Lรก fora cresce um mundo
Adelaida Fernández Ochoa
Lá fora cresce um mundo
Tradução de
Francisco César Manhães Monteiro
© 2017, Adelaida Fernández Ochoa © 2017, Editorial Planeta Colombiana S.A. Latin American Rights Office - Grupo Planeta © 2018, Papéis Selvagens Edições
Coordenação Coleção Archimboldi Rafael Gutiérrez, Antonio Marcos Pereira, Rodrigo Rosa Tradução Francisco César Manhães Monteiro Projeto gráfico Ana Vizeu
Imagem de capa Lua Barbosa
Ilustração da autora na orelha Melissa Mendes Vogelgsang Revisão Brena O’Dwyer
Conselho Editorial Alberto Giordano (UNR-Argentina) | Ana Cecilia Olmos (USP) Elena Palmero González (UFRJ) | Gustavo Silveira Ribeiro (UFMG) Jaime Arocha (UNAL-Colômbia) | Jeffrey Cedeño (PUJ-Bogotá) Juan Pablo Villalobos (Escritor-México) | Luiz Fernando Dias Duarte (MN/UFRJ) Maria Filomena Gregori (Unicamp) | Mônica Menezes (UFBA) Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
O16l
Ochoa, Adelaida Fernández., 1957Lá fora cresce um mundo / Adelaida Fernández Ochoa; tradutor Francisco César Manhães Monteiro. - Rio de Janeiro (RJ): Papéis Selvagens, 2018. 148 p. : 16 x 23 cm - (Archimboldi; v. 4 Título original: Afuera crece un mundo ISBN 978-85-85349-03-5 1. Ficção colombiana. 2. Literatura colombiana - Romance. I. Manhães Monteiro, Francisco César, 1962. II. Título. III. Série.
Proyecto ganador de la convocatoria Becas para traducir y publicar obras de autores colombianos en el exterior Programa Nacional de Estímulos Ministerio de Cultura de Colombia
CDD Co863
À memória de Dolores Fernández e Zoila Martínez; à memória de seus pais escravizados, meus ancestrais.
Prefácio Um canto ao amor e à liberdade 1 Finalmente, foi saldada uma velha dívida do romance colombiano com a mulher negra escravizada. Agora sim desempenhando um papel de protagonista. Depois de quase um século e meio da publicação de La María1 em 1867, a escritora Adelaida Fernández Ochoa, nascida em Cali e criada em Palmira, – nos mesmos territórios reais e imaginários que inspiraram Jorge Isaacs –, imagina e escreve o romance de Nay, a babá de María, aqui dona de si mesma e contando-nos esse mundo a partir de seu olhar libertário. Lá fora cresce um mundo leva-nos à rebelião e aos quilombos dos escravizados das fazendas do vale do rio Cauca no século XIX, em meio à guerra dos Supremos liderados pelo general José María Obando.2 Esse pano de fundo histórico, dominado pelas revoltas dos escravizados com as quais Nay se identifica, influencia suas ações e determina seu caráter e tenacidade para alcançar a liberdade. Vive plena e conscientemente os acontecimentos de seu tempo. É movida em todos os momentos pelo amor, bálsamo para enfrentar a dor, a perda e o exílio, e aos poucos ir urdindo sua viagem de regresso à África com seu filho Sundiata. Dedicar-se ao tema da mulher escravizada já rondava a cabeça de Adelaida desde que a conheci há alguns anos, como aluna do mestrado em Literatura Colombiana na Universidade Tecnológica de Pereira. Ela me abordou ao final de minha aula inaugural desse Romance do escritor colombiano Jorge Isaacs (Cali, 1837 – Ibagué, 1895), representante do movimento romântico na Colômbia. O livro narra os conflitos da relação amorosa entre Efraín, fazendeiro na região do vale do rio Cauca, e sua prima María, tendo como espaço da ação esta região bucólica do sul colombiano. O livro é considerado pela crítica como um dos principais romances da literatura hispanoamericana do século XIX. (N. do E.) 1
