(Des)Prazer da norma
Everton Rangel Camila Fernandes Fรกtima Lima (Orgs.)
(Des)Prazer da norma
© Everton Rangel, Camila Fernandes, Fátima Lima, 2018 © Papéis Selvagens, 2018 Coordenação Coleção Stoner Rafael Gutiérrez, María Elvira Díaz-Benítez Projeto gráfico e diagramação Martín Rodríguez
Arte de capa Aline Besouro, Bendita Gambiarra, 2017 Edição de imagem Nathalia Ferreira Gonçales
Revisão Brena O’Dwyer e Carolina Maia
Conselho editorial Alberto Giordano (UNR-Argentina) | Ana Cecilia Olmos (USP) Elena Palmero González (UFRJ) | Gustavo Silveira Ribeiro (UFMG) Jaime Arocha (UNAL-Colômbia) | Jeffrey Cedeño (PUJ-Bogotá) Juan Pablo Villalobos (Escritor-México) | Luiz Fernando Dias Duarte (MN/UFRJ) Maria Filomena Gregori (Unicamp) | Mônica Menezes (UFBA)
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (eDOC BRASIL, Belo Horizonte/MG)
D473 (Des)prazer da norma / Organizadores Everton Rangel, Camila Fernandes, Fátima Lima. - Rio de Janeiro (RJ): Papéis Selvagens, 2018. 412 p. : 16 x 23 cm - (Stoner; v. 8) Bibliografia: p. 387-410 ISBN 978-85-85349-06-6
1. Identidade de gênero. 2. Minorias sexuais - Condições sociais. I. Rangel, Everton. II. Fernandes, Camila. III. Lima, Fátima. IV. Título. V. Série. CDD 306.76 [2018] Papéis Selvagens papeisselvagens@gmail.com papeisselvagens.com
Sumário Prefácio Governo, Desejo, Afeto Maria Elvira Díaz-Benítez, Everton Rangel, Camila Fernandes
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Governo Gestão de corpos, regulação de integridades: uma reflexão sobre direitos e intersexualidade Barbara Pires 45
Dos limites de uma promessa: reflexões sobre a “terapia de mudança de sexo” Lucas Freire 67
Das ruínas do corpo sudaca: marcas de vulnerabilidade em performances artísticas Nathalia Ferreira Gonçales 93 Aleeegreeem-se!!: sabores negros, paladares brancos Samara Freire
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Raça, gênero e sexualidades: interseccionalidades e resistências viscerais de mulheres negras em contextos bio-necropolíticos Fátima Lima 141 Desejo O “princípio da putaria” nas orgias masculinas: diferença e singularidade no corpo orgiástico Victor Hugo de Souza Barreto 161 Entre pecados e mercados: gênero, religião e práticas pedagógicas no consumo de artigos eróticos Lorena Mochel 183
Bombom: esse escuro objeto do desejo Michel Carvalho
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Matérias, corpos e lugares: o trabalho no barracão de escola de samba e a construção de homossexualidades masculinas Lucas Bilate 223 As muitas faces de um livro: sexualidade e moralidade no mercado editorial brasileiro Nathanael Araújo 247 Afeto Descasadas. Ruptura conjugal e individuação Carolina Castellitti
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O tempo do cuidado: batalhas femininas por autonomia e mobilidade Camila Fernandes 297 Escritas lésbicas, construções afetivas: uma análise do boletim Um Outro Olhar Carolina Maia 321
Em meio a sonhos e normas: amor, família e futuro entre três mulheres trans/travestis Oswaldo Zampirolli 345 Amores Censurados: sobre gritos, olhares, tapas e fissuras Everton Rangel
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Referências bibliográficas 387
Governo, Desejo e Afeto María Elvira Díaz-Benítez, Everton Rangel e Camila Fernandes1 Este livro é parte de um esforço coletivo iniciado no ano de 2013 no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional (PPGAS/MN), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Naquele ano, uma série de fatores confluíram para a criação do NuSEX – Núcleo de Estudos em Corpos, Gênero e Sexualidade. A chegada da professora María Elvira Díaz-Benítez ao programa veio de encontro aos trabalhos desenvolvidos pelos professores Luiz Fernando Dias Duarte e Adriana de Resende Barreto Vianna, cada qual com um longo histórico de pesquisas nos campos dos estudos de gênero, sexualidades, moralidades entre outros temas correlatos. Além deste cruzamento fecundo de interesses e trabalhos, outra linha de força veio adensar pontos estratégicos de convergência; a afinidade e a aproximação dos alunos dos respectivos professores do núcleo, que a partir de diferentes pontos de intersecção, estabelecem pesquisas, diálogos e inúmeras pontes de comunicação entre matrizes teóricas e metodológicas das mais variadas vertentes. É neste contexto híbrido de encontros, proximidades e diversidades que nasce o NuSEX, porém, é crucial ressaltar que este agenciamento não se limita a estes professores, nem tampouco a seus respectivos alunos, mas é parte de um processo histórico em que lutas, pesquisas, militâncias e ativismos foram travados em busca de uma sociedade livre de discriminações de raça, gênero, classe, sexualidade, entre outras formas de injustiça social. Com esta afirmação, queremos dizer que nossa existência enquanto grupo é resultado do trabalho relacional de muitos outros pesquisadores que estão dispersos ao longo das páginas dos 15 artigos que compõem esta coletânea, além daqueles que se encontram registrados nesta María Elvira Díaz-Benítez é professora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) do Museu Nacional (MN), Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Everton Rangel é doutorando e Camila Fernandes é doutora pelo mesmo Programa. 1
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apresentação. Portanto, o emprego da palavra “coletivo” na primeira frase desta introdução não é de mero recurso descritivo, mas diz respeito ao espírito de um grupo que ao longo de seus cinco anos de existência tem agregado um esforço consistente em manter viva as trocas acadêmicas, afetivas e intelectuais mesmo em um contexto político tão adverso para a produção do conhecimento. Ao falar das adversidades, estamos nos referindo a momentos críticos em que a Universidade Pública têm sido alvo de processos políticos brutais de precarização que atingem frontalmente a maneira de produzir, sustentar e compartilhar o conhecimento. Registrar este processo de fragilização é parte fundamental das forças políticas que atravessam um livro deste porte. A partir de 2014 até os dias atuais, inúmeros cursos de graduação e pós-graduação em várias partes do país sofreram cortes orçamentários avassaladores no repasse de verbas do governo. Desde então, os humores e engajamentos que possibilitam a manutenção das atividades acadêmicas têm sofrido impactos significativos. O investimento em Ciência e Tecnologia foi reduzido consideravelmente, sobretudo aquele voltado ao campo das ciências humanas. Ademais, a intensificação de um discurso sobre a “crise do Estado” acirrou um clima de penúria econômica em que diversos auxílios, projetos, bolsas e pesquisas foram diretamente afetadas e/ ou canceladas. Este é o caso do Edital APQ4 da FAPERJ (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro) que em 2015, mesmo sendo aprovado, foi inviabilizado devido aos cortes orçamentários para publicações, o que impossibilitou a viabilidade deste livro naquela ocasião. Os artigos produzidos foram engavetados, enquanto um aprofundamento de crises, cortes e faltas se intensificou nos programas de pós-graduação em todo o país. Além dos muros da universidade, durante o ano de 2015, acompanhamos tentativas contundentes de ataque aos direitos das mulheres, a exemplo da discussão sobre o “PL 5069/2013” de autoria do ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha, na tentativa de alterar garantias consolidadas às mulheres vítimas de violência sexual, sobretudo no acesso a profilaxia e no direito ao aborto legal. No ano de 2016, sofremos o impedimento da primeira mulher eleita como presidenta do Brasil, em meio a gritos conservadores que enalteciam os valores das “famílias de bem” enquanto clamavam o
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fim da “ideologia de gênero” nas escolas. Logo no início de 2017, Dandara dos Santos foi espancada até a morte de maneira brutal por um grupo de homens na cidade de Fortaleza. As imagens deste crime atroz foram divulgadas por um dos participantes, fato que desencadeou a repercussão internacional deste episódio assombroso de transfobia. Estes e outros episódios fizeram parte do campo de “golpes” e “embates” no cenário das discussões de gênero e sexualidade na política brasileira, conforme analisam DíazBenítez e Gonçales (2018) em ensaio que discute as transformações relativas a este panorama. Neste ano de 2018, perdemos Marielle Franco, mulher, negra, mãe, favelada, quinta vereadora mais votada da cidade do Rio de Janeiro e militante de Direitos Humanos, brutalmente executada em um crime bárbaro e infelizmente ainda não resolvido pelas autoridades do Estado. Se evocamos a presença de Marielle nesta introdução, é porque sua atuação como parlamentar representava uma grande inspiração aos ideais de mundo que o NuSEX acredita. Seguir adiante sob o canto da sua luta é uma obrigação central que nos constrói como sujeitos políticos. Como se tais processos não fossem suficientes para atingir o cotidiano acadêmico, no domingo 2 de setembro de 2018 o palácio do Museu Nacional foi consumido por um incêndio devastador, uma perda sem precedentes para a história dos povos que foram vítimas do imperialismo colonial, aqueles que hoje revisitavam esse passado de apagamento e esquecimento procurando possibilidades de imaginar um futuro alternativo às lógicas autoritárias e aniquiladoras da diferença cultural. Na sucessão de todos estes eventos, vividos em um espaço tão curto de tempo, fomos todos de diferentes maneiras forçados a caminhar em meio às perdas, faltas, ausências, ruínas e dores nem sempre simples de serem enunciadas e tornadas dignas de luto, como escreve Judith Butler (2015). Em seus trabalhos, a antropóloga indiana Veena Das (2007) acompanha suas interlocutoras frente a inúmeras violências que “descem ao ordinário”, mostrando os esforços contínuos feitos pelas pessoas para que os seus respectivos mundos sejam habitados em meio às dores, traumas e feridas de guerra. Guardadas as devidas proporções, não é exagero dizer que a reunião destes artigos vai além das discussões que cada um se propôs a realizar, é parte desta universidade que entre trancos e barrancos procura se manter ativa, reunindo pessoas, agregando discussões e se esforçando
