traçar não apenas as suas próprias linhas orientadoras, mas também a forma de acolher e tratar todos aqueles que o procuraram.


O Livro do Compromisso do Hospital, reúne em si um conjunto de princípios regulamentares e definidores de um modelo organizacional impar na História das Ciências da Saúde Portuguesa. Este “manual de gestão”, assinado pela própria Rainha D. Leonor em 18 de Março de 1512, reflecte as intenções e desejos que a Rainha tinha no que concerne à gestão do hospital, servindo desta forma, como documento modelo para a instituição. Manter-se-ia em vigor até ao reinado de D. José I, altura em que seria reformulado pelo próprio Marques de Pombal, prosseguindo no entanto no seu essencial. No ano em que se assinalam os 500 anos da assinatura do Livro do Compromisso pela Rainha D. Leonor, assistimos em simultâneo ao surgimento de novos desafios para a instituição. Temos porém a certeza que o valor que o Hospital Termal Rainha D. Leonor e todo o seu conjunto patrimonial representam, e que justificou a sua subsistência ao longo de mais de 500 anos de história, será factor de garantia do seu futuro. Capitulo do regimento, e cura e dos enfermos, q. todos os officiaes hão de ter, e daquellas pessoas, q. devem receber p.ª se curarem no dito Hospital (…) mandamos, q. em cada ano o dito Provedor segundo dito he, mande abrir o dito Hospital, e mandará aperceber todos os officios q. p.ª a cura dos enfermos são necessários, (…) e fará assentar a cada hum em seu lugar, e assim fará ler o Compromisso p.ª cada hum saber o q. em seu officio he obrigado a fazer (…) para servirem aos pobres enfermos…

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Carlos Manuel Ferreira de Sá Presidente do Conselho de Administração de Centro Hospitalar Oeste Norte



As águas são um valor patrimonial, uma metáfora poética e um contexto histórico para a intervenção artística.


Com o epicentro da sua programação localizado no Hospital Termal e no respectivo Museu, um conjunto de intervenções de arte contemporânea procura enriquecer, revitalizar e divulgar um dos mais importantes núcleos patrimoniais das Caldas da Rainha. É uma reflexão sobre a cidade, a região e o Hospital Termal em particular, por parte de criadores de várias gerações, com laços recentes ou mais antigos, biográficos ou profissionais, com as Caldas da Rainha. O Projecto MatrizCaldas nasceu na ESAD.CR, da actividade curricular realizada no âmbito da disciplina Projecto em Arte Pública (ano lectivo de 2009-10), prosseguiu no âmbito da disciplina de Edição de Livros (ano lectivo de 2010-2011) e é coordenado pela PALAVRÃO. Inclui várias dimensões, por forma a reflectir e explicitar a complexidade do território em que se insere, território que é o resultado de uma acumulação cultural com origem remota num fenómeno de origem natural – as nascentes de águas termais – e que, ao longo dos séculos, se vai cristalizando numa identidade inequívoca mas nem sempre devidamente valorizada. As ‘Caldas’ são um activo cultural de toda uma região e do País. Por ocasião das comemorações dos 500 anos da Villa de Caldas da Rainha (1511-2011) e do Livro do Compromisso (1512 – 2012), dois momentos marcantes na história do Hospital Termal de Caldas da Rainha e da própria cidade, a comunidade escolar não poderia deixar de participar, com a sua própria iniciativa e criatividade, na dinâmica das Comemorações. MatrizCaldas abrange, no seu contexto, desde a fundação do lugar e da cidade, que integra aspectos históricos, míticos e religiosos, até à sua mais recente identidade enquanto pólo cultural e do ensino superior artístico – com destaque para a impor-


tância da ESAD.CR –, o projecto parte do tema da águas como seiva para produzir uma reflexão integrada sobre a vida urbana a partir do valor da arte. Esperamos assim contribuir para uma imagem contemporânea da cidade e de alguns dos seus ex-libris. Nessa imagem, as águas são um valor patrimonial, uma metáfora poética e um contexto histórico para a intervenção artística. A partir da percepção da importância vital de um ponto físico – a nascente – o projecto abrange o edifício do Museu, o Hospital, o Jardim, a Igreja do Espírito Santo e a Capela de S. Sebastião, abordados como elementos nodais de um sistema de espaços e experiências que a arte vai activar. O carácter sistémico do projecto visa reforçar um sentido holístico que entendemos como subjacente à ideia de saúde, de bem-estar e de aspiração à plenitude que a experiência humana implica. O projecto posiciona-se como programa de contacto com a arte que vai de encontro aos valores espaciais de um lugar, às propriedades terapêuticas das suas águas e às potencialidades comunicacionais de uma instituição que, assim, procura celebrar no quotidiano dos caldenses e dos milhares de turistas que visitam as Caldas novos laços com os cidadãos – em torno das questões do fluxo (como vitalidade), da cidade (como sistema complexo) e da arte (como encontro).

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Dora Mendes, coordenadora do Museu Mário Caeiro, curador da exposição Folheto de apresentação do Projecto MatrizCaldas






Reflexão: Eu Médica, e o Compromisso A Medicina Termal.

Conceição Camacho. Médica


No dia 1 de Outubro de 1985 iniciei funções no Serviço de Hidrologia, sendo então Diretor Clínico o Saudoso Dr. Caldas Lopes. Muito pouco era o meu conhecimento deste hospital, e muito menos de Hidrologia, era uma médica com um gosto especial pela pediatria, pelo que após o estágio foi a valência em que permaneci mais tempo. Contudo, o dever de permitir que os meus colegas também pudessem fazer mais tempo de formação nesta valência, e porque já tinha algum contacto com este Hospital, por doentes meus terem carecido de tratamentos de fisiatria e pelo facto da Dra. Maria do Céu Rosa, fisiatra, me ter entusiasmado a efectuar um percurso por esta valência, (hidrologia), solicitei a permissão para o fazer. Após uma entrevista com o então Diretor Dr. Caldas Lopes, entendeu o mesmo que deveria ir iniciar a minha atividade no internamento. Este era composto de três enfermarias, duas das quais ainda existem, agora com outras valências do C.H.O.N. O primeiro tempo da manhã, (8 horas) iniciava a consulta aos doentes triados pelas enfermeiras: crises termais, hipertensos, diabéticos, crises de gota, insuficientes renais, doenças hepáticas, etc. O segundo tempo era preenchido a fazer consulta aos doentes que chegavam para tratamento, e, como é óbvio, discussão do caso clínico com o Diretor, bem como a terapêutica hidrológica, proposta pelo mesmo, mas que me era explicada. Comecei assim a ligar-me a um medicamento novo e aos seus efeitos, que de todo desconhecia.

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A vida na enfermaria, os doentes idosos e as crianças, os resultados obtidos no fim do período de estadia, o voltar dos doentes daí a seis meses ou um ano com o relato da melhoria e da diminuição da medicação química por dela não necessitarem, apaixonaram-me. Preparei-me cientificamente nesta área: estudei os efeitos, as contra-indicações e os porquês dos mesmos. Habilitei-me com o Curso de Hidrologia, fiz a Pós-Graduação e mais tarde a competência, estando inscrita na competência da Hidrologia Médica, da ordem dos médicos. Fui conhecendo a história deste hospital, deslumbrei-me com o facto de na época haver tanto rigor, na higiene dos doentes e no cuidado com a alimentação. Senti-me completamente comprometida com este Hospital e com as suas Águas, e indiretamente com Aquela que tão bem soube mandar edificar este hospital e provê-lo, de normas tão impressionantes como as que estão no Livro do Compromisso. A visão futurista das doenças psicossomáticas que assolam os nossos dias, é outro ponto que me fascina. A cura da Alma que tantos de nós médicos não entendem, é para mim um fator muito importante. Posso afirmar com conhecimento de causa até aos mais incrédulos que, Se o Espírito sofre e perde a força para Viver, o Corpo morre. Mas não só; os estudos que mandou efetuar, para as indicações e contra-indicações, dão-nos a indicação da mulher inteligente e audaz que era, provando-o como provedora deste Hospital. 20

Se ao longo destes anos me identifiquei com o compromisso, é agora, como Diretora Clínica, que mais sinto necessidade de o defender. Nos tempos de crise que correm, não é fácil, mas desistir é próprio dos que não Amam, dos que não sentem, dos que não se identificam.


CARACTERÍSTICAS FÍSICO-QUÍMICAS A Água mineral natural das Termas das Caldas da Rainha é sulfúrea, cálcica, cloretada, sódica, sulfatada, magnesiana, sulfidrica e levemente fluoretada; termal – 34º/35º-; rica em sais, com mineralização total próxima de 3000 mg/l. e praticamente neutra – PH = 7,04 e bacteriologicamente própria para os fins a que se destina. Apresenta algumas particularidades que a diferenciam das outras águas sulfúreas portuguesas: São ricas em sais minerais, sendo os iões predominantes CI-, SO4- entre os aniões e Na+, Ca+ e mg+ entre os catiões. Elevada salinidade + 3000mg/l (as águas sulfúreas do Norte são hipossalinas). Teor em ião fluoretado (menor que nas águas sulfurosas do Norte). Elevado valor de cálcio relativamente às outras águas sulfúreas em que predomina o ião sódio. É interessante notar que o teor em milivales do ião cloreto (30,35) é praticamente igual ao teor em milivales do ião sódio (30,23). Curiosa é também a correlação que se verifica entre o ião sulfato (13.0) e o ião cálcio (12,80). Quanto aos aligoelementos, inclusive o zinco, estão todos em Concentrações menores que os limites estabelecidos pelas Organizações Internacionais. 21


INDICAÇÕES TERAPÊUTICAS A Água Mineral Natural de Caldas da Rainha tem como principais indicações terapêuticas: 1) Doenças do foro reumatismal 2) Doenças do foro respiratório

1) Doenças do foro reumatismal, ou reumáticas Metabólica ∙ Gota

Inflamatória ∙ Artrite reumatóide ∙ Artrite psoriática ∙ Pelvi-espondilite anquilosante, etc.

Degenerativa ∙ Espondilose ∙ Gonartrose ∙ Coxartrose ∙ Artroses das mãos, pés tíbio-társicas. etc.

2) Doenças do foro respiratório

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Aparelho Respiratório Superior ∙ Sinusites crónicas ∙ Laringites Crónicas ∙ Faringites Crónicas ∙ Amigdalites Crónicas ∙ Adenoidites Crónicas ∙ Poliposes Nasais ∙ Rinites ∙ Obstrução Nasal ∙ Pós-operatórios de O.R.L.

Aparelho Respiratório Inferior ∙ Bronquites Crónicas ∙ Asmas Extrínsecas ∙ Asmas Intrínsecas ∙ Doença Pulmonar O. Crónica ∙ Pós Pneumonias de repetição ∙ Pós Operatórios de cirurgias pulmonares, por patologia traumática ∙ Tosse recorrente, dispneisante


CONTRA-INDICAÇÕES TERAPÊUTICAS Há várias doenças que estão contra-indicadas numa cura termal; a título de exemplo apresentam-se as seguintes: Cardio-vasculares ∙ Cardiopatias graves ou descompensadas ∙ H.T.A. descompensada ∙ Enfarte. A. Miocárdio recente ∙ Insuficiência venosa grave ∙ Neoplasias

Respiratórias ∙ Bronquite aguda ∙ Asma aguda ∙ Tuberculose ∙ Neoplasias

Dermatológicas ∙ Dermatozonoses (sarna) ∙ Dermatomicoses ∙ Afecções em fase aguda ∙ Neoplasias

Digestivas ∙ Cirroses descompensadas ∙ Hepatites agudas ∙ Neoplasias

Sangue ∙ Púrpura ∙ Hemofilia ∙ Leucemias

Musculo-esqueléticas ∙ Artrite reumatóide em fase aguda ∙ Artroses em fase aguda ∙ Neoplasias

Endocinas ∙ Addison ∙ Hipertiroidismo descompensado ∙ Neoplasias

Doenças do Colagénio ∙ L.E.S. ∙ Esclerodermia ∙ Neoplasias

As contra-indicações podem, e são na maioria dos casos, temporárias. Será a gravidade da situação clínica que condiciona a orientação do médico hidrologista para a terapêutica termal (técnicas) no momento da consulta; bem como em caso de contra-indicação, a orientação para uma futura reavaliação da situação. Esta poderá ser a curto prazo, (caso de agudização da patologia que o motiva a vir o utente ao tratamento) ou a longo prazo, (caso de neoplasias já tratadas, mas nas quais ainda não temos a margem de tempo para as considerarmos sem risco com as nossas águas).

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Hospital de Nossa Senhora do Pópulo – do Hospital se fez Vila

Tânia Jorge. Historiadora


A emergência do chamado Estado Moderno teve como consequência grandes transformações a nível económico, demográfico, cultural e assistencial. As alterações que se reflectiram no contexto europeu, não foram indiferentes a Portugal, e tiveram os seus reflexos. O monarca responsável por iniciar este processo foi precisamente D. João II, que lançou as bases para a construção do Estado Moderno Português. Para o caso do Hospital de Nossa Senhora do Pópulo, em estudo, interessa destacar a reorganização assistencial, nomeadamente a profunda reforma dos hospitais medievais. Assistiu-se ao surgimento dos chamados hospitais modernos, que se demarcaram dos anteriores, assumindo-se assim a necessidade de concentrar as pequenas e dispersas instituições assistenciais medievas, em instituições mais complexas e organizadas. Neste contexto surgiu a autorização para a construção do Hospital de Todos os Santos em Lisboa, no ano de 1491. De acordo com a vontade de D. João II, é o seu sucessor D. Manuel, o responsável pela conclusão das obras e por dar prossecução ao processo iniciado. A fundação do Hospital de Nossa Senhora do Pópulo surge assim associada a um movimento de reformulação da assistência aos pobres e doentes, cabendo à Rainha D. Leonor de Lencastre a decisão de fundar um Hospital em território sob a influência de Óbidos.1 No ano de 1482 recebeu em dote de casamento com D. João II, o concelho e vila de Óbidos, entre outros domínios. A carta de doação do rei à Rainha D. Leonor de 1491, define como objecto de doação as vilas de Alenquer, Óbidos e Sintra, sendo que já anteriormente também Torres Novas, Torres Vedras e Alvaiázere tinham sido entregues.2 1 João Serra, Introdução à História das Caldas da Rainha, (Caldas da Rainha 19959), 23. 2 Manuela Santos Silva. A Região de Óbidos na Época Medieval -Estudos, (Caldas da Rainha 1994), 113.

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As referências documentais às nascentes remontam a tempos anteriores à presença da Rainha. No século XIII foram identificados dois documentos, cujo conteúdo aponta para a existência de umas caldas, que tudo leva a crer serem as caldas junto a Óbidos, as que mais tarde viriam a ser aproveitadas pela rainha.3 No século XIV, novas menções às caldas de Óbidos, numa carta de um bispo, que justifica a sua falta nas Cortes de Santarém por “completar restabelecimento de doença de pele”4 nas ditas nascentes. A carta de 26 de Junho de 1474, de D. Afonso V, concede benefícios e privilégios a quatro homens que se estabelecessem nas caldas, incutindo a necessidade de plantar vinha, pomares, criando condições para os que viessem aos banhos. Segundo Saul Gomes, “da existência no local de infraestruturas de assistência e acolhimento aos enfermos, não restam dúvidas, pois os documentos pontifícios e régios de finais do século XV dão disso prova testemunhal evidente”.5 Frei Jorge de S. Paulo6, no seu Manuscrito sobre o hospital, guia-nos pelo dia a dia desta instituição singular, deslumbrando-nos com a estrutura e organização herdada da fundadora. Segundo o seu testemunho, “nenhuma rainha nem infanta portuguesa antecessoras da Nossa D. Leonor tomou tal empresa em todos os tempos de seu reinado… até o de 1485 em que a Nossa Rainha deu princípio à fundação do seu Hospital.”.7 Relativamente ao registo da data do início da construção do hospital, reclamou a “neglicência dos primeiros provedores”, que não deixaram nenhuma indicação e apresentou uma data provável, 22 de Janeiro do ano de 1485, data da comemoração do aniversário de casamento do rei e da rainha. Continua a ser esta a data ainda hoje apontada pelos investigadores, para o lançamento da primeira pedra 3 Saul António Gomes. As cidades têm uma história: Caldas da Rainha das origens ao século XVIII (pág.21-22) 4 João Serra, ob.cit.,1995, 81. 5 Saul António Gomes, ob. cit.,1994, 22. 26

6 Jorge de S. Paulo, da Congregação de S. João Evangelista, foi um dos padres lóios que administrou o Hospital a partir de 1532, vindo a ser Provedor do mesmo. Paralelamente desenvolveu uma actividade de investigador, historiador e escritor, e foi neste âmbito que nos deixou uma grande obra sobre o Hospital das Caldas, onde viria a falecer, sendo sepultado em campa rasa na Igreja de Nossa Senhora do Pópulo. 7 Jorge de S. Paulo, O hospital das Caldas da Rainha até ao ano de 1656, vol.I (Lisboa: Academia das Ciências de Lisboa,1967), 72.


do hospital, com consciência de que é apenas uma data conjectural, de acordo com a simbologia que lhe está associada. A 4 de Dezembro de 1488 é dada por D. João II, a carta de privilégios e liberdades a 10 moradores, estabelecendo um couto de vinte homiziados. Esta medida teria como objectivo fixar população, no sentido de promover a formação de uma nova povoação. Todo este processo se incrementou sob alçada do poder régio, representado na casa das rainhas, de forma organizada e controlada. A centralização do poder real, foi neste período uma tendência verificada a nível nacional, sendo de salientar a importância que desempenhavam monges do Mosteiro de Alcobaça, e a necessidade de travar a expansão desse mesmo poder. As medidas de fixação de população confirmaram a necessidade de consolidar a implantação da instituição recentemente fundada. Por um lado foram criadas condições para garantir as obras de construção dos banhos, por outro foram lançados os alicerces para a expansão e desenvolvimento do primitivo núcleo urbano com poucas estruturas, que desenvolveu aos poucos em torno do hospital. Aos vinte homiziados juntaram-se outros dez habitantes sem cadastro. Para além de terem como obrigação a edificação de casa e a plantação de vinha no prazo de três anos, adquiriam alguns benefícios jurídicos, nomeadamente ficavam isentos da participação em guerras, não pagavam portagens das suas mercadorias, entre outras regalias. No caso especifico dos homiziados, não seriam presos, nem acusados por casos passados salvo em ocorrências de traição.8 Os privilégios concedidos foram mais tarde confirmados em carta por D. Manuel, este exemplo foi ainda seguido por D. João III. No ano de 1501, D. Manuel vai estender os privilégios dados aos primeiros habitantes a mais trinta moradores e dez homiziados, o que de alguma forma equilibrava em termos quantitativos, a população livre e os que apresentavam cadastro. Garantir o equilíbrio e a integração entre estas duas categorias distintas era essencial, e os monarcas não foram indiferentes a esta questão. De acordo com Saúl Gomes, e apesar da integração não ter sido linear em todos os casos, “não era de estranhar a confiança do 8 Saul António Gomes, ob. cit.,1994, 24-25.

