GERAÇÃO 90 - Uma leitura do percurso académico Porto | São Paulo

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GERAÇÃO 90 UMA LEITURA DO PERCURSO ACADÉMICO PORTO | SÃO PAULO Paula de Sousa Cicuto

ORIENTADORES PROFESSOR DOUTOR RUI RAMOS (FAUP) PROFESSOR DOUTOR ABILIO GUERRA (FAU-Mackenzie) DISSERTAÇÃO DE MESTRADO | 2010 FACULDADE DE ARQUITECTURA DA UNIVERSIDADE DO PORTO


SUMÁRIO


Resumo

09

Abstract

11

Introdução

13

PARTE 1 | IDEOLOGIA

17

Porto Espírito de renovação

19

Revolução política e arquitectónica

27

Consolidação de uma arquitectura

35

São Paulo Difusão da arquitectura paulista

45

Introspecção arquitectónica

51

Desorientação e esgotamento

59

Considerações: Acerca de uma ideologia

67

PARTE 2 | DIVERSIDADE

71

Porto Confronto das práticas tradicionais: a Unidade

73

Disponibilidade para a crítica interna

81

São Paulo Assumpção das práticas tradicionais: a Caramelo

95

Sustentação da crítica interna

101

Considerações: Acerca da diversidade

115



PARTE 3 | COERÊNCIA

119

Porto Tradição: continuidade versus transformação

121

Multiplicidade de influências

129

Responsabilidade colectiva: urbana e disciplinar

135

São Paulo Tradição: continuidade e transformação

145

Multiplicidade de influências

153

Responsabilidade colectiva: urbana e disciplinar

163

Considerações: Sobre uma certa coerência

171

Considerações Finais

175

Referências

181

ANEXO | CONVERSAS COM ARQUITECTOS Porto

189

José Fernando Gonçalves

190

Francisco de Campos e Cristina Guedes | Menos é Mais

196

Jorge Figueira

200

Nuno Brandão Costa | Nuno Brandão Costa Arquitecto

205

Filipa Guerreiro | Atelier da Bouça

210

André Tavares

216

São Paulo

221

Milton Braga | MMBB

222

Angelo Bucci | SPBR

227

Alvaro Puntoni | GRUPOSP

233

Vinicius Andrade | ANDRADE MORETTIN Arquitetos

238

Fernanda Barbara | UNA Arquitetos

242

Martin Corullon | METRO Arquitetos Associados

246


“ Quanto faças, supremamente faze. Mais vale, se a memória é quanto temos. Lembrar muito que pouco. E se o muito no pouco te é possível Mais ampla liberdade de lembrança Te tornará teu dono.” Ricardo Reis, in “Odes” (heterónimo de Fernando Pessoa)


O meu agradecimento aos arquitectos portugueses e brasileiros que gentilmente contribuíram com valiosos depoimentos; aos professores Rui Ramos e Abilio Guerra pelo acompanhamento no primeiro e último ano, tanto no Porto quanto em São Paulo; a todos os professores e colegas pela contribuição, directa ou indirecta, no meu percurso académico. aos meus amigos pelo carinho e companheirismo; aos de cá pelo acolhimento e constante auxílio e aos de lá pelo apoio mesmo que distante; e, sobretudo, à minha família, ao meu pai, mãe e irmã pelo amor incondicional de sempre. Muito obrigada.


RESUMO


RESUMO

9

Este estudo dedica-se à investigação da arquitectura contemporânea desenvolvida pela geração formada na década de 1990 na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto (FAUP) e na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP). No decorrer do ensaio procura-se analisar as relações entre o legado estabelecido por essas escolas, as especificidades e peculiaridades da actividade académica bem como profissional destes arquitectos, objectivando o reconhecimento de um conjunto análogo de pensamentos e actividades pontuais pertencentes a esses dois universos académicos, mas dependentes do contexto em que se inserem. Nesse sentido, mostra-se relevante o levantamento do contexto histórico e académico de cada país, nas décadas de 1970 e 1980, pela forte ligação que possuem com os seus ‘mestres’ e com o percurso académico desenvolvido e o particular envolvimento nas questões político-sociais da época. Mas é o posterior período académico dessa jovem geração de arquitectos, localizado entre as décadas de 1980 e 1990, que se procura entender para, por fim, obter uma aproximação temática à produção profissional desta geração através do estudo da produção prática e teórica que apresentam frente a actualidade do seu tempo. Portanto, a partir dos paralelismos traçados e da própria produção profissional dessa geração, permite-se delinear a leitura de seus percursos académicos baseados em uma ideologia precedente, desenvolvidos sobre a diversidade e multiplicidade de processos de uma época especialmente conturbada e o resultado de certa coerência que apresentam simultaneamente face ao seu passado e ao seu presente.


ABSTRACT


ABSTRACT

11

The present study sets on the research of contemporary architecture designed by the generation graduated in the 1990’s from Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto (FAUP) and Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP). Throughout the essay attempts to analyze the relationship between these schools’ legacy, the specificities and peculiarities of the academic activity as well as the professional practice by these architects, considering for the recognition of an analogous set of punctual thoughts and activities belonging to these two academic universes, dependent to the context in which they operate. In this sense, it is shown relevant to research and present the historical and academic context for each country, from the 1970’s and 1980’s, the strong connection they possess with their ‘masters’ and the academic course developed and the specific involvement in social and political issues of this period. Later on is the subsequent academic course of this young architects’ generation, located between the 1980’s and 1990’s, which seeks to understand and finally, sets a thematic approximation to their professional production trough studying both practical and theoretical production they put forward in their time. Therefore, from the parallels drawn and this generation’s professional production, allows to outline the reading of their academic courses based on a previous ideology, developed on the diversity and multiplicity of processes in an especially troubled time and the result of certain coherence which simultaneously presents to its past as well as its present.


INTRODUÇÃO


INTRODUÇÃO

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O posicionamento crítico, a que se propõe o trabalho, circunscreve o seu objecto de estudo em relação com o legado das escolas, nomeadamente a Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto (FAUP) e na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), nas décadas de 1970 e 1980, e as especificidades e peculiaridades da actividade académica e posteriormente profissional dos arquitectos formados no início dos anos de 1990. Pretende-se, sobretudo, o reconhecimento de pontos comuns na produção desenvolvida por estes jovens arquitectos, na forte ligação que possuem quanto ao percurso académico e ao particular envolvimento nas questões político-sociais da época. O desenvolvimento deste percurso, por sua vez, é confrontado com obras de referências, directa ou indirecta, na produção do grupo e que se apresentam no decorrer do trabalho como um discurso iconográfico paralelo a narrativa, dedicando especial atenção à influência destes sobre o processo de projecto desenvolvido contemporaneamente. Este exercício de investigação paralela, entre Porto e São Paulo, salienta a interpretação de um conjunto análogo de pensamentos e actividades pontuais, pertencentes a universos conceituais diferenciados, sempre dependentes do contexto em que se inserem e do respectivo ‘espírito de época’. Através desse entendimento distingue-se pontualmente circunstâncias e, principalmente, posturas, semelhantes ou não, entre os dois universos académicos distintos bem como com o panorama arquitectónico mundial – estas, em parte, decorrentes de uma sequência também análoga dos eventos históricos.



INTRODUÇÃO

15

Nesse sentido, o trabalho é estruturado em três partes. Inicialmente pretende-se enquadrar um conjunto de questões que se prendem com o contexto histórico e académico de cada país, nomeadamente as décadas de 1970 e 1980 e os factores que influenciaram no legado, mais ou menos directo, de grandes personagens da arquitectura própria de cada território. A seguir, mostra-se igualmente relevante a investigação sobre o início e meados da década de 1980, período académico dessa jovem geração de arquitectos. Salienta-se o retorno às questões disciplinares da arquitectura no interior das escolas e apontando iconograficamente projectos relevantes da época, a produção dos ‘mestres’, referência contínua para os então estudantes. Finalmente, a aproximação à produção profissional desta geração, para ser facilmente inteligível, é feita através de alguns temas que, de modo geral, reúnem uma série de condições e preocupações com que lidam estes arquitectos e, de maneira mais específica, pressupõe-se o estudo das mais recentes e significativas publicações realizadas para a divulgação de seus trabalhos, através da produção prática e teórica, que apresentam frente ao seu tempo. Cada uma das partes é igualmente encabeçada por um breve enquadramento do conteúdo a tratar, acompanhada pelas obras de referência no panorama de cada época e rematada por considerações relativas que objectivam um melhor acompanhamento dos paralelismos traçados bem como das considerações alcançadas. Esta definição de campo de estudo não pretende a exclusão de quaisquer outras arquitecturas precedentes ou contemporâneas. O que se pretende, acima de tudo, é a identificação, menos temporal que conceitual, de momentos sucessivos, destacando a simultaneidade das orientações académicas de cada escola e delimitando no cenário arquitectónico um conjunto de actividades pontuais própria aos cenários conceituais distintos. A abordagem, contextual e paralela, pretende captar a pluralidade do desenvolvimento da produção arquitectónica subsequente, de forma aberta e sem qualquer autoridade sobre a explicitação exacta dos factos históricos, dadas as limitações do trabalho proposto.


PARTE 1 | IDEOLOGIA


PARTE 1 | IDEOLOGIA

17

A análise sobre o contexto histórico arquitectónico e, principalmente, académico compreendido entre os anos de 1970 e início de 1980, desenvolve-se a partir de factos ocorridos em 1968, época de aparente abrandamento militar e desenvolvimentismo do governo ‘Marcelista’, em Portugal, e de forte repressão com o Acto Institucional Número 5, no Brasil. Anos também de forte luta académica e revolta estudantil mundial, reflexos de Maio de 1968, em França. Inicialmente, procura-se apontar o posicionamento das escolas, a FAUP no Porto e a FAU-USP em São Paulo, frente aos seus contextos específicos e em relação ao desenvolvimento arquitectónico mundial. Outro factor de interesse dessa primeira etapa do trabalho é o entendimento da escola enquanto entidade, instituição de ensino e formação e seus processos na estruturação e consolidação de uma concepção sobre o ensino de arquitectura. Dessa forma, delineiam-se os factores de referência quanto a um legado, mais ou menos directo, que as escolas e os arquitectos mais influentes ligados a elas permitiram ao processo arquitectónico subsequente.


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1961-66 | Piscina das Marés - Leça da Palmeira - Matosinhos Álvaro Siza

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Piscina das Marés - vista do interior

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Piscina das Marés - vista do passeio

02

Piscina das Marés - vista do bloco de serviços

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PARTE 1 | IDEOLOGIA

PORTO

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Espírito de renovação No1final da década de 1960, a arquitectura portuguesa procurou estabelecer maior contacto com a produção arquitectónica internacional. O período de desenvolvimento e de certa abertura política empreendido no governo Marcelista2 levou à intensificação dos contactos com Espanha, Itália, enquanto fonte de informação crítica e de novas propostas operativas (Casabella) e também com Inglaterra (Smithson, Colquhoun, Frampton). O desejo de acompanhar os movimentos de prática, metodologia e crítica europeus e a consequente vontade de renovação, incentivada também pela revolta estudantil de Maio de 1968 em França, já era sentido no interior da Escola Superior de Belas Artes do Porto (ESBAP) desde a Reforma de 1957, uma iniciativa do Estado Novo de institucionalizar a pedagogia praticada reforçando uma aprendizagem mais científica e técnica da arquitectura. À partida, os bons propósitos enunciados na Reforma deveriam reflectir o processo de desenvolvimento empreendido pelo Estado, sugerindo uma aproximação aos conceitos racionalistas do Moderno. Seria o encontro entre a visão reformadora e progressista de substituição dos princípios de Vitruvius pelos de Gropius na arquitectura, e as intenções desenvolvimentistas do Regime. Na realidade, o que se evidenciava era um esquema tradicionalista e ortodoxo de forte tentativa de controlo do sistema educacional pelo Estado. “A luta contra a Reforma transforma-se na luta contra o Regime [e a] luta política vai-se identificar com a luta disciplinar.” 3 No interior da escola, o discurso radical era acompanhado por uma prática segura e maleável. Para Carlos Ramos (1892-1969)4, director do 1 ← As imagens que acompanham o desenvolvimento do texto são uma referência à produção portuguesa e/ou internacional mais relevante para o período. Foi utilizado como referência para a selecção das obras as publicações: MENDES, Manuel, PORTAS, Nuno (org.), Arquitectura Portuguesa Contemporânea, Anos sessenta/Anos oitenta, Porto: Fundação de Serralves, 1991 e GOMES, Paulo Varela, “Arquitectura, os últimos vinte e cinco anos”, Arquitectura Portuguesa do século XX: História da Arte Portuguesa, direcção Paulo Pereira, Vol. III, Do Barroco à Contemporaneidade, Lisboa: Círculo de Leitores, 1995. 2 O regime político que vigorou em Portugal de 1933 a 1974 era denominado Estado Novo ou Salazarismo, em referência a António de Oliveira Salazar seu fundador e líder. Em 1968 o Estado é chefiado por Marcelo Caetano, sucessor de Salazar afastado por doença, sendo o período de 1968 à 1974 também chamado de Marcelismo. A designação oficiosa ‘Estado Novo’, assinalava a entrada numa nova era, de concepção antiparlamentar (inspiração fascista) e antiliberal do Estado. 3 FIGUEIRA, Jorge, Escola do Porto: um Mapa Crítico, Coimbra: eIdIarq, 2002, p.32. 4 Professor da Escola de Belas Artes do Porto deste 1940. Carlos Ramos assume a direcção da escola, à partir de 1952, sucedendo o pintor Joaquim Lopes.


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1964-71 | Caxinas - Vila do Conde Álvaro Siza

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Caxinas - vista da fachada

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Caxinas - vista da fachada

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PARTE 1 | IDEOLOGIA

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curso na época, o Moderno era entendido como consequência do tempo e dos avanços tecnológicos, mas condição incapaz de o afastar de sua sólida formação académica Beaux-Arts.5 Assim, a recusa à Reforma procurava manter a artisticidade da arquitectura de matriz francesa, empenhando-se no factor humanista do Moderno. “Em Carlos Ramos a noção de ‘moderno’ é mais visionária ou ideológica que concretizadora; antes a leitura, a receptividade, que exercício continuamente alargado e arriscado na vinculação do conceito à prática arquitectónica.” 6 No final de 1968, o Conselho Escolar pede a substituição das aulas por Reuniões Conjuntas entre professores e alunos, com o objectivo de discutir os problemas do curso. O processo de recusa à subordinação ao processo reformista contribui para o adensamento da arquitectura enquanto disciplina autónoma, culminando no Regime Experimental, implantado no ano lectivo de 69/70. Em 1969, a maioria dos professores pede demissão conjunta. O Curso pára. A Reforma é suspensa provisoriamente e o Ministério da Educação aceita, como condição para o retorno dos professores, um Regime Experimental que implica uma Comissão Coordenadora – composta por professores e alunos em igual número – na gestão da escola e a total autonomia do processo pedagógico. Era a ruptura com a Reforma de 57. Momento oportuno para uma real integração académica e onde a nova experiência pedagógica ganhava coesão e força. Alarmado e no intuito de repor a ordem e a disciplina, o Ministério exige o afastamento dos estudantes e a nomeação de um director. A mediação política que se tenta impor é logo factor de discussão, evidenciando as dissonâncias teóricas dentro da escola. “Havia consciência de duas tendências em confronto. Uma delas coincidente com os que tentaram uma recuperação tecnocrática… da proposta de regime de estudos saída da primeira experiência democrática de 69/70… Noutra perspectiva considerava-se [a consciência] da “autonomia disciplinar da arquitectura, condição de interdisciplinaridade” e do seu papel específico da transformação da realidade, repudiando a sectorização de uma visão analítica do ensino da arquitectura.” 7 5 COSTA, Alexandre Alves, Dissertação…, Porto: ESBAP, 2ª ed., 1982, p.47. [1ª edição de autor, 1980]. 6 MENDES, Manuel, “Escola ou generalismo – ecletismo ou tradição, uma opção inevitável”, in Páginas Brancas, Porto: FAUP, 1986, p.17. 7 COSTA, Alexandre Alves, Dissertação…, Porto: ESBAP, 2ª ed., 1982, p.109. [1ª edição de autor, 1980].


