CORRUPÇÃO
Um estudo sobre poder público e relações pessoais no Brasil
Marcos Otavio Bezerra
CORRUPÇÃO
Um estudo sobre poder público e relações pessoais no Brasil
Copyright © 1995, Marcos Otavio Bezerra Copyright desta edição © 2018, Papéis Selvagens Coordenação Coleção Kalela María Elvira Díaz-Benítez Projeto gráfico Martín Rodríguez
Capa e diagramação Papéis Selvagens
Imagem de Capa Glaucus Noia (flickr.com/photos/glaucus/) Revisão Brena O’Dwyer
Conselho Editorial Alberto Giordano (UNR-Argentina) | Ana Cecilia Olmos (USP) Elena Palmero González (UFRJ) | Gustavo Silveira Ribeiro (UFMG) Jaime Arocha (UNAL-Colômbia) | Jeffrey Cedeño (PUJ-Bogotá) Juan Pablo Villalobos (Escritor-México) | Luiz Fernando Dias Duarte (MN/UFRJ) Maria Filomena Gregori (Unicamp) | Mônica Menezes (UFBA) Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (eDOC BRASIL, Belo Horizonte/MG)
Bezerra, Marcos Otavio, 1964Corrupção: um estudo sobre poder público e relações pessoais no Brasil / Marcos Otavio Bezerra. - 2. ed. - Rio de Janeiro (RJ): Papéis Selvagens, 2018. 272 p. : 16 x 23 cm - (Kalela; v. 4) Bibliografia: pp. 219-226 ISBN 978-85-92989-18-7
1. Antropologia. 2. Brasil - Política e governo. 3. Corrupção na política - Brasil. 4. Nepotismo. I. Título. II. Série CDD 320.981 [2018] Papéis Selvagens papeisselvagens@gmail.com papeisselvagens.com
Sumário Lista de Tabelas e Gráficos
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Prefácio à segunda edição
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Capítulo I Relações e redes pessoais Parentesco, amizade e patronagem Redes pessoais
47 54 60
Apresentação 11
Introdução 25 A questão 25 A análise dos “casos” 33 Sobre o acesso e a natureza do material analisado 36
Capítulo II O “Caso Valença” Capítulo III O “Caso Capemi”
Capítulo IV O “Caso Coroa-Brastel” Considerações finais
Referências bibliográficas
Pós-Escrito Corrupção e produção do Estado O orçamento público e a CNO Oficialização de interesses empresariais e práticas políticas A domesticação dos procedimentos administrativos Distribuição de “brindes” e relações pessoais Considerações finais Referências bibliográficas
63 105 149 209 219
225 233 236 251 255 261 263
Lista de Tabelas e Gráficos Tabela 1 Número aproximado de matérias identificadas por “caso” e por jornais
Tabela 2 Número aproximado de matérias reproduzidas por “caso” e por jornais Gráfico 1 Rede de contatos pessoais
Gráfico 2 Contatos pessoais de Fernando Pessoa Gráfico 3 Contatos pessoais de Abissâmara
Resumo de alguns contratos efetuados Gráfico 4 Contatos telefônicos
37 38 65 114 114 124 173
No orçamento do ano passado houve supressão de várias taxas que existiam em 1928. A receita, entretanto, calculada em 68:850$000, atingiu 96:924$985. E não empreguei rigores excessivos. Fiz apenas isto: extingui favores largamente concedidos a pessoas que não precisavam deles e pus termo às extorsões que afligiam os matutos de pequeno valor; ordinariamente raspados, escorchados, esbrugados pelos exatores (Graciliano Ramos - Relatórios).
