Cicatrizes do Pano

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CICATRIZES DO PANO



UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS Projeto Experimental em Artes Visuais Instituto de Artes Curso de Artes Visuais

CICATRIZES DO PANO

Patricia Sayuri Orientação: Profª. Drª. Sylvia Furegatti

Campinas, 2013.



Data de defesa: 11 de dezembro de 2013. Banca Avaliadora: Profª. Drª. Sylvia Furegatti Profª. Drª. Lucia Fonseca Claudinei Roberto - Artista Visual Prof. Dr. Edson Pfutzenreuter (membro suplente)



Dedico este trabalho a todos os meus ancestrais.



Agradeço primeiramente aos meus avós Lucia e Seiei, por cederem suas histórias e lembranças mais intimas para a realização deste trabalho. Aos meus pais Júlio e Luiza, pelo apoio incondicional no encerramento de mais um ciclo. À minha querida irmã Letícia, pela paciência. Ao Rafael, pelo amor e carinho em todos os momentos. Ao meu mentor Claudinei e minha orientadora Sylvia, por me guiarem tão bem na caminhada desta profissão. À minha família Tropicália, que me fez feliz por todos os anos de faculdade. Aos meus queridos botucatuenses Daniel, Isadora, Joana, Daniele, Deborah, por estarem sempre perto apesar das distancias. Aos queridos Caio e Alex, pelas opiniões sempre profissionais e sensíveis. Vocês todos são parte deste trabalho.



O presente ensaio reúne indagações e experiências resultantes da minha série de trabalhos intitulada Cicatrizes do Pano, desenvolvida para o Projeto Experimental I e II em Artes Visuais, ao longo do ano de 2013, período que marca minha conclusão no Curso de Graduação em Artes Visuais da UNICAMP. Chamo minhas intervenções nos tecidos de Cicatrizes do Pano e as relaciono com meus antepassados japoneses que carregam na pele os sulcos e as marcas de memórias que se estabeleceram pelo distanciamento da tradição e da nossa própria história. Família separada pelo oceano, o contato com a nova cultura e a maneira como tudo o que ocorreu foi absorvido é transformador para cada um, com a dor e a beleza que essas experiências carregam. Neste sentido, o tecido que utilizo como matéria para a realização deste projeto traz, metaforicamente, a lembrança da pele vivida. Utilizo as técnicas do Shibori – conjunto de técnicas japonesas de tingimento e plissagem por reserva – que me permite marcar os tecidos através de costuras e amarrações unidas a escolhas intuitivas de cores, com furos e dobras ocasionais que se tornam cicatrizes neste pano. Como resultado desta pesquisa, apresento um conjunto de trabalhos artísticos resultados de um processo artesanal delicado que segue em construção, e que reflete poeticamente a minha busca pessoal pelo entendimento sobre minha família, a busca pelas tradições que nos circundam e o resgate das memórias, antes dolorosas, que se transformaram pelo tempo em cicatrizes.

Palavras-chave:

Shibori,

tecido,

tradição,

tingimento.



There are long histories for every place in the world. And people have been searching for their roots in those histories. I think particularly those artists who focus on textiles have been creating their works based upon those roots of their own1. Yuh Okano Texto Glowing Fabric 2004. Antes de dar início de fato a este ensaio, acredito ser relevante apontar que, conforme fui me aprofundando na pesquisa das técnicas do Shibori, fui instigada a aproveitar o momento para me aprofundar nos costumes curiosos da minha família, e adentrar na história de nossa família como ninguém até então teve curiosidade em fazer. Essa proposta ganhou uma dimensão muito importante em meu trabalho e as duas pesquisas caminham agora paralelamente, e acredito que em algum momento elas se cruzarão. Elas retratam a minha busca pelo que acredito ser capaz de criar como artista visual, e também a busca pelo que me constitui, pelo que faz parte de mim e que ainda não conheço. Algumas respostas vão chegar a longo prazo, e pretendo seguir com a pesquisa depois de concluir o curso.