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1953-59 | Mercado de Vila da Feira - Vila da Feira Fernando Távora

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1956-60 | Pavilhão de Ténis - Quinta da Conceição - Matosinhos Fernando Távora

09

1957-61 | Escola Primária do Cedro - Vila Nova de Gaia Fernando Távora

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PARTE 1 | IDEOLOGIA

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Desse modo, é através da sensibilidade e inteligência mediática de Fernando Távora (1923-2005)8 na conciliação da arquitectura internacional, difundida pela Carta de Atenas, com a tradição da arquitectura portuguesa, marcada pelo trabalho no Inquérito9, que esta segunda corrente de opinião se hegemoniza no interior da escola. “A obra de Fernando Távora é um exemplo das tensões criadas pela necessidade de cultural de aceitar o movimento moderno e simultaneamente respeitar as raízes do nacionalismo como factor contrário ao regionalismo fascizante.” 10 Em 1969 é elaborado o novo programa de estudos, que articulava a disciplina de Projecto à outras quatro áreas principais: o Desenho, a o Urbanismo, a Construção e a História, de forma a estabelecer uma maior aproximação à realidade e possibilitando, assim, a viabilização do Curso a partir de 1970. 11 Ainda em Julho de 1969, o Ministério de Obras Públicas do governo de Marcelo Caetano promove o Colóquio da Habitação e, em Dezembro do mesmo ano, o 2º Encontro Nacional de Arquitectura, que reflectia, em âmbito nacional, a mesma duplicidade contraditória de posições perante a profissão: “A do arquitecto que aceita a ‘sociedade tal como está organizada e administrada e responde através da sua formação, da sua profissão e como técnico competente… ao que lhe é solicitado pela administração dessa sociedade’ e a do que não aceita esses princípios e se empenha na “intervenção com prioridade nos aspectos que afectam as grandes massas da população portuguesa…’ e assume a necessidade de ‘participar activamente em todos os escalões do planeamento e da execução, e colaborar com a sociedade na conquista da sua própria cultura.” 12 8 Fernando Távora é diplomado em Arquitectura pela ESBAP e desde 1952 lecciona na escola. Participou do Inquérito à Arquitectura Popular em Portugal (de 1955 a 1960) e foi presidente da Comissão Instaladora da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto (de 1979 a 1984). 9 “A realização do Inquérito à Arquitectura Popular Portuguesa, com início em 1955 e publicação em 1961, corresponde a um processo de desmitificação do alegado estilo tradicional português que, várias equipas segundo várias geografias, se propõem empreender com base no levantamento do existente e segundo instrumentos e metodologias tentativamente científicas… acabando finalmente por validar o racionalismo dentro da esfera da arquitectura popular.” FIGUEIRA, Jorge, Escola do Porto: um Mapa Crítico, Coimbra: eIdIarq, 2002, p.48. 10 Trecho do texto subscrito por um grupo de arquitectos do Porto. Depois do Modernismo, catálogo da exposição, coordenação Luís Serpa, Lisboa, 1983. 11 GOMES, Paulo Varela, “Arquitectura, os últimos vinte e cinco anos”, in Arquitectura Portuguesa do século XX: História da Arte Portuguesa, direcção Paulo Pereira, Vol. III, Do Barroco à Contemporaneidade, Lisboa: Círculo de Leitores, 1995, p.550. 12 Vassalo Rosa citado por Sérgio Fernandes. FERNANDES, Sérgio, Percurso Arquitectura


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1962-76 | Igreja Sagrado Coração de Jesus - Lisboa Nuno Portas, Nuno Teotónio Pereira, Vasco Lobo, Vitor Figueiredo e P. Vieira de Almeida

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Igreja Sagrado Coração de Jesus fachada lateral

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Igreja Sagrado Coração de Jesus - vista do pátio

13

Igreja Sagrado Coração de Jesus - vista do interior

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Igreja Sagrado Coração de Jesus - vista do altar

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PARTE 1 | IDEOLOGIA

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Neste período de transição, de contestação do ‘estilo internacional’ e de grande esforço de clarificação e avaliação das inevitáveis divergências, um dos principais meios de divulgação das experiências nos países nórdicos, em Barcelona, em Itália, do brutalismo Inglês, de Kahn e Aalto, além da crítica do panorama português, foi a revista Arquitectura e um dos seus colaboradores, Nuno Portas (1934)13 também professor da Escola Superior de Belas Artes de Lisboa (ESBAL). Defensor de uma arquitectura justificada no desenvolvimento social e cultural, Portas explicita no seu livro “A cidade como arquitectura”, publicado também em 1969, uma evolução do pensamento da arquitectura para o urbanismo, do edifício para a cidade. “De acordo com as premissas do ‘estruturalismo’, então em voga, Portas visa encontrar aquilo que é decisivo no interior daquilo que é aparente, fixar uma estrutura que possa ser conhecida, dominada e comunicada… o que interessa a Portas é o ‘processo’, e não a poética da forma.” 14 Desta forma, Portas mantém a referência cultural do ‘organicismo’ de Bruno Zevi, procurando superar também o ‘culturalismo’ de Ernesto Rogers, e a vertente mais ‘formalista’ da arquitectura15, tal como salienta Jorge Figueira citando Fernando Távora: “Trata-se de continuidade e não de eclectismo e é esta ideia que liga Zevi, Rogers, Portas e o essencial do debate nos anos 50: um “composto” e não uma “mistura.” 16 Porto e Lisboa – enquanto centros de formação e difusão culturais – sempre adoptaram posturas distantes, afirmando-se como pólos autónomos, tanto na produção profissional bem como nas posturas disciplinares. Lisboa valoriza a morfologia urbana e os tipos edificatórios, o fazer arquitectónico racional e o ensino formal, procurando condições operativas para o projecto e para o desenho da cidade; já o Porto mantém a vertente artística do projecto, valorizando o desenho na organização Portuguesa 1930/1974, Porto: FAUP, 2ª ed., p.173. [1ª edição de autor, 1980]. 13 Nuno Portas iniciou o curso de Arquitectura na Escola Superior de Belas Artes de Lisboa (ESBAL), mas é pela ESBAP que obtém o título de licenciatura em 1959. Trabalhou no atelier de arquitectura de Nuno Teotónio Pereira em 1957, e fez parte da direcção da revista Arquitectura, em 1957. Entre 1862 e 1974 foi investigador do Laboratório Nacional de Engenharia Civil, e leccionou Projecto na Escola de Belas Artes de Lisboa, entre 1965 e 1971. Em 1974 aceita o cargo de Secretário de Estado da Habitação e Urbanismo. 14 FIGUEIRA, Jorge, A Periferia Perfeita - Pós-Modernidade na Arquitectura Portuguesa Anos 60-Anos 80, Coimbra: Departamento de Arquitectura da FCTUC, Março, 2009, p.90-91. 15 PIZZA, Antonio. “El mito del “Movimento Moderno” en la arquitectura del siglo XX”, in La Construcción del Pasado. Reflexiones sobre Historia, Arte y Arquitectura. Madrid: Celeste Ed., 2000. 16 Fernando Távora citado por Jorge Figueira. FIGUEIRA, Jorge, A Periferia Perfeita..., p.45.


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1971-74 | Banco Pinto & Sotto Maior Álvaro Siza - fachada

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Banco Pinto & Sotto Maior - vista do interior

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1973-74 | Casa Marques Guedes Alexandre Alves Costa e Sérgio Fernandez

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Casa Marques Guedes - vista posterior

19

1973-76 | Casa Beires - Póvoa de Varzim Álvaro Siza

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Casa Beires - vistas do pátio interior

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PARTE 1 | IDEOLOGIA

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do espaço e a ideia de cidade coerentemente sobreposta pelo ‘antigo’ e pelo ‘novo’, desenvolvendo um modo de pensar que potencia a própria identidade disciplinar. 17 É neste sentido, de continuidade do debate internacional de revisão da arquitectura moderna, das diferentes oportunidades de solicitação profissional e da consolidação de propostas disciplinares, que a arquitectura de Álvaro Siza se apresenta, materializando dúvidas até então apaziguadas por Távora e assumindo um processo de reconciliação com a linguagem racionalista. 18 “A integração do moderno e do local perde sentido, porque não só o moderno está em crise, como passará também a estar o ‘local’, a própria ideia de localidade. A ‘autenticidade’ provada no ‘Inquérito’ transforma-se num mito de autenticidade, isto é, numa imagem, como tudo o resto.” 19 Correspondentemente, de 1970 a 1974, a ESBAP vive os anos de maior pessimismo e desorientação pedagógica, onde o sentimento “antiarquitectura” valoriza a expressão popular autónoma e culmina na “crise do desenho” enfrentada pela escola20, anunciando a presença de uma crise mais profunda, de ordem político-ideológica. “Projectar torna-se então um fenómeno cultural complexo. É o medo, é o ‘silêncio dos poetas’, é o desespero legítimo do não desenho.” 21

Revolução política e arquitectónica O 25 de Abril22, na ESBAP, marca o fim da constante intervenção do Regime na orientação do processo pedagógico, a conquista da autonomia, da liberdade de expressão. Dias depois é realizado na escola um Plenário que declara por unanimidade o apoio ao processo de derrubada do fascismo. Anuncia-se folha de rosto Jornal República ano 62 | 25 de Abril 1974

17 MENDES, Manuel, PORTAS, Nuno (org.), Arquitectura Portuguesa Contemporânea, Anos sessenta/Anos oitenta, Porto: Fundação de Serralves, 1991 e FIGUEIRA, Jorge, Escola do Porto: um Mapa Crítico, Coimbra: eIdIarq, 2002, p.33-34. 18 FIGUEIRA, Jorge, A Periferia Perfeita - Pós-Modernidade na Arquitectura Portuguesa Anos 60Anos 80, Coimbra: Departamento de Arquitectura da FCTUC, Março, 2009, p.46. 19 FIGUEIRA, Jorge. Idem, p.47. 20 FIGUEIRA, Jorge, Escola do Porto: um Mapa Crítico, Coimbra: eIdIarq, 2002, p.68. 21 MOURA, Eduardo Souto, Relatório de Estágio de Arquitectura, Porto, 1980, p.4. [texto policopiado]. 22 Revolução dos Cravos, ou 25 de Abril, como é comummente conhecido, é o nome dado ao golpe militar que derrubou o regime político que vigorava em Portugal desde 1926. O levante foi conduzido em 1974 pelos oficiais intermédios da hierarquia militar, na sua maior parte capitães que tinham participado na Guerra Colonial.


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1974-77 | SAAL-Norte - Bairro de São Vitor - Porto Álvaro Siza - secção dos desenhos da planta e do alçado

Bairro de São Vitor - vista da fachada através do muro original

Bairro de São Vitor - fachada do conjunto

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Bairro de São Vitor axonométrico do conjunto

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croqui

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também o retorno de alunos e professores afastados e a formação de um órgão directivo, responsável perante o Plenário.23 “A política submerge a arquitectura. Destruir o estado vigente é mais urgente.” 24 Contudo, o efectivo apelo revolucionário, advém de fora, e não propriamente do interior da disciplina. A 6 de Agosto de 1974 é publicado, por Nuno Portas, então secretário de Estado da Habitação e do Urbanismo, sob dependência do Fundo de Fomento da Habitação, o despacho que criou o Serviço de Apoio Ambulatório Local (SAAL), que visava a transformação dos bairros mais carentes, através da iniciativa e força de trabalho da população, com apoio das Câmaras Municipais. De carácter descentralizado, o SAAL-Norte constituía um corpo técnico especializado e eventuais equipas multidisciplinares, basicamente formadas por professores e alunos da ESBAP, e cujas posições não se diferenciavam essencialmente das teses defendidas no interior da escola. 25 “No SAAL… vai concentrar-se a prática profissional que não se desliga da prática escolar: a revolução está finalmente a acontecer.” 26 O SAAL-Norte marca o auge do processo interno na escola de ‘recusa do desenho’, mas também o seu fim. O pessimismo cede lugar ao optimismo e à vontade de projectar o real. “A ‘recusa do desenho’ transformou-se na reivindicação do desenho… [era necessária a] criação de uma nova metodologia de desenho que entende planeamento, projecto e construção como síntese de uma actividade multidisciplinar resultante da acção constante entre técnicos e moradores.” 27 Contudo, o SAAL-Norte não superou os planos e fases iniciais. Sua curta duração28 não permitiu consolidar, nem aprofundar, uma teoria e uma prática, ainda em processo. 23 COSTA, Alexandre Alves, Dissertação…, Porto: ESBAP, 2ª ed., 1982, p.107. [1ª edição de autor, 1980]. 24 MENDES, Manuel, PORTAS, Nuno (org.), Arquitectura Portuguesa Contemporânea, Anos sessenta/Anos oitenta, Porto: Fundação de Serralves, 1991 e FIGUEIRA, Jorge, Escola do Porto: um Mapa Crítico, Coimbra: eIdIarq, 2002, p.60. 25 COSTA, Alexandre Alves, “O elogio da loucura 1974-1976”, in Textos Datados. Coimbra: eIdIarq, 2007, p.45. 26 FIGUEIRA, Jorge, Escola do Porto: um Mapa Crítico, Coimbra: eIdIarq, 2002, p.60. 27 COSTA, Alexandre Alves, Dissertação…, Porto: ESBAP, 2ª ed., 1982, p.110-111. [1ª edição de autor, 1980]. 28 Em 28 de Outubro de 1976, por despacho Ministerial, o SAAL passa a ser gerido pelas Câmaras Municipais. “Esse Movimento Revolucionário de moradores conheceu uma amplitude e uma violência tal que não é possível manter-se após o 25 de Novembro. Já não estamos numa fase revolucionária. Presentemente estamos num estado de legalidade, um estado democrático de desenvolvimento do País. É necessário, por consequência,


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1973-2003 | SAAL-Norte - Conjunto das Águas Férreas - Bouça - Porto Álvaro Siza e António Madureira

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Conjunto da Bouça - fachada das galerias

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Conjunto da Bouça - fachada dos acessos directos

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Conjunto da Bouça - fachada tipo

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Conjunto da Bouça - fachada para o Metro

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Sendo o factor político o suporte determinante do processo pedagógico da escola, quando este cede, desfaz-se gradualmente a militância e as esperanças revolucionárias, expondo as contradições e limitações da arquitectura como agente de um projecto social. A escola volta-se então para o seu interior e a partir de 1975/76 são realizados os ‘Encontros do Curso de Arquitectura’, com o objectivo de reflectir e concentrar a experiência até então desenvolvida, dentro e fora da escola (SAAL), de forma a consolidar a urgente pedagogia de reconstrução do Curso. 29 Nestes Encontros foram aprovadas as Bases Gerais que definiam a estrutura curricular para o ano seguinte e onde se procurava estabelecer uma teoria que fundamentasse a prática pedagógica e assumisse a autonomia da disciplina. É justamente nas Bases Gerais de 1976/77, estabelecidas no ‘II Encontro do Curso de Arquitectura’, que alguns dos mais representativos fundamentos pedagógicos do Curso são estabelecidos por Álvaro Siza (1933), então professor de Projecto e Construção30, na conformação dessas duas disciplinas, sintetizando os temas relacionados a forma e a materialização. No fim da década de 70, durante a recessão política e devido aos graves desajustes académicos enfrentados pelas duas escolas oficiais (do Porto e de Lisboa) decorrentes do processo de integração na Universidade e o consequente aumento exponencial no número de alunos, a identificada e abusivamente generalizada ‘Escola do Porto’31 é declarada portadora de uma identidade e sentido não alcançado internamente. “A Escola do Porto sempre se desejou como uma escola, isto é, como uma tendência, uma elaboração de afinidades que conduzissem uma arquitectura definida, reconhecível, devedora de uma identidade. Mas esteve sempre mais perto de ser identificada como um estilo, quando quis ser reconhecida pelo seu método.” 32

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dar garantias à iniciativa privada …” Ministro Eduardo Pereira no jornal Le Monde Diplomatique citado por Eduardo Souto de Moura. MOURA, Eduardo Souto, Relatório de Estágio de Arquitectura, Porto, 1980, p.14. [texto policopiado]. COSTA, Alexandre Alves, Dissertação…, Porto: ESBAP, 2ª ed., 1982, p.113. [1ª edição de autor, 1980]. Álvaro Joaquim Melo Siza Vieira cursa Arquitectura na ESBAP entre 1949 e 1955. Durante os anos de 1955-58 colabora no atelier de arquitectura de Fernando Távora. Entre 1966 e 1969 lecciona Projecto na ESBAP e, no ano de 1976 é nomeado Professor Assistente da disciplina de Construção. Agora sim a Escola passa a ser entendida como expressão de tendência. Ver: MENDES, Manuel, PORTAS, Nuno (org.), “A reflexão da arquitectura e a expressão de tendência”, in Arquitectura Portuguesa Contemporânea, Anos sessenta/Anos oitenta, Porto: Fundação de Serralves, 1991., p.83. FIGUEIRA, Jorge, Escola do Porto: um Mapa Crítico, Coimbra: eIdIarq, 2002, p.119.


