Bolaño, Benjamin, Walser Três ensaios
Christopher Domínguez Michael
Bolaño, Benjamin, Walser Três ensaios
Tradução Rafael Gutiérrez
© Christopher Domínguez Michael, 2017 © Papéis Selvagens, 2017 Organização e notas Rafael Gutiérrez, Antonio Marcos Pereira Tradução Rafael Gutiérrez
Capa Martín Rodríguez
Desenhos María Elvira Díaz-Benítez Revisão Carolina Maia
Diagramação Papéis Selvagens
Conselho Editorial Alberto Giordano (UNR-Argentina) | Ana Cecilia Olmos (USP) Elena Palmero González (UFRJ) | Gustavo Silveira Ribeiro (UFMG) Jaime Arocha (UNAL-Colômbia) | Jeffrey Cedeño (PUJ-Bogotá) Juan Pablo Villalobos (Escritor) | Luiz F. Dias Duarte (MN/UFRJ) Maria Filomena Gregori (Unicamp) | Mônica Menezes (UFBA)
[2017] Papéis Selvagens papeisselvagens@gmail.com papeisselvagens.com
Sumário
Bolaño e o México
Walter Benjamin: diário no museu dos brinquedos Passeios com Robert Walser Sobre o autor
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A MarĂa Baranda
Bolaño e o México
Todos aqueles que leram os contos, entrevistas, resenhas, poemas, romances e relatos de Roberto Bolaño sabem que é exagerado dizer que o México é o lugar principal em sua obra. Claro que o México do Bolaño, como a Normandia de Flaubert, a Colômbia de García Márquez ou a São Petersburgo de Andrei Biéli, são terras da imaginação cujo nexo com a realidade geográfica é, por sorte, aproximado. No entanto, no México tornouse frequente dizer que desde Sob o vulcão, de Malcolm Lowry, um romance de 1947, não se escreveu nenhum romance sobre o México ou tendo o México como cenário como Os detetives selvagens. Há pessoas no México, como eu, que sentimos a necessidade, um tanto neurótica, de reivindicar Bolaño, entre as variadas coisas que foi, como um escritor mexicano. Bolaño esteve no México entre os quinze e os vinte e dois ou vinte e três anos. Nesse meio tempo, retornou uma vez ao Chile, na época do 11 de setembro de 1973, durante o Golpe Militar. Depois, em 1976, Bolaño vai para Europa e nunca retorna ao México. Mas esses anos mexicanos são os anos formativos, e os anos formativos de um homem da sensibilidade artística e intelectual de Bolaño não podem ser senão decisivos: chegou à adolescência e ali viveu a primeira juventude, fez suas primeiras leituras, viu o cenário de toda sua obra futura e foi embora. Seu México tem uma série de características que o fazem não só inesquecível mas também intensamente poético: captou uma série de coisas que os nascidos na Cidade do México não percebemos, e que também não viam, acredito, os próprios poetas mexicanos. Devo esclarecer que eu
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nunca vi Bolaño, tampouco falei com ele, nem em seus anos mexicanos (eu era uma criança) nem depois. Em diversas ocasiões, ao longo de sua obra, Bolaño fala, por exemplo, dos entardeceres no Distrito Federal, em como se demora em cair a noite de uma forma lenta e desesperada. Isto, que pode parecer uma futilidade, uma minúcia, e que qualquer poeta poderia imaginar, é um descobrimento, um descobrimento que somente pode fazer um poeta. Também tomou a essência da linguagem coloquial, vernácula e dos jovens, que conservou como uma espécie de tesouro ao longo de sua vida de viajante; o resultado são romances que funcionam como um depósito formidável da forma com que se falava no México entre 1968 e 1976. Às vezes, Bolaño erra em algumas conjugações do verbo chingar, mas isso pode acontecer com qualquer um, e ele não se incomodaria por ser surpreendido brincando com as palavras mexicanas. E temos, finalmente, uma ideia excepcionalmente lúcida da literatura e da vida literária no México, como evidencia a seguinte, inquietante citação: A literatura no México é como um jardim de infância, uma creche, um kindergarten, uma escolinha, não sei se me entendem. O clima é bom, faz sol, você pode sair de casa, sentar num parque, abrir um livro de Valéry, talvez o escritor mais lido pelos escritores mexicanos, depois ir à casa dos amigos e conversar. Mas a sua sombra não segue mais você. Em algum momento, ela o abandonou silenciosamente.1