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poder real na remissão dos homiziados, pois que ao atribuir-lhes bons privilégios de foro socio-económico os elevava a um estatuto de elite popular, aproveitando as suas capacidades profissionais e conseguindo a sua integração no corpo social globalizante”. Frei Jorge de S. Paulo esclareceu o recurso da rainha a estes “homiziados facinorosos”, justificando a necessidade da mesma, de encontrar quem viesse “ povoar o lugar em que fundou o hospital, que de outro modo não havia quem quisesse morar naquela terra”. E acrescenta “quiçá fosse esta concessão meio de os facinorosos á vista do perdão pera se conservar uma obra de tanta piedade emendassem suas vidas”. Paralelamente às preocupações em estabelecer os primeiros residentes caldenses, a documentação comprova as preocupações da soberana em garantir os apoios de Roma. Em 3 de Setembro de 1496, a rainha D. Leonor envia uma súplica ao Papa Alexandre VI, onde se refere a uns banhos destruídos e onde afirma ter edificado os banhos, e construído uma capela. Obteve uma resposta positiva, tendo sido concedidas indulgências aos que fizessem visitas à Capela de Nossa Sra. do Pópulo em determinados dias festivos, e aos que contribuíssem na conservação da mesma. Outras bulas se seguiram, entre as quais se reconheceu à rainha a faculdade de nomear o capelão e, concedeu ainda o Papa, nova indulgência para os que falecessem dentro do hospital e deixassem algo em legado nos respectivos testamentos.

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Num período, em que o lugar das Caldas demonstrou um crescimento a nível demográfico e se assistiu ao florescimento do comércio local. Os novos moradores demonstraram-se merecedores de independência, na medida em que apresentaram provas das suas capacidades de administração dos privilégios que lhes haviam sido concedidos. D. João II procurou recompensar esse feito, atribuindo às Caldas o privilégio de possuir juiz próprio das sisas9. Estavam assim conjugados todos os factores essenciais para avançar. A rainha procurou garantir sustentabilidade do hospital, comprando ao rei as jugadas, oitavos, rendas e foros das vilas de Óbidos e Aldeia Galega da Merceana10, pedido concedido por D. Manuel em carta régia de 23 de Janeiro de 1503. 9 Ibidem, ob. cit.,1994, 27. 10 João Serra, ob.cit.,1995, 85.


Em 21 de Março de 1511, D. Manuel concedeu a pedido da irmã a confirmação do título de vila às Caldas, demarcando assim o termo da nova povoação.“A situação, logo no início do século XVI, das Caldas serem na realidade um centro com malha viária e equipamentos colectivos urbanos, além do efectivo funcionamento como município autónomo, levaria o rei a reconhecer-lhe oficialmente a categoria de vila com termo anexo”.11 A fundação do Hospital de Nossa Senhora do Pópulo, impulsionada pela Rainha D. Leonor, e não descurando o apoio de D. João II e D. Manuel, originou o aparecimento de uma nova povoação: Caldas da Rainha surge na transição do século XV para o século XVI, integrada num contexto de mudança e reestruturação das instituições assistenciais medievais. Assiste-se à alteração da definição de hospital, que começa a diferenciar-se do espaço onde se acolhem os peregrinos (albergarias), onde não há separação nem diferenciação de funções, assumindo-se agora como local especializado onde se tratam os doentes. Reconhecido por alguns como “o primeiro grande hospital termal de que há memória em qualquer país ”12, o novo hospital, ao contrário de outros fundados no mesmo período, não surge da junção de pequenas e dispersas instituições de assistência medievais, mas sim por vontade expressa de uma rainha, que o vai criar de raiz. Distinguindo-se pela utilização das águas termais, com períodos específicos para a realização das curas, sendo por isso um hospital sazonal. A organização deste estabelecimento, a regulamentação que foi criteriosamente preparada, passando de século em século e chegando hoje até nós, transparece as preocupações de outros tempos. O Livro do Compromisso13 é disso exemplo, assim como muitos outros documentos, que evidenciam esta salvaguarda e consciência de futuro, de continuidade por parte da fundadora. No momento em que se comemoram os 500 anos da Vila das Caldas (1511-2011) e os 500 anos da assinatura do Livro do Compromisso (1512-2012), não podemos deixar de relembrar mais uma vez a importância e singularidade deste património, e da história contida em cada edifício, em cada espaço. 11 Augusto da Silva Carvalho, Memórias das Caldas da Rainha (1484-1884), (Lisboa 1939), 28. 12 Consulte-se o prefácio da obra Antiguidades das Caldas da Rainha e do Tempo da Rainha D. Leonor (Caldas da Rainha 1959) com revisão, prefácio e notas de Fernando da Silva Correia. 13 Tratado em outro ponto deste trabalho.

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As origens da povoação das Caldas da Rainha não deixam dúvidas quanto à relação do Hospital e vila com a sua fundadora a Rainha D. Leonor. O hospital foi no fundo a matriz através da qual se conjugaram todos os outros elementos, do crescimento e expansão da vila, hoje cidade. Uma cidade que procura talvez um pouco mais, talvez um caminho por onde possa continuar o que iniciou há mais de 500 anos. São muitas as histórias que se contam relativamente às razões, e acontecimentos que conduziram e envolveram os primeiros tempos da existência do Hospital. Se nos aventurarmos pela cidade, e interrogarmos diferentes cidadãos que integram esta matriz, eles terão muitas e divertidas histórias para nos contar, são disso exemplo: as crianças, que visitam o Museu do Hospital e que mostram um brilho no olhar quando observam a antiga piscina, e que ilustram a rainha nos seus banhos. Tal como outros cidadãos que há muito tempo relatam o milagre da Rainha, que se curou após paragem e banho nas “poças de águas quentes”, e que até se atrevem a dizer que deveríamos voltar a ter por cá a nossa Rainha. Cada história, cada relato, cada um conta a sua versão, já há muito que assim é. Podemos deixar-nos levar pelo encantamento da tradição oral, mas temos ainda mais caminhos para nos perdermos. Um mundo fascinante, que também nos conduz a outros trilhos. Os arquivos históricos onde os documentos resistiram através dos tempos e que, em cada folhear de página, nos narram uma outra história, à espera de ser descoberta. Estes mistérios, este fascínio exercido pela história, pelo passado, tem motivado diversos investigadores, a questionar e a procurar as linhas por onde se cruza a história deste hospital, da sua fundadora, da sua vila, dos que por aqui passaram e deixaram o seu contributo para a edificação de uma nova povoação.

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Independentemente do caminho escolhido, a cidade e desenvolvimento desta matriz depende de todos nós, todos fazemos parte dela e devemos activamente participar enquanto cidadãos, enquanto elementos construtores da nossa história.



A influência do Compromisso no quotidiano do hospital de Nossa Senhora do Pópulo durante o século XVI

Lisbeth Rodrigues.1 1 Bolseira de doutoramento da Fundação para a Ciência e Tecnologia no Departamento de História da Universidade do Minho [SFRH/BD/40649/2007 - Os hospitais portugueses no Renascimento: o caso de Nossa Senhora do Pópulo das Caldas da Rainha (1480-1580)]. Trabalho elaborado no âmbito do projecto Portas adentro: modos de habitar do século XVI a XVIII em Portugal, financiado pela FCT (PTDC/HAH/71309/2006). O presente texto encontra-se redigido segundo o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990.


O manuscrito do Livro do Compromisso, à guarda do Museu do Hospital e das Caldas, constitui o primeiro documento que revela as intenções da rainha fundadora quanto ao modo como deveria decorrer o quotidiano do hospital de Nossa Senhora do Pópulo. Assinado a 18 de março de 1512 por D. Manuel e pelo infante D. João, futuro rei D. João III, este documento contém ainda a aprovação por D. Martinho da Costa, arcebispo de Lisboa, a 5 de maio de 1512. Entre a assinatura do rei e seu herdeiro e a do arcebispo, D. Leonor, a 27 de abril, usando um direito que o Compromisso previa, designava provedor do hospital Jerónimo Aires, seu pregador e capelão.1 É consensual entre os autores que o Compromisso estaria em vigor antes da sua assinatura. Uma carta escrita por D. Leonor a 23 de novembro de 1507 mostra que, pelo menos desde então, a rainha se debruçava sobre o assunto, pedindo aconselhamento e correção do texto inicial a D. Jorge da Costa, que ao tempo estava em Roma.2 O hiato entre a carta de 1507 e a assinatura do Compromisso (1512) dá-nos a ideia de que se tratou de um trabalho moroso, que exigiu cuidados e a melhor atenção por parte da rainha. Nessa carta de 1507 dirigida a Diogo Dias, bacharel e capelão da rainha, D. Leonor pedia que o cardeal analisasse “de verbo a verbo o tralado de Compromiso que temos feito pera o esprital da nossa villa das Caldas, o quall per suas mãaos foy 1 Arquivo Histórico do Hospital Termal das Caldas da Rainha (doravante AHHTCR), Livro do Primeiro do Registo Geral (1522-1634), pasta 11, Inv. 255, fls. 3-3v: “(...) damo-lo da reitoria (...) com aqueles poderes e faculdades que ele com direito deve ter e lhe são ordenados no nosso Compromisso que ora mandamos dar ao dito hospital confirmando pelo Santo Padre e pelo senhor rei meu irmão e príncipe seu filho (...)”. 2 Arquivo Distrital de Leiria (doravante ADLRA), Fundo do Real Hospital das Caldas, Pergaminhos - Apontamentos da rainha D. Leonor, Dep.VI-Gav.3-Doc.26.

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começado...”3. Um ano volvido, a 3 de junho de 1508, o papa Júlio II confirmava o mesmo documento, decretando pragas e excomunhões a todos aqueles que fossem contra o seu conteúdo4. No mesmo sentido, um documento na Torre do Tombo, no fundo da Mesa da Consciência e Ordens, refere o “traslado do regimento de 1508”, indiciando, portanto, a sua existência antes de 15125. No geral, o Livro do Compromisso constitui o primeiro documento que decreta as normas pelas quais os diferentes servidores do hospital se deviam reger, configurando a lei-base da instituição. Com as devidas variações de pormenor, o Compromisso do hospital de Nossa Senhora do Pópulo é semelhante aos restantes regimentos e livros de estatutos dos demais hospitais do Renascimento português e europeu. Cotejando a compilação dos estatutos normativos dos dois maiores hospitais portugueses dos inícios do século XVI, ressalta desde logo a diferença terminológica na designação do conjunto das normas reguladoras destas Casas. No caso do hospital Real de Todos os Santos, em Lisboa, a compilação normativa adquire o nome de Regimento (1504); no que respeita ao hospital das Caldas, o mesmo documento é designado por Compromisso. Isabel dos Guimarães Sá observou esta diferença, referindo que os compromissos obrigavam um juramento, situação que não acontecia com os regimentos6. A leitura atenta do Compromisso do hospital das Caldas demonstra o uso simultâneo dos dois termos “compromisso e regimento”. Temos em crer que esta situação é justificada pelo facto de alguns ofícios do hospital não requererem juramento. O Livro Primeiro do Registo Geral atesta esta situação: ofícios como o de físico, cirurgião, almoxarife, escrivão ou vigário reclamavam a solenidade de um juramento prévio por parte desses servidores, atestando assim a sua aquiescência relativamente aos seus direitos e, sobretudo, aos seus deveres: “faça juramento aos santos evangelhos

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3 Idem, ibidem. 4 Idem, Pergaminhos - Bula do Papa Júlio II, Dep.VI-Gav.3-Doc.27. 5 Arquivo Nacional/Torre do Tombo, Mesa da Consciência e Ordens, Hospitais, Hospital das Caldas da Rainha, “Compromisso da senhora rainha D. Leonor do Hospital das Caldas”, Maço 2, n.º 65. 6 Vd. as entradas “Compromisso” e “Regimento” do glossário “Portas Adentro” consultado a 201202-17 em http://www.portasadentro.ics.uminho.pt/.


que bem e verdadeiramente sirva este ofício/cargo...”7. Por outro lado, ofícios como o de amassadeira, cristaleira ou outros, pelo caráter mais braçal das suas tarefas, não exigiam essa formalidade. Não obstante, as regras inclusas no Compromisso eram transversais a toda a comunidade hospitalar durante os seis meses de cura (entre abril e setembro). A heteronomia, isto é, a posição de sujeição passiva face a uma lei que governa toda a instituição, é a caraterística que mais ressalta da leitura do Compromisso. À luz do postulado teórico de Erving Goffman, os hospitais deste período, nomeadamente o das Caldas, podem ser considerados “instituições totais”.8 Isto é, o hospital das Caldas apresenta algumas das caraterísticas ventiladas pelo autor para definir as comunidades segregadas que implicavam quer processos de “ressocialização”, quer ainda “processos de ajustamento” a todos aqueles que as habitavam. Como procuraremos demonstrar, durante o século XVI o quotidiano do hospital de Nossa Senhora do Pópulo desenvolveu-se em espaços comuns e estava sujeito a regras de autoridade bem definidas pelo Compromisso. As atividades levadas a cabo diariamente quer pelos servidores, quer pelos enfermos faziam-se em bloco, estando todas elas orientadas para a prática das catorze obras de misericórdia, de resto invocadas no introito do Compromisso. No que respeita ao quotidiano hospitalar, o Compromisso constitui o documento mais antigo que nos informa sobre as práticas diárias, seja ao nível das operações médicas, contabilísticas e organizativas, seja ao nível das tarefas domésticas. O documento remete-nos para um espaço específico e delimitado (o hospital), pautado por códigos hierárquicos, nos quais se inseria cada uma das personagens históricas (servidores ou enfermos). O Compromisso denota que dentro de um hospital quinhentista, como era o caso do de Nossa Senhora do Pópulo, os comportamentos sociais decorriam de um conjunto de valores que se encontravam imbricados na organização hierárquica de indivíduos, espaços e funções9. Esta premissa assenta na teoria estruturalista segundo 7 AHHTCR, Livro do Primeiro do Registo Geral (1522-1634), pasta 11, Inv. 255. 8 Erving Goffman, “The Mortified Self. From ‘The Characteristics of Total Institutions’,” in The Goffman Reader, eds. Charles C. Lemert, Ann Branaman (Oxford: Blackwell, 1997), 55-62. 9 Cf. Anthony Giddens, The Constitution of Society: Outline of the Theory of Structuration (Berkeley: University of California Press, 1984), 162-168.

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a qual os indivíduos, inseridos num determinado espaço, criam códigos morais e sociais, reforçados e traduzidos pelo mundo material que os rodeia. Assim se deve entender, desde já, o hospital de Nossa Senhora do Pópulo: uma instituição onde indivíduos e objetos interagiam segundo códigos sociais e morais específicos. Com base nestes pressupostos teóricos, o presente texto propõe compreender de que forma o Compromisso (1512) influenciou o quotidiano do hospital. Para o efeito, remeteremos a nossa atenção para questões relacionadas com o género, espaço e cultura material, procurando analisar o modo como estes aspetos orientaram a vida dentro de portas. Para tal socorrer-nos-emos de fontes manuscritas como o Compromisso, mas também de livros de contas, notariais, testamentos, alvarás, visitações régias e, ainda, a crónica do hospital escrita em meados do século XVII pelo padre provedor Jorge de São Paulo. No geral, a reconstituição dos quotidianos deste tipo de instituições ajuda a perceber as práticas sociais reproduzidas nos interiores destas Casas. A estas matrizes importa acrescentar as práticas rituais protagonizadas diariamente. Longe de se assumirem como simples e sistemáticas reproduções de comportamentos e discursos, os rituais informam-nos não só das precedências e hierarquias dentro dos espaços, como também permitem deslindar as relações, importância e influências dos objetos e indivíduos na construção e organização do espaço social10. Desta forma, considerando o hospital de Nossa Senhora do Pópulo como um espaço social por excelência, o presente texto visa descortinar algumas das relações sociais e materiais dentro do hospital durante a centúria de quinhentos partindo das disposições normativas do Compromisso.

Os espaços hospitalares no Compromisso 36

O Compromisso revela alguns dos espaços do hospital de Nossa Senhora do Pópulo remetendo o leitor para a sua materialidade e, sobretudo, sublinhando a distinção 10 Edward Muir, Ritual in Early Modern Europe, 2.ª edição (Cambridge: Cambridge University Press, 2005), 2.


social concretizada através da diferenciação espacial. Em On the Art of Building in Ten Books Leon Battista Alberti, ao referir-se aos edifícios privados, afirmava que os hospitais, e instituições da mesma índole, deveriam seguir o protótipo das casas privadas, onde a separação de espaços de acordo com o género deveria ser da máxima importância11. Nesta linha, dentro de um hospital renascentista as mulheres (servidoras ou pacientes) deveriam habitar os espaços mais privados do edifício, isto é, recatadas dos olhares e afazeres públicos, em regra, conotados com os homens, os quais, por sua vez, poderiam circular por todo o hospital, com a exceção evidente das enfermarias femininas. À luz do Compromisso era estritamente proibido que os homens habitassem e, particularmente, dormissem na enfermaria das mulheres e vice-versa, situação acautelada pelos hospitaleiros que deveriam prevenir este tipo de ocorrências. A punição para aqueles que incorriam em tal delito era clara e os provedores não se eximiram de fazer cumprir a determinação do Compromisso que decretava a possibilidade de retirar o ofício a quem o fizesse.12 Em geral, os espaços que compunham o complexo hospitalar eram diferenciados segundo critérios de género, estatuto social e funcionalidade. O Compromisso permite-nos distinguir os espaços de cura propriamente dita (enfermarias e, no caso particular do hospital das Caldas, os tanques para os banhos), os de culto (a igreja e as enfermarias, estas últimas ao mesmo tempo espaços religiosos e cívicos), os administrativos (casa dos contos) e, por fim, os espaços ligados a funções domésticas, como era o caso da cozinha, casa da copa, refeitório, despensa, celeiro, casa da amassadeira, etc.. As tarefas desempenhadas em cada um destes espaços eram diferenciadas com base no género, isto é, a divisão laboral estava em perfeita consonância com a separação física - quase antagónica - de homens e mulheres dentro do mesmo edifício. O tema da separação de sexos é preocupação sublinhada no Compromisso que afirmava que nenhum homem, à exceção do provedor aquando das visitas diárias, deveria entrar na enfermaria das mulheres (religiosas ou leigas). Esta era uma preocupação 11 Leon B. Alberti, On The Art of Building in Ten Books (Cambridge: Mass., The MIT Press, 1999), 130. 12 Portugaliae Monumenta Misericordiarum (doravante PMM), org. Isabel dos Guimarães Sá, José Pedro Paiva, vol. III (Lisboa: CEHR-UMP, 2004), doc. 29 - Compromisso do Hospital das Caldas da Rainha, 146 (doravante Compromisso), 140.