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coletivamente para que o sentido da luta pela educação pública e de qualidade não se perca em meio a tantos desmandos exercidos em tempos sombrios, obscurantistas e em pleno avanço da extrema direita em diferentes regiões do mundo. Por todos esses motivos este livro celebra a capacidade de atravessarmos contextos adversos de maneira conjunta. Cada pessoa envolvida neste projeto acreditou que era possível seguir adiante, escrevendo, revisando, doando tempo, trabalho e escuta, mesmo em meio à produção da descrença e ao desmonte das nossas instituições. Aqui, encontram-se trabalhos que partem de diferentes momentos acadêmicos, alguns de dissertações de mestrado já defendidas, outros de projetos de doutorado que estão em curso e alguns são produto de teses de doutorado concluídas. Entre todos artigos há um ponto comum que se destaca: todos os autores apresentam etnografias consistentes e caminhos originais, perseguidos de modo a evitar conclusões generalizantes. Ao longo destas páginas procuramos agregar discussões que adentram territórios existenciais plenos de ambivalências, nos quais o (des) prazer e a norma andam em conexões íntimas, profundamente reversíveis e intensamente conectadas. Finalmente, com esta publicação comemoramos 5 anos da existência do NuSEX e os 50 anos do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) do Museu Nacional (MN), que, neste fatídico ano, completa os seus 200 anos. Percursos e questões O NuSEX carrega desde sua conformação a marca da categoria dissidência, não apenas pela fertilidade dessa noção nos estudos e políticas queer que muito nos interessam, mas também porque a mesma remete a uma agenda de pesquisa bastante específica que ficou materializada no livro Prazeres Dissidentes (2009), do qual María Elvira foi co-organizadora. Naquele livro, indagávamos sobre experiências que no território do sexo/gênero estariam operando nas fronteiras das eróticas normativas e também sobre as configurações de corpos ininteligíveis, que, por tal, constituiriam expressões, desejos, prazeres e práticas perturbadoras. Como se constituem? Como são vivenciadas? Anunciam novas categorias
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sexuais e identitárias? Como agem os diferentes marcadores sociais da diferença na conformação de subjetividades e de identidades coletivas alternativas? Como se reorganizam normatividades e hierarquias em meio a apelos transgressores? Foram questões discutidas naquele momento. Assim, variados universos receberam atenção etnográfica, dentre os quais se destacaram os espaços de sociabilidade de homens homossexuais, os de mulheres lésbicas e os diversos contextos do mercado do sexo (online e off-line). Foi indiscutível a interlocução do livro Prazeres Dissidentes com a produção de Michel Foucault, Gayle Rubin, Judith Butler e outros autores vinculados aos estudos queer, além de antropólogos que têm sido fundamentais para a conformação do campo de estudos em gênero e sexualidade no território nacional: Néstor Perlongher, Peter Fry, aqueles associados ao CLAM (Centro Latino-americano em Sexualidade e Direitos Humanos, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e ao Núcleo de Estudos de Gênero PAGU, da Universidade Estadual de Campinas. Naquele momento, estávamos movidos por um ímpeto político, teórico e metodológico claro: contribuir para uma teoria radical do sexo (Rubin, 1984), que viesse a ajudar na criação de um pensamento libertador sobre o sexo. Para tal teoria, diz Rubin (1984, p. 149), faz-se preciso “identificar, descrever, explicar e denunciar a injustiça erótica e a opressão sexual”. Esse “espírito” do que chamamos de dissidência foi vital na criação do NuSEX e continua a inspirar muitas de nossas reflexões. Isso é perceptível neste volume, por exemplo, no trabalho de Victor Hugo Barreto que descreve festas de orgia entre homens no Rio de Janeiro, perguntando-se, dentre outras questões, como a visitação de corpos por outros corpos provoca nos picos de intensidade sensorial arranjos não previstos, práticas e encontros inusitados do ponto de vista normativo. Inspirou também, neste volume, as reflexões que Nathália Gonçales elaborou sobre performances, bem como sobre as experiências daqueles que as produzem. A autora examina práticas que vazam aos imperativos sociais na medida em que agenciam o potencial da crítica, tanto feminista quanto racial, articulada em circuitos artísticos. Não obstante a dissidência se apresente como uma importante ferramenta, as preocupações fundamentais desta coletânea escoltam vários caminhos. É oportuno entender este
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livro como um reflexo das diversas trilhas temáticas e teóricas que o NuSEX tem seguido desde o curto tempo de sua formação. Esses percursos muito devem à influência acadêmica dos professores que orientam os trabalhos aqui apresentados, assim como ao vigor com o qual o coletivo tem recebido e assumido premissas da agenda feminista, a saber, os modos de regulamentação do gênero. Como sugere Judith Butler (2003), as normas existem através da prescrição e reiteração contínua de comportamentos, gestos, discursos e atos, fundados em uma matriz heterossexual. O gênero requer e institui o seu próprio regime de inteligibilidade. Com Butler compreendemos que, se o gênero é o aparato através do qual tem lugar a produção e normalização do masculino e do feminino, ele é também o aparato a partir do qual esses termos se desconstroem e desnaturalizam, isto é, o fato do gênero estar radicalmente condicionado não significa que esteja radicalmente determinado. A norma se abre ao deslocamento e à subversão desde o seu interior. Nesse sentido, a performatividade pode ser entendida como inextrincável ao processo de (re)fazer e/ou deslocar o sujeito de gênero e a própria ordem social. Os artigos aqui reunidos discutem os diversos modos como os sujeitos vivenciam os paradigmas do gênero: o âmbito dos afetos (casamento, divórcio, cuidado dos filhos e amor romântico); o âmbito dos desejos, do erotismo, da fantasia e da violência; e o âmbito em que saberes e poderes atuam de modo mais vertical no exercício de regulamentações. Em outras palavras, nosso interesse é discorrer sobre como persistem e são atualizadas certas gramáticas de gênero, interseccionadas por raça, classe e sexualidade, em meio a governos, desejos e afetos, tríade que utilizaremos como fio condutor da narrativa. Várias etnografias apresentadas neste livro não necessariamente manifestam uma preocupação com as formas como os sujeitos resistem às regulamentações ou as subvertem, pois visam pensar sobre as artes da vivência por entre normas. Esta perspectiva é enormemente inspirada em Saba Mahmood (2005), autora citada em diversos artigos desta coletânea e cujas reflexões apontam a necessidade de explorarmos os modos pelos quais os sujeitos agem de forma a habitarem com empenho, esforço, luta e engajamento as mais diversas normas sociais. A discussão proposta pela autora coloca em cena o paradoxo da subjetivação (Foucault, 1982): o sujeito é habilitado por relações de subordinação
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específicas e apenas através das mesmas se torna apto a agir de uma dada maneira. Não se trata, portanto, da conceituação da agência como livre escolha e nem mesmo da suposição de que os sujeitos são aqueles que somente seguem ordens. Em sua crítica à teoria da performatividade proposta por Butler (2003), Saba Mahmood infere que há uma inclinação dualista na forma de pensar as normas: ora a partir de sua atualização, ora através de sua subversão. O problema estaria no fato da agência ser localizada por Butler expressivamente nos momentos de ressignificação das normas. Mahmood defende que seria preciso não delimitar a priori os modos de agência, já que estes revelamse não apenas na capacidade de resistir ou subverter, mas também como algo que se realiza de múltiplas maneiras. Partindo desse ponto de vista, a autora demonstrou em seu livro, Politics of Piety, como mulheres adeptas a um movimento político religioso no Egito trabalhavam sobre si mesmas de modo a constituírem as suas condutas como virtuosas. A agência foi entendida como manifesta no exercício cotidiano de fazer de si uma muçulmana melhor. Mahmood mostra a capacidade de agência possível no interior de relações de subordinação historicamente específicas e também como essas ideias sobre subordinação são vividas no âmbito do cotidiano. Pode-se dizer que está em jogo no trabalho da autora a possibilidade de formular uma teoria da agência que leve em consideração noções de sujeito que nem de longe se esgotam na imaginação liberal que alimenta as políticas feministas. Levado ao limite, o projeto de Saba Mahmood não é apenas o de nos ofertar uma antropologia do Islamic Revival, mas também o de fazer seu material etnográfico falar sobre a normatividade dos projetos emancipatórios. Em contrapartida, deveríamos nos perguntar sobre os efeitos políticos de uma análise centrada no habitar às normas. Se a empreitada de Mahmood pode ser pensada como uma crítica antropológica aos ideais de fundo que norteiam as mais variadas práticas feministas, cabe-nos atentar para o risco da aposta de analisar o engajamento dos sujeitos com as normas se enrijecer a ponto de enfraquecer o compromisso feminista com a transformação social. Os aspectos perversos da vivência das normas não podem ser obliterados, bem como não podemos perder de vista que, ainda que discordemos quanto ao que idealizamos como