Bolaño, Roberto. 2666. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das letras, pp. 126-127. 1
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Falando um pouco de Os detetives selvagens – que é o primeiro grande romance de Bolaño, o segundo seria seu romance póstumo, 2666 –, há uma ideia que me parece muito boa para pensar. Bolaño tem muitos leitores neste momento e vai ter mais no futuro. Os leitores contemporâneos estamos de alguma forma paralisados ante esse espetáculo que, quando acontece, é assombroso mas também um pouco arrepiante: ninguém espera o aparecimento de um grande escritor, no fundo ninguém pede para ele chegar e, quando ele chega, às vezes preferiríamos que não tivesse chegado, porque deixa essa sensação ambígua, própria da boa grandeza: o sentimento de que muitas das coisas que, como poetas, narradores e inclusive como críticos, poderíamos fazer já não são necessárias, pois apareceu alguém que as fez, e não se trata de um escritor da antiguidade, mas de nosso contemporâneo, alguém que respirou o mesmo ar que nós e andou por nossas ruas e deixou cair o mesmo olhar idiota de adolescente sobre aquilo que queríamos que transcendesse. A literatura de Bolaño tem muito a ver com o Chile e tem muito a ver com o México. Os detetives selvagens é um romance de formação, é um romance de viagens, e é um cenário onde aparece um grupo de jovens poetas que vão fazer, na Cidade do México e depois nos desertos do norte do México, sua educação sentimental. A enorme dimensão de sua obra tem feito com que tenha um número considerável de intérpretes, alguns dos quais foram seus amigos. Ignácio Echevarría, o crítico espanhol, diz que a figura central de Bolaño é o poeta e, depois, tal como afirma Juan Villoro (citando, por sua vez, Piglia), o detetive, que é uma forma do intelectual, um homem que atua um pouco à maneira do letrado empirista ou do sábio louco do século XVIII, alguém que vive no mundo do raciocínio, da prova, do
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combate contra a superstição. É o poeta transformado em detetive, e a esta sucessão de caracterizações eu acrescentaria que seu personagem essencial é o poeta de vanguarda: o poeta como jovem rebelde, o poeta que tem a ilusão, ou que vende a mentira, de que a literatura atual pode ser exterminada para ser inventada de novo. A vanguarda como a modificação da ordem dos clássicos, a vanguarda como a modificação da linguagem e, sobretudo, a vanguarda como um modo de vida. Bolaño foi, nessa dimensão, um escritor profundamente chileno. Em minha opinião, não há literatura na América Latina na qual a vanguarda seja tão bem-vista como no Chile. Tanto que o vanguardismo chileno também é, há muitos anos, como acontece com todos os ismos, um academicismo. Eu não conhecia a edição espanhola das obras de Nicanor Parra, que comprei ontem, comecei a ler, vi as fotos a cores dos artefatos, e pensei “aqui temos a Vitória de Samotrácia, finalmente”; a doutrina da vanguarda latino-americana tem no Chile uma reputação quase oficial, que se sustenta, claro, na recepção excepcionalmente fecunda que todas as vanguardas tiveram na maioria dos poetas latino-americanos… o Chile é o país da vanguarda, o país de Nicanor Parra e também de Huidobro e de todas as coisas estranhas e loucas que fizeram os poetas chilenos contemporâneos: o happening, a performance, as colagens públicas, o surgimento de um personagem que, para mim, é como uma espécie de Cagliostro moderno, Alejandro Jodorowsky, que tem também sua época mexicana… Mas esse ambiente de permanente ebulição vanguardista é totalmente alheio à tradição mexicana. Bolaño o sabia e, por isso, boa parte de Os detetives selvagens está baseado na imaginação romanesca do que foi a única vanguarda literária mexicana com certo prestígio, o estridentismo. No México a vanguarda não