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constante, reforçada pelas visitações dos deputados da Mesa e Consciência e Ordens, que em alguns casos referiram: “nos tempos passados houve no cumprimento disto alguns descuidos e porque convém que o Compromisso se guarde nisto inviolavelmente mando que daqui em diante nenhum oficial entre nas ditas enfermarias das mulheres excepto quando se fizer a visita”.13 Através do mapeamento dos espaços internos, torna-se evidente que homens e mulheres estavam separados dentro do complexo hospitalar, quase sempre em alas opostas. Por via de regra, as enfermarias femininas localizavam-se na ala esquerda do edifício e, por conseguinte, a dos homens na secção mais à direita. A razão para os dormitórios ou enfermarias femininas se situarem na ala esquerda, isto é, do lado norte e, por sua vez, os homens, do lado esquerdo (sul), prende-se, segundo alguns autores, com significados religiosos. Entre outros, Roberta Gilchrist e Corine Schleif estudaram a polaridade direita/esquerda associada a mulher/homem na disposição topográfica dos claustros conventuais e da representação, na pintura e escultura, das figuras femininas/ masculinas quer do lado direito, quer do lado esquerdo de Cristo.14 Em regra, as cabeceiras das capelas-mores medievais, paroquiais ou monásticas, orientavam-se para este/nascente. À semelhança do que acontecia com os planos arquitetónicos das casas monásticas, também os hospitais seguiam a mesma regra de orientar para nascente a cabeceira da igreja, dispondo, por conseguinte, as enfermarias/dormitórios (e, quando era o caso, os claustros) nos braços disponíveis do templo. Segundo Roberta Gilchrist e Corine Schleif, a posição das mulheres a norte e dos homens a sul prendia-se com as metáforas em torno do corpo de Cristo, onde Maria era 38

13 ADLRA, Fundo do Real Hospital das Caldas, Foro Jurídico e Visitações, Visitações (1572-1709), Dep. VI-2-C-6, fl. 18 (negrito nosso). 14 Roberta Gilchrist, Gender and Material Culture. The Archaeology of Religious Women (Londres: Routledge, 1993); Corine Schleif, “Men on the Right – Women on the Left: (A)symetrical Spaces and Gendered Places,” in Women’s Space. Patronage, Place, and Gender in the Medieval Church, eds. Virginia C. Raguin, Sarah Stanbury (Albany: State University of New York Press, 2005), 207-250.


representada do lado esquerdo e São João Evangelista do lado oposto. A isto Gilchrist observa e acrescenta razões conotadas com a natureza humoral do género, afirmando que o lado esquerdo das igrejas por ser “mais frio, mais escuro e mais húmido” era, talvez por isso, “mais adequado ao humor fleumático das mulheres, que procuravam uma ação mais penitencial”15. Por outro lado, Schleif, ao analisar esta bipolaridade na pintura e escultura, refere que no momento da Crucifixão Cristo estava ladeado por dois ladrões: um, por arrependido, conotado com o Bem (Dimas) estava à direita; o outro (Getas) simbolizando o mal, à esquerda16. Esta bipolaridade entre bem/mal, sul/norte e esquerda/direita filiava-se também no Evangelho de São Mateus, segundo o qual à direita de Cristo se sentavam as ovelhas e à sua esquerda as cabras.17 No hospital das Caldas as enfermarias e banho das mulheres (aleijadas, convalescentes ou febris; religiosas ou leigas) situavam-se do lado norte, isto é, do lado esquerdo do edifício; por sua vez, os aposentos masculinos estavam orientados a sul (lado direito), confrontados com a Rua Nova que ia desde a praça defronte ao hospital até ao Rossio das Vacas. Acresce a isto que do ponto de vista urbanístico a vila das Caldas cresceu a partir do hospital em direção ao Rossio das Vacas, onde, em vida de D. Leonor e do provedor Jerónimo Aires, se edificou a rua Nova. As enfermarias das mulheres situavam-se no extremo oposto, confrontadas com as casas do provedor, boticário e médico, todos eles figuras masculinas de autoridade. Note-se também que, urbanisticamente e nos alvores do século XVI, o lado norte da vila estava em fase de construção, possuindo ainda poucas casas e sem grande atividade comercial; portanto, lugar menos movimentado, coincidente com a clausura e recato impostos e exigidos às enfermas. Depreende-se então que um hospital do século XVI era um edifício bastante complexo, quer na sua estrutura física quer nos princípios hierárquicos que regiam a ocupação dos seus espaços. Se é evidente que os doentes eram acomodados em espaços distintos (mulheres a norte, homens a sul), o mesmo acontecia com a separação das tarefas domésticas e administrativas, em que os servidores do hospital desempenhavam as 15 Roberta Gilchrist, “Unsexing the Body: The Interior sexuality of Medieval Religious Women,” in Archaeologies of Sexualities, eds. Robert A. Schmidt, Barbara L. Voss (Londres: Routledge, 2000), 101. 16 Corine Schleif, ob. cit., 2005, 207-250. 17 Evangelho de São Mateus, 25, 31-36.

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suas funções em espaços separados. Espaços como a cozinha e a casa da amassadeira, lugares eminentemente femininos, situavam-se na ala norte (feminina) do hospital para cumprir as regras de decoro impostas a servidoras e enfermas. Se quisermos, o hospital possuía uma linha invisível que separava de forma disciplinadora a ala feminina e masculina, quer do ponto de vista das enfermarias, quer das tarefas domésticas. Ainda que um hospital se afigurasse na sua generalidade como um espaço institucionalmente fechado, partilhando das regras e caraterísticas particulares das casas monástico-conventuais, no qual o quotidiano não era visível à comunidade em geral, a verdade é que dentro dos hospitais do Renascimento as normas de confinamento variavam consoante o género.18 A razão para a clausura e circunscrição espacial das mulheres era devedora da conceção vigente de que as mulheres deveriam estar resguardadas dos olhares masculinos. Se por um lado aos homens era negado o acesso aos espaços onde as mulheres habitavam, também estas últimas não podiam entrar nos espaços masculinos, quer se tratassem de enfermarias ou espaços administrativos ligados às figuras masculinas de autoridade do provedor, almoxarife e escrivão.

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Dentro do hospital, homens e mulheres eram acomodados em espaços distintos e os seus percursos no interior raramente se cruzavam. Esta segregação era reforçada por barreiras físicas constituídas por paredes, grades e portas, que se multiplicavam à medida que se entrava na ala feminina. À segregação por género, patente em todos os espaços do hospital, acrescia a diferenciação de espaços consoante critérios como o estatuto social e a enfermidade, uma vez que os religiosos eram acomodados em câmaras diferentes das dos leigos, tal como os doentes de febres eram separados dos convalescentes ou entrevados. Assim, homens e mulheres não deveriam nunca misturar-se e a distribuição das cem camas previstas pelo Compromisso fazia-se de acordo com estes critérios. Apesar de não estar registada no Livro do Compromisso a separação dos doentes de acordo com a enfermidade esta parece ter sido corrente, uma vez que os aleijados ficavam na enfermaria térrea, enquanto os outros enfermos eram alojados no piso superior. Para além destas duas enfermarias, havia também um espaço reservado ao 18 Eunice Howe, “The Architecture of Institutionalism: Women’s Space in Renaissance Hospitals,” in Architecture and the Politics of Gender in Early Modern Europe, ed. Helen Hills (Burlington: Ashgate, 2003), 68.


período de convalescença onde os doentes repousavam durante pelo menos quatro dias até estarem recuperados de forma a empreender a viagem de regresso a casa. É através de documentos como livros de contas, notariais e testamentos que conseguimos localizar os espaços de cura dentro do edifício hospitalar. Para as pessoas nobres havia camarotes à parte; estes destinavam-se ao repouso de pessoas “honradas” que depois de tomarem os seus banhos aí se recolhiam para fazer os suadouros. Estes espaços mais recatados, acessíveis a um número muito reduzido de doentes, eram um importante elemento de distinção social. Assim, ao contrário do que acontecia com os/as leigos/as que partilhavam a enfermaria com outros indivíduos, os enfermos de condição social elevada eram acomodados em espaços onde o grau de privacidade e a qualidade das instalações melhorava. Para além disto, havia uma enfermaria distinta para religiosos e outra para religiosas que, pela sua condição, ficariam afastados dos outros doentes. Ainda no piso superior ficavam os doentes de febres, que aí se alojavam para não receberem o calor emanado das águas termais. Em resumo, o hospital deveria possuir, pelo menos até à morte de D. Leonor (1525), as seguintes enfermarias: no piso superior e do lado sul do hospital havia uma enfermaria para religiosos com 21 leitos, dispostos ao correr em cada um dos lados transversais do dormitório. Esta enfermaria estava sob a alçada de um enfermeiro que ocupava uma das camas. Ainda do lado sul, mas agora no piso térreo junto aos tanques dos banhos, uma enfermaria para entrevados também com 21 leitos, que ia desde a porta da casa da copa até à grade da igreja.19 Os doentes desta enfermaria assistiam diretamente dos seus leitos aos ofícios litúrgicos celebrados na igreja do hospital, uma vez que um dos topos da enfermaria dava diretamente sobre ela de forma a possibilitar o contato visual dos enfermos com o altar. Esta enfermaria estava sob a responsabilidade de dois enfermeiros que, segundo o Compromisso, deviam transportar às costas os doentes que não conseguiam ir aos banhos pelo seu próprio pé.19 Do lado norte e no piso térreo do hospital, à semelhança do que acontecia com os homens, havia uma enfermaria para mulheres entrevadas, também com acesso visual 19 AHHTCR, Tombo do Hospital de Caldas da Rainha (1587), pasta 43, Inv. 298, fl. 55v.

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à igreja do hospital e de onde as doentes podiam assistir à missa e comungar. Esta enfermaria era composta por 19 camas, possuindo ainda um compartimento denominado por “casa da limpeza”, que com toda a probabilidade dispunha de latrinas sendo os dejetos evacuados através da água corrente que saía dos tanques. Uma outra enfermaria para mulheres ocupava a ala norte do hospital, num piso imediatamente superior; era composta por 16 camas e destinava-se a mulheres não entrevadas. Segundo Jorge de São Paulo, neste andar havia ainda três camarotes para fidalgas e gente nobre que aí se agasalhava para os suadouros depois de tomados os banhos, recolhendo-se, depois disso, para as casas que alugavam fora do hospital20. Por falta de mecanismos que permitissem transportar a água para o andar de cima, as mulheres desta enfermaria serviam-se da “casa de limpeza” sita no piso inferior, para onde também desciam para comungar à grade da igreja. Por último, a enfermaria dos convalescentes. Numa primeira fase, esta enfermaria situava-se na casa da rouparia, um edifício anexo ao hospital, localizado no flanco norte21. Mais tarde, as referências a estes dormitórios passam a mencionar o piso superior da mesma rouparia, onde os doentes, depois das nove idas aos banhos, repousavam, pelo menos, quatro dias antes de o médico avalizar a sua recuperação. Ainda que a documentação não refira a enfermaria dos convalescentes como um espaço que separava homens e mulheres, tudo leva a crer que as mesmas normas seriam mantidas até os enfermos se despedirem do hospital. Os Livros de Testamentos referem as “casas altas da rouparia” quando se trata de um testamento feminino ou simplesmente “casa da rouparia” quando o testador é homem. Embora estas referências não sejam totalmente claras relativamente ao alojamento separado de homens e mulheres dentro das casas da convalescença, tudo indica que os homens ficariam no piso térreo e as mulheres no piso superior, onde o acesso estava mais condicionado. 42

Para além destas enfermarias construídas no tempo da rainha, outras foram sendo 20 Jorge de São Paulo, O hospital das Caldas da Rainha até ao ano de 1656, vol. I (Lisboa: Academia das Ciências de Lisboa, 1967), 179. 21 AHHTCR, Livro Primeiro de Registos (1522-1570), pasta 11, Inv. 255, fl. 93; Idem, Tombo do Hospital de Caldas da Rainha (1587), pasta 43, Inv. 298, fl. 55v.


acrescentadas e outras foram mudadas de sítio no interior do próprio edifício. Em consequência do aumento do número de enfermos, os provedores foram construindo novos dormitórios, consoante a disponibilidade financeira. Foi o caso da enfermaria das religiosas mandada edificar em 1528 por Jerónimo Aires (provedor do hospital entre 1512-1532).22 Para o efeito, o provedor comprou umas casas que pertenciam a Lopo Fernandes, contíguas à casa da rouparia. No entanto, por o novo lugar distar algum tanto do complexo principal, onde estavam os banhos e igreja, e por ser lugar de “pouca clausura e recolhimento”, a enfermaria das religiosas passou para o lugar onde originalmente tinha sido construída, isto é, junto ao terreiro da igreja. Nos anos de sobrelotação era frequente acomodarem-se dois enfermos por leito, como aliás era hábito na generalidade dos hospitais europeus do Renascimento. Nestes períodos, os provedores ordenavam que se armassem camas nos corredores e varandas do hospital para se receberem os doentes que não coubessem nas enfermarias. O livro de contas 1571 mostra que o hospital curou cerca de 120 enfermos por dia. Em 1572, no seguimento de uma visitação da Mesa de Consciência e Ordens, António Toscano, visitador, criticava a sobrelotação, propondo a abertura de: “duas portas para dentro do hospital no lanço das casas que corre do dito hospital para as casas do físico e boticário que nelas não moram e por ser lugar mais acomodado para ao presente nas ditas casas se aparelharem leitos e camas em que se agasalhem os enfermos que nas outras enfermarias não couberem por se evitar o dano que recebem os doentes em dormirem nas varandas do hospital quando acontece receberem muitos enfermos”.23 Em resultado da forte afluência ao hospital em poucos anos os provedores viram-se obrigados a alargar o número de enfermarias, criando para o efeito a enfermaria de São Pedro, com 21 leitos, no ano de 1585. O aumento do número de camas, a construção de novas enfermarias e os números fornecidos pelos livros de contas evidenciam 22 Alvará de D. João III, datado de 19 de Junho de 1528. Jorge de São Paulo, ob. cit., vol. I, 1967, 180. 23 ADLRA, Fundo do Real Hospital das Caldas, Foro Jurídico e Visitações, Visitações (1572-1709), Dep. VI-2-C-6, fls. 3v-4v (negrito nosso)

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a expansão do hospital, destinado a transformar-se numa referência não apenas regional mas para todo o Reino. Tudo isto faz-nos pensar na complexidade organizacional requerida a uma instituição desta índole: assistir espiritual e materialmente mais de uma centena de enfermos por dia; coordenar e supervisionar as tarefas dos servidores do hospital; garantir o aprovisionamento de bens e serviços (alimentos, roupa, camas, etc.); assegurar os cuidados médicos e de enfermagem; organizar os horários dos banhos; e zelar pela limpeza das enfermarias e dos tanques eram tarefas que obrigavam a um desmesurado esforço quotidiano, uma complexa rede de abastecimento e um esquema de organização apenas comparável com o das grandes casas senhoriais da época.

A entrada no hospital: o cerimonial de abertura e a omnipresença do Compromisso

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O Compromisso previa uma cerimónia de abertura do hospital, celebrada todos os anos no dia 1 de abril. Nesse dia, o provedor juntava todos os servidores e oficiais do hospital na igreja de Nossa Senhora do Pópulo, fazendo-os sentar cada um consoante sua ordem e hierarquia. Em seguida, o escrivão levava até ao provedor o livro do Compromisso que era lido em voz alta e pausada para “cada um saber o que em seu ofício é obrigado a fazer”.24 O próprio cerimonial da leitura do Compromisso é revelador da heteronomia verificada portas adentro. Isto é, uma vez entrados no período de cura, enfermos e servidores estavam sujeitos às disposições normativas do Compromisso, cujo cumprimento era certificado a par e passo pelo provedor. Desde as tarefas mais pequenas como, por exemplo, acarretar água, até àquelas que exigiam maior cuidado e diligência, a comunidade hospitalar estava diretamente subordinada à lei geral consignada no Compromisso e à autoridade da figura máxima do provedor. Em qualquer situação e caso necessário, este detinha o poder de admoestar a comunidade hospitalar, individualmente ou em bloco: “porque sobre o dito provedor carrega todo o bom regimento e ordenança do dito hospital em cumprir e fazer cumprir e guardar este nosso regimento”.25 24 Compromisso, 147. 25 Idem, 141.


Mas não só nesse dia se verificava este tipo de cerimoniais. De abril a setembro, o quotidiano da instituição era pautado por atos ritualizados. No dia seguinte à abertura do hospital reuniam-se os oficiais por volta das duas horas da tarde na sala da copa, onde havia uma mesa, e era então que, de acordo com o Compromisso, se selecionavam cerca de trinta homens e vinte mulheres.26 Depois de examinados pelo médico e pelo provedor, este ordenava que fossem todos assistidos pelo físico da alma, confessando e comungando conforme o Compromisso, antes de dar início a todo e qualquer tratamento do corpo27. Aqueles que recusassem tomar os sacramentos não deviam ser admitidos. Seguidamente, o escrivão anotava os nomes e restantes informações sobre os enfermos matriculados; estes despiam as suas roupas que eram logo inventariadas num canhenho; depois entregues ao enfermeiro que tinha o cuidado de as lavar e guardar até ao dia da sua saída; se porventura o enfermo trouxesse algum dinheiro entregava-o ao hospitaleiro que o guardava numa arca que estava na rouparia, cujas chaves permaneciam na sua posse e na do escrivão28. No dia seguinte, pelas mesmas horas, o provedor analisava os papéis redigidos pelo escrivão, conferindo os doentes que tinham recebido os sacramentos da confissão e comunhão. Nessa mesma noite, à “ceia”, o provedor ordenava que se desse uma pada de pão, vinho e carne.29 Pese embora o Compromisso não refira os critérios de admissão dos doentes, esse processo encontra-se bem documentado numa visitação da Mesa de Consciência e Ordens, datada de 1643: “achou o dito visitador que correndo no tempo da cura muita gente ao dito hospital se aceitam primeiro os que tem maior valias e ficam esperando os mais necessitados padecendo muitas misérias e obviando a estes inconvenientes mando que acabada a visita pela manhã se ajunte o provedor almoxarife, médico e escri26 Idem, 147. 27 Idem, 148. 28 Idem, 135. Canhenho: caderno de lembranças; livro de notas. 29 Esta tradição foi alterada com a administração loia (1532), cujos provedores passaram a dar uma pada de pão e um ovo ou um cacho de uvas passas a cada doente. Pada: pão pequeno; duas bolas de pão unidas entre si e cozidas.

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vão à entrada do hospital onde examinarão todos os enfermos que vêm e ao tal forem chegando e aos que acharem com doenças incuráveis e contagiosas que o estatuto defende despedirão logo dando-lhes cavalgadura e alguma esmola (...) e aos que forem doentes das doenças que nele se curam assentarão em livro por ordem dos mais doentes primeiro e os daquele dia presidam aos que depois vierem salvo de depois deles vier algum tão enfermo que notoriamente corra sua vida perigo na tardança porquanto em tal caso será este admitido a qualquer hora que chegar e não havendo leito vago se lhe fará cama nos corredores (...)”.30 O Compromisso refere apenas que doentes incuráveis ou com doenças contagiosas não deviam de ser admitidos, aspeto, de resto, partilhado com a grande maioria dos hospitais deste período. Ao serem admitidos no hospital era atribuído um número a cada enfermo, que servia para identificar e controlar a administração das mezinhas e o número de banhos. Os leitos estavam quase sempre numerados, o que facilitava não só reconhecimento do enfermo, como também agilizava o tratamento de cada indivíduo de acordo com as instruções médicas, aquando das duas visitas diárias às enfermarias.