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1967-69 | Casa Lieb - Loveladies - Long Beach Island - New Jersey Robert Venturi e John Rauch

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Casa Lieb - fachada principal e entrada

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Casa Lieb - vista do interior

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Este posicionamento ideológico denuncia certa mitificação das conquistas de seu percurso e uma persistente valorização de valores do Moderno e da cultura clássica, incompatíveis com o ímpeto progressista da época. O reconhecimento público e internacional da escola e de seus arquitectos mais representativos é, na verdade, permitido pela economia de mercado e corresponde, paradoxalmente, ao período de maior enfraquecimento de sua pedagogia. Este facto ressalta uma nova mudança de paradigmas quanto às teorias de ‘revisão do moderno’ e um sinal do clima tecnológico e visionário destes anos. Já os Smithsons, em 1960, apontavam a superação da tecnologia da ‘máquina’, dos anos 20, pela tecnologia da ‘produção de aviões’ e da imagem ‘cinematográfica’, anunciando também o sentido de ‘movimento’ na percepção da cidade e seu reflexo sobre a ordem urbana, próprio da emergente cultura pós-moderna. 33 Na década de 70 estas premissas tornam-se claras com as pesquisas de Robert Venturi e Denise Scott Brown, sob crescente influência americana. Em ‘Complexidade e Contradição em Arquitectura’ (1966) há a tomada de consciência crítica sobre a história, suas tensões e equilíbrios, sem capa da 2ª edição | 1977

qualquer ‘revivalismo’.34 “Aquilo que nos Smithsons é ainda tentativo, difuso ou transitório, entra aqui de rompante… Venturi lê a história, americanamente. É por isso que o salto seguinte para Las Vegas é possível: Learning from Las Vegas (1972).” 35 A observação de Jorge Figueira clarifica a alteração do objecto de estudo da indústria para o comércio, antes a imagem que o conteúdo de Las Vegas, marcando a defesa do ‘ambíguo’, do ‘feio’ e ‘banal’. Estas duas publicações representam também novas conquistas metodológicas, o posicionamento menos doutrinal e mais experimental por parte dos arquitectos e o regresso à disciplina da arquitectura. O maneirismo de Venturi contrapôs-se ao racionalismo e ao trabalho de

capa da edição revisada | 1977

revisão revolucionária de Aldo Rossi. Partindo da arquitectura visionária do Iluminismo, Rossi rompe com o organicismo de Zevi e vai além do 33 Peter Smithson descreve os Eames como representantes de uma mudança de paradigma, da qual também acreditavam. Jorge Figueira. FIGUEIRA, Jorge, A Periferia Perfeita - PósModernidade na Arquitectura Portuguesa Anos 60-Anos 80, Coimbra: Departamento de Arquitectura da FCTUC, Março, 2009, p.59. 34 VENTURI, Robert, Complejidad y contradicción an la arquitectura, Barcelona: Gustavo Gili, 1977. [1ª edição, 1966]. 35 FIGUEIRA, Jorge, A Periferia Perfeita…, p.121.


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1971-84 | Cemitério San Cataldo - Modena - Itália Aldo Rossi - praça central e ossário-cubo

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Cemitério San Cataldo - ossário sentido nascente

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Cemitério San Cataldo - corpo nascente

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Cemitério San Cataldo - vista exterior do ossário-cubo

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Cemitério San Cataldo - vista interior do ossário-cubo

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discurso culturalista de Rogers (de quem foi colaborador na CasabellaContinuità). Já em 1975, com o texto ‘Arquitectura para os museus’ Rossi procurava, através do ‘tipo’ e do ‘monumento’, estabelecer uma teoria do projecto que pudesse definir a ‘cidade como arquitectura’ e uma ‘teoria de arquitectura’.36 Em 1966, o livro ‘A Arquitectura da Cidade’ estabelece a própria cidade como o grande campo do conhecimento, ‘enquanto coisa humana por excelência’, descrevendo-a e sistematizando-a de forma estruturalista e científica de forma a criticar o funcionalismo ‘ingénuo’ do Movimento capa da 1ª edição | 1966

Moderno.37 Já na década de 70, no painel sobre a ‘Cidade Análoga’ (1976), Rossi formula uma espécie de síntese da sua investigação, enfatizando a manipulação dos símbolos da cidade existente. Consolidação de uma arquitectura Com a consolidação da sociedade de consumo e a formulação de novas culturas, a cultura Moderna perde seu carácter vanguardista e deixa, definitivamente, de ser hegemónica. “Anos 80, a década do pós-modernismo, do renascimento das culturas adolescentes e da moda, do boom financeiro, de Reagan e do início da queda do Leste. …década em que a militância ecológica, …a crise das grandes metrópole, …a necessidade de uma arquitectura adequada à preservação do ambiente e mais comunicativa e humana [levou a um] medo pavoroso da mudança e o gosto por tudo quanto é “antigo”, e a cultura empresarial do novo boom tirou um estilo.” 38 O pós-modernismo fora um caminho quase natural. Em arquitectura esta discussão provinha dos pensamentos lançados pelos Smithson’s ainda na década de 60 e que teve seguimento em 1970 com Robert Venturi e Aldo Rossi (de maneiras distintas) já em meados da década, como vimos anteriormente. Por ser um movimento sem carácter definido, o pósmodernismo tornou-se imagem de marca. O ‘estilo’ era acompanhado de discursos e acções anti-modernistas (extrapolação abusiva das teses de Venturi e Rossi, o direito da arquitectura à monumentalidade e à ironia, às formas históricas, à comunicação) que se somavam convenientemente. 36 ROSSI, Aldo, “Arquitetura para los museos”, Para una arquitectura de tendência, Escritos: 1956-1972, Barcelona: Gustavo Gili, 1998. 37 ROSSI, Aldo, A Arquitetura da Cidade, tradução Eduardo Brandão, São Paulo: Martins Fontes, 2ª ed., 2001. [1ª edição, 1966]. 38 GOMES, Paulo Varela, “Arquitectura, os últimos vinte e cinco anos”, in Arquitectura Portuguesa do século XX: História da Arte Portuguesa, direcção Paulo Pereira, Vol. III, Do Barroco à Contemporaneidade, Lisboa: Círculo de Leitores, 1995, p.549 e 568.


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1979-80 | Teatro do Mundo - Bienal de Veneza - Veneza - Itália Aldo Rossi - edifício flutuante ancorado na Ponta de Aduana

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1982-86 | Complexo das Amoreiras - Lisboa Tomás Taveira - vista do conjunto

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Complexo das Amoreiras - fachada dos edifícios

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“O… pós-moderno é de facto a única tendência verdadeiramente nãomodernista de todas as que saíram dessa …crise da arquitectura e da cidade moderna …porque abdicou até da memória formal do modernismo, desintegrado como um outro estilo qualquer e usado como citação formal num quadro eclético.” 39 Neste sentido, as ideias lançadas por Rossi com a ‘Cidade Análoga’ ganham corpo e forma com o projecto para a Bienal de Veneza de 1980. O ‘Teatro do Mundo’ manipula as especificidades do sítio (Veneza), da história (com referências à Palladio) e do programa (teatro) de modo a evidenciar a superação do ‘tipo’ pela ‘imagem’40, oferecendo aos visitantes uma analogia de Veneza.41 O slogan ‘o fim da proibição’, empregue por Paolo Portoghesi, ainda em Veneza, representava o fim da censura, da repressão, da rigidez Moderna. É através da aceitação do decorativo, do acessório, do cenário e da imagem que a arquitectura passa a ser entendida de forma democrática, na busca da reconquista de sua génese e repertório. No início de 1980, Portugal, apesar de se enquadrar ainda na ressaca do período revolucionário, procurou soluções para a crise e para as insuficiências da economia com a adesão à Comunidade Económica Europeia (CEE). O facto representava a estabilização de uma sociedade aberta, do progresso e da modernidade desejada com o processo de democratização do país e, neste contexto, o crescimento económico que se seguiu favoreceu uma postura nacionalista eufórica e positivista, acrescida da descoberta da cultura popular, da cultura de massas, da cultura pop e do capitalismo, potenciadas pela abundância de informação. No seguimento deste processo, as exposições organizadas em Portugal na década de 80 são notáveis. Em Janeiro de 1983 era inaugurada, na Sociedade Nacional de Belas Artes em Lisboa, a exposição ‘Depois do Modernismo’, organizada pelo galerista Luís Serpa e pelo arquitecto Michel Toussaint. Estabelecia-se como ponto de partida para tal iniciativa não um programa, mas cinco pertinentes questões: do esgotamento da “modernidade” e do seu conceito vazio de conteúdo; das novas formas de capa do catálogo da exposição Depois do Modernismo | 1983

expressão artística pós-modernas; do entendimento de campos diversos; 39 GOMES, Paulo Varela, “Arquitectura, os últimos vinte e cinco anos”, in Arquitectura Portuguesa do século XX: História da Arte Portuguesa, direcção Paulo Pereira, Vol. III, Do Barroco à Contemporaneidade, Lisboa: Círculo de Leitores, 1995, p.568. 40 FIGUEIRA, Jorge, A Periferia Perfeita - Pós-Modernidade na Arquitectura Portuguesa Anos 60Anos 80, Coimbra: Departamento de Arquitectura da FCTUC, Março, 2009, p.143. 41 ARANTES, Otília Beatriz Fiori, O Lugar da Arquitetura depois dos Modernos, São Paulo: EDUSP: Studio Nobel, 1993, p.46-47.


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1976-85 | Convento Santa Marinha da Costa - Guimarães Fernando Távora

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Convento Santa Marinha da Costa detalhe das aberturas

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Convento Santa Marinha da Costa pátio sobre o novo bloco

Convento Santa Marinha da Costa - vista de um dos quartos

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do delinear de um estado de espírito particular; enfim, do lugar, do posicionamento, da arquitectura portuguesa.42 “A verdadeira importância da exposição estava no facto de se realizar (e de expor arquitectura, o que era quase inédito em Portugal), no nome que tinha, na polémica que desencadeou, no verdadeiro sucesso de público que foi. A ideia não era expor um estilo mas aspectos de uma condição.” 43 No Porto, a Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto (FAUP), oficialmente criada em 1979, passava por um período de desorientação a partir da integração universitária. A proximidade com outras áreas de ensino, humanísticas e técnicas, é bem-vinda mas a iminente perda da noção de arquitectura como arte preocupa o corpo académico. “Inevitavelmente, o discurso e a prática [da escola] passam a ser mais defensivos do que proponentes.” 44 Neste contexto insere-se o gesto de recusa, por parte de um grupo de arquitectos do Porto45, na participação da exposição de 83 em Lisboa. O texto subscrito pelo grupo explicita a quase ‘não existência’ do Moderno em Portugal, ou a presença muito diluída deste.46 “Subliminarmente se explicita a defesa do Moderno como projecto inacabado, ao invés da sua superação festiva e torrencial que é a essência da proposta pós-modernista.” 47 Ainda em 1983, em Abril, foi inaugurada outra exposição, no Porto, uma espécie de resposta: ‘Onze Arquitectos do Porto. Imagens Recentes’. A exposição não assume, à partida, contornos definidos quanto aos participantes ou os critérios de organização, antes, assume o acordo na eleição de onze nomes a apresentar projectos arquitectónicos ainda em capa do catálogo da exposição Onze Arquitectos | 1983

42 SERPA, Luís (coord.), “A Propósito…”, in Depois do Modernismo, catálogo da exposição, Lisboa, 1983, p.10. 43 GOMES, Paulo Varela, “Arquitectura, os últimos vinte e cinco anos”, in Arquitectura Portuguesa do século XX: História da Arte Portuguesa, direcção Paulo Pereira, Vol. III, Do Barroco à Contemporaneidade, Lisboa: Círculo de Leitores, 1995, p.570. 44 FIGUEIRA, Jorge, Escola do Porto: um Mapa Crítico, Coimbra: eIdIarq, 2002, p.69. 45 O grupo era formado pelos arquitectos Adalberto Dias (1953), Alcino Soutinho (1930), Alexandre Alves Costa (1939), Álvaro Siza, Domingos Tavares (1939), Eduardo Souto de Moura (1952) e Sérgio Fernandez (1937), e a atitude assinalou um dos últimos e significativos actos de grande repercussão da Escola enquanto colectividade. 46 Segundo seus signatários o Moderno em Portugal estaria diluído pelo ecletismo de Carlos Ramos, o romantismo alemão de Raul Lino (1879-1974), um “vago expressionismo” de Cassiano Branco (1897-1970) ou o reencontro da tradição portuguesa por Januário Godinho (1910-90), arquitectos da “primeira geração”. Depois do Modernismo, catálogo da exposição, coordenação Luís Serpa, Lisboa, 1983, p.115-128. 47 FIGUEIRA, Jorge. Escola do Porto: um Mapa Crítico, Coimbra: eIdIarq, 2002, p.69.


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1981-88 | Casa da Artes - Porto Eduardo Souto de Moura

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Casa da Artes - aberturas laterais

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1981-87 | Banco Borges e Irmão Álvaro Siza

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Banco Borges e Irmão - Vila do Conde vista do interior

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1985-86 | Casa Avelino Duarte Álvaro Siza

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Casa Avelino Duarte - detalhe da escada interior

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processo.48 A eleição dos autores não revela a selecção de uma geração, as obras apresentadas também não são coerentes entre si. No entanto, como observa Nuno Portas, estes profissionais estão directamente ligados a ESBAP, sendo a maioria docentes desta mesma escola.49 Apesar do pretexto de sua organização como uma iniciativa de debate cultural e não a presunçosa tentativa de estabelecer uma lógica temática, ao renunciar à diversidade (como da exposição de Lisboa) e privilegiar a escolha de uma tradição sedimentada e reconhecida “a Escola reivindica seu legado cultural.”50 “À manifestação pós-modernista…, a Escola do Porto responde com um distanciamento crítico como lhe competia, e defensivo como sinal dos tempos.” 51 No interior da escola, um grupo de estudantes do 2º Ano da FAUP propõem, em Maio de 1985, a edição de uma colectânea de trabalhos profissionais realizados recentemente pelo conjunto de profissionais/ docentes da escola.52 Publicada em Janeiro de 1986, Páginas Brancas salienta a cada vez mais difícil reciprocidade de experiências entre professor e aluno, agora sintetizada em modelos expostos em uma publicação. capa do catálogo Páginas Brancas | 1986

“Esta mostra de projectos vale o que vale, mas se, de facto, representa o melhor do que os docentes de uma Escola estão a produzir, ela será também um indicador significativo do que se está a ensinar. E, naturalmente, do que se não está a ensinar. Ponto de chegada, pode ser sinal de partida.” 53 A lógica do atelier dá lugar às regras do mercado, prevalecendo os novos valores de competitividade, mérito, concorrência e prestígio. A forma sobressai ao conteúdo e ao significado, ou pressupostos, da escola. “A simulação pura do atelier na escola está condenada a ser um exercício nostálgico e insuficiente… [a] cultura pedagógica… [da] perenidade da transmissão oficinal de conhecimentos… [o] processo de formulação de uma naturalidade [da arquitectura, estabelecida por Távora, e que] 48 “Pensamos poder aproximar do público onze momentos de criação arquitectónica, quase no Presente. Riscos ainda frescos, expressão de Ideias, o momento suspenso. Pausa entre dúvidas e esperanças que se hão-de consolidar, ou dissolver, ou inverter, ou regressar, aproximar-se entre si e de outros, ou não.” Trecho do texto de abertura do catálogo da Exposição. Onze Arquitectos do Porto, Imagens Recentes, catálogo da exposição, Porto: Leitura, 1983. 49 PORTAS, Nuno, “Meia dúzias de questões sobre uma certa arquitectura, a melhor, do Porto”, Idem. 50 PORTAS, Nuno. Idem, p.70. 51 FIGUEIRA, Jorge, Escola do Porto: um Mapa Crítico, p.106. 52 MENDES, Manuel, “Escola ou generalismo – ecletismo ou tradição, uma opção inevitável”, in Páginas Brancas, Porto: FAUP, 1986, p.15. 53 PORTAS, Nuno, “Prefácio”, in Páginas Brancas, Porto: FAUP, 1986, p.9.


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1985-86 | Pavilhão Carlos Ramos - FAUP - Porto Álvaro Siza

Pavilhão Carlos Ramos - detalhe do pátio central

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Pavilhão Carlos Ramos - vista do interior do edifício

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Pavilhão Carlos Ramos - átrio e escada de acesso ao piso superior

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funda parte essencial da mitologia do ensino “escola-atelier”, na Escola do Porto… é posta gradualmente em causa”54 Em Fevereiro do mesmo ano, é organizada pela Associação dos Arquitectos Portugueses (AAP) e sob a direcção de Teotónio Pereira, a I Exposição Nacional de Arquitectura, na Sociedade Nacional de Belas Artes, em Lisboa. A exposição englobava o período de 1975-1985 e a sua abertura a todos os associados da AAP, com projectos individuais ou colectivos, em qualquer parte do território nacional e, ainda, noutros territórios de língua portuguesa, por si só, garantia que esta não se tratava capa do catálogo da I Exposição Nacional de Arquitectura| 1986

de uma exposição de movimento, escola ou tendência, mas procurava mostrar uma visão geral do que os arquitectos projectavam, apesar das dificílimas condições em que exerciam a sua prática profissional.55 Em Outubro de 1987, a Comissão Instaladora da FAUP, decide criar a ‘rA-Revista de Arquitectura’. Reflexo da pluralidade em que se inseria e do desejado debate interno, a revista se pretendia referência crítica da acção e da produção mais significativa da Faculdade.56 No texto editorial, Fernando Távora explicita “o momento de indescritível confusão e desordem” contemporâneo e a urgente necessidade primeira de consciência e depois de acção e rectificação como a responsabilidade máxima da escola.57 “Evoquemos o Mestre e saibamos colher a sua lição… Reconquistemos a qualidade do desenho.” 58 Deste modo, o primeiro número da revista é dedicado especialmente ao Mestre Carlos Ramos, à sua pedagogia, diversidade de linguagens e certa liberdade formal sempre acompanhada de grande sentido de responsabilidade. O ensino de arquitectura como gerador de atributo teórico, crítico e metodológico à produção corrente e campo aberto de ideias e sínteses é enfatizado no texto de Vittorio Gregotti.59 Entretanto, o desejo revisionista, fundo temático da revista, mostra-se prepositivo na última página, num sumário texto de Álvaro Siza, praticamente um memorial descritivo, das novas instalações da FAUP, projecto então em fase de construção. No entanto, e de forma sintomática, a revista não passou de seu número inaugural, ‘rA, nº 0’. 54 FIGUEIRA, Jorge, Escola do Porto: um Mapa Crítico, Coimbra: eIdIarq, 2002, p.109-111. 55 1ª Exposição Nacional de Arquitectura: 1975-1985, Lisboa: A.A.P., 1986. 56 Nota de abertura da Comissão Instaladora da FAUP. rA-Revista da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, nº 0, Porto, 1987, p.3. 57 TAVORA, Fernando, “Editorial”, rA ..., nº 0, Porto, 1987, p.4. 58 Idem, ibid. 59 GREGOTTI, Vittorio, “Faculdades de Arquitectura”, rA ..., nº 0, Porto, 1987.