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se desenvolveu monstruosamente, como se desenvolve toda vanguarda de respeito. O estridentismo, o equivalente do ultraísmo espanhol, durou mais ou menos um ano e meio, porque aconteceu algo que só acontece no México: o governador do estado de Veracruz, que era o general Adalberto Tejeda, um militar de ideias avançadas, ordenou “que esses garotos de ideias brilhantes venham trabalhar comigo”, e os transformou em ministros da cultura em 18 meses. O serviço público abriu as portas à vanguarda, e a vanguarda mexicana acabou. Isto não quer dizer que os verdadeiros poetas da época, os Contemporâneos, não tenham se apropriado de algumas ou muitas noções da vanguarda. Eles o fizeram, mas com cautela: eram, para dizê-lo nerudianamente, gidistas. E quando dizem que a hegemonia da poesia mexicana é o crepuscular, o meio-tom, fala-se com certa veracidade. E as tentativas de romper esse tipo de cortesia ambiente, como as de Gorostiza, Jorge Cuesta ou, mais recentemente, David Huerta, têm sido esforços onde a procura da ruptura não se faz na rua, no mundo selvagem, digamos, mas na especulação filosófica. A poesia mexicana oferece uma verdadeira coleção de poemas filosóficos, intelectuais ou teoréticos, como Muerte sin fin, de José Gorostiza, Cada cosa es Babel de Eduardo Lizalde, nos anos sessenta, ou os poemas considerados herméticos de Gerardo Deniz. O caráter de vanguarda no México é especulativo, à Valéry, no melhor dos casos, e Bolaño sabia disso. Talvez em sua origem esteja Primeiro sonho, o grande poema conceptista de sóror Juana Inês, mas isso seria ir longe demais… Bolaño encontra, então, duas tradições: a tradição da vanguarda chilena que traz no sangue e este mundo crepuscular que aponta para o clássico, o ordenado, que é o mundo da poesia mexicana. Em Os detetives
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selvagens, apresenta a relação com seu pequeno grupo de amigos e os transfigura, pois os infrarrealistas foram um fenômeno extremamente modesto (e, diga-se de passagem, se entre eles não tivesse existido um escritor como Bolaño, teriam ficado no esquecimento). Bolaño é um romancista que cria lendas (dentro e fora do texto) e algumas das mitologias próprias da fama já colocam o grupo infrarrealista como a verdadeira literatura mexicana que naquele momento vivia oculta, reprimida, obrigada à clandestinidade pela poesia oficial, pelo establishment. E assim como é frequente agora escutar meio México proclamar-se amigo ou compinche2 de Bolaño, também é desagradável ler essas resenhas anglo-saxãs de seus romances recém-traduzidos que o apresentam como um boêmio miraculoso ou como o milagre da boemia, como se Bolaño não fosse realmente um escritor profissional (se ele não foi um escritor profissional, eu não sei quem possa ser). Ele foi um homem que, definitivamente doente, dedicou seus últimos dez anos de vida a construir uma obra enorme, em tamanho e em qualidade; e não pode ser senão, insisto, o escritor profissional ante o Altíssimo. Mas voltemos ao assunto de Bolaño, à vanguarda no meio do classicismo mexicano… Para mim é particularmente emocionante a terceira parte de Os detetives selvagens, que é a parte na qual muitos leitores abandonam a leitura, pois impera, eu compreendo, essa negativa muito latino-americana de cortar, abreviar. Mas me encanta essa terceira parte, a pesquisa pelo norte do México atrás dessa poeta mítica, Cesárea Tinajero, deusa perdida que guarda consigo os segredos de uma vanguarda que não existiu totalmente, a vanguarda mexicana, inexistência que, por sua vez, é uma metáfora 2
Giria mexicana para se referir ao amigo ou camarada.