A precedência da alma face ao corpo

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Como vimos, todos deviam confessar e comungar uma vez admitidos, pois antes de curar o corpo era necessário tratar da alma. Sobre esta precedência da religiosidade face ao corpóreo o Compromisso é taxativo, sendo recorrentes as alusões à primazia da alma. Observando atentamente o documento, as referências à alma, às sete obras de misericórdia espirituais e ao espírito precedem sempre as do corpo e as obras de 30 ADLRA, Fundo do Real Hospital das Caldas, Foro Jurídico e Visitações, Visitações (1572-1709), Dep. VI-2-C-6, fl. 16v (negrito nosso).


misericórdia corporais. O próprio rol das obrigações e direitos dos servidores segue a mesma ordem: em primeiro lugar o Compromisso refere os oficiais da igreja, seguindo uma hierarquia (vigário, capelães e tesoureiro); apenas depois destes surge o provedor e restantes servidores (almoxarife, físico, sangrador, boticário, amassadeira, cozinheira e escravos). Embora o provedor se assumisse como a figura máxima de autoridade dentro do hospital, a verdade é que, no Compromisso, surge depois dos homens da igreja. Com efeito, esta organização interna das várias secções dos estatutos não era fortuita. No que se refere aos espaços dentro do hospital, as enfermarias assumiam-se como espaços simultaneamente cívicos e religiosos. O culto religioso e a devoção faziam parte do quotidiano destas instituições, onde a assistência à missa era uma obrigação para todos. Rezavam-se pelo menos três missas diárias, instituídas pela rainha D. Leonor no Compromisso: uma por sua alma, a segunda pela de D. João II, seu marido, e outra por D. Afonso, seu filho. Para além disso, o Compromisso referia que o vigário da igreja estava obrigado a rezar cada ano, pelo menos, 255 missas e cada um dos três capelães 208 missas anuais, o que nos dá uma ideia da importância das celebrações litúrgicas no quotidiano hospitalar31. Estas missas eram anotadas numa tábua que estava no coro da igreja, servindo de guia para o vigário e capelães. Se, porventura, um destes indivíduos não cumprisse as suas obrigações descontava-se nos seus salários (10 reais ao vigário e 6 reais aos capelães por cada missa). Há no entanto que acrescentar a estas as missas de aniversários ou outras que advinham do cumprimento das disposições testamentárias dos enfermos ou dos fiéis.32 Dentro de um hospital medieval de planta cruciforme cumprir o requisito de assistir aos Ofícios Divinos era relativamente fácil, já que na maioria dos casos um dos lados da enfermaria, geralmente retangular, se abria para a igreja, separado através de uma

31 Compromisso, 138-139. 32 Os aniversários eram missas de sufrágio celebradas em dias precisos. Este tipo de obrigações religiosas era o resultado da doação testamentária de rendimentos por parte de enfermos ou fiéis que desejavam “ganhar as indulgências” concedidas pelo papa Alexandre VI, em 1497, a todos aqueles que contribuíssem de alguma forma para o hospital (ADLRA, Fundo do Real Hospital das Caldas, Pergaminhos – Bula de indulgências, Dep.VI-Gav.1-Doc.4).

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grade.33 No caso da igreja de Nossa Senhora do Pópulo, o gradeamento ainda hoje existe, embora tapado. Como a igreja servia fregueses e enfermos igualmente havia a necessidade de resguardar os doentes daqueles que a visitavam. Para isso, junto às grades que separavam as enfermarias do templo existia uma cortina que era fechada sempre que necessário, protegendo a comunidade hospitalar dos olhares públicos. Contudo, quando a arquitetura dos edifícios não possibilitava esta solução, as enfermarias eram dotadas de altares próprios numa das suas paredes, como acontecia na enfermaria dos religiosos do hospital das Caldas. Nesta, os leitos estavam dispostos nos flancos norte e sul; e os dois topos este e oeste eram respetivamente ocupados com um “oratório com todo o paramento e guizamento pera todos os dias celebrarem o Santo Sacrifício da Missa” e, do outro lado, com uma janela “de grades de ferro que cahe sobre o chafariz e praça da villa”34. A visitação régia de 1572 determinava que quando os enfermos das duas enfermarias mais afastadas dos banhos tivessem de ouvir missa cabia ao vigário determinar “o lugar que nas ditas enfermarias for mais decente para nele se dizer missa aos enfermos”.35 Mas não só a estrutura física dos hospitais medievais e modernos reservava espaços para o culto religioso, como também os internados deviam contemplar imagens e objetos de culto, na esperança de aliviar os seus males e de alcançar a salvação da alma. É bem provável que estes edifícios estivessem enriquecidos com imagens ilustrativas da vida de Cristo e/ou com relatos iconográficos dos milagres por Ele concretizados. As imagens, por excluírem uma interpretação textual, aproximavam os enfermos da crença no Christus Medicus. A ideia do Christus Medicus, isto é, Cristo físico/médico, resultava da conceção agostiniana, na qual apenas Deus poderia curar. À época acreditava-se que a doença advinha dos pecados cometidos, sendo esta a materialização física e visível do castigo de Deus. Para alcançar a cura o enfermo deveria iniciar por purgar os seus pecados através da missa, da confissão e da comunhão. Compreende-se, assim, 48

33 Veja-se o sub-capítulo “Open Wards: Form and Function” de John Henderson, The Renaissance Hospital: Healing the Body and Healing the Soul (New Haven: Yale University Press, 2006), 155-157. 34 Jorge de São Paulo, ob. cit., vol. I, 1967, 176. 35 ADLRA, Fundo do Real Hospital das Caldas, Foro Jurídico e Visitações, Visitações (1572-1709), Dep. VI-2-C-6, fl. 9.


que a assistência à missa ou a outros sacramentos se apresentasse, à época, como um remédio para ambas as enfermidades – da alma e do corpo. Para além destas, a presença de outros objetos, como relíquias ou imagens de santos, era tida por si só como terapêutica das enfermidades do corpo.36 Ao contrário do que se verifica na maior parte dos hospitais do Renascimento europeu, o hospital das Caldas não possuía relíquias. No que toca a imagens e objetos religiosos, os livros de contas apenas nos indicam a compra de crucifixos e de retábulos, sem referir as matérias-primas ou os temas figurativos respetivos.37 O vigário e os capelães eram os primeiros e os últimos servidores a visitar os doentes, o que por si só indicia o ambiente sagrado que se deveria viver no interior das enfermarias. Vigário e capelães confessavam os doentes depois de estes serem admitidos pelo provedor; estavam também presentes juntamente com este na hora em que os doentes eram “despedidos”. Em situações críticas, quando um enfermo estava em artigo de morte eram também os capelães e o vigário os primeiros servidores a endereçar palavras de “esforço” e, caso necessário, consagravam os últimos sacramentos e a extrema-unção38. Durante este ritual os doentes da enfermaria que soubessem rezar diziam com o vigário sete salmos com suas ladainhas e outras orações, enquanto aqueles que não o soubessem fazer rezavam simplesmente um Pater Noster e uma Ave Maria. Depois era lançada água benta sobre o enfermo e seu leito. Enquanto isto se passava na enfermaria, na casa dos contos o escrivão registava os pertences do enfermo e, caso o quisesse, era-lhe escrito o seu testamento. Podendo ou não recuperar da fraqueza do corpo, o indivíduo que falecia no hospital era amortalhado num lençol pelos enfermeiros e levado num esquife para a casa da copa onde o seu corpo era encomendado pelo vigário e capelães.39 O Compromisso determinava que fosse enterrado “com toda a solenidade”: cantava-se uma missa, a ladainha e um noturno de finados e fazia-se 36 Carole Rawcliffe, Medicine for the Soul. The Life, Death and Resurrection of an English Medieval Hospital. St. Giles’s, Norwich, c. 1249-1550 (Gloucestershire: Allan Sutton, 1999), 103. 37 ADLRA, Fundo do Real Hospital das Caldas, Livro de Receitas e Despesas (1565-1566), Dep. VI-3-C-8, fl. 146. 38 Compromisso, 151. 39 ADLRA, Fundo do Real…, Livro de Receitas e Despesas (1523-1524), Dep. IV-3-B-2, fl. 107v.

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uma oferta de um alqueire de pão cozido (24 pães) e de seis canadas de vinho40. Por cima deste esquife colocava-se um pano preto de chamalote, ornado com uma cruz em pano de veludo azul e rodeada por um torçal de retrós. Este “pano da tumba dos finados” era forrado a bocaxim e franjado a preto e branco.41 Na casa da copa o defunto era assistido por seis pobres não aleijados vestidos com seus roupões, cada um com sua tocha acesa que lhes era dada pelo almoxarife. Depois de velado e encomendado o corpo o tesoureiro ia em procissão ostentando uma cruz entre duas das seis velas levadas pelos pobres. Os religiosos que se curavam no hospital desciam da sua enfermaria para acompanhar a procissão até à igreja. À frente do cortejo ia o tesoureiro com a cruz, ladeado por dois pobres com outras tochas acesas, seguidos pelos capelães e vigário com sua estola. Os cinco enfermeiros e mais um pobre levavam o esquife com o corpo morto; atrás seguia o padre provedor com a bengala, o almoxarife e os oficiais do hospital. Na igreja diziam-se as ladainhas com os seus responsos cantados e, quando era o caso, fazia-se o enterramento na igreja do hospital.42 Para além disso, a compra de um Flos Sanctorum em 1536-1537, “para por ele lerem os enfermos nas enfermarias por o outro que havia ser já todo roto”, é elucidativa da ambiência religiosa. A compra de outros dois livros no ano subsequente (designados respetivamente por Esplendião e Floriscendo) sugerem no entanto a leitura de livros de aventuras de cavalaria aos doentes, com o intuito de colmatar horas vagas, e evitar passatempos reprováveis como o do jogo.43 Esta prática parece ter sido recorrente, pelo 40 Idem, ibidem. Ladainha: preces com invocação a Deus, aos Santos e/ou à Virgem. Noturno: uma das três partes das Matinas (estas constituíam a primeira parte do Ofício Divino) que apenas se cantava à noite. Alqueire: medida de grãos ou cereais; corresponde, atual e sensivelmente, a 13 litros e à sexagésima parte de um moio. Canada: antiga medida que correspondia à soma de quatro quartilhos, isto é, à décima segunda parte do almude; atualmente corresponde a dois litros. 50

41 Idem, fls. 152v-153. Chamalote: tecido de lã com seda. Torçal: cordão feito com retrós. Retrós: fio de seda torcido. Bocaxim: tecido de algodão (semelhante ao fustão) usado para forrar tapeçarias ou cortinados. 42 Jorge de São Paulo, ob. cit., vol. II, 1968, 218-221. 43 ADLRA, Fundo do Real Hospital das Caldas, Livro de Receitas e Despesas (1536-1537), Dep. VI-3-B-5, fl. 147. Flos Sanctorum: a coletânea de vidas de santos mais popular desde a Idade Média. Esplendião e Floriscendo eram possivelmente romances de cavalaria.


menos a julgar por uma visitação Mesa de Consciência e Ordens em 1634, que refere o costume de os enfermos jogarem nas enfermarias (em teoria proibida)44. Também no que se refere às mulheres, em 1572, uma visitação régia proibiu que lhes fosse dado linho para fiar ou roupas para coser.45 Parece assim que aos enfermos era exigida uma vida quase monástica que, no caso das mulheres, seguia a estrita clausura dos conventos. Para além do ambiente devocional e da presença de servidores da Igreja (vigário, tesoureiro e capelães) também os atos quotidianos como, por exemplo, alimentar os enfermos, estavam carregados de uma forte componente ritual e religiosa. A distribuição das rações pelos enfermeiros aos doentes era antecedida não só pela bênção das mesas, tarefa semanal rotativa entre os três capelães, como também por um ritual de água às mãos respeitado quer pelos servidores, quer pelos enfermos.46 O banho e as roupas novas que o enfermo recebia ao ser admitido remetem-nos não só para questões de higiene, mas também para a simbologia da lavagem e da roupa branca.47 John Henderson refere que este ritual significava a entrada do enfermo numa etapa nova.48 A água, símbolo de purificação, seria entendida nesse contexto e as roupas novas e brancas reforçavam o simbolismo da purificação e da limpeza. A historiografia europeia, da qual se destacam, entre outros, os trabalhos de Peregrine Horden e de John Henderson, frisam a importância dos agentes não-médicos no processo de cura dentro dos hospitais deste período49. Portas adentro de uma enfermaria os cuidados prestados não distinguiam entre cura da alma e cura do corpo, eliminando 44 Idem, Foro Jurídico e Visitações, Visitações (1572-1709), Dep. VI-2-C-6, fl. 17v. 45 Idem, fl. 7v. 46 Compromisso, 150. O capelão que nessa semana benzesse as mesas dos enfermos antes e depois das refeições tinha direito a uma ração de pão, vinho e carne (geralmente de carneiro). 47 Idem, 148. 48 John Henderson, ob. cit., 2006, 164. 49 Peregrine Horden, “A Non-Natural Environment: Medicine without Doctors and the Medieval European Hospital,” in The Medieval Hospital and Medical Practice, ed. Barbara S. Bowers (Aldershot: Ashgate, 2007), 133-146; John Henderson, ob. cit., 2006.

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qualquer diferenciação entre saúde e salvação. Em última instância, a separação entre estes dois aspetos apresenta-se anacrónica, na medida em que se tratava de uma época em que a religião comandava os principais atos da vida quotidiana. Não pretendendo diminuir os efeitos da medicina, a verdade é que a disponibilização de condições de higiene acima da média e de uma alimentação regular e abundante constituíam os alicerces de uma rápida recuperação. O conforto espiritual oferecido no momento em que o enfermo entrava no hospital, bem como durante a sua estadia, ajudavam, em última instância, na resolução de problemas psicossomáticos.

Códigos morais no quotidiano hospitalar: ser, estar e parecer O Compromisso refere algumas das virtudes exigidas aos servidores e oficiais do hospital, homens ou mulheres. Encontramos palavras e expressões como honestidade, “boa vida”, “de honestos costumes”, “bom eclesiástico”, “letrado”, “discreto e virtuoso”, “com muita caridade”, “muita diligência e paciência”, “homem fiel e apto”, “diligente”, “homem de muita verdade e boa consciência”, etc.

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O bom funcionamento da Casa tornava necessário que todos os servidores cumprissem as suas obrigações de modo a não interferir com o esquema organizativo estipulado nos estatutos. Por essa razão se entende que o Compromisso dedique tanta atenção às obrigações dos servidores, e às tarefas que deviam desempenhar diariamente. No entanto, o ritual das duas visitas diárias às enfermarias não é aí referido, sobretudo no que respeita aos procedimentos a efetuar. A este respeito, a crónica de Jorge de São Paulo, embora dos meados do século XVII, é mais elucidativa. Ao descrever o ritual das visitas diárias que o provedor, o físico, o escrivão e o enfermeiro-mor faziam às enfermarias, o loio descreve o itinerário destes homens no interior do hospital, permitindo-nos perceber não só a hierarquia dos espaços, como também a sua diferenciação segundo critérios de género, estatuto social e tipo de doença. O ponto de partida era a casa da copa, espaço intermédio, onde se reuniam os oficiais para, em procissão, darem início à visita. Esta iniciava-se no piso superior pela enfermaria


dos religiosos, seguida da enfermaria dos frades no mesmo andar, descendo por uma escada (interna talvez) até à enfermaria dos homens entrevados. Depois de terminada a ronda na ala masculina, os oficiais dirigiam-se às enfermarias das mulheres, iniciando a visita pelas enfermarias de baixo. Este percurso (primeiro homens religiosos, depois leigos e só depois as mulheres) demonstra as regras hierárquicas no interior do hospital. A enfatizar estes preceitos, a estrutura física dos edifícios reforçava as distinções de género e, com isso, sublinhava as condutas esperadas de cada um. Os espaços destinados às mulheres, neste caso as enfermarias femininas, encontravam-se quase sempre no interior dos edifícios, sem qualquer ligação direta com o exterior. À multiplicação de grades e portas, com suas correspondentes chaves, ferrolhos, fechaduras, couceiras, armelas, cadeias, aldrabas e aldrabões, acrescentava-se o ralo e nariz da porta por onde receberiam apenas os “recados de boca” e as escassas janelas diretamente comunicantes com praça pública. Quando as havia, estavam vedadas por grades e redes de fios de arame, acompanhadas por pequenas frestas com vidraças por onde a enfermaria recebia o arejamento e iluminação necessários. Grades de ferro e redes de arame cobriam as vidraças das janelas das enfermarias das mulheres e uma grade de pau estava no corredor “que vai da enfermaria de cima [pousada das religiosas] para o coro da Igreja de onde vão ouvir missa e ver Deus”50. No entanto, em 1590 esses dispositivos de isolamento não foram considerados suficientes, uma vez que o provedor mandou “fazer a janela das freiras mais alta e apertada com bicos pera fora, ou huma rede de arame, porquanto a janela é muito baixa por onde podem falar, dar recados e tomar escritos”.51 Não deixa de ser significativo a este propósito constatar que à clausura moral se somava a clausura física, reforçada por objetos conotados com o encerramento imposto às mulheres. Exemplo particularmente expressivo é a constante referência a chaves e fechaduras, demonstrativa não só da importância de manter a salvo o património móvel do hospital, como também da delimitação dos espaços. Para além disto, as chaves das portas das enfermarias e banho das mulheres estavam na posse da enfermeira-mor 50 ADLRA, Fundo do Real Hospital das Caldas, Livro de Receitas e Despesas (1543-1544), Dep. VI-3-B-8, fl. 26. 51 Jorge de São Paulo, ob. cit., vol. II, 1968, 79.

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(a mais velha das duas enfermeiras) que as abria para as enfermas irem aos banhos e as encerrava depois de findos “para tudo andar a recado e como deve”52. O Compromisso faz várias referências a “chaves” que eram distribuídas pelo provedor, almoxarife e escrivão; estas chaves aparecem, então, como símbolo de poder, já que quem as detinha estava responsável pelo que guardavam, que incluía não só objetos, mas, no caso da enfermeira-mor, as mulheres enfermas. Admitidas no hospital e depois de alojadas na respetiva enfermaria (consoante o seu estatuto social e doença) as enfermas estavam sob a autoridade de uma enfermeira que as guardava e vigiava. Segundo o que John Henderson constatou para o hospital de Santa Maria Nuova (Florença), a idade era um aspeto importante no momento de contratar os/as enfermeiros/as, considerando que a indisciplina era inversamente proporcional à idade desses servidores53. No caso do hospital de Nossa Senhora do Pópulo, não sabemos se teriam uma idade avançada. Porém, como se depreende do conteúdo da documentação, não eram jovens, pois os livros de contas referem a caridade que lhes era feita por serem “velhas” ou “cegas”. A isto, há que acrescentar o estado matrimonial. Poucas são as vezes que encontramos mulheres solteiras a trabalhar dentro do hospital, fossem elas enfermeiras, lavadeiras, cozinheiras ou amassadeiras. No caso das mulheres servidoras a maior parte das vezes eram admitidas no ofício juntamente com o marido que serviria no hospital, na correspondente ala masculina.54 Este dado sugere que estas mulheres deveriam servir de exemplo às enfermas, através da sua honestidade, recato e obediência, caraterísticas exigidas a todas.

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Em contraposição, o Compromisso não alude a essa conduta moral exigida aos homens. É sobre as mulheres – enfermas ou servidoras – que recaem as preocupações com a conduta, com os modelos que recebem e com os comportamentos que lhes são negados. De resto, o hospital queria-se um espaço organizado, que servisse de modelo quer para os indivíduos que nele entravam, quer para a sociedade que, de fora, observava o seu desempenho. 52 Compromisso, 145. 53 John Henderson, ob. cit., 2006, 217. 54 ADLRA, Fundo do Real Hospital das Caldas, Livro de Receitas e Despesas (1518-1519), Dep. VI-3-B-1, fl. 293v.