Apresentação Antonio Carlos de Souza Lima PPGAS/Museu Nacional/UFRJ Capitalismo ou feudalismo? Atraso ou modernização sem mudança? Autoritarismo ou liberalismo? Racionalidade das normas ou irracionalidade dos vínculos interpessoais? O entendimento da sociedade brasileira tem sido com frequência mediado por um conjunto de pares polares. Tal forma de pensar é elucidativa mais dos limites das pesquisas por elas estruturadas, de seus alicerces teórico-políticos, do que das relações a serem descritas. São comparações implícitas sempre redivivas que nos opõem - e a um suposto mundo de origem “ibérica” - aos Estados Unidos e ao “mundo anglo-saxão”. De fato são dicotomias capazes de, a exemplo dos diacríticos étnicos, construírem identidades contrastivas, positivadas ou não, mas principalmente encobridoras de fenômenos de maior envergadura, impensados capazes de sustentar automatismos constitutivos do cotidiano. Sem desconhecer as especificidades histórico-culturais, a pesquisa resultante no livro de Marcos Otavio Bezerra permite ultrapassar esse tipo de apreensão mais imediata do senso comum - e do senso comum erudito - acerca da vida social brasileira. Entretanto, a partir de uma démarche construtivista, um dos temas mais polêmicos dos anos nos quais se elaborou, o livro aborda as chamadas práticas corruptas antes de tudo como objeto de conhecimento: sem paixões morais, mas também sem retóricas supostamente analíticas, nada distantes de pesadas reificações de comportamentos arraigados. Ao produzir a corrupção como objeto de conhecimento, o livro demonstra o quanto a investida da razão é capaz de vitalidade, mesmo quando os manifestos “religiosos”, anticientificistas, e a crença num poder quase transcendente das imagens e na incomunicabilidade tornam-se a cada dia mais frequentes nas Ciências Humanas. O esforço de objetivação necessário ao conhecimento científico é aqui presidido pelo trabalho sobre material empírico cuidadosamente analisado, sem os traços característicos do “ensaísmo brilhante” com que o grande público muitas vezes identifica
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o sociólogo/antropólogo. Isto não significa, porém, estarmos longe dos processos interpretativos e do bom texto. Retomando temas clássicos da Antropologia Social como os de parentesco, da reciprocidade nas trocas, da expressão diferencial de sentimentos e relações como os da gratidão e da amizade, o autor recoloca problemas característicos da pesquisa em Ciência Política do ponto de vista singular da Antropologia Social - aquele que insiste em ouvir a versão dos agentes concretos, seja sob forma oral, seja sob forma escrita, para então realizar sua investida sobre um universo de significados concebidos como outro. Os processos de construção de Estado, o funcionamento da burocracia, das fronteiras entre o público e o privado, a própria noção de legitimidade ganham um outro terreno para serem discutidos a partir de experiências sociais concretas, sem que se iludam problemas de maior abrangência com uma simples adjetivação: o à brasileira, comum aos “ideólogos” de nosso “sistema”, tão sem ideologias aparentes. A coragem e o rigor de Marcos Otavio Bezerra ao enfrentar um tema que, por seu caráter quente e grande visibilidade, poderia virar denúncia fácil ou amontoado de lugares comuns, e a real demonstração de maestria em realizá-lo, mereceram o reconhecimento da corporação de cientistas sociais através do prêmio de melhor dissertação de mestrado do ano, conferido em 1994 pela Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs). Trata-se aqui, enfatizo, de boa Antropologia, para além dos estereotipos com que vulgarmente se identifica esta disciplina. Um sinal da força e da relevância de um saber e de uma perspectiva que, mais uma vez, aqui se afirmam capazes de expansão sobre outros terrenos, com novas contribuições.