A Guerra dos Supremos ou Guerra dos Conventos (1839-1842) foi um conflito armado que se iniciou por motivos religiosos durante o governo de José Ignácio de Márquez, após sancionar uma lei que ordenava suprimir os conventos com menos de oito membros. A rebelião iniciada por líderes religiosos foi aproveitada pelos caudilhos do sul do país, conhecidos como os Supremos, que faziam oposição ao governo de Márquez. (N. do E.) 2
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mestrado sobre Manuel Zapata Olivella.3 Adelaida me contou de seu propósito de pesquisar a representação da mulher negra no romance colombiano e com delicada timidez me pediu para aceitar a orientação de seu trabalho. A partir daquele momento, como lembramos quando a visitei em sua casa perto de Circasia, a caminho de Pereira, na companhia de seu marido, o professor de filosofia José Reinel Sánchez, comecei a me entusiasmar com a ideia que lhe sugeri em nossos primeiros encontros: o universo de La María a partir do olhar de Nay. Sua tese, A presença da mulher negra no romance colombiano, defendida e premiada em 2011, significou uma imersão no mundo das escravizadas. Ficou convencida da falta de autoras para lidar com a presença da mulher negra no romance colombiano. “Você já está pronta para escrever o romance de Nay” – eu disse –, porque não apenas tinha a pesquisa avançada, como já possuía um manuseio narrativo hábil e correto da primeira pessoa, exibido em sua obra prima, Que me busquen en el río (2006). Um romance pungente, dotado de grande alento poético, sobre suas experiências como professora em Trujillo na época dos massacres que abalaram aquele município do Vale do Cauca. Adelaida, assim que terminou sua dissertação e como exercício, enviou-me algumas narrativas breves contadas pelas mulheres escravizadas dos romances que tinha estudado. Tempos depois, ela compartilhou comigo um fragmento do romance incipiente e, ao lê-lo, senti essa alegria indescritível de quando outro cristaliza uma ideia comungada. Lembro-me que comprei em Havana dois exemplares do romance de Maryse Condé, Yo Tituba, um para Adelaida, pensando em modelos que lhe dariam luzes para seu projeto. Deste e de outros livros compartilhados, falamos agora que sua dedicação paciente e amorosa mereceram o prêmio de romance Casa de las Américas de 2015. Estamos muito emocionados, porque ambos sabemos o que esse triunfo poético significa para nossa literatura: dar voz e reconhecimento à contribuição dos africanos, especialmente das mulheres africanas, na construção da nação colombiana.
Manuel Zapata Olivella (Santa Cruz de Lorica, 1920 – Bogotá, 2004), médico, antropólogo e escritor colombiano. Um dos principais representantes da literatura afrocolombiana. (N. do E.) 3
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2 “Quando eu era bem menina, minha mãe, chamava-se Adelaida Uribe, falava-me de María, como se ela fosse sua vizinha, como se a fazenda El Paraíso4 estivesse muito próxima dela. Era um mundo em torno de Palmira e Pradera, onde meu bisavô teve uma fazenda muito grande, que se chamava La Aurora e onde meus avós compartilhavam a partir da tradição oral a história dos dois apaixonados. A pessoa que mais me direcionou para o mundo dos escravizados, o mundo da babá negra de María, foi papai, Marco Tulio Fernández, que sempre dizia: “eu, que lhe alimentei nestas tetas negras”, assim ele incutiu em mim a consciência de que eu era negra. Essas lembranças emergem muitos anos depois, quando estou escrevendo o romance – reflete Adelaida –, e foram vitais porque me ajudaram a sentir minha identidade com Nay. Sem essa identidade, não poderia ter escrito Lá fora cresce um mundo. Por isso me propus a conhecer esse mundo até conseguir intimidade com a geografia física e humana em que viveram os personagens do romance”. 