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transformação, a própria teoria social pode ser transformadora Butler (2004). As proposições analíticas sugerem ângulos de visualização dos fenômenos sociais que não necessariamente correspondem às doxas disseminadas e que podem informar as práticas de figuras públicas que ocupam posições estratégicas de poder. Não estamos sugerindo que o analista pode ou deve per se definir o sentido da transformação, e sim que as formulações antropológicas fazem parte dos cenários políticos nos quais os antropólogos, como sabemos, são atores que, tais como outros, ocupam lugares sociais a partir dos quais disputam e acionam significados, recursos, agendas, pessoas e redes. É deste ângulo que a teoria social pode ser vista como transformadora, mesmo não sendo sozinha suficiente à realização das mais variadas demandas dos mais variados feminismos. O trabalho de Mahmood, ao mesmo tempo em que guarda o potencial de nos chamar atenção aos contornos e às fronteiras da nossa imaginação política, nos obriga a pensar sobre como as nossas etnografias circulam e como, por intermédio delas, nos colocamos contra a injustiça social e defendemos certos mundos possíveis, mas não outros. Parece suficiente sinalizar que o que estamos tentando dizer é que se inicialmente abjeção e dissidência nos permitiam ressaltar que existem regras, vidas, prazeres e relações nas margens do social, agora desejamos explorar também os modos como os sujeitos movimentam seus mundos dentro das normas e governos que os constituem. Seria, no entanto, bastante limitado entender este movimento como uma simples mudança de ênfase. Estamos, na verdade, interessados na combinação de perspectivas e em refletir sobre a dissidência não apenas como discursos/práticas desveladas por sujeitos que se querem transgressivos, como também por aqueles que, distante deste tipo de motivação, realizam em suas vidas cotidianas “pequenos” gestos que deslocam o mundo a duras penas. Nesta coletânea, tal ênfase é particularmente clara no artigo de Camila Fernandes. Pode-se dizer que a aposta mais generalizada se centra então na ideia de ambivalência, demarcada já no título do livro que claramente convoca à percepção de que tanto prazer quanto desprazer confluem na experiência daqueles(as) que habitam normas, que, por vezes, conflitam umas com as outras. Sujeitos que cultivam a adesão a projetos de vida normativos no quesito religioso podem em certos registros da vida, em certos
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contextos, adotarem práticas que contorcem o conjunto de práticas e saberes que lhes servem de referência e que os mesmos tendem a cultivar no plano ordinário. Os leitores encontrarão neste livro descrições minuciosas de processos que revelam deslocamentos, inconsistências, ambiguidades, incertezas e vacilações em torno das normas que articulam o horizonte das ações e das expectativas sociais. Encontrarão formas de fracassar, que, sempre de maneira singular, atentam para os limites das normas e para os limites da possibilidade dos sujeitos forjarem a si mesmos de acordo com desejos individuais, atravessados pelas coletividades, e de acordo com os modos bons e belos de ser e de se portar vigentes em cada contexto, em cada situação da vida. A crítica de Schielke (2009) à etnografia de Mahmood enquanto produto intelectual revelador de “histórias de sucesso” aponta justamente a necessidade de percorrermos o caminho que diversos autores nesta coletânea seguiram: descrever e analisar práticas sociais que constituem, demarcam e sugerem a ambivalência das normas no cotidiano. Se há vitalidade – luta, dor e prazer, se vinculando continuamente –, quando alguém efetiva uma conduta virtuosa no interior de certas normas, pode existir também uma aposta radical no desfazer de si no interior das prescrições sociais. Falência, autodestruição, passividade e negatividade são vistos, por Jack Halberstam (2011), como possibilidades analíticaspolíticas que se contrapõem à ênfase na formação dos sujeitos e que requerem a caracterização do deixar de ser, pois o vir a ser é encarado como entranhado ao modo capitalista de produção e às promessas de sucesso e reconhecimento sempre escassas, desiguais e excludentes. Trata-se da deflagração da urgência dos modos de evasão. Sabemos, porém, que os sujeitos que habitam normas podem se sentir repletos de tédio, insatisfações e mágoas, e, concomitantemente, podem imaginar um futuro outro, dias melhores, a felicidade por vir e o sucesso ainda a alcançar. O desfazer dos sujeitos não está necessariamente em oposição ao fazer. Se as normas existem em dinâmicas sociais passíveis de serem descritas, tanto a estabilidade quanto a instabilidade das múltiplas respostas individuais devem ser consideradas. O questionamento das fórmulas de sucesso e de felicidade atravessa a compreensão das formas de participação dos sujeitos. Não se busca aqui simplesmente contrapor uma agenda
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de pesquisa a outra, como se proposições teóricas e políticas se anulassem, mas sim realizar um trajeto em busca das várias portas de entrada e de saída que permitiram aos autores desta coletânea descreverem esperanças, negatividades, prazeres, perigos, desprazeres, mortes, expectativas e realizações, sempre a partir de relevos distintos e do realce de aspectos específicos. A ambivalência é uma aposta etnográfica na complexidade da vida ordinária que demanda dos(as) antropólogos(as) o reconhecimento dos marcos a partir dos quais certas práticas são categorizadas como agência, resistência e dissidência. Laidlaw (2002, p. 315) desconfia que “apenas as ações que contribuem para o que o analista vê como estruturalmente significativo contam como agência. Sem rodeios, nós somente as marcamos como agência quando as escolhas das pessoas parecem ser corretas para a gente”.2 Por isso, insistimos: qual é a abrangência e quais são os limites dos repertórios políticos e antropológicos? Não se trata de denunciar a veiculação de discursos políticos e morais através da pesquisa acadêmica. A neutralidade axiológica é uma falácia. O perigo existe quando não estamos atentos às conformações histórico-culturais que nos permitem enquadrar os fenômenos. Para além da explicitação das nossas modalidades de enquadramento, devemos questionar os processos de conformação e sedimentação dos quadros disponíveis. Através desse tipo de trabalho reflexivo contínuo, infindável, podemos deslocar as nossas perguntas e ver as nossas próprias modalidades de enquadramento sujeitas a uma transformação contínua. O esforço do NuSEX tem sido, portanto, o de não trabalhar com a pressuposição de um único e adequado frame, para novamente lembrar Butler (2015). Governo: corpos e formas de habitar as experiências de vida Que governos são esses que criam corpos generificados e que os submetem a verificações? Como os corpos são fixados por meio do que Foucault chamou de dispositivo? Quais são os roteiros morais e emocionais que certos indivíduos e instituições acionam No original: “Only actions contributing towards what the analyst sees as structurally significant count as instances of agency. Put most crudely, we only mark them down as agency when people’s choices seem to us to be the right ones”. 2
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em situações de poder e decisão? Barbara Pires e Lucas Freire, autores desta coletânea, perseguem essas questões analisando modos de gerenciamento da intersexualidade e da transexualidade; respectivamente, discorrem sobre modelos de governança – médica e jurídica – de normalidades e verdades sobre sujeitos e vidas. Seus trabalhos iluminam a compreensão do que é sexo e gênero, categorias que aparecem como indissociáveis na construção dessas experiências, ao mesmo tempo que discutem sobre o direito ao corpo. Corpo pensado como o arcabouço da existência humana, como carne através da qual os sujeitos pertencem a grupos sociais e se relacionam, e que é fundamental na conformação de uma compreensão de si e dos demais. Lembremos Merleau-Ponty (1945) quando disse que o corpo é o veículo do ser no mundo: ter um corpo é juntar-se a um meio definido. Os saberes, tanto médico quanto jurídico, ocupam posições estratégicas na definição do que são os corpos, procuram seus enquadramentos técnicos nos parâmetros da normalidade e da inteligibilidade que foram culturalmente estabelecidos. Para assim fazer, recorrem a algumas metáforas: bem-estar (e as ideias sobre reprodução que acompanham o bem-estar), felicidade, liberdade, adequação, não-sofrimento: dispositivos que criam cultura, que enunciam o sexo verdadeiro e simultaneamente o produzem, impondo modelos dicotômicos como norma para a compreensão das existências. O que os autores nos mostram são chaves de compreensão da regulação de corpos e vidas que não deixam de lado a consideração da experiência dos sujeitos: dores, felicidades, expectativas. Barbara Pires recorre à análise de três casos de atendimento a pessoas intersexo: Gustavo, Wagner Luis e Marcos/ Marta. O leitor perceberá como dinâmicas familiares, inscrições nos corpos de certos marcadores sociais da diferença e crenças relativas ao modo como determinados corpos podem ser ou devem “fazer sexo” atuam na configuração de modalidades específicas de atendimento de pessoas intersexo no espaço hospitalar. Os modos intrincados em que os marcadores sociais da diferença geram efeitos nas interações no território biomédico permitem que Bárbara olhe para como opera o consentimento e questione: o que significa consentir e quais são os limites do consentimento em condições de desigualdade e vulnerabilidade? E quando se trata de menores, isto é, sujeitos tutelados pelo Estado? Esta etnografia