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1961 | Garagem de Barcos do Santa Paula Iate Clube - São Paulo Vilanova Artigas - implantação e Represa de Guarapiranga

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Garagem de Barcos - vista da entrada

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Garagem de Barcos - detalhe do apoio da estrutura

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Difusão da ‘Escola Paulista’ No60início da década de 60, o prestígio internacional alcançado pela arquitectura brasileira com a inauguração de Brasília (1960) e o acompanhamento das discussões e da produção arquitectónica internacional entraram em forte declínio. Neste mesmo período, a prestigiosa expressão de ‘leveza’ e ‘sinuosidade’, alcançada pela chamada ‘Escola Carioca’61 perde espaço para a robustez das estruturas de betão aparente, definidoras das formas, dos grandes vãos e consolas, linguagem própria da “Escola Paulista”62, cuja radicalidade e ideologia (extremada) estavam mais próximas das vanguardas europeias, e segundo as quais sua expressão arquitectónica já se vinha desenvolvendo desde 1950, com influências de Le Corbusier a partir da utilização do betão bruto em Marselha, pelo brutalismo inglês e também pelo período de grande desenvolvimento do governo de Juscelino Kubitschek63, considerando o desenho como ferramenta para a mudança social. “Em minha opinião, o papel do arquiteto não consiste numa acomodação; não deve cobrir com uma mascara elegante as lutas existentes, é preciso revelá-las sem temor.” 64 Após o golpe militar de 196465 a luta intensificou-se e o movimento paulista perdura como ‘actividade de resistência’ tornando-se cada vez mais expressivo na defesa da ‘verdade construtiva’, na exposição das estruturas (geralmente em betão aparente), alvenarias (tijolo ou bloco de betão) e tubulações, na almejada ideia de industrialização da construção e

60 ← As imagens que acompanham o desenvolvimento do texto são uma referência à produção brasileira e/ou internacional mais relevante para o período. Foi utilizado como referência para a selecção das obras as publicações: SEGAWA, Hugo, Arquiteturas no Brasil 1900-1990, São Paulo: EDUSP, 2ª ed.,1999 e BASTOS, Maria Alice Junqueira, Pós-Brasília: Rumos da Arquitetura Brasileira, São Paulo: Editora Perspectiva: FAPESP, 2003. 61 Este termo é vinculado principalmente ao grupo de arquitectos formado por Oscar Niemeyer, Afonso Eduardo Reidy, M. M. Roberto, Jorge Moreira, Lucio Costa, entre outros. Ver: BASTOS, Maria Alice Junqueira, Idem, São Paulo: Editora Perspectiva: FAPESP, 2003, p.5. 62 Defendida principalmente pelo grupo formado por João Batista Vilanova Artigas, Joaquim Guedes, Carlos Millan, Sérgio Ferro, Rodrigo Lefèvre, Flávio Império, Paulo Mendes da Rocha, entre outros. Yves Bruand citado em: BASTOS, Maria Alice Junqueira, Idem, p.13. Sobre a Escola Paulista Brutalista ver também ZEIN, Ruth Verde, Arquitetura Paulista Brutalista 1953-1973, <http://www.arquiteturabrutalista.com.br/index1port.htm> 63 BASTOS, Maria Alice Junqueira, Idem, 2003. 64 Artigas citado por Yves Bruand e transcrito por Maria Alice Junqueira Bastos. BASTOS, Maria Alice Junqueira, Idem, São Paulo: Editora Perspectiva: FAPESP, 2003, p.13. 65 O Golpe Militar de 1964 designa o golpe de Estado que interrompeu por meio da força o governo do presidente João Goulart, democraticamente eleito. O Golpe “representou o fim da política de conciliação ideológica… sob a bandeira do nacional-desenvolvimentismo”. BASTOS, Maria Alice Junqueira, Idem, p.4-5.


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1967 | Casa Elza Berquó - São Paulo Vilanova Artigas

Casa Elza Berquó - detalhe da fachada

Casa Elza Berquó - vista do interior

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Casa Elza Berquó - detalhe da estutura

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desenvolvimento técnico, utilizando a arquitectura como meio de reflexão para uma nova ordem político-social. “A repressão cultural imposta pelo novo regime trouxe sérias consequências para a arquitetura por sua atuação sobre a universidade… e sobre a imprensa especializada em arquitetura… Não se difundia mais a produção nacional, e não havia mais interesse sobre nossa arquitetura.” 66 Neste mesmo período, em São Paulo, a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP) lutava pela implantação do projecto de reforma do ensino universitário, cujas directrizes advinham da Reforma de 6267, uma iniciativa no sentido de superar a tradição politécnica,68 estabelecendo uma série crescente de disciplinas de ordem cultural e artística, bem como uma série decrescente de disciplinas técnicas, integradas em departamentos de forma a objectivar e integrar o curso.69 O que se propunha era a reformulação do ensino como forma de garantir a autonomia da arquitectura e uma formação compatível com o processo de modernização da sociedade brasileira, assim como a construção de um novo edifício para a FAU, já em estudo. Em 1967, após boicote da direcção no exame Vestibular70 e greve dos alunos, o então director é afastado, passando a FAU-USP por um período de gestão mais democrática. A aula inaugural deste mesmo ano, realizada a 1 de Março e intitulada ‘O Desenho’ 71, foi proferida pelo arquitecto João Batista Vilanova Artigas (1915-85)72, então professor do 5º e último 66 BASTOS, Maria Alice Junqueira, Pós-Brasília: Rumos da Arquitetura Brasileira, São Paulo: Editora Perspectiva: FAPESP, 2003, p.5. 67 A Reforma de 62 fazia parte de um Projecto de Ensino, resultado do trabalho de uma comissão formada pelos arquitectos João Batista Vilanova Artigas (1915-85), Rino Levi (1901-1965), Hélio Duarte e Abelardo de Sousa (1901-1965), iniciada em 1957 e encarregada de reformular o ensino na FAU-USP. PONTES, Ana Paula, BARBARA, Fernanda, et al. (ed.), “Fórum, o percurso do ensino na FAU”, Caramelo, nº 6, São Paulo: GFAU, 1993, p.10. 68 Em São Paulo, o curso de Arquitectura originou-se a partir da Escola de Engenharia da Faculdade Politécnica (Poli) e da Faculdade de Filosofia e Letras da USP, com o objectivo de conciliar o conhecimento científico aplicado com o pensamento e as ciências humanas. Diferentemente do Rio de Janeiro, vinculado ao curso de Belas Artes. 69 PONTES, Ana Paula, BARBARA, Fernanda, et al. (ed.), “Fórum, o percurso do ensino na FAU”, Caramelo, nº 6, São Paulo: GFAU, 1993, p.10 e Revista Projeto Design, nº 228, Cinquentenário da FAU/USP, editor Fernando Serapião, São Paulo: Arco Editora, Jan./ Fev., 1999. 70 Processo de selecção de novos estudantes empregado pelas Universidades brasileiras. 71 O texto é uma transcrição da aula inaugural pronunciada na FAU-USP em 1967. ARTIGAS, João Batista Vilanova, “O Desenho”, [1967], in ARTIGAS, João Batista Vilanova, Caminhos da Arquitetura. Vilanova Artigas 1915-1985, organização José Tavares Lira e Rosa Artigas, São Paulo: Cosac Naify, 4ª ed., 2004, p.108-118. [1ª edição de autor, 1981]. 72 João Batista Vilanova Artigas, engenheiro-arquitecto (1937) pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli), professor na instituição de 1941-47 e um dos


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1968 | Fórum FAU-USP - São Paulo vista do átrio (Salão Caramelo)

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1968 | Casa Jurez Brandão Lopes - São Paulo Flávio Império e Rodrigo Lefèvre

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Casa Jurez Brandão Lopes - detalhe da escada

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Casa Jurez Brandão Lopes - fachada posterior

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ano. O discurso desenvolve as definições da palavra desenho, destacando o sentido de desígnio, de projecto, e como este perdeu significado no desenvolvimento económico-social brasileiro. Explicita-se também a questão fundamental de manter viva uma visão revolucionária sobre a cultura, sobre a noção do projecto como articulação prepositiva de conhecimentos. “O desenho é emancipação... é arma de expressão das pesquisas as mais profundas e de sínteses as mais complexas. Exato como os recursos da ciência… o projeto é demonstração de soberania.” 73 A eleição de um novo director, de postura mais liberal, permitiu a concretização das discussões sobre a reforma do ensino de arquitectura e a instauração de novo processo de Fórum74, realizado em 1968. O esforço em preservar a qualidade do ensino de arquitectura, tem por objectivo rever, aprimorar e, sobretudo, reafirmar as directrizes definidas na Reforma de 62. “Na verdade, a principal modificação de nossas definições do curso da FAU/USP em 1968, foi integrar o curso de forma a não precisar mais da concentração em torno do estúdio.” 75 O conceito de atelier, proposto na Reforma de 62, era declarado superado em 1968 pelo próprio Artigas, devendo tornar-se “interdepartamental”, qualificando uma visão multidisciplinar do arquitecto e mantendo sua visão humanística dos meios e modos de tratar o espaço físico. Apesar do esforço em restabelecer directrizes, o Fórum de 68 assinalava o período histórico de tensão política que o país vivia no fim da década de 60 e apontava o confronto de duas posições distintas dentro da escola: de um lado, Artigas, defensor do desenho como forma de emancipação e do projecto como demonstração de soberania, um moderador, a tentar evitar um derramamento inútil de sangue com o engajamento dos jovens na luta armada; do outro lado, Sérgio Ferro (1938), Flávio Império (1935-1985) e Rodrigo Lefèvre (1938-1984)76 argumentavam que a arquitectura 73 74

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fundadores da FAU-USP, em 1948, onde passou a leccionar. ARTIGAS, João Batista Vilanova, “Contribuição para o relatório sobre o ensino de arquitetura”, Caramelo, nº 6, São Paulo: GFAU, 1993, p.35 e 38. Reunião anual do corpo académico que objectivava de “fazer um balanço geral das actividades da faculdade, discutir e reformular o ideário do ensino e pesquisa de arquitectura, estabelecer a problemática básica que deve guiar as actividades da FAU no período escolar seguinte.” Ver: PONTES, Ana Paula, BARBARA, Fernanda, et al. (ed.), “Fórum, o percurso do ensino na FAU”, Caramelo, nº 6, São Paulo: GFAU, 1993. ARTIGAS, João Batista Vilanova, “Contribuição para o relatório sobre o ensino de arquitetura”, Caramelo, nº 6, São Paulo: GFAU, p.36. A arquitectura realizada por eles, denominada “Arquitetura Nova”, tem a intenção de


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GERAÇÃO 90: UMA LEITURA DO PERCURSO ACADÉMICO PORTO | SÃO PAULO

1961-69 | Faculdade de Arquitetura da Universidade de São Paulo - FAU-USP - São Paulo Vilanova Artigas

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FAU-USP - detalhe do pilar

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FAU-USP - átrio central ou Salão Caramelo

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FAU-USP - rampas de ligação aos pisos em meio-nível

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brasileira nada conseguira que provasse ou instituísse os seus propósitos democráticos e humanísticos, questionando a arquitectura e a prática profissional como meio de oposição ao regime militar. Introspecção arquitectónica Neste período de transição da década, a arquitectura brasileira abandona compulsoriamente o cenário internacional de debate e contestação do ‘estilo internacional’, de revisão da Arquitectura Moderna e consolidação de propostas disciplinares com a promulgação do Acto Institucional Número 5 (AI-5).77 Muitos nomes foram cassados78; entre eles o Reitor da USP (causando a revogação da reforma curricular da FAU), e os professores Vilanova Artigas, Paulo Mendes da Rocha (1928) e Jon Maitrejean (1929), dias antes da inauguração do novo edifício da Faculdade de Arquitectura.79 Inaugurado no início de 1969, o projecto de Vilanova Artigas e Carlos Cascaldi consolida uma visão crítica, desenvolvida sobre a configuração de um edifício para o ensino de Arquitectura e Urbanismo, destacando o factor da continuidade espacial e física presente em todo o edifício e alimentando a expectativa diante de uma nova oportunidade de apreensão espacial do ensino. Apesar da forte censura, com a construção do edifício e a ausência de Vilanova Artigas na inauguração, esse passa a ter uma influência efectiva e muito marcante na produção e formação dos alunos e arquitectos. “Pensei que este espaço fosse a expressão da democracia. Pensei que o homem na Faculdade de Arquitetura teria o viço e que nenhuma atividade aqui seria ilícita, que não teria de ser controlada por ninguém, e que os superar as resistências de ordem material, representadas pelo subdesenvolvimento, para efectivar uma proposta social e cultural autónoma. Uma arquitectura construtivista, muito ligada ao fazer, à construção e ao canteiro de obras. Ver: ARANTES, Pedro Fiori, Arquitetura Nova: Sérgio Ferro, Flávio Império e Rodrigo Lefèvre, de Artigas aos mutirões, São Paulo: Editora 34, 2ª ed., 2004. E também: KOURY, Ana Paula, Grupo Arquitetura Nova: Flávio Impéri, Rodrigo Lefèvre e Sérgio Ferro, São Paulo: Romano Guerra Editora: EDUSP: FAPESP, 2003. 77 Quinto de uma série de decretos emitidos pelo Regime Militar, este se caracterizou por um instrumento de poder que concedeu ao Regime poderes absolutos (foi fechado o Congresso Nacional, extintos os direitos políticos dos cidadãos, seguido de prisões, torturas e acção da censura contra a produção cultural), fortalecendo a chamada “linha dura” do regime instituído pelo Golpe Militar de 64. 78 Cassação é uma punição que proíbe o condenado ocupar um cargo público e de ser eleito a qualquer outra função por um determinado período de tempo. 79 PONTES, Ana Paula, BARBARA, Fernanda, et al. (ed.), “Fórum, o percurso do ensino na FAU”, Caramelo, nº 6, São Paulo: GFAU, 1993, p.13-15 e Revista Projeto Design, nº 228, Cinquentenário da FAU/USP, editor Fernando Serapião, São Paulo: Arco Editora, Jan./ Fev., 1999.


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1969-73 | Edifício Sede da Petrobras - EDISE - Rio de Janeiro - RJ Roberto Gandolfi e equipe - paisagismo de Roberto Burle Marx

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Edifício Sede da Petrobras - EDISE - vista da fachada

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espaços teriam uma dignidade de tal ordem que eu não podia pôr uma porta de entrada, porque para mim era um crime.” 80 No ano seguinte, 1970, outros professores também foram presos, entre eles, Sérgio Ferro e Rodrigo Lefèvre, acusados de militarem nos partidos que defendiam a reacção armada ao Regime Militar. Na mesma época, Flávio Império afastou-se da FAU. Este processo de desmoralização do corpo docente, somado ao aumento exponencial no número de alunos e a participação de parte destes na luta armada e na clandestinidade, põem fim aos projectos que procuravam rever e aprimorar o ensino na escola. A reforma universitária é condenada pelas directrizes do governo militar. “As antinomias da época – participação e alienação; opressão e liberdade –, mais do que constituírem apenas chavões, sinalizavam as polarizações do debate entre direita e esquerda e as suas perspectivas de transformação da sociedade.” 81 Paradoxalmente, entre os anos de 1969 e 1973, o Brasil vivia os anos do ‘Milagre Económico’, época de excepcional crescimento económico e urbanização acelerada, apesar das restrições à liberdade de expressão. “Era a moda (ou ditadura) das grandes estruturas de concreto, … do exibicionismo estrutural… Evidências técnicas e formais que simbolizavam uma visão de modernidade.” 82 Período dos grandes projectos (muitos sob influência descuidada de Mies), investimentos Estatais na área de planeamento urbano (trabalhos de grande escala, onde o desenho urbano e do edifício eram ausentes) e criação de grandes empresas de projectos e consultoria juntamente com os grandes ateliers de arquitectura (apoiados pelo alto nível técnico da construção civil), leva o mercado para arquitectos-urbanistas a assumir proporções gigantescas. Projectou e construiu-se muito em pouco tempo. “[O Brasil passava por uma] fase megalomaníaca da arquitetura nacional, …quando se construía para um novo Brasil, e especialmente para uma nova demanda, num país que estava se reurbanizando num ritmo vertiginoso.” 83 80 ARTIGAS, João Batista Vilanova, “A Função Social do Arquiteto”, [1984], in ARTIGAS, João Batista Vilanova, Caminhos da Arquitetura. Vilanova Artigas 1915-1985, organização José Tavares Lira e Rosa Artigas, São Paulo: Cosac Naify, 4ª ed., 2004, p.194. [1ª edição de autor, 1984]. Transcrição da explanação do arquitecto Vilanova Artigas apresentada no concurso para professor titular da disciplina de Projecto na FAU-USP, em Junho de 1984. 81 ARANTES, Pedro Fiori, Arquitetura Nova: Sérgio Ferro, Flávio Império e Rodrigo Lefèvre, de Artigas aos mutirões, São Paulo: Editora 34, 2ª ed., 2004, p.27. 82 SEGAWA, Hugo, Arquiteturas no Brasil 1900-1990, São Paulo: EDUSP, 2ª ed.,1999, p.191. 83 BASTOS, Maria Alice Junqueira, Pós-Brasília: Rumos da Arquitetura Brasileira, São Paulo: Editora Perspectiva: FAPESP, 2003, p.25.