l – Sobre o encontro com a técnica A priori, o tema central da minha pesquisa voltaria-se para a investigação de um trabalho específico do estilista japonês Issey Miyake: o Pleats Please, marca desenvolvida a partir de 1993, que privilegia o conforto e a praticidade do cliente utilizando técnicas industriais de plissagem em tecidos sintéticos de cores fortes e modelagem específica. Ao pesquisar sobre suas técnicas industriais de plissagem, descobri que o estilista, junto com a designer têxtil Makiko Minagawa, buscou referências na tradição de antepassados artesãos para uni-las ao desenvolvimento de sua produção tecnológica. Esta pesquisa chegou a um processo centenário de plissagem e tingimento artesanal chamado Shibori2. A palavra shibori vem do verbo japonês shiboru, que significa ‘torcer, apertar, pressionar’. Segundo Yoshiko Wada3 , este termo foi atribuído durante a Era Edo (1603 – 1867) para designar um conjunto de técnicas de tingimento e plissagem por reserva – através de torções, amarras e costuras – na qual algumas partes do tecido são isoladas, e preservadas na hora do tingimento. Essas interferências, ao serem vaporizadas ou aquecidas, modificam a estrutura das fibras, criando texturas permanentes. (2012, 34) Durante os impérios japoneses, foram acumuladas riquezas de diversos tipos, como amostras de caligrafias, utensílios, objetos decorativos, roupas e tecidos vindas de várias partes da Ásia, principalmente da China, pela Silk Road. Apesar do clima úmido japonês, estes tesouros foram muito bem conservados, inclusive os tecidos. Com a morte do imperador Shomu, em 756 d.C., a coleção foi doada para o templo The Great Buddha, e foi apresentada em forma de exposição apenas após a II Guerra Mundial, no Nara National Museum. (WADA, 2012, 34) 1 Tradução livre do trecho: “Existem longas histórias para cada lugar do mundo. E as pessoas têm procurado por suas raízes nessas histórias. Eu particularmente penso que estes artistas que se focam nos tecidos têm criado seus trabalhos baseados em suas próprias raízes.” 2 Em: TAKEDA, Sharon S. Textile Innovation: Form and Antiform Makiko Minagawa. American Crafts, juho/julho 1999; 59, 3. ProQuest Central pg. 60. 3 WADA, Yoshiko. Memory on Cloth: Shibori Now. New York:Kodansha America, 2012.


O Shibori é dividido em três categorias – kokechi (reservas por amarras), rokechi (reserva por cera) e kyokechi (reserva por compressão). Os termos são originalmente chineses, e algumas pesquisas indicam que não há técnicas nativas japonesas de tingimento, que todas foram herdadas da China, que por sua vez herdou da Índia. Mas isso é questionado por outros pesquisadores. Alguns exemplos encontrados na Silk Road são datados de 400 d.C. Na linguagem japonesa moderna, a palavra kokeshi foi substituída por shibori, rokechi por roketsuzome e kyokechi virou itajime. (WADA, 2012, 36-37)

Pleats Please, Issey Miyake

Coleção Carnival, Issey Miyake

Os pigmentos utilizados para essas técnicas foram aperfeiçoados, e hoje existem pigmentos próprios para fibras proteicas – seda e lã, para fibras celulósicas – algodão, e para fibras sintéticas, como o poliéster, assim também como pigmentos naturais, extraídos de frutos e sementes. No texto Texturing Life4 , Cara McCarty comenta que Kyoto e as ilhas de Okinawa são lugares tradicionais na cultura têxtil e concentram muitos artistas que trabalham especificamente com fibras naturais. Alguns desses artistas vivem em áreas isoladas, e englobam em seu trabalho a atmosfera rural em que vivem. McCarty também comenta que eles são pou4 Em: MCCARTY, Cara. MCQUAID, Matilda. Structure and Surface: Contemporary Japanese Textiles. pg. 11.


co conhecidos por não procurarem a publicidade para divulgarem seus trabalhos. Estes artistas interagem harmoniosamente com seus arredores, abrangendo os elementos, trabalhando com materiais naturais, utilizando suas mãos para a repetição e o trabalho intenso, com o intuito de aprimorar as técnicas que eles escolheram para serem utilizadas.