Prefácio à segunda edição Escrevi as primeiras versões deste livro no começo dos anos de 1990.1 Nesta ocasião, eu destacava o caráter cíclico do surgimento dos “casos” e “escândalos” de corrupção no debate público. Transcorridos os anos, o que se constata é algo a mais, a centralidade que o tema da corrupção passou a ocupar nas agendas públicas nacionais e internacionais. Isto se expressa, por exemplo, na ampla legislação produzida sobre o tema, na criação de instituições de combate à corrupção, na difusão de programas e movimentos anticorrupção e na destituição de governos nos diferentes continentes em nome do combate à corrupção. Em suma, a corrupção ganhou o status de um problema público internacional, presente em países pobres e ricos, do sul e do norte, com regimes democráticos e autoritários. Estes aspectos associados ao tema da corrupção são alguns dos efeitos produzidos pelas recentes políticas internacionais e nacionais de combate à corrupção, nas quais se inscreve a Operação Lava Jato no Brasil. Como pode-se constatar a partir do caso desta operação, as medidas implementadas em nome do combate à corrupção têm impactos institucionais, legais, políticos e cognitivos, uma vez que contribuem para a difusão de concepções específicas sobre a corrupção, suas causas e seus promotores. São exemplos, nesse sentido, a atualização e circulação da ideia de que governos militares são imunes à corrupção e a identificação das atividades e práticas políticas como fonte exclusiva da corrupção. As evidências empíricas e os argumentos reunidos no livro disponibilizado através desta nova edição não permitem corroborar formulações como estas. Mas além de contribuir para Em 1993, uma versão foi defendida como dissertação de mestrado em Antropologia Social no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, cuja orientação coube ao Dr. Moacir Gracindo S. Palmeira. No ano seguinte, a Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais (ANPOCS) conferiu ao trabalho o prêmio de melhor dissertação de 1994. Uma nova versão do texto foi então preparada e publicada como livro em 1995. O fato do livro se encontrar esgotado é um dos motivos para a publicação desta nova edição, cuja ideia foi acolhida com entusiasmo e cuidado pela Editora Papéis Selvagens. 1
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renovar o questionamento sobre visões vigentes sobre a corrupção, acredito que esta edição se justifica quando se observa as questões e perspectivas de análise privilegiadas pela literatura recente das ciências sociais, e em particular da antropologia, dirigida para a compreensão do fenômeno da corrupção: o questionamento dos limites impostos às análises que partem de definições oficiais e normativas da corrupção, a recusa de abordagens moralistas e a preocupação com a análise do modo como as práticas de corrupção se articulam ao funcionamento cotidiano do Estado, de empresas, instituições e às práticas e valores ordinários de segmentos das sociedades. Preferi manter nesta edição o texto originalmente publicado, mas a ela acrescentar um artigo recente que reúne novas evidências empíricas e desenvolve argumentos antigos e novos sobre a relação entre Estado, empresas privadas e corrupção no Brasil2. A partir de documentos da Construtora Odebrecht tornados públicos em meados dos anos de 1990, o artigo “Corrupção e produção do Estado” examina como a empresa, uma das principais empreiteiras implicadas na Operação Lava Jato, atuava, através de redes de relações construídas com funcionários, autoridades governamentais e políticos, junto a órgãos públicos, de modo a garantir que seus interesses econômicos ganhassem a forma de interesses do Estado. No que concerne ao texto original, as alterações efetuadas se resumem à sua adequação ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 2008, à revisão de poucas frases visando assegurar maior precisão ao que eu propunha dizer e à exclusão, uma vez que não causa prejuízo ao acompanhamento da análise, de organogramas de órgãos públicos que se encontravam em anexo. Os anos de 1990 constituem um marco importante quando se considera o interesse crescente de organismos internacionais pelo combate à corrupção, a criação de medidas anticorrupção pelos Estados nacionais e a ampliação da literatura acadêmica sobre o tema. Neste momento, a discussão sobre medidas anticorrupção é impulsionada por entidades como a Organização das Nações Unidas O artigo foi originalmente publicado na Revista Pós Ciências Sociais (RePOCS), n° 27, 2017. Agradeço aos editores da revista a autorização para que fosse incluído nesta edição do livro. 2