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aborda a hierarquia no governo da normalidade levantando uma crítica ao privilégio do discurso médico e a suas técnicas de veridicção da sexualidade que visam a construção de humanidades e de corpos sexuados coerentes segundo um regime de verdade específico. A noção de integridade, tal como trabalhada pela autora, guarda em si o potencial de atentar para o modo como a imaginação social quanto ao que pode ou deve ser uma totalidade corporal consistente, precisa, pura, autêntica e única afeta a vida daqueles que estão sujeitos a travar longas batalhas pela afirmação da autonomia e do direito de autodeterminação. Pode-se dizer que são os modos de governar e ser governado em horizontes modernos, informados por preceitos liberais, que estão sob escrutínio nesta análise de notória envergadura conceitual. São os critérios que definem as existências, bem como os futuros possíveis dos corpos dos interlocutores de Pires, que estão sendo disputados por famílias, militantes, antropólogos, médicos, juristas e pessoas intersexo. Lucas, ao se debruçar sobre as petições iniciais de “requalificação civil” de pessoas transexuais no âmbito do Núcleo de Defesa da Diversidade Sexual e Direitos Homoafetivos (NUDIVERSIS) da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (DPGE-RJ), examina os recursos argumentativos acionados para que tais pedidos sejam avaliados como procedentes. Nesse processo, são colocadas em prática diversas estratégias que relacionam compromissos políticos a apelos emocionais, morais e médicos. Na dinâmica ao redor da “requalificação civil”, a vulnerabilidade dos sujeitos transexuais tem um peso simbólico efetivo: experiências de discriminação e violência são utilizadas como técnicas de vitimização, meios de criar mecanismos que permitam o acesso a direitos, cidadania e dignidade – terminando, em tese, um ciclo de sofrimentos. A dramática história de Raissa opera como fio condutor de uma etnografia dedicada à análise dos limites da dita “terapia da mudança de sexo”. Como as promessas de uma nova vida, de felicidade e de sucesso em torno do “processo de requalificação civil” e da cirurgia de “redesignação sexual”, são frustradas? Como documentos pelos quais se batalhou tornam-se “presentes envenenados” (Vianna, 2005)? Como a gratidão passa a operar como mecanismo de produção de hierarquia entre quem dá o presente e quem o recebe? O que atravessa a tristeza e o suicídio de Raissa? Lucas Freire mergulha na difícil tarefa de etnografar
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as ambiguidades das normas sociais, demonstra-nos práticas de administração de sujeitos e corpos que não necessariamente acompanham as expectativas dos administrados, nos termos das variações dos seus desejos. O autor, reconhecendo a qualidade domesticadora de qualquer tentativa de explicação sobre o que torna o mundo insuportável, nos oferta uma fértil aproximação entre a teoria da magia de Mauss e as tecnologias de governo. Foucault é perspicaz ao sugerir a possibilidade de pensarmos não apenas em relações de poder positivas, isto é, em técnicas, estratégias e táticas capazes de constituir os sujeitos e os corpos que governam, como também de atentar para o trabalho que efetuamos sobre nós mesmos de modo a nos constituirmos enquanto determinados sujeitos histórico-sociais. Isto foi chamado pelo autor de artes da existência: práticas a partir das quais os sujeitos tanto esculpem códigos a partir da conduta quanto investem na fabricação e modificação de quem são. É fundamental, nesse sentido, perceber como o sujeito reconhece a sua relação com as normas sociais que o atravessam, afinal, “existem diferentes maneiras de ‘se conduzir’ moralmente, diferentes maneiras, para o indivíduo que age, de operar não simplesmente como agente, mas sim como sujeito moral dessa ação” (Foucault, 1998, p. 27). As práticas de produção e governança dos corpos sexuados e generificados assumem no artigo de Nathalia Gonçales um caráter mais pulverizado, dada a ênfase na arte da existência. A autora percorre as performances de corpos “sudaka”, categoria de acusação usada por espanhóis e outros europeus para identificar pessoas da América Latina. A partir das experiências de dois artistas brasileiros, Michele Matiuzzi e Kléper Mendonça, Gonçales descreve os sentidos e significados que tais usos dos corpos mobilizam em performances realizadas na cena política contemporânea. As trajetórias desvelam corpos marcados pelas violências raciais e de gênero, seja no corpo que é embranquecido ao longo da vida e que se descobre negro em um processo de constituição racializado de subjetividades, seja no corpo de “bicha nordestina”, nascido em um contexto familiar religioso, no qual a simples aparição deste corpo desviante causa escrutínio público. A partir de uma escuta atenta e tratamento analítico refinado, Nathalia Gonçales mostra como Kléper e Michele questionam duas normas que se complementam entre si, por um lado, a matriz do embranquecimento e por outro, a matriz
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da heterossexualidade compulsória, ambas ancoradas em raízes colonialistas e operadoras da homogeneização das diferenças. Ao analisar as trajetórias e as performances desses artistas, a autora mostra como os corpos são acionados e como eles surgem como instrumento de interrogação artística e política. Se uma das pedras angulares da formação das ciências sociais no século XIX foi justamente a invisibilidade de determinados corpos, tais como, o apagamento das mulheres, o silenciamento dos negros e a patologização dos homossexuais na literatura do estudo do “homem”, os interlocutores de Gonçales questionam a partir de suas performances, o quanto esse apagamento produzido pelas ciências modernas como episteme privilegiada pode ser deslocado. A autora mostra que, quando artistas oriundos da periferia escolhem conscientemente trabalhar seus corpos em espaços públicos, não há qualquer inocência nesses atos, mas antes de tudo, está presente a motivação em trazer à tona os que sempre foram objetos de estudo das humanidades, para, agora, situá-los como sujeitos produtores de conhecimento. Ao final do texto, Gonçales defende que a prática das performances pode ser um lugar para habitar as feridas da violência institucional e cotidiana que pesam sobre determinados sujeitos, mostrando como é possível dar lugar a estratégias de cuidado e de ressignificação da dor. Ainda no tocante a produção dos corpos, suas subjetividades e cartografias de mobilidades, veremos a partir do trabalho de Samara Freire, de que maneira mulheres negras moradoras de San Basilio de Palenque, no caribe colombiano, produzem sua sobrevivência em meio a um contexto de pobreza e profundas desigualdades sociais. A partir de trajetórias femininas, Freire acompanha os trânsitos e as formas de agenciamento de um trabalho informal vital para manutenção destas famílias: a venda de doces. Em sua análise, vemos como a venda dos doces demanda um “saber fazer” tradicional, que articula tanto a história das diásporas nesta localidade quanto o conhecimento no tempo presente; as rotas boas para se vender, a permanência no local de moradia e a migração de demais parentes da família. No percorrer das mulheres dulceiras e seus trajetos, Samara Freire desvela os sentidos e significados de um trabalho que mescla a alegria ao cansaço advindo da venda dos doces. O preparo, o planejamento, as caminhadas e os ganhos obtidos com esta produção intercalam momentos de esperança,
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sonhos, expectativas e sofrimentos, bem como permitem que filhas e filhos possam habitar espaços aos quais essas mulheres não tiveram a oportunidade de trilhar, a exemplo da escolarização universitária. Nos caminhos descortinados, vemos como raça, gênero e trabalho apresentam-se articulados na vida de mulheres batalhadoras que, ora se situam como mulheres em busca da liberdade e da autonomia, sendo “donas de seu próprio destino”, ora podem ser capturadas enquanto “escravas dos doces”, ao terem que sustentar um trabalho que cansa, que leva à exaustão, que prende e produz adoecimentos no futuro e, ao mesmo tempo, permite que a família negra se mantenha viva. A partir do protagonismo feminino, Samara Freire nos mostra de que forma mulheres negras se atualizam como sustentáculo da família, confirmando observações descortinadas pelo feminismo negro, a exemplo das análises de Angela Davis (2016) e bell hooks (2000). Não por acaso para as feministas negras dos Estados Unidos o trabalho foi justamente uma questão fundamental que serviu para reivindicar outras diferenças sociais, para além do gênero, dentro do movimento feminista. Estas autoras demonstraram que a insatisfação que as mulheres brancas manifestavam por se sentirem confinadas e submetidas à vida do lar como donas de casa era, na verdade, uma crise para apenas um grupo de mulheres, porque as negras, chicanas, operárias e outras mulheres de cor já trabalhavam fora dos seu lares como alternativa de subsistência. Patricia Hill Collins (2012) argumentou que as longas horas de trabalho das mulheres negras em troca de salários baixos aglutinava-se à responsabilidade de cuidar de seus próprios filhos e do trabalho doméstico em suas próprias casas. A ideia feminista de “sair do lar” como forma de libertação não era uma utopia que as contemplava. Em resumo, o que essas autoras denunciavam era o quanto o feminismo, por meio da invisibilização das experiências racializadas, estaria dando as costas também à feminização da pobreza, de tal modo que lutas concretas contra as práticas de governo que estariam criando políticas prejudiciais para as mulheres dos guetos e para mães solteiras, ou o desmonte de programas de bem-estar, não estariam sendo privilegiadas. Se trabalhos domésticos e outros trabalhos precários, a segregação racial e espacial, a vida nos bairros, etc., são experiências compartilhadas que criam pontos de vista coletivos entre mulheres