Corantes de fibra sintética

Sedas antes de tingir


Técnica de pintura em seda chamada Bingata, específica de Okinawa. Suntory Museum of Art, Tóquio.


II - Alguns exemplos de tinturaria Os exemplos a seguir foram testados durante o primeiro semestre deste ano de 2013, nas aulas de Tinturaria Oriental do SESC-POMPÉIA, com orientação do professor Celso Lima, artista plástico especializado em arte têxtil e estamparia. Arashi – técnica que consiste na dobra sanfonada da seda, enrolada em um suporte cilíndrico. São feitas amarras paralelas com barbante por toda a extensão do suporte. Assim montada, vai para o tingimento.

tecido dobrado em sanfona

tecido enrolado e amarrado em suporte cilíndrico


Arashi (finalizado)

Arashi (detalhe)


Itajime – técnica que consiste na dobra sanfonada do tecido, que é depois dobrado em sua extensão até adquirir o formato de um quadrado. São colocadas duas peças de madeira e o tecido no meio, como um sanduíche, e utiliza-se um Grampo Sargento para firmar as partes juntas. Assim montada, vai para o tingimento.

Itajime (finalizado)


Tesuji – técnica que consiste na dobra sanfonada da seda, que é amarrada à pedaços de madeira compridos, que formam um sanduíche. Assim montada, vai para o tingimento.

Tesuji (finalizado)


Tesuji (detalhe)

Tesuji (detalhe)


Lehariya - tĂŠcnica que consiste na dobra reta ou na diagonal sanfonada da seda, dependendo da estamparia. SĂŁo feitas amarras por toda sua extensĂŁo. Assim montada, vai para o tingimento.

Lehariya (finalizada)

Lehariya (detalhe)


Costura para plissado - tÊcnica que constiste no alinhavo da peça em linha reta , diagonal, ou curva, dependendo do tipo de estampa ou do plissado. Depois, as linhas são puxadas de forma a comprimir o tecido.

Alinhavo para plissagem

Alinhavo puxado


Tritik - Técnica que consiste em amarrações em bases de trouxinhas feito com ou sem suporte interno. Pode ser utilizado miçangas, bolinha de gude ou outros materiais resistentes à tinturaria. Na Índia, é uma das estampas mais utilizadas, e é feita sem suporte interno.

Tritik antes de tingir

Detalhe tritik (finalizado)


III – Raiz-tronco Encaro esta minha pesquisa como um presente que recebi de minha família. Peço autorização para ouvir e contar as histórias antigas, uma troca que espero que beneficie a eles tanto quanto a experiência tem me beneficiado. Meus avós não mantiveram tantos costumes como os outros imigrantes japoneses aqui no Brasil. Não crescemos em colônias, não falamos japonês, meus tios e minha mãe não casaram com japoneses. Mas um costume em específico de meus avós despertou meu interesse na cultura japonesa e nas histórias dos nossos antepassados. Existe um ritual de passagem feito para os familiares que morreram que meus avós chamam de Osaguin. São rituais feitos com uma determinada frequência na qual eles oferecem comida, bebida e flores para os nossos antepassados por 33 anos. Ela disse que eles recebem essas oferendas onde eles estiverem, e que é fundamental não nos esquecermos de nossos antecessores. Eles tomam conta das energias da família. É um ritual muito bonito, cresci participando deles. Compartilhamos com nossos antepassados as nossas refeições. Alimentamo-nos delas energizadas, pois eles estão satisfeitos pela lembrança. Celebramos a passagem deles pelo mundo, conversamos com eles. Afinal, sem nossos antepassados, não existiríamos. A partir deste contexto, sei que devo tomar cuidado em como me aproximar de histórias que foram deixadas de lado por tanto tempo, que envolvem as gerações que já se foram e momentos dolorosos. Como todas essas histórias são de memória, nada foi registrado formalmente, algumas partes foram esquecidas, outras talvez omitidas. A falta de costume ao preservar a memória através de objetos também se perdeu por alguns membros da família, e isso de certa forma fez com que eu desenvolvesse um grande apego a essas histórias e ao que sobrou de cartas e fotos, como uma tentativa de resgatar para mim mesma essas tradições que se perderam com a imigração de meus bisavós para o Brasil.