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(ONU), a Organização dos Estados Americanos (OEA), o Banco Mundial, a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), o Fórum Econômico Mundial e a Transparência Internacional (TI), entidade criada neste contexto. Como informam Glynn et al. (2002) e Favarel-Garrigues (2009), a internacionalização da luta anticorrupção deve muito às medidas de regulação das atividades de empresas americanas no estrangeiro adotadas pela Foreign Corrupt Practices Act (FCPA) (criada em 1977 e alterada em 1988). Passíveis de criminalização no caso de oferta de subornos a autoridades governamentais estrangeiras nas transações comerciais internacionais, as empresas multinacionais americanas se sentem prejudicadas na concorrência - alguns países desenvolvidos não só consideram legal essa prática de suborno como permitem que ele seja abatido dos impostos como despesa legítima do negócio (cf. Glynn et al., 2002)3 - e pressionam organismos internacionais a adotarem medidas mais rígidas contra seus concorrentes. Se do ponto de vista político a corrupção é entendida como uma ameaça à legitimidade dos regimes democráticos, do ponto de vista das políticas neoliberais e transações comerciais internacionais ela passa a ser tratada como uma ameaça aos “alicerces de uma economia mundial aberta e multilateral”, uma vez que “distorce a competição e é capaz de reduzir os ganhos provenientes de fluxos livres de comércio e de investimento” (Glynn et al., 2002, p. 36). A difusão de uma concepção de corrupção associada à opacidade, ao oculto e, por conseguinte, da adoção do princípio da transparência como solução (cf. Bratsis, 2014), a produção de regulamentos anticorrupção e a promoção de acordos multilaterais de combate à corrupção são alguns dos produtos desta mobilização internacional, que, diga-se de passagem, o Brasil é um dos países signatários4. Como apropriadamente ressaltam Glynn et al. (2002), “temos aqui um exemplo de corrupção não apenas disseminada e perniciosa mas também uma prática por meio da qual as nações industrializadas efetivamente estimulam e contribuem com a corrupção nos países em desenvolvimento” (p. 41). 3
Nos últimos anos, o Brasil assinou três tratados internacionais que preveem formas de cooperação para o combate à corrupção: a Convenção sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais, da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômicos – OCDE (Decreto 3.678, de 30/11/2000); a Convenção Interamericana contra a Corrupção, da Organização dos Estados Americanos – OEA (Decreto n° 4.410, de 4
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Um dos principais efeitos desta mobilização é a condução das práticas definidas como de corrupção à condição de importante problema público. Como tal, o combate à corrupção tem servido a fins diferentes que não estritamente o controle das práticas tidas como de corrupção. Dito de outro modo, ele tem se prestado a usos sociais distintos: regulamentação de relações políticas e comerciais, deslegitimação de governos e governantes, mobilizações sociais, lutas políticas, etc. Como observa M. Diouf (2002) ao se interrogar sobre a discussão em torno da corrupção no continente africano, o tema passou a ser utilizado pelas agências internacionais como um instrumento de medida das virtudes e falhas da “boa governança” no continente. Por conseguinte, os esforços internacionais de controle da corrupção e as condicionalidades impostas por agências como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI) têm sido acompanhados da imposição de modelos idealizados e normativos do bom funcionamento da economia e da política. Peter Bratsis (2014), por sua vez, chama atenção para o modo como a ideia de corrupção se inscreve nas estratégias de expansão do capital transnacional. Para o autor, a concepção de que a corrupção está na origem da pobreza e do subdesenvolvimento de países e regiões é uma atualização do ponto de vista colonial na medida em que explica diferenças globais de riqueza e desenvolvimento como produtos de inferioridades culturais, políticas ou legais. Nesse sentido, ele defende que “antes de ser um instrumento de compreensão, [a corrupção] é um instrumento de manipulação ideológica e dominação política” (p. 7). O combate à corrupção está também na origem de inúmeras campanhas e movimentos nacionais anticorrupção. A Operação Mãos Limpas na Itália, no início dos anos de 1990, tornou-se, nesse sentido, um caso emblemático (cf., Briquet, 2007 e 2010). No entanto, mobilizações contra a corrupção e a dissolução de governantes em nome de seu combate têm se espalhado pelos diferentes continentes (cf., por exemplo, as análises sobre os casos da Itália, Bulgária, Polônia e Marrocos reunidos na revista Droit et Societé, n° 72, 2009). A observação destas diferentes situações, nas quais se pode incluir o 7/10/2012) e a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (Decreto N° 5.687, de 31/01/2006). Como desdobramento desses acordos foram publicadas, entre outras, a Lei da transparência (Lei complementar 131, de 27/5/ 2009), a Lei de acesso a informações (Lei 12.527, de 18/12/2011) e a Lei anticorrupção (Lei 12.846, de 1/08/2013).
