Nômade de alma
Anne partiu do inverno gelado de Toulouse com uma passagem de avião em mãos, algumas gomas nos bolsos e nenhuma lágrima nos olhos.Um abraço nos amigos, um beijo na família e até logo. Formada em antropologia, queria trabalhar com gente. Já foi ginasta, lia Kundera, dançava bolero, mas não sabia o que era cumbia. Desembarcou em Buenos Aires aos 40 graus, amarrou um elástico no cabelo, alugou um quarto em uma república e foi virar porteña. Anne trocou ofois gras da casa dos pais por um pancho em San Telmo. Fez companhias, amizades, amores e fotos. Excelente fotógrafa, em poucos meses suas lentes conheceram o Uruguai, Chile, Bolívia e Brasil. Anne parece nativa em filas de shows, bibliotecas, baladas e cafeterias. Não é apática, não é católica, não é judia, crê em Deus, não usa drogas, bebe socialmente, tem um poster da Greta Garbo colado na parede do quarto e um Lucky Strike escondido na bolsa. Aos 20 anos, quando morou em Londres, fez uma tatuagem nas costas. Malditos “rosbifs”, não desenharam a mandala como a francesa pediu. A vaidade de Anne respirou fundo, laisser faire laisser passer. Já tem o desenho da próxima em mente. Anne, aos poucos, trocou as Falkand Islands pelas Islas Malvinas. Juntou as palavras novas que aprendeu, prorrogou o visto, comprou mais um lenço, e foi trabalhar com vinhos em Mendonza. Na última vez que a vi, faltando uma semana para o carnaval, Anne sentada nas escadas de uma lavanderia, usando uma camiseta lisa da época de ginasta mandava mensagens pelo Iphone para a família. Com a mesma destreza de quem dá um nó cego, me acenou e disse que iria novamente visitar o Brasil, queria ver os desfiles de perto. Perguntei-lhe se já estava com tudo pronto para a viagem, e ela com um português trôpego respondeu-me “Claro, passagem de ida comprada!”. Continuei meu trajeto suspeitando que a resposta fora um deboche. Aos trancos e barrancos, peguei o caótico metrô das 18 horas, olhei em volta, assertiva incorreta, não fora uma broma. O vagão estava cheio de pessoas livres em meio à multidão presa. Anne é uma dessas, livre e nômade, de alma. Pâmela Carbonari