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do destino geral da vanguarda, um tema que preocupava muito a Bolaño. Quem ler seus textos críticos e entrevistas pode perceber que ele era um homem com uma visão da literatura mundial, um escritor preocupado com a tradição e com a forma de organizá-la, e nada tinha a ver com o vanguardista primitivo, aquele que rompe simplesmente. Em Bolaño havia uma imensa vocação para a ordem, o que creio também era seu defeito, pois tinha a ilusão de militarizar o cânone. Quando falava de literatura argentina, por exemplo, de imediato limpava a mesa e começava a repartir as posições: aqui está Borges, lá, Roberto Arlt, aqui está tal revista, aqui, tal outra, lá os escritores inclassificáveis, como Lamborghini, etc. Bolaño se entusiasmava, por assim dizer, com as tarefas da organização política da literatura e rechaçava com clareza tudo aquilo que era alheio a ela – fato que fomentou inimizades e invejas no México e no Chile, porque ele sinalizava o que não é literatura, porque nem todos os que escrevem livros são escritores, e Bolaño rechaçava, sem maiores contemplações, o estúpido, o passageiro, o unicamente mercantil. E talvez essa necessidade hierárquica expressasse seu lado mexicano (estou brincando): a arte de desenhar a pirâmide e habitá-la. Temos, então, o poeta chileno de vanguarda onde não há vanguarda organizada; e o homem que lembra melancolicamente sua juventude e começa a escrever seu grande romance, Os detetives selvagens, nos anos noventa, falando e fazendo mitologia de sua pequena história com os infrarrealistas. O grupo infrarrealista nos remete a certas páginas de Mario Praz, em A carne, a morte e o diabo na literatura romântica, nas quais o escritor italiano descreve o grupo de loucos que rondava o panorama do romanticismo francês em 1830, menciona os licantropos – poetas lobos e hidrófobos que só bebiam álcool, alérgicos à água – e afirma que nesse
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tempo era necessário distinguir entre folclore literário e a verdadeira literatura; daí que entre esses grupos, como também aconteceu na época surrealista, só alguns poucos fossem compostos por verdadeiros poetas e os restantes fossem apenas protagonistas de uma onda de ansiedade cultural, autores de uma poesia muito beat, um pouco Allen Ginsberg em versão asteca radical. A atividade dos infrarrealistas não ia muito além de ir às palestras onde se apresentavam os poetas importantes e, da plateia, provocá-los com arengas ideológicas. Esses pequenos incidentes eram muito infantis: apertar a campainha e sair correndo gritando as habituais consignas supostamente iconoclastas da esquerda grupuscular… Talvez se isso tivesse acontecido no Chile, que transmite a mitologia de que boa parte da vida literária baseia-se no respeito, na admiração e no cultivo da superstição da vanguarda, talvez tivessem mais atenção. Seria extraordinário, por outro lado, fazer uma versão anotada de Os detetives selvagens, porque à medida que vamos lendo começamos a reconhecer uma densa quantidade de personagens da literatura mexicana (às vezes há nomes verdadeiros), sobretudo da geração imediatamente anterior à minha, dos nascidos nos anos cinquenta. Com uma edição anotada seria possível reconstruir, quase à perfeição, o mapa literário do México dos anos setenta. Outro assunto que me interessa muito é o capítulo dedicado ao estranho encontro de Octavio Paz com Ulises Lima, um dos poetas que protagonizam o romance. São páginas ternas, irreverentes, simpáticas: Paz começa a frequentar com sua secretaria um parque da Cidade do México chamado Parque Hundido (que não é como Bolaño diz, o parque de Bolaño é muito melhor que o verdadeiro Parque Hundido, para isso temos a literatura). De repente, vemos um inverossímil Octavio
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Paz como personagem literário de Bolaño indo três vezes seguidas ao parque, onde combina um encontro com um jovem poeta com o qual trava um duelo que consiste em que os dois caminhem um ao redor do outro enquanto fazem uma espécie de combinações numéricas. Acontece esse rito de passagem, o Octavio Paz imaginário de Bolaño senta em um banco com Ulises Lima, eles têm um diálogo – do qual não escutamos nada porque o está narrando a secretaria de Paz que o levou ao lugar – e pronto, acabou-se o rito de passagem. Ali aparece de repente, graças ao profundo conhecimento que Bolaño tinha da natureza mutante do espectro como herói e do poeta como protagonista, um Octavio Paz romanesco, inverossímil, visto a partir de uma ótica brincalhona, infrequente