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desfavorecidas, esses mesmos espaços lhes permitem compartilhar um corpo coletivo de saberes positivado e passível de se converter em meios de ação. Estamos fazendo alusão à sabedoria relativa a “como sobreviver como mulheres negras”, nas palavras de Hill Collins (2012). Pode-se dizer que a etnografia de Samara atravessa a compreensão da conformação desse sentimento coletivo, sem pressupor que os marcadores sociais da diferença se interseccionam exclusivamente em termos de desigualdade. Tal como os demais autores desta coletânea procuram trabalhar, a autora entende que as relações de poder, no sentido foucaultiano do termo, não podem ser homogeneizadas e nem os marcadores simplesmente sobrepostos, pois o poder não é algo que uns têm e outros não. As categorias sociais da diferença articulam-se de modo a facultar também agências, certas modalidades de ação e certos modos de sobreviver. A questão, como demarca Brah (2006), é saber não somente “como as fronteiras da diferença são mantidas ou dissipadas”, mas também como “a diferença diferencia”, se lateral ou hierarquicamente. Porque estamos nos deslocando entre distintas proposições feministas, sem um grande aprofundamento de contextos históricos, analíticos e políticos, cabe-nos sinalizar que as abordagens interseccionais se diferenciam entre si de acordo com os modos como é pensado o poder, a própria noção de diferença e na medida em que tais abordagens oferecem importância, maior ou menor, à agência dos sujeitos (Piscitelli, 2008). O investimento do NuSEX em abordagens interseccionais reclama que os seus membros se perguntem, cientes da multiplicidade das formas de opressão e de produção da desigualdade, como tais processos se dão: em que contextos, quais agências se tornam possíveis, onde, em relação a quais grupos sociais, em que momento da vida, de que forma diferenças se convertem ou não em desigualdades. Tratam-se de mandamentos etnográficos que nos permitem não congelar as intersecções, como se operassem sempre da mesma maneira, e também nos permitem não reduzir a complexidade dos fenômenos sociais apelando a entidades monolíticas de poder. O que, entretanto, não quer dizer que estejamos deixando de lado a compreensão em torno da maneira como os nossos interlocutores, por vezes, em circunstâncias precisas, constroem e/ou mobilizam unidades – a sociedade, a família, o patriarcado, etc. – que permitem que
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certos campos de lutas, dores, violências, prazeres e afetos sejam explicitados. O artigo de Zampiroli neste volume é especialmente claro nesse sentido. Já o de Fátima Lima, sustenta uma proposta de leitura em torno da pergunta: o que é interseccionalidade e a que ela nos serve? Desafia-nos a repensar as relações raciais no Brasil. A autora propõe descortinar como a perspectiva interseccional vem dialogando com as ficções raciais à brasileira, bem como com o modo como tais ficções são atualizadas, seja no cotidiano, seja nas práticas estatais. Para tanto, o genocídio do negro brasileiro (Nascimento, 2017), a luta das mães que perderam os seus filhos em confrontos com a polícia (Vianna & Farias, 2011), o governo das mortes (Farias, 2014), dentre outras análises, são costuradas às reflexões de Crenshaw (2012), às proposições de feministas negras, como cada uma das anteriormente citadas, e ao pensamento decolonial de Aníbal Quijano (2000). Fátima Lima percebe o mito da democracia racial, aliado ao imperativo do embranquecimento, bem como aos preceitos da cordialidade, enquanto relações que se tornaram visíveis e dizíveis de maneira bastante específica, isto é, ocultando violências, desigualdades e assimetrias. A autora defende que a crítica à modernidade está inacabada, depende de uma revisão sistemática do modo como o colonialismo e a invenção da raça, da figura subalterna do negro e da mulher negra, permitiram ao Brasil se construir enquanto nação. A escravidão seria a espinha dorsal da compreensão de como gênero e sexualidade não somente se interseccionavam, como podem, ainda hoje, conformar as relações sociais de maneira singular. Nesse sentido, pode-se dizer que o fim do domínio colonial não interrompeu a projeção de certa armação das relações sociorraciais. Esse fim que nunca se concretiza, essa marcha dos discursos e das práticas que se dá no cotidiano dos diferentes contextos latino-americanos, pode ser chamado de colonialidade. O ponto alto da análise de Lima está justamente no esforço de intercalar essa discussão com a da biopolítica (Foucault, 2008), enquanto governo da vida e dos vivos, e a da necropolítica (Mbembe, 2018), enquanto política de matabilidade e economia de morte. Na colonialidade, o bios da biopolítica precisa ser racializado, precisa ser compreendido nos termos da história do Brasil, e não exatamente da Europa. Se o racismo é o corte que divide a linha entre o fazer viver e o deixar morrer nas sociedades normalizadoras,
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não seria necessário contrabalancear essa concepção levando em consideração as formas excessivas, mas ao mesmo tempo rotineiras, de fazer morrer corpos de raça, idade e gênero notavelmente marcados nas favelas e periferias? Fátima finaliza nos convocando a pensar sobre uma bionecropolítica. A proposta vem se somar ao conjunto de autores que, recentemente, realizam movimentos analíticos que, ora se aproximam, ora se distanciam, na maneira como articulam as ideias de Foucault às de Mbembe – a citar por Bento (2018), Vianna (2018) e Fernandes (2017). Desejo: prazeres dissidentes, prazeres normativos Aquilo que chamamos de desejo em relação à sexualidade tem sido objeto de árduas interpretações. Desde Sigmund Freud e Wilhelm Reich, para os quais a sexualidade (desejos e comportamentos) estaria moldada por fatores biológicos e ambientais que encontrariam canais de desenvolvimento nas dinâmicas familiares; passando por Alfred Kinsey e suas polêmicas visões naturalistas em que a sexualidade se define em relação à mensuração do prazer; ou sexólogos como William Masters e Virginia Johnson que dedicaram suas pesquisas às práticas terapêuticas dirigidas às disfunções sexuais ainda a partir de uma concepção biologizante da sexualidade e do desejo; a Helen Kaplan que teve um ímpeto pioneiro de análise científica do desejo, interpretando-o como “apetite ou impulso produzido pela ativação no cérebro de um sistema neural específico” (Kaplan, 1979, p. 9). Impulsos, motivações, ausência, excessos ou transtornos têm sido fundamentais para o conhecimento do desejo via sexologia, psicanálise e terapêutica, seguindo uma necessidade de mapear o desejo e suas várias manifestações no corpo, porque é justamente no corpo que, acreditavam, o desejo se localiza. Dessa crença pulsante do século XVIII, como analisa Jeffrey Weeks (1991, p. 70), de que “o desejo era uma força perigosa preexistente ao indivíduo, arrebatando seu corpo (geralmente do homem) frágil com fantasias e distrações que ameaçavam sua individualidade e sanidade”, chegou-se às ciências e saberes do século XIX que encapsularam desejos em diagnósticos e colocaram a sexualidade em discursos como modo de apreendê-la, nos ensinou
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Foucault (1980). Assim, corpos, desejos e prazeres se tornaram objetos de normas e perspectivas morais. Partindo de um ponto de vista construcionista, William Simon e John Gagnon reivindicam a conduta sexual como um campo de análise sociológico alheio à biologia e a psicologia. Para os autores, desejo é roteiro, sexo é roteiro, o que implica dizer que demandam uma aprendizagem e “que somente por estarem inseridos em ‘roteiros’ sociais é que os atos físicos do corpo se tornam possíveis” (Scoffier, 2006, p. 21). Apesar das diferenças de enfoque entre Foucault e Gagnon e Simon, os autores têm em comum a ideia de que a sexualidade é regulada por processos de categorização e imposição que guiam as possibilidades do corpo, do sexo e de suas expressões, o que, por sua vez, “deve orientar nossa atenção para as várias instituições e práticas sociais que desempenham esse papel de organização, regulação e categorização” (Weeks, 1980, p. 14). Weeks menciona a família, a regulamentação jurídica, as práticas médicas e as instituições psiquiátricas. Nesta seção do livro, atendendo o chamado do autor, queremos adicionar a literatura, o carnaval, a pornografia e outras arestas do mercado do sexo. Os autores aqui presentes se perguntam de diferentes maneiras sobre produção de corpos e desejos e sobre modos como estes se atrelam a diferentes formas de produção de normativas de gênero, sexualidade e raça, assim como sobre a relação entre fantasias e mercado em sua fabricação de enunciados de transgressão. Os trabalhos de Victor Hugo Barreto e de Lorena Mochel chamam atenção a agências que os sujeitos empreendem no caminho de se deleitarem com experiências-outras no domínio das práticas sexuais, ambos sendo ricos para pensarmos a respeito dos mecanismos e dos territórios que abrem suas potencialidades para erotismos que, pelo menos em seu apelo inicial, estariam desafiando as convenções da tradição. As questões de ambos os autores acompanham preocupações chaves da agenda do feminismo pró-sex dos anos 1980: a indagação sobre o que há de transgressor no erotismo e o sentido dessa transgressão no que concerne à liberdade sexual. Victor e Lorena encontraram respostas para suas ponderações sobre erotismo e prazer no âmbito do mercado do sexo e de modos diversos, tentaram responder um questionamento proposto por Maria Filomena Gregori em Prazeres Perigosos: por quê estudar