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afastamento da presidente Dilma Rousseff, demonstra como a ideia de corrupção tem sido mobilizada nas lutas sociais e políticas e o amplo leque de sentidos atribuídos ao termo corrupção. Ao contrário de ser algo negativo do ponto de vista daqueles que reivindicam o combate à corrupção, essa imprecisão do termo favorece que seja objeto de diferentes apropriações e de disputas de sentido no contexto das lutas sociais. Assim, parece-me inadequado, do ponto de vista analítico, pressupor que há condutas e práticas que sejam em si mesmas corruptas. Por conseguinte, o modo como a ideia de corrupção é definida e utilizada nestas diferentes situações é um convite para que se descreva os processos e os mecanismos sociais através dos quais práticas e indivíduos são nomeados nestes termos. Elas permitem refletir sobre como são fixados certos sentidos da corrupção e sobre os efeitos reais que essas rotulações produzem, por exemplo, sobre instituições, indivíduos, política, economia e entendimentos. A importância atribuída ao fenômeno da corrupção a partir de meados da década de 1990 é acompanhada de um crescimento significativo do interesse de cientistas sociais - mas também de juristas, administradores e economistas - pelo tema. Faço menção à existência desta vasta literatura internacional e nacional hoje disponível, exclusivamente, para alertar o (a) leitor (a) a respeito da mudança ocorrida neste aspecto entre o momento em que o livro foi originalmente escrito e esta edição. Nesse sentido, é preciso contextualizar as afirmações efetuadas no livro sobre a relativa escassez da bibliografia sobre o tema. Esta, sem dúvida, não é mais a realidade quando se considera, particularmente, os estudos internacionais elaborados a partir da perspectiva da antropologia5 e a atenção que no Brasil o fenômeno da corrupção passou a receber, sobretudo, de cientistas políticos.6 Escrito num momento em que o tema da corrupção não tinha
Ver, a título de exemplo, Lomnitz (2000), Blundo e Olivier de Sardan (2001), Haller e Shore (2005), Smith (2007), Gupta (2012), Muir (2016), Tidey (2016) e Das (2017). Reflexões sobre as contribuições da antropologia para o estudo da corrupção podem ser encontradas em Torsello e Venard (2016) e Muir e Gupta (2018). 5
Ver, entre outros, Rosenn e Downes (2000), Speck et al. (2000), Avritzer e Filgueiras (2011), Filgueiras (2008, 2009), Pinto (2011), Avritzer et al. (2012), Speck (2016), Biason (2012), Juca, Mello e Rennó (2016), Martuscelli (2016) e Feres Junior e Sassara (2016). 6
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o significado e nem produzia os efeitos sociais que hoje se observa, o livro, no entanto, reúne descrições e ideias que podem ser úteis para a compreensão das narrativas mais recentes sobre a corrupção, o modo como têm sido utilizadas nas lutas sociais e as discussões analíticas que têm orientado os estudos sobre o tema. O ponto de partida empírico do trabalho é a análise de três “casos” de corrupção. Entre outros aspectos, o que gostaria de lembrar em relação à noção de “caso” (ou “escândalo”) é o fato de que ela é uma das formas sociais através das quais as práticas tidas como de corrução e os indivíduos nelas envolvidas ganham a cena pública. Como os elementos (pessoas, práticas, instituições, etc.) que definem o “caso” se confundem com os elementos que definem publicamente a corrupção, é importante lembrar que o “caso” é, na verdade, um construto político, administrativo e legal; o que significa dizer que é o produto de uma série de escolhas e constrangimentos que estabelecem, por exemplo, o quê ou quem será nele incluído. Ter essa percepção sobre a seletividade dos elementos que formam o “caso” e sobre o modo como eles próprios contribuem para fixar certa visão sobre a corrupção conduziu-me à opção de não tomar como ponto de partida da análise definições legais e normativas de corrupção uma vez que não permitem apreender os elementos em jogo na delimitação dos “casos” e, por conseguinte, da percepção sobre a corrupção. Nesse sentido, a alternativa adotada foi a de considerar