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1973-76 | Rodoviária de Jaú - Jaú - SP Vilanova Artigas

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Rodoviária de Jaú - vista geral do interior

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Rodoviária de Jaú - vista dos acesos em rampa

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Rodoviária de Jaú - vista da fachada

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O facto contraditório de ser o mesmo Estado a fonte da censura e das maiores encomendas de projecto legitimava uma arquitectura acrítica e subjugada à repressão militar. “O signo da quantidade não autoriza uma equivalência de qualidade… O excesso de trabalho embaraçava a autocrítica.” 84 O descompasso entre a produção brasileira e o debate internacional, a tensão entre cultura universitária e mundo profissional, somados à crescente cultura de consumo, conduziu a uma simplificação de resultados, tanto construtivos quanto académicos. A arquitectura em betão aparente é absorvida pela produção corrente e institucionaliza-se ao longo dos anos 70, inclinando-se para um maior formalismo.85 “O isolamento auto-suficiente ante as discussões em curso no mundo. A arquitetura brasileira dialogava menos com o exterior. E dialogava menos internamente.” 86 Dentro da escola, o planeamento era a melhor alternativa para uma actuação engajada do arquitecto, sendo naturalmente fortalecida tanto pela exigência de um plano director para os municípios, como pela permanência e incorporação de novos docentes ligados à área, entre eles o arquitecto Joaquim Guedes (1932-2008). “Naqueles anos, paradoxalmente, o ato de desenhar (projetar) era visto por parte dos estudantes como atitude alienada, ingénua contribuição à sociedade capitalista, e o planejamento passava a ser visto como a melhor alternativa para uma atuação engajada do arquiteto.” 87 O processo de crise e desorientação no interior da escola agravase ao longo da década. A partir de 1973 o crescimento da economia brasileira diminui e em 1974 ocorre a primeira crise do petróleo, que provoca a aceleração da taxa de inflação e a queda da balança comercial brasileira, que apresentaria enormes défices causados principalmente pela importação de petróleo. O Brasil entra, assim, numa fortíssima recessão económica que duraria até a década de 1990. “A ilusão do ‘Brasil-grande’ desabou, trazendo a reboque um grave quadro institucional.” 88 84 SEGAWA, Hugo, Arquiteturas no Brasil 1900-1990, São Paulo: EDUSP, 2ª ed.,1999, p.191. 85 BASTOS, Maria Alice Junqueira, Pós-Brasília: Rumos da Arquitetura Brasileira, São Paulo: Editora Perspectiva: FAPESP, 2003, p.43. 86 SEGAWA, Hugo, Arquiteturas no Brasil 1900-1990 ..., p.191. 87 PONTES, Ana Paula, BARBARA, Fernanda, et al. (ed.), “Fórum, o percurso do ensino na FAU”, Caramelo, nº 6, São Paulo: GFAU, 1993, p.16. 88 SEGAWA, Hugo, Arquiteturas no Brasil 1900-1990…, p.191.


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1974-75 | Secretarias do Centro Administrativo da Bahia - Salvador - BA João Filgueiras Lima (Lelé)

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Centro Administrativo da Bahia detalhe da fachada

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Centro Administrativo da Bahia - croqui do sistema construtivo

1979-80 | Hospital do Aparelho Locomotor Sarah Kubitschek - Brasilia - DF João Filgueiras Lima (Lelé)

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Hospital Sarah Kubitschek - croqui do sistema de ventilação natural

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Hospital Sarah Kubitschek - vista da varanda hospitalar


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Somente em 1974 o debate sobre uma nova estrutura de ensino, ainda que inconsequente e desastroso, foi retomado, contando com a participação dos estudantes e com o retorno do arquitecto Rodrigo Lefèvre à FAU-USP. Em 1977, as aulas foram novamente paralisadas e Rodrigo Lefèvre organiza uma comissão de reestruturação e formula o ‘Relatório 1977’, um completo dossier sobre os problemas de ensino da escola que, por reivindicação dos alunos, deveria conduzir à organização de um novo Fórum.89 Sem o apoio da Congregação90, mas com ampla participação dos estudantes, o Fórum de 78 aprovou a proposta de reforma curricular apresentada pelo professor Edgar Gonçalves Dente. “A reformulação mantinha a mesma estrutura burocrática vigente… os principais objetivos eram a ‘coordenação horizontal entre as disciplinas’ e a ‘elaboração de planos de ensino conjuntos’, ou seja, …os departamentos deveriam programar suas disciplinas mas também coordená-las com as disciplinas das outras sequências oferecidas em um mesmo ano [e para isso] seria formado um núcleo em torno de problemáticas pré-definidas.” 91 Em 1979, a amnistia concedida pelo governo militar aos acusados de crimes políticos permitiu o retorno de vários exilados, inclusive os professores da FAU-USP. Entretanto, Vilanova Artigas, Paulo Mendes da Rocha e Jon Maitrejean reassumem a profissão de professores na humilhante condição de auxiliares de ensino, o mais baixo nível da carreira, dada a ausência de titulação.92 Também no âmbito do processo de organização curricular, a proposta de instituição do plano conjunto entre as disciplinas não se concretizou e estas não foram organizadas de modo centralizado. Desse modo, já no fim da década de 70, tornava-se claro que os principais aspectos da Reforma estavam a ser descaracterizados. 89 PONTES, Ana Paula, BARBARA, Fernanda, et al. (ed.), “Fórum, o percurso do ensino na FAU”, Caramelo, nº 6, São Paulo: GFAU, 1993, p.17. 90 Congregação, no âmbito da USP, é o órgão deliberativo máximo dentro de uma unidade (faculdade, instituto ou escola). Dentre suas funções estão: a aprovação e homologação de decisões de instâncias inferiores, a decisão sobre as regras gerais de funcionamento da unidade, a escolha de bancas de concursos para contratação de novos professores, a avaliação das actividades dos docentes e a deliberação sobre renovações contratuais; a deliberação sobre a aplicação de pena de desligamento a membros do corpo discente e a deliberação sobre a aplicação de pena de demissão a membros do corpo docente. 91 PONTES, Ana Paula, BARBARA, Fernanda, et al. (ed.), “Fórum, o percurso do ensino na FAU”, Caramelo, nº 6, São Paulo: GFAU, 1993, p.17. 92 Para conseguir ascender na carreira, os docentes mantidos afastados pelas cassações do Regime Militar, era obrigados a cursar as disciplinas de pós-graduação e defender os trabalhos frente as bancas. Sobre o tema ver: PONTES, Ana Paula, BARBARA, Fernanda, et al. (ed.), Idem, p.16.


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1975-82 | Centro Cultural São Paulo - São Paulo Eurico Prado Lopes e Luiz Benedito de Castro Telles

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Centro Cultural São Paulo - vista interior do cunjunto de rampas que ligam os diversos pisos

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Centro Cultural São Paulo - vista interior

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Desorientação e esgotamento No início da década de 80, dilata-se o debate internacional em torno da ‘crise do moderno’ e principalmente do pós-modernismo, já em voga principalmente a partir de sua validação na Bienal de Veneza - como referido anteriormente - mas que, apresentado como atitude de resistência ao moderno, não oferecia alternativa concreta nem densidade conceptual para se afirmar como movimento cultural autêntico. “É preciso verificar [que] estes debates, por si só, não alimentaram as mudanças e não explicam as transformações constatadas na arquitetura brasileira na década de 1980.” 93 Neste período o Brasil, ainda sobre forte tensão e repressão do regime militar, soma desorientações causadas pela passagem do período do Milagre Económico para uma década de grande recessão económica e crescimento vertiginoso da inflação, agravados novamente pela crise do petróleo. “Caía definitivamente a utopia… por um mundo melhor e, por conseguinte, o suposto poder reformador e redentor da sociedade mediante o desenho, o projeto, tese e estandarte do grupo de Vilanova Artigas… substituídas por ‘contextualismos’ e ‘citações’, sob o manto da ‘diversidade’.” 94 Na arquitectura, a situação reflecte-se com o desprendimento às questões internacionais e o consequente declínio – e quase esgotamento - do prestígio internacional da arquitectura brasileira, assim como a sua restrição na discussão e resolução dos problemas internos. “O que embalava as correntes revisionistas no Brasil era a idéia de um pluralismo possível, uma defesa contra as amarras que, julgava-se, haviam sido estipuladas pelo movimento moderno brasileiro, sobretudo em sua versão mais dogmática, a paulista.” 95 Devido ao ambiente extremamente conservador da FAU-USP, as discussões renovadoras que ocorreram na época quanto a prática e teoria da arquitectura passam-lhe completamente ao lado. “A discussão se encerrava num debate moderno versus pós-moderno, sem entrar no mérito da arquitetura moderna brasileira.” 96 93 SEGAWA, Hugo, Arquiteturas no Brasil 1900-1990, São Paulo: EDUSP, 2ª ed.,1999, p.191. 94 SEGAWA, Hugo, Idem, p.198. 95 SPADONI, Francisco, “Dependência e resistência: transição na arquitetura brasileira nos anos de 1970 e 1980”, Portal Vitruvius, Arquitextos, nº 102, Novembro 2008. [versão electrónica]. 96 BASTOS, Maria Alice Junqueira, Pós-Brasília: Rumos da Arquitetura Brasileira, São Paulo: Editora Perspectiva: FAPESP, 2003, p.54.


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1975-90 | Edifícios na Av. Berrini - SP Carlos Bratke

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Berrini - Edifício Brasilinterpart detalha da fachada

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1975-90 | Edifícios na Av. Berrini - SP Carlos Bratke

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Berrini - Edifício Oswaldo Bratke detalha da fachada

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1975-90 | Edifícios na Av. Berrini - SP Carlos Bratke

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Berrini - Edifício Ferraz de Camargo detalha da fachada

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O desprestígio no interior da própria escola para com seus arquitectos mais representativos, como Vilanova Artigas e Paulo Mendes da Rocha torna-se evidente, apesar das suas propostas arquitectónicas continuarem como referência, inclusive para a produção corrente de arquitectura. “A atual contestação à arquitetura moderna brasileira atinge seus mitos, não seus princípios.” 97 A situação não poderia ser mais pessimista e a dificuldade estava em reagir, ou resistir, à desarticulação académica e profissional. Neste contexto, as novas formas de expressão da produção arquitectónica brasileira e o debate social acerca da cultura pós-moderna só se estabeleceram já em meados da década de 80, com as publicações e exposições sobre o tema. Assim, a revista Projeto, editada nos anos 80 concomitantemente com as revistas Módulo (Rio de Janeiro) e Pampulha (Minas Gerais), e posteriormente pela revista AU (São Paulo), procurava dilatar os horizontes do debate em todo o país. “A consolidação de uma revista de arquitetura independente (desvinculada de entidades profissionais ou universidades)… caracterizou o renascer da discussão arquitetónica em seus termos mais específicos.” 98 Em 1983, a exposição ‘Arquietura Brasileira Atual’ organizada por Vicente Wissenbach, editor da revista Projeto, a convite do Centro de Arte y Comunicación de Buenos Aires (CAYC), dirigido pelo crítico argentino Jorge Glusberg, e exibida na Argentina e em São Paulo. A exposição continha uma grande diversidade de trabalhos, organizados num panorama de duas décadas e com o único objectivo de exibir toda a arquitectura produzida no país.99 Gerando grande discussão, a exposição assinalou o ponto de partida para uma nova articulação do debate arquitectónico.100 “Foram os primeiros passos por uma nova crítica de arquitetura no Brasil.” 101

97 SEGAWA, Hugo, Arquiteturas no Brasil 1900-1990, São Paulo: EDUSP, 2ª ed.,1999, p.191. 98 SEGAWA, Hugo, Idem, p.193. 99 SEGAWA, Hugo, Idem, p.194. 100 Revista Projeto, nº 53, Panorama da Arquitetura Brasileira Atual, editor Vicente Wissenbach, São Paulo: Arco Editora, 1983. Ver também as secções “Carta do Leitor” e “Exposições”, assinada por Ruth Verde Zein, edições seguintes da revista, nº 56, 57 e 58. 101 SEGAWA, Hugo. Idem, p.194.


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1984 | Concurso para professor titular de Projecto - FAU-USP Vilanova Artigas - Arguição de Flávio Motta e sua célebre frase ao fundo

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1977-86 | SESC - Fábrica da Pompéia - São Paulo Lina Bo Bardi - vista da rua central de acesso aos pavilhões de actividades culturais

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SESC - Pompéia - vista do mezanino (sala de leitura) para o interior de um dos pavilhões culturais

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Dentro da FAU-USP, e ainda sob um regime contraditório e um programa disciplinar caótico, restava apenas a incompreensão quanto às práticas da escola. Em Junho de 1984, poucos meses antes de se reformar, e ainda mantido na depreciativa condição de auxiliar de ensino após seu retorno à FAU-USP, o arquitecto Vilanova Artigas participa de um concurso para professor titular da disciplina de Projecto, onde defendeu ‘A Função Social do Arquitecto’.102 Na sua apresentação, o arquitecto chama a atenção para a finalidade da arquitectura, enquanto actividade artística, de representar as necessidades sociais de forma activa no próprio campo da sociedade e segue o seu discurso sob o campo específico da arquitectura moderna desenvolvida no Brasil e a vocação, neste período e como arquitectos, em assumir esta responsabilidade social sobre a casa e a cidade.103 Em Janeiro de 1985, sete meses depois do controverso concurso e de ter sido finalmente condecorado com o título de professor, Artigas falece. Ainda em 1984 ocorreram diversas manifestações populares integradas ao movimento ‘Diretas já’104 que contaram com o apoio de diversos políticos, actores, cantores, religiosos e milhares de cidadãos brasileiros. Para grande decepção, a Emenda não foi aprovada pela Câmara dos Deputados. A mobilização popular, no entanto, força uma transição para a democracia, negociada entre a sociedade e o regime militar e, em 15 de Janeiro de 1985, o Colégio Eleitoral elege, por voto indirecto, o deputado Tancredo Neves como novo presidente da República.105 Era o fim do Regime Militar.

102 Transcrição da explanação do arquitecto Vilanova Artigas apresentada no concurso para professor titular da disciplina de Projecto na FAU-USP, em Junho de 1984. Outro requisito burocrático à sua titulação era a publicação de um livro, composto de discursos, artigos e testemunhos, organizada por seus filhos e amigos e financiada pelo próprio autor em 1981. ARTIGAS, João Batista Vilanova, “A Função Social do Arquiteto”, [1984], in ARTIGAS, João Batista Vilanova, Caminhos da Arquitetura. Vilanova Artigas 1915-1985, organização José Tavares Lira e Rosa Artigas, São Paulo: Cosac Naify, 4ª ed., 2004, p.187-195. [1ª edição de autor, 1984]. 103 É interessante ressaltar a publicação no mesmo ano (1985), de uma segunda edição da dissertação do arquitecto português Octávio Lixa Filgueiras (1920-1996), elaborada em 1962, também para concurso de habilitação para obtenção do título de professor agregado na ESBAP. A temática desenvolvida foi, igualmente, acerca da função social do arquitecto. Ver: FILGUEIRAS, Octávio Lixa, Da função social do arquitecto, Porto: ESBAP, 2ª ed., 1985. [1ª edição de autor, 1962]. 104 Movimento político democrático favorável à aprovação da “Emenda Dante de Oliveira”, que garantiria eleições directas para presidente e o consequente fim da Ditadura Militar no Brasil. 105 Porém, em função de uma doença, Tancredo falece antes de assumir o cargo, sendo o vice, José Sarney, o primeiro presidente civil após o regime de Ditadura Militar (19641985). As eleições directas para presidente do Brasil só ocorreriam em 1989, após ser estabelecida na Constituição de 1988, que restabeleceu princípios democráticos no país.