Seiei Hokama


Meu avô. Tem um quê misterioso a sua história, no fato de ele e a mãe terem vindo do Japão sozinhos, em 1935, sem o pai. Ele e os filhos foram registrados apenas com o sobrenome da mãe: Kama Fukama. Como o nome de muitos japoneses, os nossos foram erroneamente registrados, devido à demanda de imigrantes chegando ao mesmo tempo. Com tantas novas culturas entrando no país, os cartórios se confundiam entre sotaques e ideogramas. De tanto insistir com perguntas sobre os nossos antepassados, depois de revirar e questionar o passado deles, que também é meu, finalmente minha avó contou a história de meu avô. Kama Fukama foi casada com um homem chamado Seitei Izo. Segundo “fofocas” familiares, Seitei acabou se separou de Kama pelo comportamento inapropriado para a época da mulher já no início do casamento. Ele se casou novamente com uma mulher que sempre mostrou interesse por ele. Durante uma crise no casamento de Seitei, 11 anos depois de sua separação, ele e Kama se encontraram, e este encontro resultou no nascimento de meu avô, Seiei. A atual mulher, se sentindo ameaçada com o fim de seu casamento, tentou se suicidar, e meu bisavô então revolveu ficar com ela, e não quis reconhecer meu avô como seu próprio filho. Assim Kama, 9 anos depois do nascimento de seu filho, decidiu vir ao Brasil com conhecidos de sua família, fugindo da Guerra.

À esq. Kama Fukama. No centro Seiei Hokama, com 9 anos.

Seiei Hokama nasceu em Okinawa-ken, no ano de 1926, e veio ao Brasil com nove anos de idade, junto de sua mãe. Quando morava em Okinawa, acompanhava sua mãe em funerais budistas na casa de seu pai, sem falar com ele. Costumava pescar e nadar no Mar de Okinawa apoiado em um grande bambu, o que permitia uma visão do fundo das águas transparentes. Já no Brasil, cresceu trabalhando no campo, foi feirante, casou-se com minha avó Lucia Hokama e tiveram sete filhos: quatro homens e três mulheres. Uma delas minha mãe, Luiza Mineko Hokama. Revirando documentos e fotos antigas que minha avó guardava, encontrei duas cartas escritas com ideogramas japoneses, datadas de 1980


e de 1993. Perguntei e ninguém se lembrava do que se tratava. Peguei as cartas pra mim e levei a um amigo da família que falava japonês. O conteúdo das cartas não foi totalmente traduzido por terem dialetos específicos de Okinawa. Na primeira carta estava basicamente o apelo de Seitei para a ida de meu avô para Okinawa para que eles se conhecessem. Dizem que ele soube através de uma cartomante que tinha um filho no Brasil. Era o reconhecimento de um pai, de um modo atrapalhado. Seitei estava muito doente e gostaria de conhecer o filho. Queria contemplá-lo com uma herança que ele tinha, de negócios da pescaria da família na Ilha. Era sua maneira de dizer que sentia muito pelo rumo que tomou a vida dos dois, e de tentar remediar a dor causada pelo afastamento de tantos anos. A segunda carta trouxe a notícia vinda de suas irmãs, de que Seitei não conseguiu esperar pelo retorno no filho, e que falecera.

Imagem de carta recebida em 1993.