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convenções de erotismos e sexualidades no âmbito do mercado, e não apenas em relação a universos institucionais e suas maquinarias de poder e produção de saberes como foi inaugurado por Foucault? Porque “para as novas alternativas eróticas o mercado é significativo (...) ele constitui atualmente uma das figuras mais paradoxais. Nesse cenário reúnem-se experiências que alternam, de modo intrincado, esforços de normatização e também de ressignificação e mudanças de convenções sobre sexualidade e gênero” (Gregori, 2010, p. 78). Victor Hugo adentra festas de orgias entre homens nas quais o principal marcador social da diferença que atua na valorização dos sujeitos é a masculinidade. Se nos picos altos do prazer durante o sexo grupal outras diferenças (raça, classe, estilo, beleza, idade) tendem a ser borradas em prol da importância de uma potência ou atitude do sujeito: sua capacidade para ser puto, o autor nos lembra como o gênero está ali para tensionar as diferenças. Nessas festas, as formas de subjetivação vividas em gramáticas de intensidade estariam refletindo a putaria como “modo singular de engajamento no mundo”, argumenta o autor: agenciamentos onde o êxtase marcaria o descentramento de si, uma experiência no plano do sensorial percebido pelos sujeitos como “desafiante” de outros aspectos de suas vidas. A transgressão se daria, para esses sujeitos, não apenas pelo exercício de práticas sexuais relativas à orgia, mas pelo próprio movimento em relação à deriva. Esta última, apreendemos com Perlongher (1987), implica uma maneira específica de habitar a rua (imaginemos a festa como rua), uma disponibilidade para o novo e uma vontade de nomadização. O desejo sexual é chave na deriva e, como estilo de sexualidade, ela não existe como resultado do vazio ou da solidão, e sim como uma defesa da mobilidade e da fugacidade. Lorena Mochel, por sua vez, nos convida a caminhar por outras trilhas. Após realizar trabalho de campo em uma boutique erótica no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, a autora discute significados e experiências relativas ao erotismo, especificamente ao uso feminino de toys sexuais e outros objetos criados pelo mercado para a sedução. Se, por um lado, sua etnografia mostra os percursos que os sujeitos empreendem em meio a uma sensibilidade contemporânea marcada pela procura dos prazeres em uma ética de cuidado de si e pela valorização da experimentação dos gozos sensoriais; simultaneamente, seu trabalho mostra as tensões e
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limites acionados – traduzidos em uma linguagem de gênero – presentes nesses percursos. As protagonistas desta etnografia não recorrem a derivas nem a experiências baseadas na fugacidade, ao contrário, seus movimentos se dão para dentro do lar, como autogoverno do prazer, gestos de alargamento e estreitamento da sexualidade no interior de um campo de normativas relativas ao casamento, à heterossexualidade, às gramáticas de gênero e, mais recentemente, à religião. A esse respeito, o novo mercado gospel, voltado para mulheres e casais evangélicos, reflete não apenas como se efetivam deslocamentos no sentido da antiga ideia sobre transgressão associadas aos sex shops, nem apenas a flexibilidade do mercado para se adaptar “dentro da palavra divina”, mas também impulsiona a produção e reinvenção de engajamentos femininos e, sobretudo, os modos como as mulheres realizam agências dentro de marcos normalizadores, isto é, habitando normas. Há por detrás dos trabalhos de Victor Hugo e de Lorena uma noção que é também rentável analiticamente no trabalho de Michel Carvalho: a fantasia, dispositivo fundamental na pornografia. A fantasia, sabemos, faz parte do que não é visível na sexualidade, devido a sua capacidade de criar significados não apenas por intermédio daquilo que as coisas são, mas também via aquilo que evocam. O artigo de Michel fala da fantasia sexual a respeito de corpos negros. Bombom, Nego Catra, Capoeira, entre outros nomes de porn stars nacionais, junto a enunciados de legendas e sinopses, tais como “buceta de preta”, “cu preto”, “rabo da mulata”, integram a face explícita da fantasia em seu regime de visibilidade. E, a seu turno, tudo o que os corpos negros evocam – luxúria, selvageria, desenfreio sexual –, permanece na pornografia como marcas que obrigatoriamente antecipam a compreensão dos mesmos. Dissemos obrigatório porque essa é a força do estereótipo racial, é a sua qualidade stickness, diz Michel em consonância à proposta de Juana Maria Rodríguez (2014): aquele código ou gesto que se cola e toma contornos morais, demarcando e restringindo a produção e vivência do desejo. Se no trabalho de Victor Hugo não há consumação apenas de um corpo másculo, mas de uma fantasia de masculinidade, e no de Lorena há não apenas o consumo de toys, mas da fantasia de suas proezas e sensações picantes, com Michel podemos perceber como a pornografia não apenas vende corpos negros, mas tudo
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o que a eles se associa: hiperssexualização e, simultaneamente, subalternidade. É nessa via que o autor afirma: “um corpo negro dentro da pornografia é sempre um corpo negro”, representação sempre atravessada por uma “economia racializada do desejo” (Pinho, 2012), em que se conjuga a fascinação com a diferença racial e suas variações. Por meio de uma etnografia nos prêmios da indústria do pornô brasileiro e do acompanhamento da única atriz negra presente nesse universo no curso da pesquisa, Giovana Bombom, o autor pensa ao redor dos limites desse fascínio que, se pode permitir que ela transite por esses mundos, simultaneamente lhe recorda que há fronteiras para seu sucesso, pois ali impera uma política erótica da branquitude. Segundo Michel, a raça opera, nos termos da experiência de Bombom, por um lado, facultando o acesso à visibilidade via filmes pornôs que, embora paguem pouco a ela em comparação ao cachê de atrizes brancas, auxiliam-na a forjar uma frequentação da prostituição de luxo, que, por mais instável que seja, rende dinheiro para ir tocando a vida. Por outro lado, a raça que a faz ser convidada para certas produções é a mesma que a faz não ser escalada para filmes que não precisam de uma negra que faça o papel de negra. Bombom, escuro objeto do desejo, não somente sente-se preterida, como também vive relações de trabalho precárias. Michel, ao mesmo tempo em que faz do fracasso um modo de descrever o desfazer do sujeito, e não exatamente a sua formação, aponta em direção às práticas, quase singelas, de reelaboração de si. Os interlocutores da pesquisa de Lucas Bilate, por sua vez, fabricam fantasias, literalmente. São jovens que trabalham a cada ano durante vários meses no barracão de uma famosa escola de samba carioca criando as cores e vestes do carnaval. Roupas, adereços e alegorias cheias de glitter e lantejoulas, ao mesmo tempo que fazem do carnaval um universo de glamour, inventam o brilho e o próprio glamour como uma fantasia que cria corpos e subjetividades. A etnografia de Lucas não economiza detalhes sobre como o barracão de uma escola de samba é um universo de trabalho pesado onde os corpos se fazem em relação aos objetos com os quais interagem na labuta. Seu esforço foi interpretar como no âmbito do carnaval existem trabalhos, personagens, materiais e performances que fazem gênero: um cabelo comprido (imaginário ou não), uma pistola de silicone, glitter, o uso de um martelo, de fibra
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de vidro ou de uma ferramenta de grande porte. Na etnografia, os materiais se tornam extensões dos corpos, “corporeidade pessoaferramenta-material”, diz o autor. O trabalho de adereçamento se relaciona com uma dimensão simbólica chave para a compreensão das homossexualidades nesse mundo, via brilho, requinte e beleza. Assim, enquanto os trabalhos de base estariam ligados à brutalidade e à força, pressupondo a heterossexualidade de seus executores, a sutileza/delicadeza do adereçamento se enquadraria na dimensão dos sonhos – categoria que faz parte dos modos locais de construção do gênero. O interessante é que enquanto o autor mostra como o gênero e o corpo são construções sociais que encontram formas de fazimento e de vazão no carnaval (e no barracão), os interlocutores manifestam pontos de vista naturalizantes sobre a relação carnaval/ homossexualidade, isto é, visões que estabilizam corpos, gêneros e sexualidades. “Porque é assim” e “porque viado gosta disso” são expressões utilizadas pelos agentes para explicar, sem sombra de dúvidas, os motivos pelos quais o barracão e o glitter que nele existe estão inextricavelmente associados à homossexualidade, especialmente àqueles estilos mais próximos do feminino. Por essa via, o trabalho se torna vital para a formação de subjetividades, “os trabalhos manuais fazem subjetividades e as subjetividades emolduram os trabalhos manuais”, argumenta Lucas. E o espaço é fundamental também nessa construção. Não por acaso o autor cita Linda McDowell, geógrafa feminista que pensa o gênero em relação à espacialidade. Se há “naturalmente” um “monte de bichas” no barracão é porque este é um “portal mágico”, e o portal é aquilo que promete um atravessamento, que implica uma diferença em relação aos espaços de fora. Se ele é um lugar em que “todos liberam seus demônios”, em que aqueles poucos que não entram viados se tornam viados, é porque se revela para seus agentes como um espaço propício para a construção de subjetividades, sexualidades e erotismos, conclui. Desprendemos uma pergunta deste artigo inspirados nas questões que acompanharam Michel. Sabemos pela descrição etnográfica que os mesmos rapazes que criam a magia são as bases da hierarquia do carnaval, sendo mal pagos, em condições de trabalho pouco favoráveis. O fato de que seja um trabalho mal pago tem a ver com o tipo de pessoa que é recrutada para fazê-lo?