3 “Para escrever Lá fora cresce um mundo segui as trilhas abertas pelos meus mestres Manuel Zapata Olivella em Changó, el gran putas e Roberto Burgos Cantor5 em La ceiba de la memoria”, confessa com a simplicidade e doçura que a caracterizam. “Também li e reli com atenção profissional romances como Beloved de Toni Morrison, e vi várias vezes a bela adaptação cinematográfica com Oprah Winfrey no papel de Sethe; Yo Tituba de Maryse Condé e Fe en disfraz de Mayra Santos. Essas leituras me ajudaram muito. Propus-me, desde o início, a recriar a subjetividade de Nay e me ajudaram muito Agnes Brown, Analia Tu-Bari, Sethe e Fe Verdejo, as protagonistas dos romances mencionados acima”. Em Lá fora cresce um mundo, Nay é dona de si mesma, de suas paixões, de seus Nome da fazenda em que acontece a ação do romance La María. Hoje em dia se conserva como Museu aberto à visitação pública. (N. do E.) 4
Roberto Burgos Cantor (Cartagena de Indias, 1948). Escritor colombiano. Finalista do Prêmio Rómulo Gallegos da Venezuela em 2010 com seu romance La ceiba de la memoria e vencedor do Prêmio Nacional de Romance da Colômbia em 2018 com Ver lo que veo. (N. do E.) 5
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desejos e do prazer de seu corpo. Ela administra o pomar e a leiteria da propriedade Santa Rosa de seu amo de origem judaica, Ibrahim Sahal, e com ele negocia seus interesses em meio a sua relação carnal, espaço através do qual obtém alguma autonomia em sua condição de escravizada. Por isso ela pode ir para a guerra como coveira e curandeira, sempre perguntando por seu amado Sinar. Uma busca que a obceca. Adelaida diz que alinhavou seu romance a partir de diretrizes e indícios pouco ou nada valorizados em La María e dos quais se valeu para montar outra ficção radicalmente diferente, com outro olhar sobre a história do século XIX e o contexto da fazenda patriarcal escravista em dissolução. A sensibilidade de Nay é a que explica a paisagem, as vidas das pessoas, os dramas da guerra e todas as peripécias dos escravizados para mudar esse mundo com sua liberdade. “Em vez da paisagem idílica de La María em meu romance não há roseirais ou perfumes, mas uma natureza agreste e hostil que crava seus espinhos nas pessoas e contra a qual meus personagens lutam. E por isso quis resgatar visões como a de Agustín Codazzi,6 que em um valioso testemunho disse que o caminho entre Palmira e Cali era o mais difícil, mata de palmeiras, mangues, grandes pantanais, manadas de porcos e, no meio, os quilombos dos negros”. “O mesmo contraste”, continua Adelaida, “dá-se entre o erotismo vivido por María e Efraín e o de Nay com todas as liberdades para desfrutar de seu corpo. Uma reviravolta completa da visão patriarcal do mundo”. Nay e seu filho Sundiata sentem orgulho de sua identidade africana e não dos nomes conferidos pelo amo, Feliciana e Juan Ángel. Participam de outros horizontes, animados pelas rebeliões dos escravizados daqueles tempos, e pela tenacidade e paixão com que Nay procura sem sucesso seu amado Sinar, compromisso que a faz deparar-se com outro amor, o do guerreiro quilombola Candelario Mezú, que a ajuda na busca infrutífera. O encontro de outro amor em seu exílio indesejável não desencoraja Nay de seu desejo inabalável de retornar à sua aldeia natal na Gâmbia, África. Nay se empenha em preservar sua identidade africana e se apega à sua língua para Agustín Codazzi (Lugo, Itália, 1793 – Espíritu Santo, Nova Granada, hoje Colômbia, 1859). Engenheiro militar, geógrafo e cartógrafo. Chegou a América do Sul nas primeiras décadas do século XIX. Motivado pelos ideais libertários uniu-se à luta pela independência das repúblicas sul-americanas ao lado do general Simón Bolivar. Depois da independência, seu nome ficaria associado a suas pesquisas geográficas e cartográficas. (N. do E.) 6