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SESC - Pompéia - pavilhão de restauração

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SESC - Pompéia - foyer do anfiteatro

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SESC - Pompéia - vista dos edifícios de actividades desportivas

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SESC - Pompéia - passarelas de acesso entre os blocos

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SESC - Pompéia - piscina

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SESC - Pompéia - quadras desportivas e aberturas irregulares

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PARTE 1 | IDEOLOGIA

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Com o fim da ditadura e já em Novembro de 1986, reuniram-se novamente na FAU-USP professores de todos os departamentos e representantes dos alunos com o objectivo de discutir novamente a reformulação curricular e departamentalização. O consenso mantido até então sofre divergências quando se amplia a discussão e o debate estende-se até fins de Fevereiro de 1987, e a clara disputa de carga horária entre os grupos de disciplinas, acaba por esgotar a discussão. Mais uma vez, estas propostas, como muitas de suas antecessoras, acabaram por não ser desenvolvidas na sua totalidade.



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Considerações:

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Acerca de uma ideologia O processo reformista de ensino desencadeado tanto em Portugal como no Brasil, no ano de 1957, teve em fins da década de 1960, finalidades e consequências muito distintas para ambos os contextos arquitectónicos. De um lado, uma escola de Belas Artes do Porto forçada a conferir à Técnica um maior valor dentro de sua estrutura de tradição artística forte e consolidada. De outro, um curso de arquitectura originado dentro da escola de Engenharia Politécnica de São Paulo a tentar assegurar a Arte como forma de distinção. Os propósitos eram os mesmos: a urgência pela autonomia da arquitectura. A liberdade de uma disciplina intimamente ligada ao tempo presente, mas subordinada a uma estrutura academista. Neste contexto, o forte vínculo com o desenho e, sobretudo, o seu significado maior de desígnio, desejo e intenção, possibilitou o esforço no desenvolvimento de um ideal social e cultural frente ao ensino e prática de arquitectura. Entretanto este modelo opunha-se aos regimes políticos totalitários aos quais se encontravam submetidos os dois países. No Porto a luta académica iguala-se à luta política. Qualquer actividade passa a ser condição ou pretexto para a oposição ao governo vigente e a ‘recusa do desenho’ é, para a escola, o reflexo maior desta repressão. Já em São Paulo, apesar de grande iniciativa para a luta directa com o governo, a colectividade mais influente opta pela recusa ao combate. A repressão aumenta. A escola pára. A encomenda aumenta, mas entre quantidade e qualidade há um grande hiato. Com a viragem da década de 80, a distância entre teoria e prática dilata-se. A consolidação de uma sociedade de consumo impõe a cultura do ‘novo’, agora adjectivado e sem propriedade, e uma sensibilidade mais anti-modernista que verdadeiramente pós-moderna. Ao ‘novo’ movimento cultural, promotor da diversidade, mas privado de densidade conceptual arquitectónica, ambas as escolas respondem de forma defensiva. Se no Porto se evidencia a presença do moderno de forma diluída e não completamente assimilada, em São Paulo admitese a queda do ‘mito’, mas não a invalidação dos seus princípios. Cá e lá defende-se a condição do moderno ainda como projecto inacabado e carente de revisão. A esta posição somam-se as variadas exposições e publicações que se organizaram em meados dos anos 80. Sintomas de uma época, motivo de discussão e possibilidade de revisão crítica sobre uma produção arquitectónica encoberta por factores externos à disciplina.



PARTE 1 | IDEOLOGIA

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Quanto ao entendimento das escolas Paulista e do Porto enquanto organização conceptual estabelecida como ‘tendência’, esta nunca esteve ou se pretendeu explicitamente definida. Em nenhum dos casos se enunciou a intenção de uma teoria ou de um projecto que incorporasse as diferenças formais de modo manifestamente unitário. Existiu, antes, a hegemonia de obras individuais, do qual é exemplo os próprios edifícios das escolas. No fim de 1960 com a FAU/USP e a materialização de um projecto académico para a arquitectura, além da síntese de todo um repertório formal de Vilanova Artigas. Já na FAUP, em 1990, assiste-se à concretização formal da influência a Álvaro Siza na escola e afirmação de um reconhecimento público e internacional. Sob uma visão mundial, enquanto em São Paulo se observou o declínio do crédito sobre sua produção arquitectónica, no Porto a produção estabelece-se e ganha força. O legado de conceitos e princípios sustentados por ambas, cada uma com sua especificidade, formaram uma cultura de ensino e de projecto peculiares que, apesar das circunstâncias, ainda se mantinham prepositivas e abertas a uma série de questões próprias e pertinentes ao futuro da disciplina arquitectónica.


PARTE 2 | DIVERSIDADE


PARTE 2 | DIVERSIDADE

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Nesta segunda parte, distingue-se a investigação sobre meados da década de 1980 e início de 1990, período de actividade académica de uma nova geração de arquitectos. Mostra-se relevante o retorno às questões disciplinares da arquitectura no interior das escolas e a explícita participação estudantil em renovadas e cada vez mais conscientes iniciativas, com destaque para as publicações e participação em concursos académicos, assim como o grande número de concursos, desde meados da década de 1980, que contribuiu para a distinção de uma geração de arquitectos que então saía das universidades e o enriquecimento do debate crítico sobre a produção arquitectónica da época. Paralelamente, são apontados iconograficamente projectos relevantes na década de 1990, nomeadamente a produção dos ‘mestres’, referências constantes para as escolas e os alunos. Dessa forma se esboça, na sequência do período mais ideológico anterior, a pluralidade do meio em que esta nova geração se insere e os factores determinantes para o seu desenvolvimento académico e, posteriormente, profissional.


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1988-93 | Centro Galego de Arte Contemporânea - Santiago de Compostela - Espanha Álvaro Siza

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Centro Galego de Arte Contemporânea - vista da entrada

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Centro Galego de Arte Contemporânea - vista posterior

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PORTO

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Confronto das práticas tradicionais: a Unidade Em1 meados de 1980 a FAUP enfrentava dificuldades em resolver os problemas internos de desestruturação académica e de assegurar a correcta compreensão da singularidade do elevado e privilegiado destaque internacional atingido pela escola do Porto. Por um lado, a escola admitese como um espaço de questionamento e construção de um saber crítico, mantendo por outro, a sua postura conservadora e tradicionalista.2 Das problemáticas desta dicotomia aperceberam-se os estudantes de uma nova geração, que ingressou na escola em meados de 1980. Inseridos paradoxalmente num período mais livre, dada a possibilidade de discussão permitida pelo processo de democratização, e mais difícil, devido às dificuldades de mobilização estudantil3, o processo de reestruturação universitária e o ambiente formador de forte conservadorismo e avesso a mudanças confunde-se muitas vezes com um conformismo indevido e indesejado. Nesse momento, a mobilização estudantil, mesmo que ávida e impaciente, passa a ser fundamental. O apoio e iniciativa na publicação de periódicos, planeados e concebidos pelos próprios estudantes, e a sua participação em concursos e mostras, além de promover a crítica e o debate sobre a produção arquitectónica e académica, revelam a riqueza e capacidade inventiva, inovadora e responsável de um Movimento Associativo em meio ao contexto conturbado. Assim, a Associação de Estudantes da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto (AEFAUP), é criada no ano lectivo de 1987/88. Os slogans ‘Não há romance nesta escola?’ e ‘Somos quase livres’ denunciam os conflitos académicos da época, que também se dilatam a pequenas provocações, ‘A arquitectura morde’ e ‘A arquitectura comove-me’4, antecedendo ao auto denominado departamento ‘Desilusão!’ e a criação

‘Não há romance nesta escola?’ graffiti pintado no muro da Quinta da Póvoa | 1988

da revista Unidade. 1 ← Todas as imagens que acompanham o desenvolvimento do texto são uma referência da produção nacional e/ou internacional mais relevante para cada período mencionado. Foi utilizado como referência na selecção das obras: GOMES, Paulo Varela, “Arquitectura, os últimos vinte e cinco anos”, in Arquitectura Portuguesa do século XX: História da Arte Portuguesa, direcção Paulo Pereira, Vol. III, Do Barroco à Contemporaneidade, Lisboa: Círculo de Leitores, 1995. 2 FIGUEIRA, Jorge, “Lembrar e Esquecer: a Unidade (1988-1992)”. NU, nº 18, direcção Bruno Gil, Coimbra: FCTUC, Março 2004, p.50. 3 GOMES, Paulo Varela, “Arquitectura, os últimos vinte e cinco anos” ..., 1995, p.580. 4 “Não há romance nesta escola?”: graffiti que aparece pintado no muro cor-de-rosa-velho da antiga Quinta da Póvoa, onde se localiza o Pavilhão Carlos Ramos e as novas instalações da FAUP. “Somos quase livres”: slogan da campanha para a eleição da primeira Associação de Estudantes. “A arquitectura morde” e “A arquitectura comove-me”: palavras de ordem inscritas em T-shirts. Ver: “Conversa com Jorge Figueira” (24-03-2010), in Anexo, p.200-204.


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1988-85 | Biblioteca Universitária - Aveiro Álvaro Siza - fachada poente

Biblioteca Universitária - fachada posterior

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Biblioteca Universitária - fachada nascente e entrada

Biblioteca Universitária - vista do interior

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“O mundo é esta revista. Unidade. Não que se acredite no que é possível mas precisamente no contrário. Esta revista é o nosso mundo de pernas para o ar. Desconfortável é ser cinzento todas as manhãs, cumprir o cigarro, gesticular desânimo. O espaço manobra-se e ser indiferente é uma forma de terrorismo.” 5 A Unidade nº1 foi publicada em Julho de 1988, sob a direcção de Jorge Figueira, então estudante do 3º ano da FAUP, com a colaboração de Nuno Lourenço, Nuno Grande, Paulo Seco, Luís Tavares Pereira, entre outros estudantes de arquitectura. A linguagem descontraída e espontânea da revista, diferentemente do traço sucinto de rigor branco, cenário gráfico próprio da ‘Escola do Porto’6 e de iniciativas anteriores7, estava muito marcada por um sentido capa revista Unidade 1 | 1988

de descoberta, de reinvenção do próprio espaço estudantil dentro da Universidade. Esse posicionamento, por vezes agressivo ou imprudente, abre caminhos para uma diversidade de conteúdos que possibilita o confronto das práticas tradicionais da escola com as novas realidades contemporâneas emergentes, dilatando os assuntos abordados e não restringindo as discussões às limitações do projecto académico.8 Também a multiplicidade de conteúdos da revista é perceptível nas aproximações feitas pelos seus autores nas áreas da poesia (com João Miguel Fernandes Jorge), pintura (com Duchamp), música (de David Byrne e John Cage) e cinema (com Wim Wenders). “A Escola. Um espaço de descontentamento, sim, às vezes, porque isso é essencial, mas não de rancor nem de indiferença. O tom simultaneamente místico e realista, nostálgico e radical… parece quebrar-se, diluir-se no morno discurso reinante. A Escola vive então entre este tempo, etéreo, distante, total e outro bem mais ‘palpável’, bem mais presente e pelos vistos fatalmente rotineiro, pacato, sem sabor. Esta espécie de esquizofrenia, permitindo dissabores, vai admitindo contudo algumas formas de esperança…” 9 As questões arquitectónicas próprias da escola são apresentadas no catálogo da exposição ‘A escola de um porto – 27 trabalhos ancorados’, 5 Unidade, nº 1, direcção Jorge Figueira, Porto: AEFAUP, Julho, 1988, p.2. 6 FIGUEIRA, Jorge, “Lembrar e Esquecer: a Unidade (1988-1992)”. NU, nº 18, direcção Bruno Gil, Coimbra: FCTUC, Março 2004, p.52. 7 Como o catálogo Páginas Brancas, também editado por alunos da FAUP. Ver: Páginas Brancas, Porto: FAUP, 1986. 8 FIGUEIRA, Jorge, “Lembrar e Esquecer: a Unidade (1988-1992)” ..., p.52. 9 FIGUEIRA, Jorge, Unidade, nº 1, direcção Jorge Figueira, Porto: AEFAUP, Julho, 1988, p. 3.


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1988-09 | Reconstrução do Chiado Álvaro Siza

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Reconstrução do Chiado - Lisboa vista do Elevador Santa Justa

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Reconstrução do Chiado - vista do pesseio

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Reconstrução do Chiado - vista do passeio

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realizada com projectos do 1º ao 5º ano da FAUP10 e na entrevista a Alexandre Alves Costa11, então presidente do Conselho Directivo da FAUP. Já uma outra vertente arquitectónica, menos ligada a escola, é abordada em entrevista a Manuel Graça Dias, na altura professor na Universidade Técnica de Lisboa. Neste primeiro número, já se elencavam os principais factores de crise da escola do Porto: o seu conservadorismo e posicionamento avesso a mudanças; o hipercriticismo e os obstáculos nas relações entre professores e alunos; a valorização de um modelo formal apreendido através da imagem mediática de seus arquitectos de referência (Álvaro Siza e, posteriormente, Eduardo Souto de Moura)12 mas que, na realidade, não passa de uma interpretação errónea da referência metodológica de ensino da escola; a ineficaz influência desta arquitectura de tendência na transformação efectiva da paisagem da cidade; a consequente tipificação dos trabalhos dos alunos e, finalmente, o descontentamento estudantil. “O problema é que não pode haver qualquer ilusão de recuperação do passado, teremos de encontrar novas formas de qualificação da intervenção do homem na sociedade contemporânea.” 13 Assim os alunos defrontam a Escola, ainda no esforço pelo debate e na urgência pela discussão, questionando-a e provocando-a. No fim de 1988, dez estudantes14 do 4º e 5º ano, elaboram um texto amplamente divulgado entre alunos e professores identificando as carências do momento, ‘Ousar, experimentar’: “Dezembro de 1988 e a escola parece viver afundada num conceito de prática (praxis) e de bom senso… A “situação” escola-atelier é no nosso entender… insuficiente como forma de ensino… A escola e o percurso estudantil não são então entendidos como espaços de desbloqueamento mental e de consolidação do criativo, mas sim como aproximações a um real meramente físico que… dificulta uma efectiva consciência da realidade… 10 FIGUEIRA, Jorge, “A escola de um porto – 27 trabalhos ancorados”, Unidade, nº 1, direcção Jorge Figueira, Porto: AEFAUP, Julho, 1988, p.28. 11 COSTA, Alexandre Alves, “Plenitude”, Idem, p.22-25. Na época formavam o corpo teórico da Escola os arquitectos: Alexandre Alves Costa, Fernando Távora, Alcino Soutinho, Alfredo Matos Ferreira, Jorge Gigante, Manuel Fernandes de Sá, Manuel Correia Fernandes, Anni Gunther, Domingos Tavares, José Quintão, Pedro Ramalho, Manuel Mendes, Álvaro Siza, Eduardo Souto de Moura, e mais alguns poucos. Ver: FERNANDES, Eduardo, “FAUP 1985-2008: um retrato social”, Unidade, nº 7, direcção José Martins e Pedro Barata Castro, Porto: AEFAUP, 2008, p.10. e COSTA, Alexandre Alves, “Melancolia”, Páginas Brancas 2008, coordenação Diana Sousa, Porto: AEFAUP, 2008, p.9. 12 FERNANDES, Eduardo, “FAUP 1985-2008: um retrato social”, Idem, p.11. 13 COSTA, Alexandre Alves, “Plenitude”, Unidade, nº 1 ..., p.24. 14 Eugénio Macedo, Jorge Estriga, Jorge Figueira, Luís Tavares Pereira, Nuno Grande, Nuno Lourenço, Paulo Seco, Pedro Cortesão, Pedro Mendes e Silvia Namorado.