o modo como os próprios indivíduos envolvidos nas discussões que dão conteúdo aos “casos” concebem e delimitam o que entendem por corrupção. Os fatos que dão conteúdo aos três “casos” examinados ocorreram ao longo dos anos 80: o “caso Valença”, o “caso Capemi” e o “caso Coroa-Brastel”. O primeiro tem lugar no governo civil do presidente José Sarney e os demais no governo militar do presidente João Figueiredo. O “caso Valença” remete a denúncias sobre “intermediação de verbas” federais para o município de Valença (RJ) realizada por um parente do ministro do Planejamento. O “caso” permite examinar, entre outras, a questão do acesso de municípios às verbas federais, as dificuldades produzidas na burocracia federal para a liberação das verbas, a atuação de empresas e escritórios de “intermediação de verbas” e a importância das redes de relações pessoais no âmbito da administração pública. Com base em argumentos apresentados pelos envolvidos no “caso”, eu
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chamo atenção para como a ideia de estar atuando segundo uma “preocupação cívica” é utilizada para legitimar as práticas e medidas voltadas para a liberação das verbas. Como propus posteriormente (cf. Bezerra, 1999) e discuto no artigo “Corrupção e Produção do Estado”, a atuação de empresas e políticos na liberação de recursos federais é melhor compreendida quando inscrita nas concepções e práticas efetivas que dão conteúdo a certa concepção vigente de representação política. O “caso Capemi” remete às irregularidades que envolvem a experiência fracassada da Agropecuária Capemi na extração e comercialização de madeira da área florestal que seria inundada pelo lago da Usina Hidrelétrica de Tucuruí (PA). A Agropecuária, criada alguns meses antes de assinar o contrato com o governo federal, integrava o Sistema Capemi (Caixa de Pecúlio dos Militares), entidade privada, gerida por militares, que atuava na área de previdência complementar e seguro. O “caso” permite examinar, por exemplo, como operam as redes de relações que unem o Estado e empresas privadas, o modo como possibilidades de realização de negócios com o Estado geram empresas privadas e a forma como ocorrem desvios de recursos através de comissões cobradas na aquisição de material e serviços. A convocação de empresas privadas para a solução de questões tidas como de Estado é uma questão também presente no “caso Coroa-Brastel”. O “caso” lança luz sobre o funcionamento do mercado financeiro e como operava, segundo um especialista do mercado de capitais, a “máfia de liquidações” no Banco Central. Ele remete a uma série de negócios patrocinados pelos ministérios do Planejamento, Fazenda e Banco Central que finaliza com a intervenção deste último na financeira do grupo Coroa-Brastel. O proprietário do grupo alega, no entanto, que as dificuldades de sua financeira tem origem no fato de ter acatado, em troca de compensações oficiais, o pedido de autoridades governamentais para adquirir a falida Corretora Laureano, numa típica operação oficialmente nomeada de “solução de mercado”. Nestes dois “casos” observa-se, respectivamente, como redes de relações (pessoais, profissionais, ideológicas etc.) estabelecidas a partir dos meios militares e financeiros se articulam às políticas de Estado e, como revelam os “casos”, dão sustentação às práticas de corrupção. Tendo em mente estes dois últimos “casos” gostaria de
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acrescentar duas observações. A primeira diz respeito à visão, eventualmente atualizada, de que os governos militares no Brasil foram imunes à corrupção. Os dois “casos”, há outros relatados pela literatura especializada, desmentem esse tipo de formulação. Não só eles ocorreram durante o regime militar como envolveram redes de relações constituídas por militares, instituições e órgãos geridos por militares, como a Capemi e o Serviço Nacional de Informação (SNI). A segunda questão diz respeito à atribuição das causas da corrupção à atividade política e à atuação dos políticos. A associação da atividade política à corrupção e o seu combate foram consagrados