Vestir, calçar e comer: aspeto material do quotidiano dos enfermos Empreender um itinerário pelo mundo material das enfermarias torna-se tarefa relativamente fácil graças aos livros de contas, já que estes nos elucidam sobre os padrões de consumo e, por conseguinte, sobre as necessidades do hospital. No dia em que os doentes se recolhiam nas enfermarias, depois de terem comungado e confessado junto do vigário, despiam as suas roupas e vestiam um “manto e uns pantufos nos pés” para se banharem nos tanques; depois eram secos com uma toalha grande pelo/a enfermeiro/a55. Os homens recebiam umas ceroulas, uma camisa, um bérnio (mais tarde, em 1537, substituído por um roupão azul), umas chinelas (de cor vermelha a partir de 1533) e uma carapuça; as mulheres recebiam as mesmas peças, à exceção das ceroulas e da carapuça, substituída por uma toalha de cabeça.56 As peças de roupa recebidas eram todas brancas, à exceção das chinelas, dos pantufos e dos bérnios. Tal como o banho que recebiam no dia em que entravam para o hospital, também a oferta de roupa nova possuía uma dupla conotação: por um lado vestir-se com roupas lavadas era um ato de higiene; por outro, o facto de deixarem as suas roupas de corpo para passarem a vestir outras fornecidas pela instituição significava a entrada, pelo menos temporariamente, num novo quotidiano57. Despojados das suas roupas, que logo nesse dia eram “escaldadas dos piolhos e pulgas” pela lavadeira do hospital, os enfermos entregavam os seus pertences e vestuário aos enfermeiros que depois eram inventariados e guardados numa arca que estava na casa da rouparia58; terminada a sua estadia no hospital eram-lhes restituídos. Depois de lhes ser indicado o leito, de terem tomado um banho e recebido roupas lavadas o médico receitava quatro ou cinco xaropes a cada doente. 55 Compromisso, 148. 56 Idem, 136-137. Bérnio: capa ou cobertor comprido, barato e grosseiro. 57 John Henderson, ob. cit., 2006, 164. 58 ADLRA, Fundo do Real Hospital das Caldas, Livro de Receitas e Despesas (1539-1540), Dep. VI-3-B-6, fl. 229.

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De acordo com a doença e estatuto social, aos doentes era dado um leito, no qual ficariam acomodados até abandonarem o hospital. Cada cama tinha um enxergão de palha, um almadraque de trez cheio de lã, um colchão de linho cheio de lã, um cabeçal de pena, uma almofada enfronhada, meia dúzia de lençóis de linho, um feltro para colocar por cima desta roupa e dois cobertores (um de capistrol branco ou de pano semelhante, o outro de cacheira ou Irlanda)59. No Compromisso D. Leonor ordenava que houvesse sempre “50 mantos brancos” para se cobrirem os enfermos durante a sua estadia no hospital; 200 camisas de linho (120 de homem e 80 de mulheres), carapuças de linho redondas (12) e de pernas (4), 24 beatilhas, 30 pares de meias e ceroulas que eram dadas aos homens quando iam aos banhos; 50 pares de pantufos, 12 pares de calções, 12 faixas de pano de lã branco para com elas se cingirem os enfermos, 220 toalhas de mesas dos enfermos de uma vara cada, seis toalhas de quatro varas cada para as mesas dos religiosos e homens honrados60. A esta roupa de cama acrescentamos os cobertores de papa, cobertores azuis e colchas de linho referidos nos livros de contas. Note-se que a qualidade da roupa variava de acordo com a condição social do enfermo, definindo as hierarquias materiais e sociais dentro do hospital; à medida que se subia na escala social os tecidos, a roupa e a comida tornavam-se mais finos, ricos e delicados. No geral, as enfermarias do hospital de Nossa Senhora do Pópulo eram forradas a madeira de castanho ou pinho e ladrilhadas com tijolo cozido rebatido, sendo quase anuais as despesas com o forramento das enfermarias femininas e masculinas.61 Consequência dos efeitos corrosivos dos minerais das águas e vapores termais, as paredes do hospital, os objetos de culto da igreja e os equipamentos das enfermarias cobriam-se com frequência e rapidez de verdete. Por ter sido construído sobre nascentes de águas e por as utilizar, o edifício sofria de graves problemas de humidade; daí que todos os

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59 Compromisso, 136. Almadraque: colchão grosso feito de palha ou feno. Trez: pano urdido com três fios. Cabeçal: o mesmo que travesseiro. Feltro: pano feito com pêlos de animais, pisado com vinagre. Cacheira: tecido de felpa comprido; cobertor desse tecido. Irlanda: tecido muito fino de algodão ou de linho. 60 Idem, 136-137. Beatilha: pano de linho ou de algodão fino que era usado para fazer toucas e toalhas de cabeça para mulheres. 61 ADLRA, Fundo do Real Hospital das Caldas, Livro de Receitas e Despesas (1542-1543), Dep. VI-3-B-7, fl. 232v.


anos o provedor reservasse certa quantia de dinheiro proveniente das rendas do hospital para caiar e rebocar as paredes do edifício e para lavar toda a prataria da igreja.62 Como se viu, na disposição do complexo hospitalar as enfermarias estavam orientadas de oeste para este, ficando este último flanco aberto para a igreja do hospital. Os leitos estavam dispostos longitudinalmente nas ilhargas norte e sul das enfermarias; em regra dez camas de cada lado, possibilitando a existência de um corredor no centro para a circulação do/a enfermeiro/a. Em vida da rainha D. Leonor estas camas eram de madeira, sendo por isso facilmente infestadas por percevejos.63 Mais tarde os provedores loios decidiram construir leitos embutidos nas paredes através da construção de nichos em pedra e tijolo. Em contraste, nas enfermarias dos leigos e leigas, além da roupa de cama instituída pelo Compromisso, os leitos eram dotados de cortinas de “linho da Beira”, de nove varas cada: quatro cortinas, de dois panos cada, com cinco argolas de latão.64 A presença de cortinas era importante não só para manter os enfermos quentes depois de tomarem os seus banhos, ajudando-os no processo de suadouro, como também para criar alguma privacidade dentro da enfermaria. No geral, as camas do hospital de Nossa Senhora do Pópulo assemelhavam-se aos leitos dos demais hospitais europeus da época, caraterizados pela armação de camas encortinadas embutidas nas paredes. As roupas de cama e a própria estrutura dos leitos indicam a hierarquização social dentro das enfermarias, uma vez que as matérias-primas das cortinas e a decoração dos leitos evidenciam uma mesma hierarquia dos materiais. Os próprios registos nos livros de contas fazem a distinção entre “cobertores de marca pequena de papa” ou “cobertores de marca meã” consoante a categoria social dos enfermos.65 O Compromis62 Jorge de São Paulo, ob. cit., vol. I, 1967, 169. 63 ADLRA, Fundo do Real Hospital das Caldas, Livro de Receitas e Despesas (1518-1519), Dep. VI-3-B-1, fl. 307v. 64 AHHTCR, Livro de Receitas e Despesas (1547-1548), pasta 2, Inv. 236, fls. 222v, 322v; ADLRA, Fundo do Real Hospital das Caldas, Livro de Receitas e Despesas (1539-1540), Dep. VI-3-B-6, fl. 251. Cada vara correspondia a 1,10 metros. 65 ADLRA, Fundo do Real Hospital das Caldas, Livro de Receitas e Despesas (1536-1537), Dep.

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so decretava que para as pessoas honradas e religiosos/as a roupa deveria ser “mais delgada e assim toda a outra roupa melhor”.66 O mobiliário e os objetos de enfermaria não surgem com frequência na documentação. No que se refere aos segundos, estavam associados à limpeza do corpo e aos processos e curas médicas. Ao lado de cada uma das camas havia bacios, também designados na documentação por “privados”, “urinóis” ou “camareiros”. Nos primeiros anos do hospital eram de madeira (ex. 1523-1524), mas a partir de 1563 passaram a ser de barro vidrado. Parece-nos que a mudança no que toca à matéria-prima dos urinóis se deu não só por questões de higiene, como também para facilitar o processo uroscópico levado a cabo duas vezes ao dia pelo físico durante as visitas às enfermarias: “visitando um a um enfermo, de leito em leito, por ordem, tentando e perguntando-lhe por suas enfermidades, por pulsos, águas e sinais (...) e os enfermeiros lhe mostrarão as urinas e bacios”.67 O barro vidrado permitia ao físico analisar com mais facilidade a cor, cheiro e nebulosidade da urina dos doentes. Os bacios eram lavados todos os dias à noite por uma mulher, denotando a preocupação em manter as enfermarias limpas e evitar a propagação de odores.68 O Compromisso referia ainda que os dormitórios deveriam ser varridos duas vezes ao dia (uma depois do “jantar” e outra depois da “ceia”), bem como as camas dos enfermos deveriam ser feitas quando estes se encontravam nos banhos, antes de ser distribuído o “jantar”.69 A roupa de cama devia ser inspecionada diariamente pelos hospitaleiros “para verem se se dana com alguma humidade, suores ou mau trato”.70 Os tanques dos banhos recebiam o mesmo cuidado relativamente à sua limpeza, já que eram vazados, limpos e novamente enchidos para “que haja cada dia neles água limpa e fresca”.71 VI-3-B-5, fl. 120; Idem, Livro de Receitas e Despesas (1556-1557), Dep. VI-3-C-5, fl. 193. 66 Compromisso, 136. 67 Idem, 149. 58

68 ADLRA, Fundo do Real Hospital das Caldas, Livro de Receitas e Despesas (1557-1558), Dep. VI-3-C-6, fl. não numerado (encontra-se na secção dos salários ao oficiais do hospital “Da lavadeira do hospital e privados – Maria Dias Sintroa e sua filha”). 69 Compromisso, 146. De notar que “jantar” e “ceia” correspondem aos atuais almoço e jantar. 70 Idem, 145. 71 Idem, 146.


A qualidade do ar também constituía uma preocupação do Compromisso, uma vez que as enfermarias, pela presença de corpos doentes, dos suores depois dos banhos e cheiros das purgas, deveriam ser espaços com um ambiente pesado.72 Nas enfermarias havia fogareiros portáteis que eram usados não só para aquecer, mas também para “perfumarem as enfermarias” e assim evitar a propagação de maus cheiros, resultantes dos corpos doentes e dos suores depois dos banhos. 73 A compra de benjoim, estoraque e outros perfumes confirma esta preocupação com o ar dos enfermos, que aliás se inscrevia numa das causas não-naturais defendidas por Hipócrates e Galeno para a preservação da saúde, certamente seguida dentro do hospital de Nossa Senhora do Pópulo74. Para reduzir a criação de miasmas todos os bacios eram dotados dos seus respetivos testos, mesmo quando em madeira.75 Convém sublinhar que os bacios eram usados pelos enfermos que não conseguiam deslocar-se pelos seus próprios meios até às “necessárias”.76 Ainda assim, o número destes era bastante elevado, já que no ano de 1563 se compraram 200, 100 em 1566, e 473 em 1574.77 As questões relacionadas com o arejamento dos espaços eram resolvidas através das janelas e/ou frestas que se rasgavam nas paredes das enfermarias. No caso das enfermarias femininas sabemos que as janelas, quando as havia, eram resguardadas por vidraças e grades de arame ou ferro para proteger a clausura das mulheres. À iluminação natural fornecida pelas janelas e frestas acrescentavam-se os candeeiros e as lâmpadas que eram acesas diariamente pelos hospitaleiros.

72 Sobre este aspeto Jorge de São Paulo afirma “hera notável o fedor das Enfermarias quando hiamos fazer as visitas” (ob. cit., vol. III, 1968, 472). Águas: urina. 73 ADLRA, Fundo do Real Hospital das Caldas, Livro de Receitas e Despesas (1542-1543), Dep. VI-3-B-7, fl. 207v. 74 Benjoim: resina amarela e odorífera muito utilizada pelos boticários, que se extrai do benjoeiro. Estoraque: bálsamo odorífero; existem três tipos de estoraque: o vermelho, o “calamita” (segundo Rafael Bluteau, este era o melhor para a medicina), e o liquidus. Rafael Bluteau, Vocabulário Português e Latino , vol. III (Coimbra: Colégio das Artes da Companhia de Jesus, 1712-1728), 328. 75 ADLRA, Fundo do Real Hospital das Caldas, Livro de Receitas e Despesas (1523-1524), Dep. VI-3-B-2, fl. 115. 76 Idem, Livro de Receitas e Despesas (1543-1544), Dep. VI-3-B-8, fl. 204. Necessária: latrina. 77 Jorge de São Paulo, ob. cit., vol. III, 1968, 472.

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Era no decorrer das visitas diárias às enfermarias que os profissionais médicos se reuniam e deliberavam sobre o estado de saúde do doente. O médico começava por perguntar ao enfermeiro a situação de cada doente e depois analisava o pulso e a urina. Dada a escassez de outros instrumentos de diagnóstico, estas análises constituíam processos de conhecer rapidamente o estado do doente. Depois de o físico examinar o enfermo, o boticário assentava no seu caderno os remédios receitados e o escrivão arrolava numa das tábuas engessadas a dieta prescrita para a refeição seguinte. Por último, importa referir brevemente a alimentação dentro de portas. O “jantar” e a “ceia” constituíam dois dos mais importantes momentos diários; as refeições, para além de resultarem do diagnóstico e prescrição médicas, eram sobretudo momentos ritualizados que o Compromisso fazia questão de mencionar com algum detalhe. A prescrição dos géneros alimentares era feita pelo físico que estava obrigado a dar diariamente “regimento ao despenseiro do que cada um dos enfermos houver de comer e beber”78. Este aspeto mostra-nos a importância da alimentação na recuperação dos enfermos e o facto de ela própria se afigurar como medicina em si mesma. Do ponto de vista prático, a distribuição de comida dentro do hospital era um momento que requeria substanciais meios humanos e materiais. Não falaremos aqui das quantidades ou do tipo de ração dada a cada doente de acordo com o seu estatuto social, género ou enfermidade.79 Porém, importa referir que, depois de preparada na cozinha, a comida era distribuída na copa pelo provedor na presença dos restantes servidores. Às nove horas da manhã o despenseiro armava uma toalha grande, colocando em cima da mesa dois bacios de água às mãos, duas albarradas com água, duas toalhas de mãos e ainda dois cestos de pão, dois pichéis com vinho aguado com “água cozida”, saleiros, cutelos e vasos.80 Após compor esta mesa, o despen60

78 Compromisso, 149. 79 Cf. o nosso “Os consumos alimentares de um hospital quinhentista: o caso do hospital das Caldas em vida da rainha D. Leonor,” in Portas adentro: comer, vestir, habitar (ss. XVI-XIX), dir. Isabel dos Guimarães Sá, Máximo García Fernández (Valladolid: Universidad de Valladolid, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2010), 47-67. 80 Albarrada: vaso, com ou sem asas, que servia para conter água ou para colocar flores. Água cozida:


seiro tangia uma campainha que estava junto da cozinha, ao som da qual todos os servidores deviam acorrer à copa e os enfermos que estivessem levantados deviam recolher-se aos seus leitos. Os enfermeiros dirigiam-se aos dormitórios onde armavam as mesas para os enfermos, dando-lhes água às mãos. Nesta altura, o capelão benzia cada uma das mesas e o despenseiro procedia à distribuição das rações conforme a determinação do físico. Terminada a refeição, a campainha era novamente tangida e o capelão acorria de novo a cada uma das enfermarias para desta vez rezarem três vezes o Pater Noster e Ave Maria, cada um pela alma de D. Leonor, do seu marido e filho, perpetuando dessa forma a memória da fundadora. Este ritual era repetido duas vezes ao dia entre abril e setembro. A carga simbólica de tarefas como vestir, comer, ou as próprias idas aos banhos evidenciam a importância das tarefas domésticas neste tipo de instituições. A prática das catorze obras de misericórdia, inspiradoras da fundação do hospital pela rainha D. Leonor, implicava o desempenho de tarefas simples como alimentar e vestir. O cuidado com a higiene dos espaços e das roupas denota a intenção dos hospitais em se diferenciarem das condições de vida fora de portas. Olhando atentamente para o Compromisso, os grandes capítulos prendem-se com a descrição deste tipo de tarefas domésticas. A orquestrar todo o quotidiano estava o provedor, figura de autoridade, que procurava regularizá-lo, através do cumprimento das normas estipuladas no Compromisso em 1512. Em suma, foi nosso intuito mostrar que o hospital de Nossa Senhora do Pópulo atuava como um verdadeiro hospital do Renascimento, isto é, como uma instituição viva, dinâmica, promotora de ofícios, dinamizadora de uma vila, protetora da saúde pública e um importante agente de consumo que impulsionava não só a economia, mas também o quotidiano de uma região. Agenciar a saúde alheia era portanto uma tarefa complicada e que exigia uma constante renovação de bens e serviços. Se por um lado o hospital possuía um corpo médico capaz de garantir a reabilitação da saúde dos doentes e um serviço religioso que os assistia espiritualmente, por outro lado o hospital deveria de ser capaz de proporcionar as comodidades materiais indispensáveis à estadia dos enfermos. o mesmo que água fervida. Cutelo: faca grande que antigamente servia para talhar carne e cortar couro.

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O quotidiano deste tipo de instituições deveria estar longe de ser calmo ou silencioso. Só o facto de o hospital albergar muitas vezes cerca de cem doentes por dia, quando não mais, é um indício de que o edifício seria um local de trabalho, agitado pelas exigências inerentes à cura dos enfermos. É indiscutível o corre-corre dos servidores a acudir os doentes, as amassadeiras e cozinheiras a ultimar as rações alimentares, o provedor a fazer as visitas diárias, o escrivão a anotar as despesas ou a redigir algum testamento, o almoxarife a fazer a contabilidade, o físico a aconselhar os doentes, os capelães a confortar os enfermos e a celebrar os ofícios litúrgicos, o boticário a preparar as mezinhas, o barbeiro-sangrador ora a fazer as barbas e cortar os cabelos ora a sangrar algum doente, a cristaleira a aprontar os clisteres numa pele de gato, os enfermeiros a fazer as camas dos doentes, a acorrer aos seus chamamentos ou a levá-los aos banhos, os escravos a varrer as enfermarias e a limpar os bacios, as lavadeiras a branquear a roupa da igreja e das enfermarias e, os enfermos, sobretudo os febris e os aleijados, a expressar a sua (in)disposição. Na prática, o hospital de Nossa Senhora do Pópulo foi o resultado das novas exigências culturais que se faziam sentir na segunda metade do século XV. Fundado pela rainha D. Leonor foi alvo constante de financiamento e proteção não só da própria como dos monarcas que se seguiram. Se o seu Compromisso é elucidativo da complexa rede administrativa e das exigências enfrentadas por este tipo de instituições, outros documentos, como os livros de contas ou notariais, demonstram o trabalho intenso e constante que era necessário para manter o hospital a funcionar. Como testemunhos do quotidiano, este tipo de documentos mostra a teia de relações que se estabelecia não só dentro do edifício hospitalar, mas também as conexões entre este e a comunidade. Para fazer face às demandas dos enfermos e para se tornar sustentável, o hospital foi obrigado a urdir teias económicas e sociais com a vila e com as regiões vizinhas. 62

Embora o Compromisso se assuma como um documento burocrático e normativo, não espelhando a realidade do quotidiano, a verdade é que não deixou de funcionar como matriz da vida quotidiana dentro das portas do hospital. Outro tipo de fontes manuscritas, como livros de visitações, ajudam a compreender a flexibilidade de tais disposições, permitindo perceber a dimensão e a aplicabilidade prática de obrigações e de sanções


face às irregularidades. O hospital das Caldas era um lugar transitório, isto é, um lugar de passagem para a maior parte dos enfermos (ricos ou pobres), conferindo-lhe por isso mesmo um caráter de movimento permanente. No geral, o hospital de Nossa Senhora do Pópulo era um espaço social por excelência, regido por rigorosos códigos morais, condicionados por aspetos de género e estatuto social. Preceitos desta ordem são transversais à leitura do Compromisso e deverão ser entendidos como ubíquos no quotidiano do hospital durante todo o século XVI.