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1989-97 | Pousada Santa Maria do Bouro Eduardo Souto de Moura

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Sta. Maria do Bouro - vista de um dos corredores sobre o pátio

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Sta. Maria do Bouro - vista do corredor dos quartos

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Sta. Maria do Bouro - pátio do antigo claustro

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Sta. Maria do Bouro - vista posterior

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Vivemos numa época de grande experimentação e experimentalismo, de acesso, debate e especulação sobre temas tão diversos… O quotidiano escolar é… consideravelmente indiferente a estas tentativas de avanço… Neste momento necessário é ousar, experimentar na intenção de lhe qualificar o sentido… A não ser que se prefira escamotear o questionamento atento, rigoroso e descomprometido da realidade.” 15 Mais do que denunciar os problemas de forma clara e explícita, a importância deste ‘manifesto’ estava em despertar a crítica interna, desafiando a escola a reflectir sobre si própria e apontando para a consciência sobre os problemas e uma inércia em relação as atitudes, o que ressalta ainda mais a coesão e conservadorismo do corpo docente.16 Quase um ano mais tarde, já em Novembro de 1989, a vsegunda edição da revista apresenta novamente as questões arquitectónicas através da exposição de um concurso, ‘Sítio - Um jogo familiar’, e de um encontro, ‘Última unidade’, entre Alexandre Alves Costa, Álvaro Siza e os redactores da Unidade nº2. A conversa, baseada nos projectos apresentados no concurso, abordou essencialmente a urgência de revisão do próprio debate disciplinar. A capa revista Unidade 2 | 1989

crítica objectiva óbvia, como quem acompanha um projecto num atelier, já estava ultrapassada, e o propósito de se apresentar um exercício de projecto de carácter meramente formal, de imagem e imaginação, tornase mais um manifesto.17 “Parece-me que é no âmbito da área de projecto que essas questões devem ser discutidas, não no sentido de forçar o desequilíbrio mas no sentido de forçar o equilíbrio.” 18 Assim, o exercício proposto pela revista, mais do que explicitar esta dubiedade, questiona não apenas os paradigmas de ensino, mas antes a própria atitude projectual, destacando sua permanente transformação, assim como o próprio contexto português. “A escola do Porto ganhou a guerra… A grande questão está em como se pega naquilo individualmente e depois se elabora.” 19

15 MACEDO, Eugénio, FIGUEIRA, Jorge, et al., “Ousar, experimentar”, Unidade, nº 2, direcção Jorge Figueira, Porto: AEFAUP, Novembro, 1989, p.58. 16 FERNANDES, Eduardo, “FAUP 1985-2008: um retrato social”, Unidade, nº 7, direcção José Martins e Pedro Barata Castro, Porto: AEFAUP, 2008, p.12-13. 17 COSTA, Alexandre Alves, “Última unidade”, Unidade, nº 2, direcção Jorge Figueira, Porto: AEFAUP, Novembro, 1989, p.55. 18 COSTA, Alexandre Alves, Idem, p.56. 19 GOMES, Paulo Varela, “O susto”, Idem, p.87.


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1990-91 | Pavilhão de Portugal na Expo’92 - Sevilha - Espanha Manuel Graça Dias e Egas José Vieira

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Pavilhão de Portugal Expo’92 - planta piso 0 e planta de cobertura

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Pavilhão de Portugal Expo’92 - fachada posterior

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Por mais que a Unidade tenha conseguido fazer vibrar as bases apáticas da escola através de suas provocações, manifestos, da discussão acerca das diferentes polaridades (a tradição e o ‘novo’) e da acidez no debate dos problemas académicos, esta sempre foi uma produção da escola do Porto, com o frequente recurso aos profissionais e professores locais tanto nos projectos, quanto nas entrevistas e temas publicados. “Nunca houve uma atitude de pura rebeldia ou contestação desbragada. Sempre estive interessado em não desenvolver um ressentimento que é típico em muitos alunos, na sua relação com a escola, assim como não aderir acriticamente…” 20

Disponibilidade para a crítica interna Na sequência de acontecimentos que caracterizaram o fim dos anos 80, outro factor determinante para a geração formada até meados de 1990 foram os concursos de arquitectura lançados nesta época, tanto por se tratar de um período de definição de paradigmas com a retomada da democracia e a crescente necessidade de estabelecer uma crítica e uma postura interna nacional, como por essa modalidade de escolha de projecto ter sido entendida enquanto plataforma para a distinção de uma geração de arquitectos que então saía das universidades. Neste contexto, os concursos são pertinentes não apenas como produto de excepção, mas também como representativos de ideias, directrizes e conceitos presentes no período de sua promoção, possibilitando a materialização projectual de uma visão crítica, oportunidade contínua de troca, reflexão e evolução aprofundada e cuidada de ideias. Desse modo, em 1990 foi publicado o projecto para o Pavilhão de Portugal para a Exposição Universal de Sevilha, a realizar-se em 1992, projecto de Manuel Graça Dias e José Egas Vieira. A participação com um projecto em uma Exposição Universal é muito característica e diferenciada, primeiro por não se localizar no território nacional e principalmente representar uma afirmação e representação de uma identidade colectiva. folha de rosto da matéria sobre o Pavilhão de Portugal na revista JA, 83-84 | 1990

“Desenhámos espaços como quem deseja uma emoção. Está lá o programa, a coisa prática que empurrou os nossos gestos e também a luz que no-lo reenviou, essa luz que a exposta matéria conforma e nos mostra relações e comove… Todo o pavilhão cumpre, assim, o sentido de um desejo.” 21 20 FIGUEIRA, Jorge, “Unidade 4 / rA 0”, Unidade, nº 4, direcção Pedro Bandeira e Joaquim Moreno, Porto: FAUP, 1995, p.55. 21 DIAS, Manuel Graça, VIEIRA, Egas José, “Pavilhão de Portugal em Sevilha, Apresentação


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1990 | Sede da Federação Académica do Porto - FAP - Porto Eugénio Macedo e Óscar Marques Couto

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Sede da FAP - plantas piso 0, piso 1 e piso 2

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Sede da FAP - cobertura da entrada

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Sede FAP - pátio de entrada

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O Pavilhão Português reflecte a sua história através do seu percurso estabelecendo uma imagem de impacto, onde toda a sua informação enquanto nação está concentra no seu interior, mas cuja relação com as outras nações exigem aberturas e proximidades pontuais para, finalmente, estabelecer-se como nação aberta aos movimentos e ideias contemporâneas. “É a nossa ideia de exposição; de força, de eficácia; de mensagem apreendida, de circulação de ideias, de passagem de temas.” 22 Também no início de 1990, surge o concurso de projecto para a futura Sede da Federação Académica do Porto (FAP), destinado aos alunos do 5º ano da FAUP (ano lectivo de 89-90).23 Sua distinção está no facto de ser este um concurso interno, específico para estudantes da FAUP, mas com um cliente externo muito próximo geograficamente e intimamente capa do catálogo de projectos para a Sede da FAP | 1990

relacionado à afirmação e representação de uma identidade estudantil. “…um edifício de estudantes, para estudantes, por estudantes concebido.” 24 O objectivo era equilibrar terreno e programa de forma a permitir uma maior operatividade urbanística através de um corredor de comunicação que desse prioridade à cultura e à formação universitária. O projecto vencedor pertencia aos estudantes Eugénio Macedo e Óscar Marques Couto. Para além do conceito do projecto, a solução apresentada evidenciava a adequada equação entre o carácter simbólico do edifício e a relação bem proporcionada entre lugar, forma e função. No júri estava presente o Presidente do Conselho Directivo da FAUP, Alexandre Alves Costa, que salientou a valorização de uma solução de projecto que conferisse carácter à instituição a partir de uma ideia no sentido de ‘ordem’ determinante da solução, dos espaços e do carácter do projecto.25 Desta forma era enfatizada uma sensibilidade diversa dos critérios usuais do curso académico, esses sim, motivo de reflexão e propícia ao debate. “Do particular da circunstância funcional passou-se ao geral da ordem que precede o desenho, escolhendo-se aqueles que souberam, na concepção,

22 23 24 25

do Projecto”, JA - Jornal de Arquitectos, nº 83-84, direcção Francisco da Silva Dias, Lisboa: Ordem dos Arquitectos, Jan./Fev., 1990, p.20. DIAS, Manuel Graça, VIEIRA, Egas José, Idem, p.21. VASCONCELOS, Diogo, “Uma sede concebida por estudantes”, Concurso de arquitectura, Sede da Federação Académica do Porto, catálogo do concurso, Porto: FAP, 1991, p.3. Idem, Ibdem. COSTA, Alexandre Alves, “Razões para uma escolha”, Concurso de arquitectura, Sede da Federação Académica do Porto, catálogo do concurso, Porto: FAP, 1991, p.9.


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1990-96 | Igreja e Centro Paroquial - Marco de Canavezes Álvaro Siza - fachada da entrada da igreja

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Igreja de Marco de Canavezes - vista do altar

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Igreja de Marco de Canavezes - vista interior

Igreja de Marco de Canavezes - fachada lateral da Igreja e Centro paroquial ao fundo

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inverter este processo analítico… perderam os que limitaram a resolver o problema e não conseguiram conferir aos espaços a força e o carácter de uma instituição que, como todas, deseja ser reconhecida na sua natureza.” 26 Apesar do fervor e vontade prepositiva dos ‘quase arquitectos’, é do interior da Escola que parte o maior sentimento de perturbação. A urgência pela revisão crítica de um modus operandi é clara. E o facto de esta iniciativa revisionista partir directamente do corpo docente (e teórico) da Escola é sintomática e provocativa à uma geração menos politizada e menos envolvida com as questões próprias da disciplina, apesar de este posicionamento também se anunciar prepositivo ao indicar possíveis caminhos. A esta mudança de postura em relação à produção de uma época, está ligada a uma atitude crítica e revisionista muito clara. Neste momento, a produção arquitectónica pós-moderna, ao menos aquela mais esquemática e caricatural (dos irmãos Krier ou de um Charles Jencks) já era desmoralizada pela grande maioria dos arquitectos do Porto (assim como pelos de São Paulo, como veremos). Este menosprezo a uma ‘nova’ orientação estava, na verdade, muito mais ligado ao combate a reprodução burlesca da tradição moderna, que era encarada de forma muito séria dentro da escola. O inimigo real era a própria arquitectura contemporânea, com suas novas geometrias, sistemas informatizados e novas tecnologias. É portanto, no início da década de 90 e de forma ainda demasiado lenta mas progressiva, que os profissionais portugueses assumem uma postura mais clara e efectiva quanto a produção crítica e revisionista interna da arquitectura, passando a estabelecer princípios de discussão próprios, mais directamente relacionados com a própria circunstância e especificidade interna da arquitectura e de carácter diferenciado dos críticos estrangeiros (italianos, espanhóis) que mais descreviam a arquitectura portuguesa mais recente. Nesse sentido, de um conhecimento mais apurado da produção internacional e nacional, foi organizado, em 1990, por Carlos Machado, Eduardo Souto de Moura, João Pedro Serôdio, José Bernardo Távora, José Paulo dos Santos e Manuel Mendes, o ciclo de conferências ‘Discursos sobre Arquitectura’.27 26 COSTA, Alexandre Alves, “Razões para uma escolha”, Concurso de arquitectura, Sede da Federação Académica do Porto, catálogo do concurso, Porto: FAP, 1991, p.9. 27 Ver comentários de José Fernando Gonçalves em: “Conversa com José Fernando Gonçalves” (25-03-2010), in Anexo, p.190-195.


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1991-98 | Casa em Moledo - Moledo do Minho Eduardo Souto de Moura

Casa em Moledo - vista posterior

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Casa em Moledo - vista do corredor dos quartos

Casa em Moledo - implantação sobre uma das plataformas do terreno

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Foi reunido, ainda no auditório da Escola Superior das Belas Artes do Porto, um conjunto notável de arquitectos: James Stirling, Giorgio Grassi e Rafael Moneo como representantes de uma influente geração ‘pósmoderna’; Bernardo Secchi, teórico do urbanismo em Itália; Kenneth Frampton, que inscreveu a arquitectura de Álvaro Siza no contexto internacional dos anos 80. Também estavam presentes arquitectos mais jovens, como Jacques Herzog, Peter Zumthor e David Chipperfield, hoje centrais na cena contemporânea. A representar o contexto nacional, estavam Fernando Távora e Álvaro Siza. A proposta era ambiciosa e, de alguma maneira, assinalou uma alteração na rotina da faculdade, ampliando as perspectivas de estudantes, arquitectos e professores sobre a actividade de arquitectura no início da década.28 Já em 1991, é inaugurada no Porto a exposição ‘Arquitectura Portuguesa Contemporânea: anos 60/anos 80’, por iniciativa da Fundação de Serralves e organização dos arquitectos e professores Nuno Portas e Manuel Mendes.29 A iniciativa é prospectiva, apesar de evidentemente resistente. Ao reflectir acerca dos problemas antagónicos entre raiz cultural e capa do catálogo da exposição ‘Arquitectura Portuguesa Cont.: anos 60/anos 80’ | 1991

internacionalização, projecto e construção, ao mesmo tempo que sugere o estímulo à busca da autêntica correspondência entre o Homem e o seu lugar.30 Como sintetizam Nuno Portas e Manuel Mendes: “Construir no construído, sem nostálgica ou científica salvaguarda reutilizadora do existente; mas revelação inteligível dos gestos do ofício como exigência do equilíbrio, e libertação da identidade veiculada na e pela noção de modificação transmitida no procedimento do desenho da transformação parcial.” 31 Ainda em 1991 é inaugurada outra exposição, da Europália: ‘Points de Repère, architectures du Portugal’, na ‘Fondation pour l’Architecture’ em Bruxelas32, onde evitou-se uma mostra ‘representativa’ através da eleição de situações-tipo e arquitecturas que melhor representassem estas

capa do catálogo da exposição ‘Europália’ | 1991

28 Ver comentários em: “Conversa com Jorge Figueira” (24-03-2010), in Anexo, p.200-204; “Conversa com Nuno Brandão Costa” (24-03-2010), Idem, p.205-209 e “Conversa com Filipa Guerreiro” (27-04-2010), Idem, p.210-215. 29 MENDES, Manuel, PORTAS, Nuno (org.), Arquitectura Portuguesa Contemporânea, Anos sessenta/Anos oitenta, Porto: Fundação de Serralves, 1991. 30 MENDES, Manuel, PORTAS, Nuno, “Reflexão Final”, Idem, p.102. 31 MENDES, Manuel, PORTAS, Nuno, Idem, p.103. 32 Ver: GOMES, Paulo Varela, “Ponto de referência: A Exposição de Arquitectura Portuguesa na Europália”, JA - Jornal de Arquitectos, nº 103-104, Europália, direcção Francisco da Silva Dias, Lisboa: Ordem dos Arquitectos, Outubro, 1991, p. 26.


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1991-2007 | Torre Burgo - Porto Eduardo Souto de Moura

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Torre Burgo - vista das fachadas norte

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Torre Burgo - detalhe das fachadas poente e nascente

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Torre Burgo - detalhe da entrada

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situações, valorizando as questões de relação entre arquitectura e lugar e objectivando manter uma perspectiva aberta, de enraizamentos33 plurais e transitórios, lançando a arquitectura como prática de consolidação e mudança. Este posicionamento aberto e passível de contaminação de culturas diversas além de caracterizar uma posição incómoda, ressalta os principais problemas da actual prática arquitectónica portuguesa. “Partiu-se também do princípio que a questão de uma “arquitectura portuguesa” não é (nunca foi)… uma questão encerrada. A sua manutenção em aberto… é sintomática de um desconforto… da perca de raízes.” 34 Já no fim de 1991, numa iniciativa revisionista, o Jornal dos Arquitectos (JA) publica, um balanço crítico sobre o mesmo ano, salientando os aspectos mais relevantes do exercício de arquitectura e evidenciando a tentativa de reorganização da disciplina em 1960 e 1970, o desejo de liberdade criativa de 1980 e sua continuidade no início da década de 1990, a velocidade mediática da informação e sua consequente precariedade, a pluralidade estética e o regresso às preocupações disciplinares da capa da revista JA, 106 | 1991

arquitectura.35 Contudo, era notório o antagonismo das posturas individuais. O pessimismo e optimismo aparentemente contraditórios reflectiam, respectivamente, uma visão e reflexo de um tempo presente, condicionado por um período de transição de décadas, e uma subsequente previsão, um desejo de futuro arquitectónico frutuoso.36 Após a afirmação do pós-modernismo na década de 80, o seu desenvolvimento na década de 90 ganha novos contornos, o discurso é levado ao seu outro extremo, sendo alterado por uma postura mais caricatural, apropriando-se do uso corrente (e inadvertido) da expressão 33 Sobre o problema do “enraizamento” da prática arquitectónica Paulo Varela Gomes traça duas posições alternativas: a “arquitectura deve contribuir para consolidar paisagens e hábitos, ligando-se à tradição... [favorecendo] a pertença dos indivíduos a um lugar” ou a mudança, “o desenraizamento em relação a hábitos tradicionais, a mobilidade das culturas e dos gostos, as paisagens novas e uma nova ordem urbano-arquitectónica de contornos ainda mal definidos.” GOMES, Paulo Varela, JA - Jornal de Arquitectos, nº 103-104, Europália, direcção Francisco da Silva Dias, Lisboa: Ordem dos Arquitectos, Outubro, 1991, p. 27. 34 GOMES, Paulo Varela, “Ponto de referência: A Exposição de Arquitectura Portuguesa na Europália”, Idem, p. 28. 35 RODEIA, João Belo, “O Fim da Inocência”, JA - Jornal de Arquitectos, nº 106, “Arquitectura 1991 – Balanço Crítico”, direcção Francisco da Silva Dias, Lisboa: Ordem dos Arquitectos, 1991, p.14-17, ALMEIDA, Pedro Vieira, “1991: Balanço Crítico”, Idem, p.22 e GOMES, Paulo Varela, “1991: Tudo na mesma, as coisas continuam a mudar”, Idem, p.23. 36 As duas diferentes visões mencionadas dizem respeito as considerações feitas por Paulo Varela Gomes e João Belo Rodeia, respectivamente. GOMES, Paulo Varela, Idem, p.23 e RODEIA, João Belo, Idem, 1991, p.14-17.