no México. Em Bolaño há duas ideias complementares do México, do Distrito Federal: para ele esta é a cidade da saudade, da adolescência, onde o jovem é, realiza-se e sofre a metamorfose fatal; e, por outro lado, o México é uma terra de fronteira, o imenso norte do México que, para ele, é matéria de um western. Nos anos setenta e oitenta havia escritores, alguns deles notáveis, como Daniel Sada, que decidiram escrever os romances e os contos dessa zona desértica que estava um tanto ausente da literatura mexicana. Mas a versão estritamente genial, a invenção verdadeira deste mundo de fronteiras é a que ocorre na terceira parte de Os detetives selvagens, quando os poetas saem na procura desta poeta estridentista que lhes revelaria, de alguma maneira, o segredo do mundo. Depois de Os detetives selvagens, Bolaño escreveu um romance curto, Amuleto, que é uma das histórias de Os detetives selvagens relatada em 150 páginas; inspirando-se em um personagem real que alguns conhecíamos – ainda que fosse a partir dos confins da infância –, a poeta uruguaia que fica presa em um
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banheiro da Faculdade de Filosofia e Letras da UNAM3 no dia 18 de setembro de 1968, quando o exército ocupa militarmente a universidade. A mulher se aterroriza, acha que vão matá-la ou levá-la presa e fica escondida no banheiro vários dias, tomando somente água da torneira; fica ali dez ou doze dias até que as autoridades retornam à universidade e a encontram. Em Amuleto, que é uma espécie de peça intermédia entre Os detetives selvagens e 2666, aparece o lado brega de Bolaño, esquerdista, guevarista, toda essa pulsão do latino-americano, esse “tango latino-americano”, como ele o chamava, doença da qual não estava excluído, mas que ele sabia reconhecer e separar graças a sua inteligência crítica. O segredo do mundo, em 2666, já não está na procura de uma poeta infrarrealista, mas em algo muito mais terrível: identificar a Ciudad Juárez e os espantosos e recorrentes assassinatos de mulheres nessa cidade como uma espécie de ferida sangrenta, sobrenatural do mundo. Porque Bolaño suspeitava de algo em que acreditou Antonin Artaud nos anos trinta, que o México seria uma espécie de pulmão sagrado do planeta, ou um lugar como aqueles que detectava Júlio Verne nos vulcões da Islândia, passagens para o centro da terra. Claro que Bolaño não vende o assunto usando com desfaçatez a chave esotérica-popular, como fez outra classe de escritores. Bolaño escreve os cinco romances de 2666 com a ideia metafórica, um tanto religiosa, de que a desordem do mundo se explica em Ciudad Juárez e que a investigação desses crimes traz consigo a possibilidade de ver o futuro. Porque a figura completa de Bolaño é a figura de um poeta. Os versos que escreveu não me impressionam muito, mas facilitam a compreensão de sua obra para quem quer estudá-la 3
Universidade Autônoma do México.
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em profundidade: mais que rascunhos, são uma espécie de agenda onde aparecem as principais preocupações que ele vai levar para o conto e o romance. Porque ele acreditava que o romance é um gênero muito jovem, que tem no máximo dois séculos de antiguidade, e que não há nada da poesia que não possa ser levado para o romance. Coisa interessante, porque um grande escritor que também morreu aos cinquenta anos, o poeta russo Joseph Brodsky, pensava o contrário; esse diálogo imaginário entre os dois mortos nos levaria à velha e nunca terminada querela entre a prosa e a poesia. Mas Bolaño aposta na vidência, ou seja, na capacidade dos homens tocados pelo mistério do poético para ver além do tempo. Os detetives selvagens e 2666 são um díptico: na primeira parte se reflete o mundo de formação, o mundo dos jovens, do escritor que se faz a si próprio; há enormes e deslumbrantes páginas sobre a iniciação sexual, sobre a forma em que vão caindo os livros nas mãos dos jovens e vai se tornando absolutamente vital encontrarse em determinado momento com Henry Miller e não com Herman Hesse, etc. Se você quer saber, averiguar, lembrar como se faz um escritor, deve entender que Os detetives selvagens é um romance de formação, o livro é como a adolescência do mundo, um romance matinal. E 2666 é o romance do crepúsculo, apocalíptico, ao redor do qual giram os diversos temas que interessavam a Bolaño, como a crítica da sociedade literária (o que é um escritor atualmente, quais são seus preconceitos, quais suas fobias, como escreve nos aviões, como é sua relação com o dinheiro, como transcreve seus tratos e comércio com os editores), da mesma forma que seu assombro frente aos Estados Unidos, vistos desde a fronteira mexicana. Embora Paz e Carlos Fuentes tenham sido obrigados profissional e nacionalmente a pensar na