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Two sculptural systems angular and ordered seem to have precipitated out of the subterranean salts dissolved in the swirling watery medium of the thermal springs at Caldas where pungent sulphur taints the close, chthonic air of the massive basements of the neo-classical hospital. This water has traveled many miles underground, leaching minerals from the folded strata under the mountains, carrying them and their miraculous curative potencies to the surface where a queen found respite and in a fiat of beneficent grace founded a hydro-hospital as a tonic for the wounds and ailments of her people. These sculptures accrete, coagulate within their sites – as if they are salty crystalline residues of Caldas’ curative waters evaporated in the hot sun. They gather space around them and concentrate it to optical ambiguity, fold it into multifaceted orthogonal irrationality. This mathematical geometry hovers on the edge of comprehensibility, it cannot be taken at a glance but demands a process of engagement, this system is necessarily relational, all parts link to all other parts. Though they are concretions, they are not so much things, they are no-thing, they are concrescences, a coming together, a framing and bending of empty space and yet they energise empty space with effusive ornament, like an Ernst Haeckel drawing, they are simultaneously liquid and crystal, precise and complex. Simeon Nelson


Terra: Elemento e Matéria Accrochage MATRIZCALDAS.

António Pedro Mendes. Curador e registrar


Devemos criar museus dedicados a diferentes formas de vazio. O esvaziamento pode ser definido pelas actuais instalações artísticas. As instalações devem esvaziar as salas do museu, não enchê-las. Robert Smithson, “What a Museum?” (1967)

Ao ser desafiado para escrever este pequeno texto acerca do MatrizCaldas, a primeira ideia a perturbar-me foi perguntar a mim mesmo o porquê deste projeto nas Caldas da Rainha. Urbe, que poderia ser apelidada “a cidade dos Museus”. No fundo o que são e para que servem todos estes Museus/Centros Culturais/ Projetos Culturais/ Galerias/ Exposições Temporárias e Permanentes? Serão apenas repositórios de cultura de uma comunidade? Lugares com o dever de preservar e partilhar o património cultural e edificado? Será que deverão ser espaços de entretenimento, não no sentido de divertimento puro, mas no sentido de uma atitude que poderá impregnar a sua experienciação ao visitar um Museu/ Centro Cultural? Talvez tenha sido esse o propósito da criação do Museu do Hospital Termal das Caldas da Rainha quando foi pensado há vários anos. Em muitos casos, os propósitos da criação de um Museu são mais inacessíveis do que qualquer outra entidade. Segundo Stephen Weil1, isso tem a ver, tanto com a necessidade comunitária muito precisa para utilizar um edifício histórico, como com o satisfazer os desejos de imortalidade de um 1 Stephen Weil, Rethinking the museum and Other Meditations, Washington Dc, Smithsonian Institution Press,1990

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doador ou ser o propósito de um grupo reduzido de entusiastas de uma comunidade. Assim, os museus apresentam-se como espelhos singulares de uma cultura, como lugares de aprendizagem, diferentes das Universidades. Estas muitas vezes empregam programas de estudo formais, de carácter geral e que frequentemente apenas podem ser modificadas por decreto. Os Museus, por seu turno, estão cada vez mais abertos ao mundo e cada vez mais funcionam como laboratórios de novas ideias. Quando queremos discutir algo sobre e acerca de Museus, não podemos nunca falar de uma realidade única, porque os há públicos, privados, de artes de ciências, de empresa, para adultos, para crianças, grandes e pequenos, muito ativos e passivos. Uns parecem-se com um templo, outros um parque de diversões e em casos extremos parecem-se muito pouco uns com os outros, apesar de deixarem sempre permanecer a sua função fundamental: a DISCUSSÃO de IDEIAS. Assim como o Louvre arrebatou a arte aos monarcas do Antigo Regime e passou a mostrar essa mesma arte a todos aqueles que pudessem pagar um bilhete para a ver, espero que o Projeto MatrizCaldas possa, de alguma maneira, arrebatar a arte Contemporânea para o centro da discussão do lugar da mesma, dentro de edifícios que sempre tiveram outras funções e que agora se vão transvertendo lentamente em lugares novos de produção ativa de Cultura do nosso tempo.

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Mas para quem é dirigido este Projecto Matriz? ∙ Jovens estudantes da Universidade ∙ Famílias ∙ Donas de casa ∙ Pessoas ligadas ao bairro onde está inserido o Museu ∙ Grupos Escolares ∙ Desempregados ∙ Terceira Idade ∙ Utentes das Termas Ao ter mencionado estes públicos espero não ter excluído ninguém do programa Matriz, mas penso que, se este programa se replicar em sítios diferentes das Caldas


da Rainha, deverá ter em conta estas diferentes realidades e discutir com os artistas participantes quais os públicos que estão a pensar atrair e com que tipo de peças é que essas mesmas pessoas poderão interagir. Não poderá o projeto limitar-se a convidar artistas para expor num espaço, mas será na segmentação de públicos que este projeto poderá criar uma identidade nova e espalhar-se pelo território como uma raiz que se espalha pela terra à procura de água, elemento essencial à vida. Raramente um projeto desta envergadura consegue alcançar todos os seus propósitos, mas espera-se que este possa desvendar a relação entre o património e a identidade da região, mostrando de que maneira é que esse património cultural agora criado pode ser o elemento gerador de uma nova imagem de identidade territorial; e, simultaneamente, que relação poderá ser obtida entre a organização de novas exposições de arte contemporânea e a economia local; e qual poderá ser a relação entre a arte e a sociedade em que se insere. Que nos mostre, igualmente, em que medida é que o desenvolvimento de novas abordagens da arte contemporânea em edifícios Termais poderão contribuir para a melhoria da população que costuma visitar esses maravilhosos centros de lazer que são hoje as termas como locais novos de fruição do seu tempo de Ócio.

Exposição (Terra) TERRA: ELEMENTO E MATÉRIA A Terra, não no sentido de Terra como planeta, mas como essa maravilhosa matéria, por vezes suja e castanha que nos consome depois de mortos, é o Elemento fundamental da exposição que está patente no Museu e nos espaços intervenientes. Todas as peças expostas vão arrebatar a este elemento o seu mais intrínseco sentido. Certamente, o forte cheiro que nos invade ao entrarmos no Hospital Termal das Caldas da Rainha também está presente, ainda que indiretamente, nas mentes dos artistas que as criaram. Claro que o edifício é bastante omnipresente, bem como os seus objetos, mas mais importante que o património edificado, móvel e imóvel

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cultural que nos rodeia, mais importante que tudo, é esse património Natural que se impõe, como que o pathos que nos acompanha assim que entramos na Cidade das Caldas. Não será esse o encanto que tem maravilhado todos os seres humanos que têm habitado estes lugares? Será que, como escrevia o geógrafo Orlando Ribeiro, “nós somos o somatório das nossas circunstâncias geográficas”!? Depois de ver esta exposição sou forçado a concordar com ele. É o fluxo da lava que brota do fundo da terra que traz a força vinda das águas sulfurosas da piscina da Rainha para as salas onde estão as peças desta exposição e com elas a Terra que nos envolve como que a poeira presente no vídeo do artista Orlando Franco, essa poeira que cada vez mais vai envolvendo o ecrã é uma grande metáfora de como as forças naturais presentes vão envolvendo cada vez mais a cidade das Caldas e vão abraçando todos os seus habitantes num abraço mortal de um destino de que todos se tentam libertar, mas que não subsiste a um refazer constante que os leva a permanecer neste lugar, a construir e reconstruir as suas casas e os seus lugares. “A Casa”, da artista Teresa Forbes, apesar de estar bastante bem dissimulada/integrada no percurso do Museu, questiona-nos sobre esse fazer/refazer sistemático presente num Hospital de Termas. No fundo não é isso que um Hospital faz de cada um de nós? Refazer-nos e trazer-nos para a vida? Para isso teremos que respirar sempre, sempre. É uma condição para VIVER, “Respirar” de Eunice Artur conduz-nos de novo à terra, apesar de sabermos que não podemos respirar terra. Mas o que interessa isso? Nada. Porque a Terra quer-nos, invade-nos através do olhar e finalmente através da Devastação que é o fechar do Ciclo e o começar de um novo através de um banho retemperador nas águas da piscina da rainha.

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Não deixa de ser reconfortante pensar que no edifício do Museu, nos seus espaços transformados, intervencionados por artistas contemporâneos e pelas suas linguagens, existiram e ainda perduram no ar histórias que estão a pairar, umas entranharam-se na Terra e outras estão lá à espera que mais alguém as possa captar e reintroduzi-las na nossa Realidade diária. Muito provavelmente, terá sido para fugir dessa realidade tão madrasta que, ao longo da História, as populações do centro e Oeste se agarraram a ligações fortes, a crenças que lhe trariam rapidamente a união a um Sagrado que tanto poderia estar dentro de


um Mosteiro (Alcobaça, Batalha, Tomar), de uma Azinheira (Fátima) ou das águas curativas de uma fonte (Caldas da Rainha). Ou talvez tenham sido as fortes ações das ordens de Cister e dos Templários, bem como as da Casa das Rainhas a moldarem uma personalidade que tem de comum esta terra calcária onde brotam águas milagrosas que nos contaminam, e que desde tempos imemoriais, se encontram representadas nos portais, tímpanos do património edificado e que poderá ser este o elo comum e onde o fluxo da terra vai e vem sem parar entre os Homens, a Natureza e o Divino.

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Fluxos, Gatekeepers e Membranas... Cultura científica face às artes.

José Moura. Diretor Biblioteca Campus de Caparica – FCT/UNL


O projeto MATRIZCALDAS desenvolve-se em torno da água-nascente, com sabor emblemático e metafórico. Um projeto ambicioso que procura direções, desafios e complementaridades múltiplas. Como consequência desta ideia-projeto inovador, procura-se dinamizar a oferta cultural e artística do Museu do Hospital Termal, com forte participação da ESAD.CR. Um projeto que fala da água que cura e fluxos que conduzem a uma reflexão artística e cultural. A Biblioteca do Campus de Caparica da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa criou fortes elos com a ESAD.CR e excelentes criadores passaram e marcaram o espaço de exposição, com manifestações artísticas inovadoras e de forte impacto visual e emocional. A editora Palavrão tem participado em edições e catálogos produzidos naquele espaço.

Falando de água e fluxos... O edifício da Biblioteca da FCT-UNL está posicionado num Campus, a curta distância do mar-água (Praia da Caparica), onde se desenvolveu uma pequena cidade dentro da grande zona da Cidade de Almada. O Campus representa uma mais valia que se afirmou no mundo do ensino e investigação, aliada à transferência de tecnologia, know-how e empreendorismo. Situado próximo do Monte de Caparica, é cada vez mais um centro de convergência das comunidades vizinhas, que usam a Biblioteca não só pela oferta de leitura, mas também pela forte componente cultural oferecida.

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O Campus tornou-se um espaço aberto, de passagem (de fluxos) e de permanências, cada vez mais integrado e integrante das comunidades. A Biblioteca coordena-se com o portão norte de entrada, dando as boas vindas aos viajantes, amenizando a relação Cidade/Campus. Metaforicamente, a Biblioteca é o gatekeeper de fluxos humanos e culturais, controlando, convidando e dando direcções. Conforme terminologia bem aceite nos finais do séc. XX, este gatekeeper tem como função mediar ideias e mensagens, potenciando estados de fluxo, onde o desenvolvimento e oferta de competências vai ao encontro do(s) interesse(s) do(s) utilizador(es).

Falando de fluxos e membranas...

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Através da utilização temática de fluxos de uma água que cura, a MATRIZCALDAS indica direcções, convida e conduz a uma reflexão entre arte e cultura. Em paralelo, e de modo natural, a Biblioteca da FCT-UNL promove fluxos de conhecimento e revaloriza ambientes internos e envolventes exteriores, onde a arte pública tem uma importante palavra a dizer, permitindo a promoção de previligiadas relações de fluxo entre utente(s), espaço(s), arte(s), cultura(s) e vida(s). Assim, a espaçosa zona envolvente da Biblioteca apresenta-se como uma interface (membrana) aos que nela passam e circulam (fluxos), como verdadeira zona de fruição, interacção e reflexão. Num sistema vivo (eco-sustentável), as barreiras são essenciais para definir o dentro e o fora. Numa célula viva, as actividades vitais são conseguidas através desta diferenciação especial que permite confinamento dos componentes intracelulares e um controle de compostos vitais. Todas as nossas vivências estão muito relacionadas com este conceito... dentro e fora da célula, dentro e fora de nós, dentro e fora do planeta Terra, dentro e fora do Sistema Solar... Membranas criam confinamentos, espaços exclusivos, barreiras (no bom e eficaz sentido), pois são permeáveis e selectivas, mas condicionam e promovem fluxos através da dicotomia dentro / fora. Projetos de âmbito abrangente, seja onde for que nasçam – na Caparica, em Caldas da Rainha – exigem sinergias e complementaridades. São membranas, são interfaces. O cruzamento de arte contemporânea com muitas outras disciplinas indica direções,


cria fluxos e procura acompanhar o(s) interesse(s) das comunidades, cidades e regiões. As instituições e o público em geral muito beneficiam destas atividades integradas. Para estes projectos acontecerem, são precisas pessoas em circulação, em contacto e em interacção, ‘perturbando’ o quotidiano estático que é a situação para a qual muitas das instituições tendem a cair. Muito importante é dar asas e liberdades a todos os atores para que se sintam comprometidos, responsabilizados, mas sempre libertos e sem restrições. Um novo (e diferente) olhar para as relações arte-ciência e público.

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MATRIZCALDAS Fluxo. Vida, Saber, Cidade e Arte 2012-1512 Conceito MatrizCaldas.

Mário Caeiro. Professor e Curador


Matriz. O termo tem várias conotações: biológica e biofísica, analítica e conceptual, técnica e organizacional, cognitiva e matemática, geográfica e urbanística. Numa perspectiva holística, todas estão umbilicalmente interligadas. Na sua dimensão metafórica, a palavra ajuda-nos a pensar a forma urbana como eco-sistema: a cidade é uma rede de fluxos que, de acordo com a(s) sua(s) matriz(es) de crescimento, ostenta aqui e ali mais ou menos saúde, neste ou naquele ponto da sua trama maior ou menor vitalidade. A cidade é um ser vivo. Pensar a matriz da evolução histórica de um meio urbano contribui para uma crítica construtiva das suas tradições. Vivendo da sua capacidade para continuamente reintegrar os seus tecidos mortos, qualquer cidade atinge uma única vez o seu apogeu. Entrementes, são múltiplas as oportunidades para a criatividade, não se devendo resumir à recuperação do edificado patrimonial ou à preservação da identidade colectiva como valor imaterial. Arte surge aí como súbito factor de vida cosmopolita. Quando genuinamente pública, a praxis artística da actualidade é portadora de sentido (discursos, mensagens) e surge como modelo de produção cultural (coisas, objectos). Ao assumir como programa inserir-se no funcionamento do dispositivo urbano, abre-se-lhe um território de intervenção complexo, mas fascinante. Assim como traditio significa ‘passar o testemunho do que passou aos que se seguem’, reinventar a tradição é então uma acção ficcional que projecta novos horizontes simbólicos (por) sobre as tradições estabelecidas. Por ocasião dos 500 anos do Livro do Compromisso, o Projecto MatrizCaldas aborda o território das Caldas da Rainha como um espaço excepcionalmente rico para o aflorar o tema da arte face ao património. Começando por focar-se o punctum que

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definiu, num momento concreto (e documentado), o nascimento de um aglomerado urbano hoje desenvolvido, o Projecto articula notas cruciais para uma premente Ecologia da Paisagem caldense. Nesta ideia de curso temporal, a história de Caldas tem sido pautada por acontecimentos artísticos. Alguns integram hoje a narrativa da cidade. Mais ou menos subterrâneos, são parte da sua mitologia. Não sendo integralmente visíveis ou relevantes para toda(s) a(s) comunidade(s) caldense(s), vários acontecimentos culturais e artísticos exprimiram, ao longo do tempo, um desejo de evolução. É isso que têm em comum factos tão diversos como: a adopção das Caldas por Raphael Bordallo Pinheiro ainda no séc. XIX, as provocações rituais que Albuquerque Mendes ou Orlan realizaram no espaço público nos idos de 1977 – culminando várias incursões de uma emergente arte contemporânea –, a implantação da Escola Superior de Artes e Design em 1982 que deu origem a importante tráfego de juventude estudantil (Caldas Late Night), os recordes para o Guiness Book em 2004 (24 Horas de Matraquilhos Humanos) e 2005 (Pirâmide de Cavacas), interpretando a vocação turística da região. Ou, finalmente, a construção quase simultânea do CCC (Centro Cultural e de Congressos das Caldas da Rainha) e de mais um museu (o Museu Bernardo), elementos contrastantes num circuito de museus já particularmente rico.

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Muitas destas manifestações são fruto de um sincretismo continuamente renovado (uma dimensão simultaneamente telúrica e erótica que une o vigor plástico de Bordallo à irreverência da street art, para não sublinharmos a continuidade da malandrice cerâmica ou do percurso absolutamente singular de Ferreira da Silva). Por outro lado, se na matriz cultural da urbe se sucederam não poucos notáveis factos históricos com relevância artística, gostamos de imaginar Caldas e arte intimamente ligadas, num enlace de que é possível continuar a retirar dividendos. Se há quinhentos anos uma Rainha tomou a iniciativa de inscrever um novo núcleo institucional e depois populacional a partir de um valor natural específico – as caldas como dádiva da terra –, que novidades podemos aportar ao legado? Sobretudo, como fazê-lo? Os exemplos de acção cultural, artística, turística e institucional citados são nodos numa matriz que evolui organicamente. Nestes termos, a imagem do Projecto MatrizCaldas


é explicita, através da analogia entre as redes de diferentes sistemas interligados – os vasos do corpo humano, os canais das águas subterrâneas, as vias da malha urbana… Por isso, quando surge a proposta de um Corredor Criativo (2007-08), atravessando a cidade para unir o Núcleo Escultórico de Ferreira da Silva no Museu do Hospital e das Termas aos terrenos da ESAD.cr, esta surge-nos como natural corolário de uma consciência cultural do desenho da cidade (no caso, consubstanciando-se num modelo integrado de indústria criativa, ancorado numa realpolitik interdisciplinar. Em suma, para nós como para muitos agentes (e alguns têm ideias extraordinárias que ainda não vieram a lume), as ‘Caldas’ são um activo cultural. Arriscar procurar as raízes do futuro é consequentemente abordar a tradição em toda a sua potencialidade estética. Numa época em que as preocupações social e relacional da arte se cruzam com as perspectivas do empreendedorismo e da gestão, a hipótese oferecida pelo Museu do Hospital, de celebrar-se os 500 anos das Caldas de uma forma inovadora e inclusiva, proporcionou um contexto particularmente adequado para uma acção de arte pública indoor. Começámos por isso por valorizar um lugar nobre em toda esta história (a piscina da Rainha como ponto de conexão entre o mundo das águas e o mundo da urbe) e naturalmente o edifício que o enquadra. O Museu – templo das Musas, essas deusas íntimas da água! – é aqui menos objecto de antagonismo ou crítica que de intimidade e contemplação. Num tempo consumista de acelerada cultura digital, o valor crítico desta interrupção contemplativa contribui de forma generosa para enriquecer a ideia de que a Cidade deveria merecer mais atenção que a que quotidianamente lhe prestamos. Os objectivos do Projecto eram, à partida, os de desenvolver uma programação artística com sentido cultural estratégico, optimizando os recursos existentes. Este modo de tornar a arte em coisa pública assentou na transparência do propósito – mostrar cerca de quarenta artistas, a grande maioria jovens criadores residindo nas Caldas, num determinado enquadramento histórico, arquitectónico e ambiental. Proporcionou assim, aos jovens criadores, um contexto especial para apresentar publicamente o seu trabalho. O contacto estreito com os visitantes valorizou o sentido de comunidade; ainda que com níveis diversos de envolvimento com esta narrativa central, quase todas as obras funcionaram menos autonomamente que como colecção efémera e informal, desenhando várias linhas de fuga para o pensamento e a reflexão.