Perguntei pra todos se eles sabiam o que tinha acontecido, por que essas cartas foram esquecidas, porque meu avô ou tio algum havia ido ao Japão. Meu avô é orgulhoso, introspectivo, não quis ir. Como dizem outros familiares, não iria nem se tivesse dinheiro. E também não autorizou ninguém a ir em seu lugar. Foi com este homem determinado e reservado que aprendi ofícios de marcenaria, lugar de sua casa que ele passa o maior tempo de seu dia, seguido de tardes deitado no sofá a ouvir musicas tradicionais de Okinawa. Na pequena oficina no fundo da sua casa, ele desenvolve suas técnicas de


marcenaria como ninguém. É engenhoso, meticuloso, disciplinado, exato nos cálculos. Acredita que a repetição e o trabalho árduo são os fatores que levam seu trabalho à perfeição. Como exemplo, cito a sua pequena produção de shamisens, um instrumento de cordas específico de Okinawa, que se parece com um pequeno banjo, que ele aprendeu a fazer sozinho, apenas observando, desmontando e remontando um que ele tem guardado. Ele fez um seguido do outro, e o que era treino virou praticamente uma produção em série. Criou armários de fundo falso para escondê-los de minha avó, que não sabia mais o que fazer com tantos instrumentos iguais. Aperfeiçoou a técnica, testou diversos tipos de materiais e várias formas e sua acústica. Perguntei se ele queria começar a vender. A resposta foi “Pra quê? Eu faço pra mim. Pra treinar a cabeça”.

Leticia, Seiei e Patricia tocando Shamisen, produzido por Seiei.

Com 87 anos, tem hoje uma precisão incrível nos cortes de suas madeiras, móveis de acabamentos criativos e práticos, que ele faz pra família em troca de novas madeiras, para produzir mais, criando um ciclo no qual ele não deixa nunca sua produção.


Lucia Hokama

Ao perceber que só sabia da história da família de meu avô, tive uma curiosidade repentina de saber da vida dos pais de minha avó, Lucia. Quando perguntei a ela, a resposta foi direta: Meu pai, Hetiti Miyashiro, era do exército japonês e também irmão caçula de um dos primeiro imigrantes japonês no Brasil, Yamasuke Miyashiro. Ele foi casado com a minha mãe, Yoshi Ueti, que foi filha única e por isso muito mimada. Não gostava e trabalhar, mas gostava de ver os outros trabalhando. Quando comentei rapidamente sobre minha pesquisa em tinturaria, e que tinha descoberto que havia algumas técnicas tradicionais familiares específicas da Ilha de Okinawa, imediatamente veio à sua mente a memória de uma conversa com sua mãe. Ela relatou que Quando eu era nova, e tinha aprendido bem a costurar e bordar, e por eu ser muito cuidadosa e caprichosa, minha mãe falava que eu era muito inteligente, e que eu era muito parecida com uma tia dela, talentosa, que saia de porta em porta em Okinawa para desenhar e pintar tecidos. Minha avó costurou todos os vestidos que ela possui no guarda-roupa. Criou uma modelagem específica para o seu próprio corpo. Os produz e os utilizam até “acabarem”. Tem uma paciência muito grande para o trabalho, e aprendeu muito do que sabe observando as pessoas, e vendo instruções em livros de costura que ganhava na mãe e da sogra. Ela ensinou minha mãe a costurar, e eu cresci vendo as duas na máquina de costura.

IV – sobre o fazer com as mãos (artesanal) O contato com essas histórias, unidos ao cuidado que fui adquirindo para com essas memórias tão delicadas me fizeram chegar a uma conclusão: Esse trabalho tem que ser feito pelas minhas mãos. O processo de tingimento, as amarrações, a secagem. É o ritual. A ação. Trago essa tendência comigo devido às experiências que tive desde menina junto à oficina de madeira de meu avô e à máquina de costura de