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mantê-la. É o uolof falado em sua aldeia natal. Adelaida conta sobre os estudos que avançou sobre essa língua africana. “Durante vários meses, com a ajuda de uma gramática e um dicionário dos Corpos da Paz da Gâmbia, dediquei-me a aprendê-la para traduzir as músicas de Nay em sua língua. A doçura das melodias em uolof encantam María e o filho de Nay, Sundiata. Algum dia, tenho a esperança de conhecer um nativo dessa língua que corrija minhas traduções”. 4 “A metáfora luminosa do retorno à África veio a mim da leitura de La María a partir do mundo dos escravizados. Propus-me a superar a interpretação canônica predominante na qual a presença dos escravizados é perdida e não têm nenhum papel protagonístico. Agora estou ciente de que meu romance é parte desse movimento iniciado no Primeiro Simpósio Internacional Jorge Isaacs: o criador em todas as suas facetas (2005), organizado pela Escola de Literatura da Universidad del Valle, e de muitos estudos da história e da antropologia publicados desde os anos 1970. Tornar Nay e seu mundo visíveis foi um dos tópicos que mais me entusiasmaram nesse Simpósio. Muitos historiadores, antropólogos, viajantes e romancistas me ajudaram a recriar a intimidade dessas vidas, suas pequenas e grandes lutas e o mundo espiritual que estavam moldando longe da África natal. Ao contrário de La María, onde o abolicionismo mal é sugerido, a resistência e as lutas libertárias dos escravizados são a questão central no enredo de Lá fora cresce um mundo. Suas fugas e a conformação dos quilombos constituíram uma grande mudança de paradigma interpretativo nos estudos sobre a escravidão na historiografia de países como os Estados Unidos, Cuba, Brasil e Colômbia. E lancei mão dessa perspectiva para escrever o romance de Nay”. “Lá fora cresce um mundo encerra uma visão extraordinária das lutas dos escravizados, sua resistência e o modo como enfrentaram a brutalidade do sistema escravista, carregado com uma poderosa força poética porque Nay é uma escravizada letrada. A vida da escravizada norte-americana Harriet Tubman me ajudou muito, sua inteligência lhe permitia o acesso à leitura e escrita, um meio poderoso para sua participação naquela ação libertária que
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foi a “Ferrovia Subterrânea”. Tive a primeira notícia dela quando li Changó, el gran putas e comecei a pesquisar sobre essa mulher extraordinária. As ideias sobre o valor da liberdade que Nay manifesta provêm de Harriet Tubman. Eu também queria ilustrar o poder indomável dos escravizados, afirmar sua iniciativa humana em circunstâncias extremamente adversas. É por isso que Nay, como Harriet Tubman ensinou aos escravizados norte-americanos, nunca temeu a morte em sua luta pela liberdade”. Com voz animada e firme, Adelaida conclui: “Meu romance é um canto ao amor e à liberdade”. Darío Henao Restrepo Escola de Literatura Universidad del Valle Cali, Colômbia
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Sundiata da Gâmbia