internacionalmente pela divulgação dada à Operação Mãos Limpas (cf. Favarel-Garrigues, 2009). Essa é também a interpretação difundida no Brasil pela Operação Lava Jato, que, em nome do combate à corrupção, contribuiu para desmoralizar e criminalizar a atividade política. A esse respeito escreve o coordenador da força-tarefa: “o sistema político é, infelizmente, um estímulo ao crime no país” (Dallagnol, 2017, p. 170). Se isso pode ser verdade em muitas situações, estes dois “casos” demonstram, no entanto, que essa é apenas uma possibilidade e que as práticas de corrupção podem ser organizadas através da mobilização de redes de relações formadas por indivíduos com atribuições na administração pública e indivíduos posicionados em diferentes campos de atividades sociais, cujos negócios e interesses estão de algum modo relacionados ao Estado. A análise da organização das práticas tidas como de corrupção nos três “casos” aqui selecionados supõe a descrição e explicação do modo como redes de relações interpessoais promovem o fluxo de negócios, decisões, valores e indivíduos posicionados no Estado, no mercado e na sociedade. Acompanhar o modo como as relações interpessoais aparecem nos “casos” permite perceber a fluidez das fronteiras, por exemplo, entre interesses do Estado e de mercado. Como demonstram os “casos” Capemi, Coroa-Brastel e o exame da atuação da Construtora Odebrecht, tanto interesses econômicos de empresas são transformados em interesses do Estado como interesses do Estado e de agentes públicos são incorporados ao funcionamento das empresas. A atenção dada a essas redes interpessoais revela como práticas e valores comuns a relações como as familiares, de amizade e conhecimento e sentimentos como os de solidariedade, dívida pessoal e obrigações
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políticas e pessoais se fazem presentes nas situações que envolvem denúncias de práticas de corrupção. Nesse sentido, é interessante observar como a linguagem da corrupção se aproxima da linguagem das relações interpessoais: favor, ajuda, reciprocidade, lealdade, confiança, honra e presentes são apenas alguns exemplos. Entre outros aspectos, as relações interpessoais e sua linguagem chamam atenção para como as práticas de corrupção se inscrevem em valores e práticas cotidianas. Não sugiro com isso, certamente, que elas sejam a causa da corrupção, mas tão somente que relações e práticas fundadas na lógica pessoal estão entrelaçadas a práticas de corrupção e ao funcionamento ordinário do Estado, do mercado e da sociedade. Como desdobramento das observações realizadas acima, resta um último aspecto que gostaria de mencionar. Ao dar atenção ao modo como as práticas de corrupção são socialmente organizadas e significadas espero ter demonstrado ao longo do livro que elas só existem enquanto tais na medida em que, por um lado, envolvem uma multiplicidade de pessoas situadas em diferentes espaços de atividades sociais e institucionais e, por outro, que estejam à disposição dos indivíduos concepções e regulamentos legais e ordinários que lhes permitam atribuir a uma série de práticas específicas o rótulo de corruptas. Esta dimensão coletiva das práticas definidas como de corrupção aponta para os limites analíticos das abordagens moralistas, criminais e essencialistas da corrupção que, entre outros fatores, a concebem como resultado de desvios individuais (éticos ou legais) de comportamento e como condutas dotadas de propriedades que seriam em si mesmas corruptas. Referências bibliográficas Avritzer, Leonardo; Filgueiras, Fernando. (org.). 2011. Corrupção e sistema político no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. Avritzer, Leonardo et al. (org.). 2012 (2° ed.). Corrupção. Ensaios e críticas. Belo Horizonte: Editora da UFMG. Bezerra, Marcos O. 1999. Em nome das ‘bases’. Política, favor e dependência pessoal. Rio de Janeiro: Relume-Dumará/NuAP. Biason, Rita de Cássia (org.). 2012. Temas de corrupção política. São Paulo: Balão Editorial. Blundo, Giorgio; Olivier de Sardan, Jean Pierre. 2001. « La Corruption
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