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De alguma forma isso, e não só a boa “predisposição” para o brilho, explicaria a presença de rapazes do barracão que possuem as características sociais no artigo descritas? Propomos que o trabalho de Lucas Bilate seja lido como uma análise crítica das formas de se fazer homossexual/heterossexual no mundo contemporâneo. A construção das sociabilidades e subjetividades homossexuais está presente também na discussão de Nathanael Araújo. O autor segue a trilha do romance Águas Turvas de Helder Caldeira para discutir os modos como o amor entre homens é representado em literatura que se pretende de consumo maciço para além de sujeitos LGBT. Araújo parte do princípio que “textos não são necessariamente livros”, mas fazem parte de um trabalho coletivo que influenciam não apenas os leitores, como parte considerável do mercado literário. De forma articulada e inspiradora, acompanhamos as múltiplas fases e processos que tornam um livro possível, a saber; a produção, publicação e a circulação da obra são mais do que meros momentos sucessivos da composição de um produto, mas engendram redes de sociabilidade, estas que por sua vez possuem a capacidade de transformar os próprios símbolos e termos que estão em circulação, a exemplo da questão homossexual na literatura e seu suposto lugar minoritário de dissidência. Na sua análise, entretanto, vemos de que forma os estigmas relacionados à homossexualidade são negociados dentro das narrativas e ficções, uma vez que percorrermos formas de vivenciar e habitar a homossexualidade que não são homogêneas, nem possuem roteiros estáveis, mas que ainda assim podem girar em torno da ficção de um “final feliz”. No seu plano analítico, ao lado do exame dos itinerários homossexuais, que podem incluir erotismos bem ou mal sucedidos (o protagonista sofre um estupro e é também o desejo de esquecimento desse fato traumático que o leva à procura de relações afetivas benéficas), Araújo persegue também os desdobramentos das relações afetivas-sexuais heterossexuais, mostrando como estes pólos mantêm paralelos e pontos de ruptura em um processo de espelhamento mútuo e reificação de categorias normativas. O artigo de Nathanael convida ao leitor a indagar sobre a relação entre as estratégias literárias de construção de personagens e as estratégias de mercado. O “final feliz” não é uma aposta a um só tempo moral e econômica?
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Afetos: amor, cuidado e controle na vida cotidiana As práticas de cuidado e os engajamentos continuados com o outro, seja através de relações heterossexuais, seja via relações homossexuais, revelam camadas ambivalentes das gramáticas de gênero e sexualidade que povoam o cotidiano de casais, amantes, mães, pais, filhos e amigos. Nos artigos destacados nesta seção, veremos como a “negociação da intimidade”, tal qual formulada por Viviana Zelizer (2011), se realiza em diferentes contextos de vida, mostrando o “trabalho relacional” de gerir as fronteiras entre afeto, dinheiro, cuidado, controle e interesse. Neste sentido, cabe lembrar dos ensinamentos de Marcel Mauss (1979[1921]) quando se refere ao plano obrigatório dos sentimentos, criando perspectivas para a compreensão das diferentes expectativas presentes nas inúmeras posições de parentesco, namoro ou casamento. Estes textos nos alertam para as cargas afetivas presentes nos itinerários examinados, bem como atentam às ambivalências contidas na expressão dos sentimentos e na negociação dos mesmos no fluxo da vida ordinária. Na medida em que nos dedicamos à análise das emoções em termos passíveis de serem identificados como micropolíticos, somos tributários da perspectiva aberta por Claudia Barcellos Rezende e Maria Claudia Coelho, que, a partir de diversos trabalhos (Coelho, 2006; Coelho & Rezende, 2010), nos incitam a pensar a gratidão, o amor, o carinho, a vergonha, o medo, a solidão, entre outras emoções, em interface com moralidades. Os caminhos percorridos pelos autores alternam-se: nem sempre eles se dedicam a uma descrição exaustiva de dada emoção ou um dado complexo emocional, mas costumeiramente atravessam os sentimentos enquanto campo de conflitos, tal qual estabelece Georg Simmel (2006). Cabe, portanto, destacar que as relações afetivas, quando pensadas sob o signo do cuidado, não são antagônicas ao controle – postura analítica que desloca uma perspectiva essencialmente romântica e idealizada das relações de proximidade. Ao advertirem as prerrogativas e as vicissitudes do dia a dia, Carolina Castellitti, Everton Rangel, Carolina Maia, Oswaldo Zampiroli e Camila Fernandes neste volume demarcam uma plêiade de trabalhos, empenhos e vigores afetivo-reflexivos indispensáveis à formação dos sujeitos. Eles demarcam as práticas através das quais nos tornamos aquilo que somos e nos deslocamos a outros mundos
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possíveis. Pode-se pensar que nesses artigos a preocupação com o cotidiano reverbera em uma análise do processo de conformação das disposições dos sujeitos generificados ou, melhor dizendo, na descrição do florescimento lento de potencialidades, capacidades ou sensibilidades individuais e coletivas. O artigo de Carolina Castellitti é uma artesania com fragmentos de histórias de vida de diversas mulheres argentinas capaz de revelar dimensões tão íntimas quanto aquelas que remetem às expectativas de uma vida a dois e às tristezas oriundas do desamor. A autora descreve processos de desconjugalização, suas etapas e os recursos mobilizados para vivenciá-lo e superálo. Trata-se, de fato, de um longo processo de negociações com o outro e consigo mesmo. A ruptura conjugal deriva na reconquista de si de um tipo muito particular: é uma “individualidade forçada”, uma aquisição de autoridade sob a casa, os filhos e sobre a vida, que, mesmo quando reivindicada, é vivenciada como um fardo, especialmente nos casos em que essa autonomia se transforma em “solidão”. Carolina está questionando, então, como as experiências de divórcio e separação denotam ambiguidades relativas aos papéis de gênero. Se hoje em dia existem mais rupturas conjugais, refletem algumas de suas interlocutoras, é porque as mulheres passaram a “tolerar menos” ou a ter “menos paciência para aguentar”. O caráter positivo das mudanças sociais que permitiram uma melhor inserção social das mulheres e, por tal, maior independência econômica, se vêm tensionadas pelas experiências a partir das quais tais mudanças estariam jogando as mulheres para fora de seus ditos “papéis naturais”: um feminino ligado às virtudes da paciência, da compreensão, do cuidado e da entrega. A oposição entre Susanita e Mafalda, personagens da popular história de quadrinhos de Joaquín Lavado (Quino), permitem que Castellitti compreenda as trajetórias e expectativas de suas interlocutoras em um plano que remete às transformações sociais pelas quais a Argentina passou nas últimas décadas. A autora nos faz ver como questões macrossociais são dramatizadas no plano micropolítico; em outras palavras, a dimensão subjetiva da vida social é trabalhada neste artigo a partir dos seus vínculos nevrálgicos com a dimensão sociológica. Paciência, cuidado e entrega requerem tempo. E o tempo é, como ressalta Camila Fernandes, “uma das marcas mais radicais da assimetria de gênero”. Em seu artigo, a autora analisa trajetórias
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de sujeitos e rupturas conjugais que mostram como nas disputas em torno do tempo dedicado ao cuidado dos filhos convergem disparidades que revelam as expectativas sociais generificadas em relação a pais e mães. O tempo, que geralmente pensamos como sucessão de acontecimentos, adquire o seu sentido preciso nas relações interpessoais, nas experiências do cuidado dos outros e de si. O tempo que a criança toma, quando contado, é descontado, sobretudo, do tempo que os pais, as figuras paternas, teriam para si mesmos. Para eles, usualmente, o “tempo para si” acontece sem a necessidade de sistematicamente disputá-lo, sem que um grande peso afetivo-moral sobre eles se abata. O mito ao redor da “maternidade correta”, aquela propagada a partir da figura da mãe sacrificial, é acionado nas relações para justificar abusos, para provocar o assujeitamento das mães à conversão contínua do “tempo para si” em tempo dedicado ao cuidado do outro, dinâmica que opera com maior eficácia nos casos dos sujeitos atravessados por vulnerabilidades sociais. Essas assimetrias que reverberam no interior de territórios existenciais podem tanto ser negociadas quanto se cristalizarem como desigualdades. As múltiplas possibilidades de uso do tempo, quando facultam às mulheres movimentos no sentido da agência e da mobilidade social – tais como o de “cuidar menos”, o de partilhar o cuidado dos filhos com terceiros e o de cuidar de si –, configuram-se como uma política dos pequenos atos que (re)estruturam no cotidiano relações e afetos, ou como preferimos dizer, tratam-se de pequenos gestos que movimentam o mundo a duras penas. O que não quer dizer que a figura da mãe sacrificial deixe de resistir no interior desses movimentos gerando constrangimentos, encargos de consciência e avaliações de cunho moral. Debora, principal interlocutora de Fernandes, ao reivindicar o “tempo para si” se viu obrigada a mobilizar justificativas, como se a aquisição de “tempo para correr atrás” fosse moralmente questionável. A autonomia relativa que ela angariou está longe de ser simplesmente individualista, pois permanece relacional. Assim, a autora discute a usurpação do tempo feminino, as “prisões” instauradas pelo cuidado das crianças, os gestos de partilha do cuidado entre mulheres, os diferentes valores atribuídos ao trabalho realizado em casa e na rua, os alívios acompanhados de sofrimento. Tempos generificados nas batalhas do dia a dia.