minha avó. Outra experiência marcante que tive com o fazer artesanal foi quando aprendi a fazer o feltro a partir da lã pura de ovelha1 , em fiapos. O contato com o pêlo do animal cru, recém-extraído, e sua transformação em tecido com a fricção das minhas mãos sobre essa lã foi determinante para escolher este caminho no fazer artístico. A meu ver, o contato direto com o material, através do tato e do cheiro principalmente, é fundamental para o meu desenvolvimento criativo. Essa investigação minuciosa me traz como significado o apego às histórias familiares, e também a busca pela minha identidade como artista. Pensando na aplicação do Shibori neste trabalho, me questiono sobre a dualidade Produção x Ação. Evandro Jardim discute essa dualidade em seu texto2 Homo Faber: O animal que tem mão, na visão de Hannah Arendt. Para ele, a produção obtém como resultado um produto físico, material, no meu caso, os paninhos que constroem meu trabalho. Todo fazer é projetivo, volta-se para o futuro, onde se situa a meta a ser atingida. A atividade produtiva é previsível e, por esse motivo sempre pode ser planejada. (JARDIM, 2011, 109) Já a ação é livre de apresentar um produto final. O significado da ação está contido na própria atividade. Não há nenhum “quê” envolvido na ação. Ela é a atividade na qual um “quem” se manifesta – a personalidade de alguém. (JARDIM, 2011, 110) Neste caso, penso na técnica aplicada. Jardim também separa algumas frentes artísticas nestas duas categorias: a pintura, a escultura e a arquitetura como produtivas e o teatro e a dança como ação, por serem mais performáticas. Quando analiso meu trabalho e tento encaixá-lo totalmente em alguma dessas categorias, chego à conclusão de que não é possível. Ele apresenta essa dualidade dentro dele. Apresento um produto final resultado da aplicação de uma técnica de produção, no caso os paninhos, que têm a intenção de revelar uma estampa planejada. Porém, essa estampa depende a ação realizada sobre o tecido, que por sua vez depende da maneira como eu o amarrei e do tempo que o tecido ficou mergulhado no pigmento. Essas ações mudam de acordo com o meu estado de espírito, a minha concentração, disposição física e paciência, e isso tudo é revelado no tecido quando desamarrado, fazendo com que as estampas não saiam como inicialmente planejadas. Esses pequenos segredos que ficaram impressos no tecido, de forma inconsciente, passa a ter grande força no trabalho. A imprevisibilidade da ação significa que ela nunca é passível de controle. Em contraste com o fazer, a ação nunca é planejada. Assim, ela não é orientada por uma visão do futuro, como acontece no fazer. A ação se dá no registro temporal do presente. (JARDIM, 2011, 111)

1 Intercâmbio que fiz em 2011 na Universidad de Buenos Aires, com especialização em Indumentária e Têxtil. 2 Em: PESSOA, Fernando e BARBOSA, Ronaldo org. Mão de Obra: Seminários Internacionais do Museu Vale 2011. Vila Velha, ES: Museu Vale, 2011.


V- sobre a cicatriz (poética) Costuro-te Costura-me Me costuro Façam-se buracos Deixam cicatrizes Fecham-se feridas Tampam-se os nós Ficando apenas os fiapos da lembrança Marina Wang

ci.ca.triz sf 1. Med. Marca deixada na pele, ou em outro órgão, pelo teci-

do que recompõe as partes lesadas. 2. Fig. Lembrança duma dor moral.1 Quando penso em cicatriz, a primeira coisa que me vem à cabeça é uma marca deixada sobre a minha pele. E nem é a mais dolorida de todas. É uma que tenho em meu joelho que fiz com um caco de vidro que tinha na minha mão quando me assustei vendo uma galinha no quintal. Foi uma marca que escondi dos meus pais porque a bronca seria mais dolorosa que o próprio corte. Não precisou de pontos nem nada. Curou sozinha. Quando inicialmente mostrei meu projeto para outras pessoas, elas encaravam a cicatriz como uma marca densa, dolorida, e acredito que de certa forma eu acabei passando essa impressão. Porém, com o passar do processo, esta concepção de dor da cicatriz foi sendo deixada pra trás. Prefiro pensar a cicatriz na sua fase em que não já não a sentimos. Quando a pele volta a ser saudável, quando não há mais dor. Dividi então meu projeto em dois momentos: O momento do repouso para a recuperação, e o momento em que o machucado já está cicatrizado, curado. Assim, no primeiro momento meus tecidos estão em repouso, costurados, e em sua cor original. Já no segundo momento meus tecidos têm cores, movimenta-se com a circulação de ar e de pessoas.