Tenho medo do tigre morto. Com listras manchadas e língua de fora me faz chorar outro pranto que fica apertado em meu peito. O sereno bebeu minhas lágrimas. Caminho, e ao caminhar, respiro o hálito da fera. Hálito de sangue que vem comigo, gruda em meu suor e em meu nariz. Os rugidos ainda atordoam a mata. A fera sacode de si as balas e todos os galhos se quebram. E fogem as cutias e as guacharacas. Persegue-me, vivo e morto. Embora o caminho seja o mesmo e meus passos maiores, não chego, o tigre pesa em minhas costas, arrasta-me para trás, em direção à sala onde todos riem, e sinto vergonha desse que não sou. Não quero mais ser Juan Ángel, mas sim Sundiata, o que aprende a ser homem com o mestre, em luas que são tempo, e dor e medo que são caminhos. E não este tigre. A cabeça rolou pela sala e espantei-me porque não sabia que carregava isso nas costas, e porque ainda tinha medo da fera, do derradeiro salto e da mordida. Em minha garganta. Mas todos riram e senti vergonha desse que não sou. Também sinto a mesma vergonha quando a bota, o grito e o riso me fazem tremer. Mas é que uma me machuca, o outro me atordoa por dias inteiros. E o riso se torna uma pulga que nem sequer pica. Antes chorava quando se aproximavam, sem saber qual era a culpa pedia perdão. Quando imploro sem saber porque, viro tartaruga, tenho carapaça e nela oculto minha cabeça. Aperto o chapéu contra o peito. Agora sinto que assim amarro minhas mãos. Como sempre, fico ali, em pé, sem me mexer. E a pancada já não me faz chorar porque dói, mas por ser pancada. Às vezes, levanto os olhos, apenas os olhos, e fico olhando para o rosto que me insulta. Acho que me parecerei a esse que não sou. Algum dia. Os cães já latem, então a noite se abre e não vejo sombras nem ouço tigres. Vejo o fulgor das fogueiras, e as árvores. Vejo minha mãe que espera no pavimento, não vai a meu encontro, gosta de olhar enquanto chego pelo caminho da mata, diz que desse modo me vê crescer. Minha mãe procura por Sinar.
Nay da Gâmbia
O que está acontecendo na serra, Sundiata? Mãe, isso não acontece na serra, mas em minha cabeça, observe: gotas de sangue
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escorrem por meu rosto. Sinto o cheiro delas. O sangue do tigre mordeu meu nariz, o sangue grudado no pelame. Mãe, o sangue vivo cheira como sangue morto? O que está acontecendo na serra, Sundiata? Pelo monte, a estas horas, outros são os emissários. Sim, mãe, lembra-se? Eles têm medo dos porcos. Por outro lado, eu não. Já conheço as piaras, sei o que farão. Mãe, os cães espantam a escuridão com seus latidos. O que farejaram? A fera? Ou sentiram meu cheiro encharcado de sangue de tigre. Eu chegava de longe e Lúcifer foi o primeiro a latir para mim. Então, chegaram Conga e Chico, mãe. O amor dos cães é alegre. A moringa. Pego a moringa para beber água e molhar meu rosto. Por que tenho medo de um tigre morto? Mãe. Vou abanar a chama do borralho, tem embrulhados de milho e carne. Filho. Caçaram o tigre? Sim, e também morreram Truncho, Campanilla, Mataleón e Olé. Um tiro acertou bem na testa, mas o tigre já estava ferido. Uma bala do senhor Braulio tinha entrado pelas ilhargas, e o senhor José fincou a lança no lombo dele. Olé lambia o sangue. Olé gosta de sangue, sangue quente, sangue das feridas. Mãe, me escondi porque tinha medo, o tigre estava ao pé da árvore, mas espreitava por toda parte; no mato onde me escondi, queria virar uma amoreira. Mãe, alguém pode virar planta? Sim, filho. O tigre tinha todas as listras manchadas. É preciso um tiro na testa para matar o tigre?
Sundiata da Gâmbia
Minha mãe sabe cortar as unhas, tirar bicheiras e espinhos. Meus pés colhem os venenos dos escorpiões e pus dos espinhos, são esmagados pelas pedras e botas e minha mãe os cura. Também os alivia do tanto que caminham. Suas mãos e sua comida fazemme suspirar. Mãe, dormirei ouvindo uma cantiga em sua língua. Aqui secreta; falada lá pela aldeia. Não entendo, mas adormeço acocorado. Escondo-me do tigre morto. As presas estão cravadas em meu pensamento. Adormeço sangrando.