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Ao lado das rupturas relacionais, encontramos o poder do desejo por encontros amorosos. O artigo de Carolina Maia aborda publicações feitas a partir dos anos 1980, produzidas por mulheres lésbicas e voltadas para um público lésbico. A construção e consolidação do boletim “Um Outro Olhar”, publicação veiculada durante os anos 1980 e 1990, parte da ação do Grupo de Ação Lésbica Feminista (GALF). Tais periódicos mostram a força da escrita e da apresentação de si como importantes formas de fortalecimento das subjetividades homossexuais. A partir dessas escritas, em suas variadas estratégias discursivas, as sujeitas presentes nos textos analisados mostram que episódios de isolamento, solidão e violências cotidianas podem ser reelaborados a partir do compartilhamento das vivências em comum. Seja nas experiências de amizade, afeto ou amor, os textos produzidos pelas leitoras compõem um corpus de vivências que uma vez reunidas e sistematicamente publicadas, descortinam um universo no qual as sociabilidades lésbicas conviviam frente às normas heterossexuais, produzindo a invenção de novos amores, linhas de desejo e afeto em um universo pautado por valores patriarcais. Carolina Maia mobiliza documentos, cartas e registros textuais, mostrando com habilidade etnográfica um rico instrumental analítico presente nestas fontes. A partir de um processo de desvelamento de lembranças, memórias da luta dos movimentos LGBTs vem à tona, demonstrando a batalha pelo reconhecimento da humanidade de seus sujeitos, na busca do direito ao amor e de viver uma vida digna e plenamente reconhecível enquanto tal. Por outros caminhos, seguindo as continuidades entre o amor e o conflito, Oswaldo Zampiroli discute a trajetória de mulheres trans/travestis em seus relacionamentos afetivos e amorosos. Se por um lado, tais trajetórias se situam nas sociabilidades entendidas como dissidentes, tais como o trabalho na prostituição, ao mesmo tempo, suas interlocutoras buscam no casamento monogâmico a promessa da realização de si enquanto mulheres “de verdade” e apostam na formação da família como uma grande expectativa de futuro. A união com homens “cisgêneros” é feita a partir da luta diária pelo amor, categoria esta que se mistura à perspectiva do “sonho”, ambas condensadas na idealização de um projeto de vida. O casamento e o amor monogâmico se apresentam como ideais importantes de serem alcançados, demonstrando a força da norma
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em, para usar uma expressão do autor, “transbordar” também sobre as rupturas e comportamentos dissidentes. Assim, Zampiroli articula de forma coexistente a transgressão e a norma, em um processo que ativa uma premissa antropológica fundamental, a saber, que a margem e o desvio são parte das regras estabelecidas em cada sociedade, e que ambos são co-criados uns em relação aos outros em um processo de espelhamento mútuo; tal premissa é tributária de análises promovidas por diferentes autores, tais como, Howard Becker, Erving Goffman e Gilberto Velho. A etnografia feita por Zampiroli é fina e sensível ao acompanhar de que maneira mulheres trans/travestis podem negociar os signos dos desvios e ao mesmo tempo buscar relacionamentos reconhecidos como padrões legítimos na nossa sociedade, mostrando de que maneira o “fazer família” opera como um valor precioso e central. O amor se apresenta como possibilidade política, em meio a tantas batalhas, normas e moralidades. Habitar um casamento é uma forma de cultivar uma existência digna. Neste aspecto, destacamos as contribuições de Luiz Fernando Dias Duarte, que em suas reflexões sobre carreiras, trajetórias de vida, famílias e universo popular produziu um conjunto de trabalhos acerca das moralidades e emoções, postas em relação aos valores modernos, igualitários ou hierárquicos das camadas médias e populares (Duarte, 1988, 2008, 2009, 2011). Ao lado da sua contribuição, situamos também autoras, tais como, Claudia Fonseca (1995, 2000), Tania Salem (1989, 2006) e Maria Luiza Heilborn (2004, 2006), que conferiram atenção especial às diversas configurações e experiências de classe, acompanhando determinadas sociabilidades, práticas e discursos, bem como seus usos sociais e políticos. Em suma, esses trabalhos nos inspiram a apreender os significados produzidos em torno de diferentes trajetórias, considerando a produção de teorias sobre o universo popular e das classes médias que alimentam muitas das reflexões do NuSEX sobre gênero, sexualidade e família. Em continuidade às reuniões e encontros amorosos, Everton Rangel discute as justificativas e práticas acionadas pelos sujeitos para manterem seus relacionamentos apesar das adversidades. Um circo estadunidense que percorre o país em dois enormes trens é o pano de fundo de sua etnografia. Em um cenário caracterizado pela interação de pessoas de diversas nacionalidades, o autor se
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preocupou em refletir sobre os laços afetivos, bem como sobre a própria noção de amor, entre mulheres brasileiras que atuavam nesse circo como dançarinas e seus namorados. Amores imantados de conflitos, que persistem em meio a possíveis e iminentes separações em função de decisões empresariais e diante dos olhos de um coletivo que fabricava sentenças sobre a legitimidade das demonstrações de afeto. Após presenciar episódios de acusações, brigas, tapas e choros, Everton indaga sobre o modo como as gramáticas de gênero atuam nas situações de confronto marcadas pela veiculação do ideal do amor romântico. Pelo menos na temporalidade do trabalho de campo, certas práticas podiam ser consideradas abusivas, mas não podiam, nem deviam serem chamadas de violência do ponto de vista dos mais diversos atores envolvidos. Aqueles momentos em que os conflitos chegavam a instantes de excesso e de aparente extrapolação de limites do tolerável, o autor chamou de fissuras, pequenas fendas que eram logo submetidas a pequenos gestos da reparação que denotavam o quanto as moralidades podem ser contorcidas e esticadas frente às expectativas do cuidado, da duração e do desejo. Trata-se de um deslocamento semântico das considerações de Díaz-Benítez (2015) sobre as fissuras; estas deslocam-se do terreno das práticas de fetiche extremo e passam a habitar também as dinâmicas conjugais. Ao problematizar a ideia de violência nas relações íntimas, Rangel não pretende relativizá-la nem minorá-la, mas mostrar de que maneira a enunciação da violência cria um impasse na manutenção das relações, obrigando os atores a se posicionar e eventualmente limitar chances de ação dentro de um contexto de escassez, no qual, acessar um relacionamento é aceder a possibilidades de futuro e recursos sociais. A gramática da violência não está descartada, ela pode ser acionada caso seja necessário, mas, antes disso, os agentes mostram que viver o amor é aceitar negociar relações de poder. ***
Para concluir, gostaríamos de fazer um último comentário. No prefácio de 2009 do já mencionado livro Prazeres Dissidentes, a antropóloga Adriana Piscitelli chamava atenção ao diálogo restrito com os referenciais feministas tanto na coletânea em questão como dentro do campo de estudos a um nível mais amplo no Brasil entre
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as últimas gerações. A essa ausência, somava-se a pouca atenção concedida a experiências de e entre sujeitos heterossexuais para além do mercado do sexo. Nesse sentido, esperamos que os esforços empreendidos para refletir sobre esses outros marcos permitam que (Des)Prazer da Norma faça uma contribuição ao nosso cenário acadêmico. Impossível finalizar este texto sem mencionar as pessoas que integram o NuSEX e que de diversos modos tem alimentado nossas reflexões temáticas, teóricas e políticas: Natânia Lopes, Felipe Magaldi, Rodrigo Coelho, Vinicius Mauricio-Lima, Brena O’Dwyer, Aymara Escobar, Jefferson Scabio, Montserrat Valle, Annelise Campos, Natalia Maia, André Souza, Rafael França, Ricardo Caramillo, Thiago Soliva, Nicolas Wasser, Helmut Kleinsorgen, José Ramón Díaz-Benítez, Erica Sarmet, Letícia Ribeiro, Hugo Prais e Raquel Oscar. Outros colegas têm sido fundamentais pela parceria intelectual ou pela sua participação nos eventos organizados pelo coletivo: Sérgio Carrara, Jorge Leite Jr., Isadora Lins França, Guilherme Almeida, Peter Pál Pelbart, Stephanie Lima, Vinicius Ribeiro, Laura Lowenkron, Maria Filomena Gregori, Jane Russo, Regina Facchini, Peter Fry, Horacio Sívori, Paula Lacerda, Silvia Aguião, Martinho Tota, Marco Martínez, Luisa Belaunde, Carlos Guilherme do Vale, Angela Donini, Rodrigo Vianna, Camila Bastos Bacellar, Tedson Souza, Gleiton Bonfante, Alexandre Oviedo, Bianca Arruda, Martinho Braga, Claudia Carneiro da Cunha, Magareth Gomes, Aureliano Lopes, Nelson Mugabe, Amana Mattos, Lívia Reis, Isabela Rangel, Abgail (Bibi) Campos, Mario Carvalho, Kaciano Gadelha, John Comerford, Renata Menezes, Laura Murray, Raphael Bispo, Leonardo Hincapié, Eric Fassin, Matthew Guttman, Carla Rodrigues, Carla de Castro Gomes e José Miguel Nieto Olivar. A vocês, assim como a Luiz Fernando Dias Duarte e a Adriana Vianna, muito obrigado.