A escolha de materiais A princípio tinha intenção de utilizar a seda, o algodão e tecidos sintéticos, mas durante a pesquisa de materiais acabei elegendo apenas a seda. A seda que utilizo é comprada na ponta de estoque de uma fábrica de seda da cidade de Gália, no interior de São Paulo. Todas as sedas que utilizo são retalhos antigos, que possuem marcas do tempo, de cola, de tinta, de fios puxados, manchas amareladas, rasgos. Para mim, todos esses elementos significam a história desses materiais. Não escondo e nem retiro essas marcas porque acredito ser parte do trabalho, trabalho com elas também, porque elas não deixam de serem cicatrizes desses panos. As cicatrizes que eu deixo nestes tecidos são resultados de amarrações e costuras que faço com técnicas mistas do Shibori. Durante o processo marcas de dobras, plissas ocasionais, furos da agulha e concentração excessiva de pigmento em alguma parte do tecido são os rastros da minha 1FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Miniaurélio: o minidicionário da língua portuguesa. 6ª ed. Curitiba: Editora Positivo, 2004. 896 p.


ação, é a história ali, registrada no tecido.

VI – Sobre o processo do projeto + modo de expor Quando me deparei com os primeiros trabalhos prontos, refleti muito sobre como eles seriam expostos ao público. Seria possível se aproximar muito deles? Seria possível tocá-los? Como eles se movimentarão? Ficarão na parede? Em varais? Dentro de molduras? Sobre mesas? Com esses questionamentos e alguns modelos de exposição, cheguei à conclusão de que o ideal seria expor estes tecidos da maneira mais cru e simples possível, pois o processo é parte muito forte da obra, e acredito ser a maneira mais pura de apresentar as cicatrizes nos panos. O projeto para a serie Cicatrizes do Pano é composta, por ora, por objetos e por uma instalação. Os objetos exprimem a fase de recuperação. São trabalhos em Shibori inacabados, que revelam o processo da técnica antes do tingimento. São peças delicadas que serão expostas em repouso nas paredes, em pequenos varais montados por barbantes de algodão e pregos, e também em mesas ou cavaletes de madeira. Nesses objetos é possível ver as costuras e amarrações durante o processo, com as linhas, furos e objetos utilizados para dar forma ao tecido, como bolinhas de gude, canos de PVC e placas de madeira, assim como a cor original da seda. Nestes objetos não será permitido o toque. Estes serão colocados de maneira que as pessoas tenham uma relação de observação/contemplação apenas.

Seitei


Kama

Kama (detalhe)


A instalação será composta por tecidos tingidos e desamarrados, já com as estampas prontas e com as marcas fixadas. Ela representa a volta da saúde, da cicatriz que já não dói mais, que tem força, que se movimenta. Os tecidos serão pendurados em varais de cabo de aço, e presos com pregadores de madeira, muito utilizados na minha produção. Haverá um espaço entre cada tecido e entre cada fileira para que as pessoas circulem pelos tecidos. A leveza destes, junto ao ar que circula com a passagem dos corpos entre a instalação ativará os tecidos, fazendo com que estes se movimentem suavemente. O toque deverá ser ocasional, dependendo do movimento das pessoas. Haverá também uma musica ambiente com sons do shamisen, instrumento tradicional japonês que lembra o som de um banjo. São sons calmos, que tem a intenção de conduzir o observador no mergulho entre os tecidos.

O processo. Quando planejo um paninho, logo surge o impulso de criar imagens antes de amarrar e tingir os tecidos, como uma maneira de controlar a técnica que, como sabemos, é incontrolável. E este impulso vem acompanhado pela vontade de utilizar outras técnicas para desenvolver essas imagens, como a gravura e a pintura. Obviamente os resultados são bem diferentes. As gravuras e pinturas são realizadas em papel, com tintas mais grossas. Porém fazem parte do processo criativo e não deixam de ser importante por não ser a obra final. Depois do impulso criativo e planejamento de estampas, escolho as cores e as técnicas que se aproximam dessas formas.