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Nay da Gâmbia
Suma doom Kanam -i sa yaay Meew -i béy heleleheh Moom, isi na pur sa kóola kóola –i pot heleleheh ku isi naa ci suma boopa
(Meu filho cara de sua mãe leitinho de cabra heleleheh traga para sua pança a pança da botija heleleheh que trago na cabeça)
Meu Sundiata aprende medos. Antes da graxa espalhada pelas botas, depois da limpeza com o pano úmido, está o medo; que outra coisa pode representar o asseio do calçado para meu Sundiata? Um duplo medo, um que ele conhece, o outro que conheço eu, está agachado em sua manhã. E vou matá-lo. Depois, ao fim das milhas náuticas, veremos o cadáver desse medo e outras larvas que foram tomando fisionomia com o serviço ao amo mais jovem. Por agora, meu filho deve lutar acordado com os pesadelos que o derrotam no sono. Meu filho permanece na fazenda grande, por minha determinação e conveniência de todos, os proveitos devem contribuir para certos planos, talvez não na direção que planejo, começo a ter minhas dúvidas. O menino serve o amo: acorda cedo, faz o café, limpa e calça suas botas, administra as águas feitas, servidas e limpas; na cavalariça, cuida dos arreios, escova e alimenta o cavalo. Tudo em sua hora e em aparente submissão, tanto teme meu Sundiata os pés calçados. Quando o garrote o persegue, ele costuma pedir perdão. Tentando não usar essa palavra, a palavra perdão submete, farei que a mude e, em vez de, diga que não voltará a acontecer, que enquanto diz isso, olhe o futuro, o futuro que está além do amo, de suas mãos e seus pés. E seu riso. Repita isso: não voltará a acontecer. Nessa frase germina a semente da liberdade. Mal nascia o dia, enviei um mensageiro portador de notícias: que Juan Ángel estava doente, que estava com febre, que tinha tirado uma peçonha do calcanhar. Assim que se sentisse melhor, voltaria a servir o amo Efraín. Sabendo que o amo pai passaria uma tarde dessas para acertar contas comigo, para me repreender por velar
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por meu filho. Seus cafunés o deixam preguiçoso, diz. Ele serve a seu filho, digo. Servir é a função dele, diz. Disse a ele, no entanto, que meu filho deve retornar para mim assim que o jovem amo viaje, a menos que o leve consigo. Nesse caso, meu Sundiata tem instruções precisas: aprender e achar seu rumo. Dormiu até tarde. Na mesa, tinha lhe deixado leite e melado com broa e carne seca. Eu estava despachando a mula de leite quando me abraçou: mãe, mamãe, disse. Fomos ao pasto, ajudou a apartar o bezerro para o desmame. Depois, na cozinha, partiu lenha. Tinham-no visto rondando pelas tardes, dispersando os cavalos e açulando os cães, dois desapareceram sem deixar rastros e a poucas varas da paliçada tinham encontrado, esfolados a dentadas, os ossos frescos de um potro. Estava prestes a superar a escassa caça de veados e papagaios, quero-queros e guacharacas, puro exercício de pontaria, entretenimento, nada digno de memória. Agora não iria embora sem seu troféu, numa exibição discreta levará a pele, um irmão meu de nação a carregará, o amo adiante, despreocupado. Depois, em seu aposento de Londres, há de estar num lugar visível; um tigre não morre em vão. Por meu filho, nos inteiramos que os senhores José e Braulio, assim que chegaram à casa, esfolaram o animal. E não é preciso testemunha para saber que um seleiro forrará algum baú, mas ficará faltando e disso, por algum meio, o amo mais jovem se dará conta, faltará quem relate a façanha. Que não se esqueça que tudo é registrado por Juan