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No seu olhar contemporâneo, MatrizCaldas englobou num gesto único o novo e o velho, o moderno e o antigo, o experimental e o adquirido. Oito núcleos temáticos – Corpo, Documentos, Mito, Poder, Objectos, Cidade, Natureza e Fluxo – promoveram uma complexa intercambialidade de ideias em circulação. Sucessivas accrochages de peças individuais conferiram ao quotidiano do museu uma dinâmica de conjunto que também ela foi evoluindo ao longo do tempo. A Equipa de Projecto sentiu-se em casa e cada artista encontrou o seu espaço de liberdade criativa, com a curadoria e a coordenação museológica a limitarem-se a gerir detalhes de (co-)produção. No espectador, prevaleceu a ideia de que cada peça do puzzle faria tanto mais sentido quanto interrogada como parte de um conjunto de coordenadas e referências. Convidado a percorrer as salas subtilmente transfiguradas, o público foi surpreendido por hipóteses em suspenso sobre os objectos e factos que constituem a colecção e o acervo do Museu. Os visitantes foram convidados a filosofar circulando. Enquanto animação de um rico complexo museológico que a cidade merece conhecer melhor – Museu, Hospital, Capela de S. Sebastião, Jardim, Parque – MatrizCaldas assentou numa rara pro-actividade institucional por parte do Museu de acolhimento. Cedendo obras previamente existentes ou elaborado novos projectos de raiz para espaços específicos, os artistas convidados responderam com as suas próprias linguagens à possibilidade de interromperem/interpelarem a narrativa habitual dos objectos expostos. Tal encontro de vontades não é mais do que a recorrência de sempre um mesmo princípio vital na vida das cidades: uma cultura crítica e de encontros cúmplices pode e ser um factor-charneira na criação de dinâmicas cidadãs.

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Terá tido disto consciência D. Leonor, quando mandou erguer a Igreja do Pópulo – um templo do e para o Povo – e assim despoletou, ela que sabia como ninguém o poder mortífero que a água também encerra, um processo de renovação espiritual cuja essência traduziu numa política de assistência eminentemente cultural e urbana? É essa a responsabilidade da arte da vida. MatrizCaldas é uma obra colectiva.



A MATRIZ: O Hospital de Nossa Senhora do Pópulo O Museu do Hospital e das Caldas – Missão e MatrizCaldas

Dora Mendes. Conservadora


Uma colecção é um lugar. Mas não um lugar fechado ou um lugar estreito. Porque uma colecção é um lugar feito de muitos lugares, e de cada um desses lugares se chega por diferentes caminhos. João Pinharanda

Analisar a pertinência do projecto MatrizCaldas no Museu do Hospital e das Caldas, pressupõe ultrapassar a tendência para centrar a discussão em torno da importância histórico-patrimonial da colecção do Museu, esmiuçando antes a potencialidade em acentuar esse valor através da promoção de novos diálogos, muitas vezes de acentuados contrastes, que a presença de arte contemporânea proporciona. Implica também, por outro lado, contornar o excesso de focalização do desígnio de curadoria inerente a um projecto desta natureza, privilegiando antes a experiência/ /ensaio do artista e a consequente percepção histórico-espacial de um lugar: Caldas, que em última análise fornecerá os elementos fundamentais para a construção de cada peça/diálogo, que se arrogam como a Matriz deste programa. No final, está sobretudo em causa perceber a legitimidade deste projecto, analisando os resultados no que respeita à adesão por parte da população local e circundante, na oportunidade de proporcionar um Serviço Educativo eficiente e numa maior procura por parte de um público social, cultural e etariamente diversificado. Sensibilizar e cativar a população para a arte contemporânea, desmistificar a estranheza causada e potenciar um maior envolvimento e aptidão para a generalidade das actividades culturais.

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Como refere Simon Thurley, “O Património são as pessoas”. É pois neste fundamento que se compreende a amplitude do conceito de “ambiente histórico”: paisagem, jardins, parques, edifícios, usos e costumes, enfim todo um agregado de bens, que em conjunto constituem o património do Hospital Termal Rainha D. Leonor, e que nos traduzem aquilo que fomos e, acima de tudo, se assumem como elementos essenciais para concebermos o que pretendemos ser no futuro. O seu usufruto é pois factor essencial para a sua sustentabilidade presente e futura. O entendimento do complexo patrimonial acima referido, só é possível à luz do conhecimento histórico e conjectural que motivou, não apenas o surgimento da própria instituição, o seu modelo de gestão, mas também a própria relação que com outras organizações foi promovendo ao longo dos tempos. É na articulação dos diversos espaços que se alicerça a continuidade do Hospital Termal Rainha D. Leonor, justificando numa lógica de compromisso entre o passado e o presente, a preservação e modernização da sua vocação inata: o tratamento histórico-científico das temáticas assistenciais e da saúde, traçando desta forma as novas vias de modernização do termalismo e do estudo da História. A perpetuação da memória histórica do Hospital Termal e da sua Rainha fundadora, traduzida no Museu do Hospital e das Caldas, assume-se como instrumento condutor da sua programação. O Museu desempenha assim um papel determinante na construção de identidades culturais, no encontro de raízes históricas que nos fornecem os instrumentos necessários à construção da nossa própria identidade.

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O seu papel social, mais especificamente a sua componente pedagógica, deixa de ser focalizada apenas numa relação entre museu/publico que contempla numa atitude passiva; privilegiando antes uma relação activa, onde a partilha, a troca de saberes e experiências entre ambas as partes, se promovem. Através do projecto MatrizCaldas procurámos criar sinergias entre os vários recursos culturais e patrimoniais que constituem o Hospital Termal Rainha D. Leonor. Utilizando-os como suporte, pretexto e matéria-prima para o conhecimento crítico,


apropriação e responsabilização cívica, potenciando a cidadania activa e a consequente preservação patrimonial. No ano em que se comemoram os 500 anos da Villa de Caldas da Rainha (2011) e os 500 anos do Livro do Compromisso (18 de Março de 2012), não podíamos deixar de homenagear aquela que se assumiu desde sempre como uma figura de destaque entre as rainhas portuguesas: a Rainha D. Leonor, fundadora do então designado Hospital de Nossa Senhora do Pópulo. Pela sua formação, personalidade, intervenção política e cultural foi uma figura invulgar no seu tempo, vendo enaltecidas por muitos as suas virtudes e formosura. Promoveu a importação de obras de arte e dirigiu inúmeras encomendas a mestres e autores portugueses na pintura, escultura, arquitectura e literatura. Destacando o seu papel enquanto mecenas da arte, o Museu do Hospital e das Caldas procurou realçar a grandiosa obra da sua Rainha, aceitando para tal o desafio que um conjunto de alunos e o professor Mário Caeiro da ESAD.CR nos propuseram. Deixámos que o espaço do Museu fosse habitado, ainda que efemeramente, por um conjunto de artistas que através da sua própria linguagem, criaram relações mais ou menos controversas com o acervo do Museu. O saldo é positivo, na medida em que as comunicações criadas ultrapassaram em muito a simples relação museu/artista, extravasando para a generalidade do público que nos visita, despoletando as mais variadas reacções que privilegiadamente pudemos testemunhar. Destaque para duas visões antagónicas mas muito complementares: a leitura menos tolerante de alguns visitantes que resultou em reacções de negação ao projecto, e por outro lado a abertura intelectual e experimental dos muitos alunos que recebemos em visitas de estudo e que, com a curiosidade natural de quem está a descobrir o mundo, questionaram, interpretaram e experimentaram a arte contemporânea e a sua relação privilegiada num espaço de história-local como o Museu, o Hospital, e os restantes espaços patrimoniais do Hospital Termal.

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Uma palavra especial a todos os artistas que permitiram esta experiência, contribuindo não apenas com a cedência de obras da sua autoria, mas muitas das vezes com as suas próprias experiências e vivências deste património que resultaram na elaboração de peças de extraordinária carga simbólica para o Museu. A TODOS o nosso mais sincero agradecimento. Não menos importante a contribuição de todos os autores dos textos que compõem esta obra registando em palavras conceitos que, não apenas contextualizam o projecto MatrizCaldas, mas que perpetuam na memória as relações do passado e do presente que habitaram estes espaços. O nosso agradecimento à ESAD.CR pelo apoio que concedeu a este projecto, e particularmente pelo importante papel que desempenha na área da educação das Artes e do Design. Por último, uma palavra de agradecimento aos verdadeiros impulsionadores do MatrizCaldas, o Professor Mário Caeiro e à sua particular aptidão criativa, a todos os elementos da Associação Palavrão: André Teles, Rosa Quitério e Sara Gonçalves, e não menos importantes a todos os alunos que participaram na primeira visita do Matriz ao Museu. A toda a equipa do Museu do Hospital e das Caldas e ao Centro Hospitalar do Oeste Norte, o nosso muito obrigado por toda a disponibilidade.

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Obras/instalações/intervenções


3 4 5

2 6

7

15

9 10

8

10

11 12

14

13

1

Piso 0 (Museu)

1. Nuno Fragata 2. Simeon Nelson 3. Luís Simões 4. Rui Chafes 5. Isabel Baraona

6. Jorge Maciel 7. Patrícia Almeida 8. Bruno Bogarim 9. Bruno Jamaica 10. João R. Ferreira

11. Pedro Telmo Chaparra 12. João Ribeiro 13. Jorge Reis 14. Miguel Lopes 15. Emanuel Brás


N

20 19

21 22 18 17 16 23 23

27 28 B

24

A

26

30 25

31

E Piso 1 (Museu)

16. Orlando Franco 17. David Casta 18. Eunice Artur 19. Biana Costa 20. Anabela Santos 21. Ivo Andrade 22. Susana Anágua 23. Teresa Forbes

29

D

C 24. Helder Gorjão 25. Marta Soares 26. Albuquerque Mendes 27. Luís Campos (B) 28. Abel Pinheiro (B) 29. Simeon Nelson (C) 30. Orphanus Lauro (D) 31. Raquel Terenas (E)

A. Museu do Hospital B. Antiga Lavandaria do Hospital C. Hospital Termal D. Igreja do Espírito Santo E. Capela de S. Sebastião


All Beauty Must Die As obras aqui apresentadas fazem parte de um projecto maior intitulado ALL BEAUTY MUST DIE iniciado em 2009 em colaboração com David-Alexandre Guéniot. O título da exposição faz referência à letra da canção ‘Where the Wild Roses Grow ‘de Nick Cave, mas também à ‘Ode à Melancolia’ de John Keats, poeta romântico inglês do século XIX. As fotografias, feitas durante os festivais de música rock, apresentam jovens no meio da natureza, entretidos ou a descansar num ambiente idílico. Ao excluir os sinais mais óbvios do contexto original, as fotografias passam a apontar para um território utópico, inspirado pelo mito de regresso às origens, onde a humanidade vive em harmonia com a natureza. PA Do projecto All Beauty Must Die, 2009 Provas de impressão digital a jacto de tinta 80x80 cm

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Patrícia Almeida



Ice-o-Matic Doze anos depois da abertura do McDonalds de Caldas da Rainha, esta imagem de Ice-o-Matic (máquina de gelo) surge como que uma raíz pessoal à própria Cidade. Foi no ano de 2000 que a frequentar, na ainda ESTGAD (Escola Superior Tecnológica de Gestão Arte e Design), o 3.º ano de Escultura, que a ferramenta vídeo me surgiu como expressão artística. No dito espaço de restauração, as máquinas serviam-me de matéria e as imagens delas soluções para algumas problemáticas que já viajavam na minha cabeça. É com alguma nostalgia que após tanto tempo ressuscito este pequeno e simples vídeo ligado à minha memória do espaço e do lugar, mas também agora corroborante com o conceito da exposição. A máquina de fazer gelo, a meu ver em forma de pequenos diamantes no seu ciclo de asseptização, serve agora de metáfora à História da cidade e das suas águas. MatrizCaldas reavivou-me os tempos de estudante e as minhas curtas, mas intensas raízes a esta terra, que se prolongam até hoje. SA 2000/12 Instalação vídeo 94

Susana Anágua



Campânulas de inalação Cinco fotografias de esculturas de rostos são colocadas dentro de inaladores antigamente utilizados em tratamentos termais. Os inaladores por onde outrora as pessoas inspiravam as águas termais servem agora de abrigo às fotografias; estas que pela particularidade plástica com que representam a epiderme, se associam facilmente ao imaginário das termas e seus tratamentos. IA

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Ivo Andrade



Respirar Em Respirar proponho uma continuidade na relação entre observador/espaço/ corpo, explorando uma relação dessa intimidade –, uma sensibilidade de alguma forma ambígua canalizadora do todo, o espectador/observador explora-se a si próprio e as suas limitações. EA 2008 Instalação

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Eunice Artur



Miss You Dearly Miss You Dearly e Auto-retrato foram inicialmente mostrados na IWAB - Incheon Women artists’ Biennale (Coreia do Sul) e fazem parte de um conjunto de desenhos mais vasto dedicado à relação parental e amorosa, assim como a casa e corpo, temas recorrentes desde 2001. IB Tinta-da-china e aguarela sobre papel fabriano 56x76 cm

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Isabel Baraona



Auto-retrato

Tinta-da-china e aguarela sobre papel fabriano 56x76 cm

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Isabel Baraona



Tatua-me Tatua-me pertence a um núcleo recente de desenhos feitos para um livro de artista auto-editado intitulado Diário e é uma citação clara a “grava-me como um selo no teu coração”, verso do Cântico dos Cânticos. (Cântico dos Cânticos, intro., trad. e notas de José Tolentino de Mendonça. Lisboa, Cotovia, 1999). IB Tinta-da-china e goma-laca sobre papel fabriano. 40x29 cm

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Isabel Baraona



Jesus Christ and ice cream As obras de arte não mostram o tempo das decisões e da produção que as cria. A sobreposição de elementos varre a hipótese de os suspender e os dissecar, e nisto o tempo feito obra é um fim de contornos ténues. Entre duas coisas unidas encontra-se o remoinho que cada coisa é na trança da união, sem tempo. Nesse imediato aparece o novo objecto e talvez os contornos da decisão. BB 2007-2011 Fotografia e madeira 130x15x10 cm

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Bruno Bogarim



Um livro sem qualidades Livros: a Bíblia, A Minha Luta (Mein Kampf), Hamlet, Da Consolação da Filosofia (De Consolatione Philosophae), diários, As Linhas da Minha Mão (The Lines fo My Hand), livro de cheques, livro de razão, manual, caderno de apontamentos, lista telefónica, … As Páginas Amarelas, por exemplo. Se esta publicação com páginas de cor garrida estivesse à venda, seria um bestseller. Sim! No índice das Páginas Amarelas não existe uma entrada para Sex Shops (Yellow Pages, Central London, 1998/99). Deste modo, este livro assume qualidades notáveis enquanto documento cultural ou sociológico. Ficarão todas as edições armazenadas nas bibliotecas? No dia 22 de Agosto de 1992 sérvios incendiaram por completo a biblioteca de Sarajevo, famosa pela sua colossal colecção de livros da cultura do Oriente e do Ocidente. Porque foi isso um crime contra a memória e contra a história? Como poderei eu compreender o encantamento e ao mesmo tempo a repulsa de cada vez que Pepe Carvalho – detective privado, ex-marxista, ex-agente da CIA, personagem das novelas de Manuel Vásquez Montalbán – acende a lareira da sua casa com combustível da sua própria biblioteca? EB (...) Londres, Junho de 2000 108

2000. Impressão: cromogénea lambda; a partir de transparência cor médio formato. Dimensões: 100x100 cm. Tiragem: 5 exemplares

Emanuel Brás



All-inclusive All-inclusive refere-se a uma tipologia de resorts. O Resort é um espaço de transição, uma gigantesca encenação habitada, uma terra de ninguém, a que ninguém pertence. Uns fazem a catarse de um ano de trabalho, procurando, num tempo condensado, uma hipervivência de sensações que preencham o espaço onírico do resto do ano. Outros procuram apenas parar e deixar deslizar o tempo ao sabor duma programação externa. O vazio fica mais exposto. Também os empregados são de outras terras, vieram em busca de emprego, estas não são as suas casas, as suas famílias estão longe. Todos são actores duma encenação que proporciona aos clientes uma oportunidade de evasão. O Resort é um espaço cénico, mais dramático à noite, sob a luz branca dos projectores incindindo sobre as árvores, sobre as fontes, as piscinas, os toldos desabitados. Ao crepúsculo um pianista derrama a sua arte no vazio de um palco, esbar-rando na indiferença das conversas distraídas dos clientes do bar. 110

Epílogo: o espectáculo nocturno, anunciado em quatro línguas, feérico, colorido. Fim súbito. Os projectores apagam-se, o silêncio instala-se e as ondas que morrem na praia continuam a murmurar. LC Luís Campos



D. João II Um retrato inusitado, realizado a queimaduras de fósforos sobre madeira, do marido da Rainha D. Leonor, D. João II, cognominado O Príncipe Perfeito. A dimensão é exactamente a mesma dos retratos da Sala dos Reis do Museu, consistindo a intervenção na substituição do retrato original pelo realizado pelo artista contemporâneo (incluindo a sua colocação com moldura antiga). Mário Caeiro

2010 Retrato realizado através da queima de MDF (compósito de madeira de média densidade) 60x80 cm

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David Casta



Devastação XI Esta peça pertence a uma longa série de aparelhos disfuncionais que simulam a simetria do corpo humano e efabulam todas as suas possíveis funções. A sua elegância e sobriedade, quase severas e autoritárias, isolam-nos do resto do mundo e mantém a distância capaz de os proteger na sua sombra originária. RC

2003 Ferro 31,5x33x186,5 cm

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Rui Chafes



Proibido nadar Chaparra (Pedro Telmo Chaparra) tem realizado uma pintura que remete para a ideia de apropriação, entre registo (frottage) de uma materialidade povera e o ready made (pintura sobre barracas de praia desmontadas). Face ao meio envolvente, as suas pinturas são como sinais sem mensagem – em que os símbolos se desvanecem enquanto tal – mas que ao mesmo tempo veiculam uma linguagem gráfica universal. Nesse paradoxo, e ainda que de forma certamente inconsciente, pressente-se nestas peças os legados de Smithson e de Buren, numa minima moralia do acto pictórico. Mário Caeiro

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Pedro Telmo Chaparra



Memória Branca Esta obra pretende demonstrar os costumes tradicionais de duas regiões distintas que caracterizaram a artista no seu percurso. Cheias de ícones tradicionais e desafiando o gosto tipicamente nortenho pela decoração e pelo bibelot, demonstra que há mais do que simples artesanato nestas regiões. BC Série composta por duas prateleiras com papel de seda e objectos do quotidiano de Caldas da Rainha e Viana do Castelo. O papel de seda contêem bordados das duas cidades, sendo um maior que o outro. Maioritariamente de cor branca. Memória Branca I (Viana do Castelo) 2009 170x75 cm Memória Branca I (Caldas da Rainha) 2009 140x75 cm

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Biana Costa



Quermesse Este trabalho foi realizado com o intuito de ser apresentado no Museu do Hospital para o projecto MatrizCaldas. A obra consiste em duas vertentes que me interessaram desde o início, a ideia de cidade que se projecta como desenho mental quando a habitamos e a memória que nos pertence como local onde vivemos desde sempre, acompanhando as alterações da forma. Construí a minha própria “cidade-província”, alegórica às rifas da quermesse, utilizando mapas “das” Caldas como se de um local rural se tratasse, ao que está subjacente ao desenvolvimento social como cultural. Formei uma particularidade, como Calvino formou inúmeras com as Cidades Invisíveis; esta cidade está embrulhada. JRF 2011 Papel, acrílico e madeira