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fronteira, Bolaño é um dos escritores contemporâneos ocupados em repensar o que é Estados Unidos, para além do amor/ódio que impera fatalmente entre os mexicanos. Bolaño é menos maniqueísta, trabalha livre do ócio e do negócio dos arquétipos. Em 2666 se revisam os mitos populares americanos através de um dos personagens (o comunista nova-iorquino) e se examina a literatura americana de fronteira. Por exemplo, ao contrário da grande maioria dos escritores mexicanos, Bolaño percebeu a importância de um romancista como Cormac McCarthy. Os crimes da Ciudad Juárez, em 2666, iluminam a passagem do século XX para o XXI; para Bolaño, jogam luz, uma luz sinistra e que enceguece, sobre os grandes massacres do século passado. Por isso, um dos romances que compõem 2666 é uma reconstrução do horror do front russo na Segunda Guerra Mundial, com a invasão alemã e a resistência dos partisans. Magistral. Ainda não fiz releituras suficientes para dizer (ou dizer para mim mesmo) se esse romance é paródico ou não. Tenho a impressão de que não, mas a paródia se manifesta geralmente na segunda ou terceira releitura. É curioso como Bolaño localizou um centro literário, romanesco, e fez irradiar a partir desse ponto sua literatura; e isto significou para os escritores mexicanos – e para os chilenos, mas de outra maneira – uma situação um tanto angustiante, como comentava no início: o estrépito que produz o aparecimento de um grande escritor, a sensação de que muitas das coisas que nós sonhávamos dizer já foram ditas. E, finalmente, a capacidade de Bolaño para ver tantas coisas no horizonte ao mesmo tempo nos fez sentir, nós, escritores mexicanos, devedores de sua visão da Cidade do México, ou desses grandes desertos do norte que nós não tínhamos visto, mas que o olhar de um “estrangeiro engajado” pode abranger, de alguém
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que transita pelo México, pega o essencial e vai embora. Seu México não se desgasta como ele se desgasta, sem remédio, para os mexicanos. Bolaño tem o desejo, e esses desejos são sempre muito difíceis em qualquer escritor (e ainda mais em um escritor inteligente como Bolaño, que não vai oferecêlo de uma forma simples), aliás, tem a ideia incomum, que talvez só pudesse ser pensada pelos russos – porque eles sempre pensam estas coisas –, de dar um sentido completo ao que é o México. Ele tem a necessidade de dizer “o México é desta forma ou daquela outra”. Esse México “pós-moderno”, para chamá-lo de algum modo, não tem a ver com certos Méxicos anteriores, não é o México indígena ou o que as elites alimentadas de indigenismo pensavam que era, também não é o México da revolução com as imagens lendárias e um tanto comerciais de Zapata e Villa, não é esse México. O Distrito Federal também não é em Bolaño matéria de ódio, vergonha e asco, não tem tom de hino, nem é elegíaco ou cassandresco, como é na maior parte dos poetas mexicanos. Para Bolaño a Cidade do México é bela, emotiva, quase um paraíso muito afastado dos “paraísos infernais” que ali situaram os anglo-saxões. Ele traslada o crime para o norte e a capital se conserva como essa espécie de paraíso da adolescência, onde há um lugar como o Parque Hundido, onde alguém como Octavio Paz, que não é Octavio Paz, brinca de amarelinha com um jovem poeta que acredita ter achado a fórmula lúdica para seduzi-lo. Há uma frase que pode servir para finalizar. Encontra-se em Os detetives selvagens, na página 245, na qual um dos personagens está refletindo sobre o que é o livro e o diz da melhor maneira: “uma história de poetas perdidos, de revistas
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perdidas e de obras sobre cuja existência ninguém sabia palavra, em meio a uma paisagem que talvez fosse da Califórnia ou do Arizona ou de alguma região mexicana limítrofe com esses estados, uma região imaginária ou real, mas desbotada pelo sol e num tempo passado, esquecido ou que, pelo menos aqui, em Paris, na década de 70, já não tinha a menor importância. Uma história extramuros da civilização”.4 Palestra realizada no dia 24 de outubro de 2007 em Santiago do Chile. Texto publicado em: La sabiduría sin promesa: vidas y letras del siglo XX. Santiago de Chile: Ediciones Universidad Diego Portales, 2009, pp. 95-104.
Os detetives selvagens. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, pp. 245-246. 4