Ángel, suma doom. Espalharam-se então as novidades e rumores sobre os preparativos: José começou a rastreá-lo, colocou iscas para ele, organizou o grupo; Braulio, sua peça essencial, já avisado, moderaria suas próprias destrezas, ele que sozinho seria capaz de caçar um tigre adulto. Preveniu os meeiros, Tiburcio foi o encarregado de pô-los a par e proibir a incursão pelas matas. Já estava destinado o herói para o feito. Em Santa Arruda, a senzala estava atenta a seus filhos. Quando os irmãos se recolheram as suas cabanas, meu filho e eu fizemos a ronda habitual, os cães nos seguiram aos pulos, uma fogueira reverberou pelo poente e o tom sustentado por Matías se fez ouvir. Depois, também nos recolhemos a meu aposento, meu filho e sua sombra, eu e minha sombra completos os quatro à luz de uma vela. A sua projeta-se na parede e cresce até o teto. Vai começar a falar e abaixa a cabeça, eu a levanto, seguro pelo queixo dele, façolhe uma carícia e aponto os seus olhos e os meus: que não deixem
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de olhar-se. Os seus iluminam meu caminho de volta. Pergunto a ele, embora pouco importe, quem carregou o tigre, se o cavalo de Braulio ou o de José. O do senhor Braulio que merecia isso, mãe. Mas não sabia que ele era mau. Eu tive medo, mãe, tinha medo do tigre, no começo era invisível, mas estava por toda parte; depois, ferido e rosnando, cercado pelos cães, jorrava sangue, mãe. Eu tinha tanto medo. O tigre também tinha medo, filho. O tigre? Os cães o acossam, ele recua, os caçadores o entrincheiram contra as árvores, o tigre também temia, temia Campanilla e Olé. Sabia que iam matálo? Por todos os ursos e veados e os pássaros e o jaguar e as cutias caídas, eu já sabia. Ele fareja o porquê de os cães latirem no morro. Quando a pólvora ressoa, pressente sua pele curtida e esticada num caixilho. O caçador chega com sua estratégia que você já conhece, filho. Sim, mãe: eles o acossam, o cercam; sem o perderem de vista, alguns homens cobrem os outros. Então, se revezam para atirar. E, já sabe por quê? Sim, mãe, porque todas as armas podem ficar descarregadas, então a fera ataca. Ou a pele fica esburacada. Acertando todos o tiro, não sobra mais nada para mostrar do tigre, filho. Há! Nem tapeçaria de móvel ou couro estendido na parede nem tigre com ossada de arame será. Mal rende coisa para contar, mesmo que preserve a pele, se está muito perfurada, o caçador a esconde, não serve como troféu, zombariam dele. Zombariam do caçador? Que risada, mãe! Mas a testa do tigre ficou furada e todos acharam bom; no sítio do senhor José e na fazenda, ficaram aterrorizados com a cabeça do tigre, mas o que mais gostaram foi do tiro, a menina María enfiou o dedo no furo. Filho, os buracos na cabeça dão glória ao caçador. Logo veremos a cabeça da fera exposta numa parede, mostrando as presas que não mastigaram o caçador. E, por que o senhor Braulio é mau, filho? Ele me disse que era uma pedra que o amo tinha pedido a ele. Para que ia querer uma pedra? Perguntei a mim mesmo e soube quando me entregou. Soube que não era pedra. Por que embrulhada? Embora fosse muito pesada, pensei que se fosse pedra, com esse tamanho, pesaria mais. Mas, mãe, carreguei-a ainda sangrando nas minhas costas, quando o amo a desenrolou na sala, as presas ficaram cravadas em minha mente. Também se cravou em mim o riso de todos. Joaquín de Villadiego, mercador de vinhos e tafetás holandeses, com um par de tropeiros, pediu um lugar no cocho para as mulas; deu-se de comer aos homens, água de rapadura com