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João R. Ferreira



tu va tomber Esta obra é composta de um conjunto de mapas do território francês, folhas agrupadas por argolas, desprovida de qualquer preocupação na encadernação, algo de muito prático para quem usa os mapas como objecto utilitário sem prestar preocupação na parte estética que o caracteriza. Tem um sentido de viagem muito lato, fragmentos compondo um território que o torna real na nossa própria história, compilados numa viagem que segue como emancipação ao livro de artista, que se vai deteriorando pelo seu estado em que se encontra, tal como a memória que reside no revivalismo português, a França dos emigrantes. JRF

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João R. Ferreira



a casa o lugar em transformação o fragmento da memória cuja estrutura aparentemente sólida guarda o conceito do tempo e do efémero TF

escultura em areia l33x35x20 cm

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Teresa Forbes



Do Excesso ao Silêncio Estrutura de cariz modelar, desenvolve-se a partir da unidade, o quadrado estabelece a consciência do indivíduo como um todo, simultaneamente o corpo físico limitado que se excede e a fonte criativa e espontânea interior, em movimento A expressão supera a limitação dos materiais usados na construção: o cimento, apagado, duro e sibilante; o vidro, reflexivo, leve e silêncioso A peça assenta no chão O chão que o espectador pisa, remetendo-o para o grão da matéria O chão é a prova física e o limite capaz de nos manter O conjunto cresce lentamente no espaço e no tempo, lado a lado, sem ruído TF

Cimento armado e vidro temperado estilhado 175x175 cm 126

Teresa Forbes



Correr em Estado Líquido O início é a marca, fruto da presença do Museu. Surge o traço que une, delimita, potencia o surgimento do novo eu. A negra água do interior regressa à superfície, revelando o sentido do traço. NF Graffiti poético

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Nuno Fragata



Fluir - parte II Partes da intervenção realizada na parede exterior do Museu Termal fluem para o interior do Edifício do Hospital Termal, criando novo trabalho, virtual, ganham corpo como fotografia. A água, negra, flui. NF Impressão fotográfica 26x39 cm

130

Nuno Fragata





Underneath Através de um plano fixo é-nos dado o momento em que uma retroescavadora, de frente para o espectador, verte sobre o solo matéria poeirenta. A imagem passa a ser, parcialmente e alternadamente, consumida pela nuvem de pó. O espectador vai experimentando as relações possíveis do seu corpo no espaço, potenciadas pela natureza da imagem e pela escala da projecção. OF 2011 Instalação vídeo cor/ som HD/ Pal Dimensões variáveis 3min 19 seg em loop

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Orlando Franco



O Livro Objecto Caixa metálica que contém, arquiva e protege seis imagens gravadas em folhas de metal. As imagens eternizadas na chapa são provenientes do corpo humano, obtidas de pormenores de radiografias. HG Materiais: chapa de zinco, rebites, espuma. Técnicas: fotogravura e água-forte. Dimensões: 30x30x10 cm – caixa / 23x23cm – matrizes/chapas

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Hélder Gorjão



Strings that give energy Solar Energy Rain Waters More water and less petrol platform Desenhos que surpreendem pela escala, a positividade do gesto e a atitude ética (questão ambiental). Trata-se de engenhosas ‘máquinas’ de que se adivinha apenas muito vagamente a função (ver os títulos), mas que ao mesmo tempo nos atiram para o território da mais total liberdade criativa. BJ 2007 Acrílico e fita-cola sobre papel 97,5x200 cm 97,5x200 cm 97,5x200 cm 96,5x169 cm

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Bruno Jamaica



Pentacquae Belém foi cais e Renascimento. Da Ermida de Nossa Senhora da Conceição vieram os corpos em cortejo para MatrizCaldas, em exposição termal na Igreja do Espírito Santo no Museu do Hospital Termal de Caldas da Rainha. As Caldas de D. Leonor são lugar vital em apelo aos amores das carnes e ao ócio. Cidade de cura espiritual e de renovada juventude – quasi eterna, quasi celeste. OL Instalação pictórica. Cinco pinturas em acrílico sobre tela. 210x70 cm

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Orphanus Lauro



Digestão n.º 1 Somos em tudo observados, contudo observamo-nos a nós. Pontos de chegada e de fixação, foi com estes termos que construí a peça para o MatrizCaldas, pegando na ideia da nossa passagem num sitio, num lugar, mas sem saber para onde se vai, onde vem, é isto que somos, seres no tempo. Chegamos na partida, onde sempre estamos. A peça propõe ao espectador apenas um lado de si, estando o outro lado oculto, fechado numa câmara escura com apenas um espreitador. No interior encontra-se um papel foto-sensível, que nos regista, observa, enquanto luz, nunca sabendo como ele nos vê… a nós e ao espaço. ML Tecido, espreitador e papel foto sensível 65x45x50 cm

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Miguel Lopes



Será que isto vai funcionar?! Será que isto vai funcionar é o resultado de um encontro entre duas personagens que por nenhuma razão aparente, e sem qualquer comentário de afinidade, decidem construir uma série de estruturas, utilizando os vários materiais pobres e comuns que as rodeavam. De forma manual, rudimentar e muito efusiva, as duas personagens trabalharam afincadamente até que todas as pequenas estruturas deram lugar a um todo. Apesar da construção efusiva, a observação era agora lenta, pois em toda a estrutura existiam pormenores que narravam uma ficção, acerca do seu ambiente. Durante o processo de construção, as personagens tomam consciência de quão frágil e efémero se tornou o seu trabalho, e é essa mesma tomada de consciência que dá lugar ao primeiro acto de comunicação verbal entre as duas. E com um sussurro de medo devido à situação frágil em que se encontravam e em simultâneo ambas dizem: Será que isto vai funcionar?! JM Assemblagem de objectos, dimensões variáveis

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Jorge Maciel



Fiat Lux Fiat Lux é a comemoração dos movimentos dos homens satisfeitos pela liberdade. Queremos a grandeza do povo. O estímulo é a nossa História. Olha para mim para veres como eu preciso do teu olhar. A grandeza está aí. AM Instalação, peças de cerâmica

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Albuquerque Mendes





Cryptosphere Cryptosphere mapeia o paraíso. Parte da monumental colecção de mapas da Royal Geographical Society para, enquanto exercício de design, relativizar esse poderoso património cultural que é como que a súmula gráfica da representação do mundo. A criação de Cryptosphere decorreu no âmbito de uma inédita residência artística com a duração de vários meses naquela instituição, incluindo um longo debate com os investigadores da RGS. O resultado é a compactação irónica das múltiplas mutações nas perspectivas filosóficas e culturais subjacentes à cartografia ocidental de um período de mais de um milénio. Comentário, entre inúmeros outros problemas da representação do espaço, do absurdo da localização física de lugares míticos – o El Dorado, Utopia, o Inferno – a peça é em certa medida um anti-objecto que é uma tão bela quanto absurda sum of all withheld and hidden information in a given system. Por outro lado, Nelson projecta a hipótese de uma validade do ornamento e da própria arte no território da cultura científica, interdisciplinariedades que a alta cultura actual hesita em integrar. A peça foi anteriormente apresentada na Plataforma Revólver, em Lisboa (Exposição Objet Perdu, 2010). SN

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2008 Sistema escultórico, componentes de contraplacado pintados.

Simeon Nelson



Relicario Este é um relicário contemporâneo, dedicado a São Vicente. Nesta evocação escultórica, o objecto é um sistema modular que sintetiza geometria ornamental, espiritualidade cristã e design industrial, trazendo corpo, paradoxalmente, à imaterialidade específica daquele mito religioso. Relicario encena uma concreção de energia espiritual; mais do que um símbolo, menos do que um ícone, é um diagrama da discursividade aberta de Vicente. O sistema codifica o paradoxo de utilizar uma grelha para suspender a imponderabilidade religiosa, problema enfrentado por qualquer tipo de iconografia do divino. A peça resultou de uma encomenda do Projecto Travessa da Ermida em Belém, no âmbito do evento Vicente. SN 2010 Sistema escultórico, componentes de contraplacado pintados.

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Simeon Nelson



a casa das duas portas O filme surge como uma viagem da imaginação, despoletada pela experiência de interacção com a escultura a casa das duas portas, de André Banha, uma construção arquitectónica em madeira com diferentes espaços habitáveis. Integrada num espaço expositivo modernista, a obra deu forma à necessidade de o autor-performer expressar a sua relação com o tempo: memória, história; existência, momento; trabalho, sonho. AP “Imagino uma figura humana que se desloca para a frente e à sua volta o tempo passa na forma de séries de imagens infinitas distorcidas pela velocidade do movimento, tornando-se apenas estável essa figura numa espécie de perpetuação do presente. A luta para construir esta possibilidade imaginada dá-se entre a razão e a afecção, o real e o sonho, a liberdade e o nada, entre a fé e eu próprio.”

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Um filme de Abel Pinheiro, 2012. Realização/ Imagem: Abel Pinheiro, José Fangueiro Escultura: André Banha, a casa das duas portas, 2010

Abel Pinheiro



um ensaio (...) Pintura... um ensaio (...) Pintura... trata uma experiência sobre a teoria dos diferencais da palavra, da imagem ‘resgatada’ do real e da imagem do real: conforme Platão no seu ensaio filosófico em Crátilo. O livro original, do qual me apropriei, intitulado ‘Matai-vos Uns aos Outros’, é datado de 1961 e o seu autor, de nome igual Jorge Reis, jornalista e escritor, faleceu em 2005 em Paris. A coincidência que existe no nome do autor de ‘Matai-vos Uns aos Outros’ e de um ensaio (…) Pintura…, vem discutir a problemática já explorada por Joseph Kosuth e no ensaio de Platão supra mencionado, onde o espaço entre a coisa o nome da coisa e a imagem da coisa é relativo. Em um ensaio (…) Pintura… existe em cada uma das páginas uma intervenção com tinta de corretor. As palavras que foram deixadas para ler representam, cada uma delas, uma maneira de pensar a pintura. Por isso das palavras que foram omitidas, sobrou o que delas era apenas visual (i.e. acentuações). A narrativa original é desconstruída ao omitir as palavras e ao mesmo tempo desenraiza o objeto da sua principal função de livro. Com a ausência de narrativa um ensaio (…) Pintura… aproxima-se à pintura. Em suma, é um objeto que pode ser manuseado por quem quiser, funcionando como um livro quando se folheia, mas distanciando-se da lógica narrativa. JR 156

2008

Jorge Reis



A Escultura Doente A Escultura Doente é uma peça que é composta por um saco transparente fechado com fita-cola que se vai enchendo, permanente e progressivamente, até rebentar. Quando rebenta, o buraco é tapado para que encha outravez e assim sucessivamente. É feito um jogo com as palavras que originam o título: primeiro porque é influênciada por uma pintura de Mário Cesariny e segundo porque a peça está ligada a uma máquina que a enche como se se tratasse de uma pessoa doente ligada a uma máquina para sobreviver. A dada altura morre, ou melhor ainda, quase que morre. A Escultura Doente, na verdade, nunca chega a ser uma escultura na sua verdadeira ascensão da palavra. Há-de chegar a uma altura que o ar contido dentro de si a coloca numa situação de tensão que a faz parecer, por breves momentos, dura e forte; e de repente, morre outra vez. JR 2010 158

Jorge Reis



Santidade da Água QUIMICAMENTE A ÁGUA SÓ EXISTE NA LINGUAGEM MESMO QUANDO CORRE NAS MINHAS MÃOS FRESCA SEDENTA DE SER BEBIDA E EU LHE ADIVINHO A VIRTUDE PERCEBENDO-LHE A SANTIDADE JR

160

Santidade da Água é uma peça de chão. Um conjunto de painéis de pintura que, soltos no chão, como num jogo, desenham um padrão. A horizontilidade da peça remete para a ideia de um plano líquido; na sua superfície porém, desenha-se um diagrama patafísico: as moléculas organizam-se para contar detalhes de uma hipotética hagiografia, como que rabiscada a giz sobre uma falsa ardósia. Santidade e jogo, platitude e drama, o ‘trickster’ João Ribeiro continua a brincar com coisas sérias, sem deixar de jogar o jogo do sagrado. A obra foi originalmente apresentada na Biblioteca da FCT-UNL no Campus de Caparica, por ocasião da exposição ‘Visões de Química’, em 2011, comissariada por José Moura. Mário Caeiro João Ribeiro



Serás as raízes que seguram esta terra. As raízes fazem o tronco interno na terra onde a árvore se deita e se eleva em Tronco de Ar. Espaço reservado pelo vazio disponível a ser habitado em emoções cristalinas dos diversos corpos. Representa a união do divino com o terreno através do homem. O que fica – a árvore guarda as mãos dentro das raízes – fica no eterno. AS Aço inox, tecido, tinta 170x0,59x0,59 cm

162

Anabela Santos



Terra radioactiva e remédio natural para o tratamento das diversas enfermidades que afligem a humanidade Terra radioactiva… é composta por um momento performativo durante o qual o corpo do autor recebe um tratamento de argila, colhida nas suas caminhadas pelas praias caldenses. A argila necessária para este tratamento estará presente em bruto e em “impressão de barro”. LS 2 Impressões de barro: argila sobre papel de agáve (cada impressão de barro é par com um pedaço de)

164

Luís Simões



Sem título Esta pintura teve como ponto de partida uma parede de azulejos a partir da qual se imprimiram, numa superfície de tela pintada, as marcas do tempo e da acção humana sobre esta. MS 2009 Acrílico sobre tela 160x230 cm

166

Marta Soares



O Homem de S. Sebastião Mudança de espaço de culto divino para espaço de culto humano. Igreja deu lugar ao homem. Deus deu lugar ao Homem. Agora, o Homem está virado para o Homem. O Homem quer dar o seu tempo ao Homem. O Homem é só homem. O intuito é figurar metaforicamente a linha de contacto entre o homem e o lugar divino no espaço horizontal da capela. Para tal, será criado um passadiço de sal desde o exterior da capela até ao espaço do altar convidando o espectador a entrar de novo. Tudo isto será dissipado com o movimento de pessoas, tal como o espaço de culto. RT

168

Raquel Terenas



Ă?ndice Perspectivas


7

Carlos Manuel Ferreira de Sá 500 Anos da Villa de Caldas da Rainha 500 Anos do Livro do Compromisso

11

Dora Mendes, Mário Caeiro Introdução

16

Conceição Camacho Reflexão: Eu Médica, e o Compromisso

22

Tânia Jorge Hospital de Nossa Senhora do Pópulo – Do Hospital se fez Vila

30

Lisbeth Rodrigues A influência do Compromisso no quotidiano do hospital de Nossa Senhora do Pópulo durante o século XVI

64

António Pedro Mendes Terra: Elemento e Matéria

70

José Moura Fluxos, “Gatekeepers” e Membranas...

74

Mário Caeiro MATRIZCALDAS Fluxo. Vida, Saber, Cidade e Arte 2012-1512

80

Dora Mendes A MATRIZ: O Hospital de Nossa Senhora do Pópulo O Museu do Hospital e das Caldas – Missão e MatrizCaldas


Índice Obras/instalações/intervenções


90

Patrícia Almeida All Beauty Must Die

92

Susana Anágua Ice-o-matic

94

Ivo Andrade Campânulas de Inalação

96

Eunice Artur Respirar

98 100 102

Isabel Baraona Miss you Dearly Auto-retrato Tatua-me

104

Bruno Bogarim Jesus Christ and Ice Cream

106

Emanuel Brás Um livro sem qualidades

108

Luís Campos All-inclusive

110

David Casta D. João II

112

Rui Chafes Devastação

114

Pedro Telmo Chaparra Proibido nadar


116

Biana Costa Memória Branca

118 120

João R. Ferreira Quermesse tu va tomber

122 124

Teresa Forbes a casa Do Excesso ao Silêncio

126 128

Nuno Fragata Correr em Estado Líquido Fluir – parte II

132

Orlando Franco Underneath

134

Hélder Gorjão O Livro Objecto

136 136 136 136

Bruno Jamaica More water and less petrol platform Rain Waters Solar Energy Strings that give energy

138

Orphanus Lauro Pentacquae

140

Miguel Lopes Digestão nº.1


142

Jorge Maciel Será que isto vai funcionar?!

144

Albuquerque Mendes Fiat Lux

148 150

Simeon Nelson Cryptosphere Relicario

152

Abel Pinheiro a casa das duas portas

154 156

Jorge Reis Um ensaio (...) Pintura A Escultura Doente

158

João Ribeiro Santidade da Água

160

Anabela Santos Serás as raízes que seguram esta terra.

162

Luís Simões Terra radioactiva e remédio natural para o tratamento das diversas enfermidades que afligem a humanidade

164

Marta Soares Sem título

166

Raquel Terenas O Homem de S. Sebastião



2011-2012

2010-2011 Desenvolvimento do projecto na disciplina de Arte Pública

Março

1.ª reunião Museu/Palavrão. Programação da exposição e livro.

Abril Maio

Preparação das primeiras intervenções. Contacto com artistas.

Junho Julho

21 Junho 2011 Apresentação pública do projecto.

Agosto

Estudo para livro-catálogo na disciplina de Edição de Livros

Setembro Outubro Novembro Dezembro

1.ª fase da accrochage. Preparação e montagem de obras.

08 Outubro 2011 Inauguração da accrochage com as obras de Ivo Andrade, Eunice Artur, Bruno Bogarim, David Casta, Biana Costa, João R. Ferreira, Teresa Forbes, Nuno Fragata, Orlando Franco, Bruno Jamaica, Jorge Maciel, Anabela Santos.

Janeiro Fevereiro

2.ª fase da accrochage. Preparação e montagem de obras. Preparação do livro-catálogo.

Março

14 a 18 Março 2012 Comemoração dos 500 anos da assinatura do Livro do Compromisso. Accrochage final. Apresentação das obras de Patrícia Almeida, Susana Anágua, Isabel Baraona, Emanuel Brás, Luís Campos, Rui Chafes, Pedro Telmo Chaparra, Hélder Gorjão, Orphanus Lauro, Miguel Lopes, Albuquerque Mendes, Simeon Nelson, Abel Pinheiro, Jorge Reis, João Ribeiro, Marta Soares. Apresentação do livro.



A presente edição não integra a Colecção Insecto, mas podia. De acordo com a bióloga Maria das Mercês Silva e Sousa de Matos, as abelhas são insectos extraordinários. Vivem em sociedades extremamente organizadas, promovendo, com eficiência, a continuidade genética da espécie. Uma colmeia abriga entre 60 a 80 000 elementos e apenas uma rainha. São muito empenhadas nas suas funções, sendo agentes polinizadoras importantes, garantindo a sua subsistência e sobrevivência das plantas a que recorrem. São fonte de inspiração de contadores de histórias e de artistas de diversas áreas, como Rafael Bordalo Pinheiro. Ora a população destes insectos tem estado a diminuir devido à utilização de produtos químicos na agricultura que, afectando o seu cérebro, influenciam negativamente a orientação destes animais na procura de alimento e a sua comunicação dentro da colmeia. A extinção destes lindos e úteis seres seria muito prejudicial para os ecossistemas e para todos nós. Bzz.


MatrizCaldas é um projecto integrado de arte contemporânea e animação museológica para comemoração dos 500 anos da Vila de Caldas da Rainha (1511-2011) e da assinatura do Livro do Compromisso pela Rainha D. Leonor (1512-2012).


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