Estudos para estampa feitos em tinta óleo


Estudo de estampa em xilogravura

O processo de tingimento em que o tecido está mergulhado na água com pigmento é chamado de banho. O pigmento utilizado é industrial, próprio para o tingimento de tecidos proteicos (seda e lã). A quantidade utilizada é calculada de acordo com a quantidade de tecido. O pigmento deve ser diluído em uma pequena quantidade de agua fervente, que depois é diluída numa quantidade de água suficiente para encobrir a peça, a uma temperatura de 60 a 70 graus Celsius.

Processo de tingimento


Para fixar o pigmento no tecido é utilizado o Acido Acético a 20%, e sua quantidade é calculada de acordo com a quantidade de agua utilizada no processo. O fixador é colocado na água na metade do tempo de banho do tecido. Depois de feitas as costuras e as amarrações, o tecido é mergulhado no pigmento diluído por 20 a 30 minutos. Passado este tempo, é retirado o excesso de pigmento com água corrente fria, e a peça é colocada para secar em varais. As peças poderão ser abertas depois que o tecido estiver totalmente seco, para evitar acidentes. Para a produção dos paninhos não sigo essas regras ao pé da letra. O tempo de banho pode alterar assim como a secagem às vezes é feita com secador e a abertura das peças pode ser feitas sem a secagem total do tecido. Tudo isso depende da minha disposição, paciência e estado de espírito do momento.

Paninhos


Paninhos

Após um ano de muita pesquisa, experimentações e descobertas, entrego para o mundo um trabalho carregado de significados pessoais, mas que espero despertar no observador a vontade e a curiosidade de saber mais sobre o caminho percorrido para sua própria existência, e que o faça perceber o quão importante é relembrar os nossos antepassados, aos quais devemos todas as nossas boas histórias.



Referências Bibliográficas MIYAKE, Issey. Pleats Please. Cologne: Taschen, 2012. _____________. Ten Sen Men. Hiroshima:Hiroshima City Museum of Conte, 1990. ENGLISH, Bonnie. Japanese Fashion Designers: The Work and Influence of Issey Miyake, Yohji Yamamoto and Rei Kawakubo. Londres: Bloomsbury Publishing PLC, 2011. BENAÏM, L. Issey Miyake . Coleção Universo da Moda. São Paulo:Cosac & Naify Edições, 1999. WADA, Yoshiko. Memory on Cloth: Shibori Now. New York:Kodansha America, 2012. MCCARTY, Cara. MCQUAID, Matilda. Structure and Surface: Contemporary Japanese Textiles. New York:The Museum of Modern Art, 1998. HOLBORN, Mike. Issey Miyake. Cologne:Taschen, 1996. PESSOA, Fernando e BARBOSA, Ronaldo org. Mão de Obra: Seminários Internacionais do Museu Vale 2011. Vila Velha, ES: Museu Vale, 2011. MIYAKE DESIGN STUDIO. The Concepts and Work of Issey Miyake. Disponível em:< http://mds.isseymiyake.com/im/en/work/> Acesso em: 15/04/2013 HIRAMITSU, Chikako. Japanese Traditions in Issey Miyake. Disponível em: < http://designhistoryforum.org/dd/papers/vol01/no1/01_1_35_43. pdf> Acesso em: 15/04/2013. TAKEDA, Sharon S. Textile Innovation: Form and Antiform Makiko Minagawa. American Crafts, juho/julho 1999; 59, 3. ProQuest Central pg. 60.



Crédito imagens Caio Vasques Patricia Sayuri Arquivo pessoal

Capa: Impressão jato de tinta em papel japonês Minamo, 45g. Miolo: Impressão jato de tinta em papel Polen Bold Soft Suzano, de 80g.


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