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1991-99 | Museu Fundação Serralves Álvaro Siza

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Museu Fundação Serralves - Porto bilheteira

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Museu Fundação Serralves - vista do pátio de entrada

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Museu Fundação Serralves - vista fachada lateral sobre o jardim

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mais sintética e banal da ‘imagem’, que passa a suprimir a urgência dos media ocupando o lugar do objecto arquitectónico real. No entanto, é evidente que a questão da imagem, em maior ou menor grau, sempre existiu em arquitectura, permitindo assim o entendimento paralelo de que a imagem mediática nunca será tão importante quanto o objecto real, que segue o tempo mais perene da arquitectura, em oposição ao imediatismo mediático. No interior da escola a interferência dos media já era muito presente. O mito e a imagem arquitectónica de Álvaro Siza passa a ser reverenciada (antes de respeitada e compreendida) pelos alunos e a FAUP é considerada a instituição máxima do ensino de arquitectura. Já o desenho, este sim resistente, ferramenta de projecto, fundamento de ensino e suporte de concepção pedagógica, passa igualmente a ser perseguido como meio para atingir o modelo “Escola do Porto”. “De fora, lá fora, a escola é (deve ser) tão grande. … A escola do Porto é uma escola de mestres-celebridades-gurus e só depois, muito depois, de alunos.” 37 Em Janeiro de 1992 é publicado Páginas Brancas II, cinco anos após as primeiras. A amostra de projectos denota, por um lado, a tentativa de se consolidar um projecto pedagógico dentro da instituição, ligado directamente ao atelier e a teoria, ou consenso metodológico, ligado à prática, de forma a admitir as diferentes expressões individuais e a capa Páginas Brancas II | 1992

especificidade de cada caso, tema, lugar e circunstância.38 “Sem a angústia da contaminação e sem a perfeição arbitrária da contaminação pacificada39… isto é, o entendimento da temporalidade ou o reconhecimento da historicidade da actividade do arquitecto.” 40 Por outro, o Páginas Brancas continua a apresentar a mesma pacificidade de consensos, a concisa prática arquitectónica e, especialmente, a imagem de um conquistado prestígio. Contraditoriamente, o mito da ‘Escola do Porto’ é prolongado pelos próprios estudantes gerando estereótipos em seu entendimento e em sua exposição, quando apresentados graficamente em catálogo. 37 FIGUEIRA, Jorge, “Uma estranha curva (um texto para os estudantes)”, Unidade, nº 2, direcção Jorge Figueira, Porto: AEFAUP, Novembro, 1989, p.67. 38 COSTA, Alexandre Alves, “Mostrar o ensino de arquitectura no Porto. Outubro 1991”, Páginas Brancas II, Porto: AEFAUP, 1992, p.10-13. 39 Lema proposto em depoimento de Alexandre Alves Costa, para e escrito em parceria com o arquitecto Manuel Mendes. COSTA, Alexandre Alves, Idem, p.13. 40 Idem, ibid.


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1987-94 | Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto - FAUP - Porto Álvaro Siza

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FAUP - pátio entre os blocos de edifícios ‘piscina’

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FAUP - vista geral dos blocos de edifícios

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FAUP - vista interior da biblioteca

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Tentando fugir destes estereótipos, os editores da revista Unidade nº3 procuraram, em Junho do mesmo ano, clarificar sua diferenciada visão sobre a escola41, além de se voltarem muito mais para as questões urbanas, para a relação entre arquitectura e cidade. Neste sentido, o valor e o carácter da escola (e da ‘Escola’) são confrontados com a cidade na conversa com Nuno Portas, cujo foco da entrevista é a existência de uma linguagem arquitectónica muito marcada capa revista Unidade 3 | 1992

pelo lugar, de tendência para a singularidade (apesar de mimética em seus códigos formais) e que, portanto, não se consegue estabelecer como modelo para a arquitectura corrente e a habitual valorização da arquitectura como imagem iconográfica de promoção das cidades.42 Assim, a transformação da cidade como lugar da modernidade em uma coisa mais global, a Metrópole Contemporânea, onde a indistinção de limites subverte a relação centro-periferia e reforça a dicotomia entre enraizamento e aceleração urbana, também é discutida nos textos assinados por Paulo Varela Gomes43 e Nuno Grande44. A última entrevista marca o retorno à disciplina. ‘Coisa Mental’, com Fernando Távora, aponta a consciência do arquitecto sobre o tempo, sua visão prepositiva, a adesão consciente e crítica ao Moderno e, acima de tudo, sua consciência sobre a própria actividade da arquitectura.45 Dessa forma, neste terceiro e último número sob a direcção de Jorge Figueira46, a revista mostra-se muito mais académica, menos questionadora e contestativa, mais preocupada com a prática do que com a disciplina. Os questionamentos sobre a tradição, mais ou menos conservadora e ligada à história e a atitude mais inovadora e contemporânea, passam a ser assumidos de forma mais consciente e coerente. Afinal, apesar de evidenciar esta dicotomia, a revista também acabava por reflectir o ambiente intimista da FAUP.

41 FIGUEIRA, Jorge, “Submarinos e Subsídios/3 Números da Revista Unidade”, Unidade, nº 3, direcção Jorge Figueira, Porto: AEFAUP, 1992, p.3-5. 42 PORTAS, Nuno, “A Regra, a Modéstia, e cidades melhores”, Idem, p.14-21. 43 GOMES, Paulo Varela, “Um amigo que tenho em Brasília”, Idem, p.23-26. 44 GRANDE, Nuno, “Arquitectura versus Urbanística”, Idem, p.41-44. 45 TAVORA, Fernando, “Coisa Mental”, Idem, p.100-106. 46 A Unidade teve ainda mais três números em anos posteriores. Unidade nº 4 e nº 5, respectivamente nos anos de 1995 e 1997, pelas mãos de Pedro Bandeira e Joaquim Moreno e Unidade nº 6, em 1998, por André Tavares e uma equipa numerosa. Em 2008, dez anos depois de sua última edição, foi publicada a revista Unidade nº 7, sob direcção de João Pedro, José Martins, Pedro Barata Castro e Teresa Ferreira.


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1986-88 | Museu Brasileiro da Escultura - MuBE - São Paulo Paulo Mendes da Rocha

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MuBE - vista de um dos acessos ao piso de exposições

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MuBE - vista geral do edifício a partir da rua

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MuBE - detalhe da estrutura

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Assumpção das práticas tradicionais: a Caramelo No47Brasil, o processo de mudança de paradigmas e de crescimento económico-social rápido e desorientado opõe-se a lentidão do processo político de democratização. A assinatura da nova Constituição, concluída apenas em 1988, denota as inúmeras contradições geradas entre o poder centralizador do governo federal - mesmo estando os militares enfraquecidos - e a busca pela descentralização, além de prolongar as marcas deixadas pelo período ditatorial. Neste período, qualquer sentimento nacionalista por parte da intelectualidade brasileira era visto com maus olhos. Deste modo, no interior da FAU-USP o maior obstáculo ainda se concentrava na resolução dos problemas internos de desestruturação académica. A burocracia da Escola e sua postura conservadora e tradicionalista dificultava quaisquer participações de interesse colectivo. Entretanto, e um pouco como no Porto, são os estudantes de uma nova geração, que ingressa em meados de 1980 ávida por respostas, que logo entrevêem as oportunidades de discussão autorizadas pelo processo de democratização. “Daí a necessidade de se contrabalançar o poder burocrático pela autoridade intelectual duramente conquistada por longos anos de labor.” 48 Mais uma vez a mobilização estudantil revela-se fundamental e, em meio aos processos burocráticos, alguns alunos conseguem o apoio e iniciativa do Grêmio da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (GFAU) para a publicação de um periódico (planeado e concebido pelos próprios estudantes) e a organização de concursos e mostras promovendo, ainda que apenas internamente, a crítica e o debate sobre a produção arquitectónica e académica e procurando a correcta compreensão das peculiaridades do processo de enfraquecimento da própria escola paulista e da arquitectura brasileira.49

47 ← Todas as imagens que acompanham o desenvolvimento do texto são uma referência da produção nacional e/ou internacional mais relevante para cada período mencionado. Foi utilizado como referência na selecção das obras a publicação: BASTOS, Maria Alice Junqueira, Pós-Brasília: Rumos da Arquitetura Brasileira, São Paulo: Editora Perspectiva: FAPESP, 2003. 48 Citação do professor José Arthur Giannotti. PONTES, Ana Paula, BARBARA, Fernanda, et al. (ed.), “Fórum, o percurso do ensino na FAU”, Caramelo, nº 6, São Paulo: GFAU, 1993, p.21. 49 PONTES, Ana Paula, BARBARA, Fernanda, et al. (ed.), Idem.


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1987-90 | Residência Hélio Olga - São Paulo Marcos Acayaba, Mauro Halulli e Hélio Olga de Sousa Jr.

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Residência Hélio Olga - vista lateral da fachada estrutural

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Residência Hélio Olga - vista do interior

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Residência Hélio Olga - vista do interior

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Residência Hélio Olga - detalhe de uma das ligações estruturais

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“Nada é mais comovente que reatar um fio rompido, completar um projeto truncado, reaver uma identidade perdida, resistir ao terror e lhe sobreviver.” 50 A revista Caramelo é criada sob este contexto conturbado. Referência directa ao pátio interno do edifício da FAU-USP, projectado por Vilanova Artigas e conhecido por ‘Salão Caramelo’, fora idealizada como uma revista de ideias e debate, uma forma de união entre alunos, professores e funcionários, que contribuísse para a discussão do ensino, da arquitectura e das artes, restabelecendo um hábito perdido51, e procurava apontar a necessidade de se repensar um projecto cultural nacional, sem abdicar do incentivo à pesquisa e à produção académica.52 “O momento nos parece oportuno. Estamos todos conscientes do vazio cultural e da insatisfação em que vivemos.” 53 A Caramelo nº1 foi publicada em Dezembro de 1990, com uma equipa editorial formada por Ana Paula Pontes, André Stolarski, Catherine Otondo, Cristiane Muniz, Fábio Rago Valentim, Fernanda Barbara, Fernando Felippe Viégas, Fernando Nigro Rodrigues e Juliana Mendes Prata, todos estudantes do 2º ano de arquitectura. capa revista Caramelo 1 | 1990

A abertura de conteúdos da revista a outras áreas artísticas é visível nas aproximações ao cinema nacional (Tales Ab’Sáber), fotografia, banda desenhada (pratica corrente entre os estudantes) e a comunicação (Celso Ninomiya). No entanto o mesmo não se aplica aos textos, entrevistas e depoimentos apresentados. No momento em que as discussões se concentravam nas posturas defendidas por Venturi (Learning from Las Vegas), Rossi (Teatro del Mondo) e ainda Koolhass (Delirious New York), a Caramelo volta-se para uma vertente própria da FAU, republicando dois textos e uma resenha 50 Citação de então professor Roberto Schwartz. PONTES, Ana Paula, BARBARA, Fernanda, et al. (ed.), “Fórum, o percurso do ensino na FAU”, Caramelo, nº 6, São Paulo: GFAU, 1993, p.21. 51 Antes da revista Caramelo, já haviam sido publicadas, dentro da FAU-USP, outras duas revistas académicas, a Desenho (entre Maio de 1970 e Maio de 1972) e a Ou… (entre Agosto e Dezembro de 1970), ambas editadas por estudantes de arquitectura. Ver: PONTES, Ana Paula, BARBARA, Fernanda, et al. (ed.), “Publicações: as revistas Desenho e Ou…”, Caramelo, nº 6, São Paulo: GFAU, 1993, p.23. Posteriormente, em 1985, era lançada a revista Óculum, também idealizada por estudantes, desta vez da PUC-Campinas e que, já trazia entrevistas com os ‘pós-modernistas’ mineiros: Éolo Maia, Sylvio de Podestá e Jô Vasconcelos. Neste mesmo ano surge também a revista independente AU. 52 PONTES, Ana Paula, BARBARA, Fernanda, et al. (ed.), “Editorial”. Caramelo, nº 1, São Paulo: GFAU, 1990, p.1. Ver também: “Conversa com Fernanda Barbara” (10-01-2010), in Anexo, p.242-245. 53 Idem, Ibid.


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1987 - Loja Forma - São Paulo Paulo Mendes da Rocha

Loja Forma - escada móvel de acesso

Loja Forma - interior da loja

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Loja Forma - vista dos acessos a estrutura de serviços

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que representam uma anacrónica defesa do Movimento Moderno54 e reforçam o panorama que assinala um projecto propositadamente crítico, mas também a falta de sincronia da escola com o seu tempo. O mesmo ocorre com o depoimento de Celso Pazzanese, que traz aos alunos a ‘Trajetória de Artigas na Arquitetura Brasileira’55 através de uma conversa informal onde, de forma apologética e um tanto mítica, Celso Pazzanese faz emergir a figura de Artigas no interior da escola, apregoando a necessidade de lembrança, a importância do que foi feito e a vontade de não estar alheio a este passado. “Chegamos então num impasse, porque ou se resolve a compreensão desse passado recente… se perca o medo destes fantasmas, para que eles sejam compreendidos… ou nós não vamos ter saída, porque estaremos com esse buraco na formação da nossa consciência.” 56 Finalmente a produção académica é apresentada através da mostra anual de trabalhos extra-curriculares de professores, funcionários, alunos e ex-alunos, a ‘EXPOFAU’, revelando o desejo de reavivar a participação académica e questionar a produção curricular.57 Entretanto, a exposição não passou de mais uma iniciativa interna, assim como a própria Caramelo, que passa apenas a reflectir o ambiente intimista da FAU-USP, sem confrontar-se com a diversidade de caminhos e pensamentos que se abrem neste período ‘pós-moderno’. A postura endógena, facciosa e de certa forma acrítica da Caramelo, apesar de limitar as questões académicas à discussão interna da escola, traz a segurança e a concisão de um modo de pensar já fundamentado que, mesmo preso ao passado, servirá como plataforma, a mais estável e eficaz durante este período, de toda uma geração muito jovem. “O que realmente falta é a iniciativa, o desejo de conhecer o que foi feito e de propor, recriar a condição humana, desejo de projectar.” 58

54 Transcrição de ‘Três Obras Modernas e o Deconstrutivismo’ de Philip Johnson, por André Stolarski; conferência de Anatole Kopp, por Reginaldo Forti; e a resenha do livro Quando o moderno não era um estilo e sim uma causa, também de Kopp, feita por Álvaro Puntoni, aluno recém-formado pela FAU-USP. Ver: Caramelo, nº 1, São Paulo: GFAU, 1990. 55 PAZZANESE, Celso, “Trajetória de Artigas na Arquitectura Brasileira”, Idem, p.36-45. 56 Idem, Ibid. 57 DIETZSCH, Anna Júlia M, “EXPOFAU 90”, Idem, p.46. 58 BARONE, Ana Claudia, “O Desejo de Projetar”, Idem, p.25.


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1971 | Concurso Centro Cultural Georges Pompidou - Paris - França Paulo Mendes da Rocha

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Concurso Centro Cultural Georges Pompidou - esquiço de implantação e corte

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1971-77 | Centro Cultural Georges Pompidou - Paris - França Renzo Piano e Richard Rogers

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Sustentação da crítica interna À partir de 1990 e já sob certa estabilidade democrática, torna-se crescente entre a intelectualidade brasileira a necessidade de estabelecer uma crítica e uma postura interna quanto a arquitectura nacional. No Brasil, nenhum tema ocupou tão significativa parte entre as principais discussões do período nem foi tão polémico, tanto no âmbito académico quanto profissional, quanto os concursos de arquitectura lançados. Projecção de uma visão crítica própria do período de sua promoção e importante meio de intercâmbio e aprofundamento de conceitos, os concursos representam também plataformas para discussões, debates e afirmação de uma ‘nova’ geração de arquitectos. Neste sentido, e ainda na Caramelo nº1, a entrevista com Paulo Mendes da Rocha59, sobre o concurso de 1971 para o Centro Cultural Georges Pompidou, em Paris, perde a oportunidade de discutir também, e talvez em paralelo, o projecto vencedor do mesmo concurso, formado por uma equipa liderada pelos arquitectos Renzo Piano e Richard Rogers, detentor de uma verdadeira inovação que alterou os paradigmas da arquitectura mundial a partir de 1970. Enquanto o projecto de Piano e Rogers representa o futuro iminente, o de Mendes da Rocha representa mais uma referência a um passado não superado. A omissão realça, mais uma vez, a parcialidade discursiva da revista. “Trata-se de ter consciência do momento em que vivemos – momento que, a meu ver, não tem nada a ver com Pós-Moderno… A transformação é mais no sentido de agudizar, de radicalizar coisas que já foram ditas.” 60 Também em 1990 é aberto o concurso nacional de ante-projectos para o Pavilhão Brasileiro na Exposição Universal de Sevilha, a realizarse em 199261 e que, devido a sua modalidade muito específica, estava intimamente relacionado à afirmação e representação de uma identidade nacional. O projecto vencedor foi o da equipa paulista formada pelos arquitectos Alvaro Puntoni, Angelo Bucci, José Oswaldo Villela, pelos colaboradores

59 ROCHA, Paulo Mendes, “Entrevista com o arquiteto Paulo Mendes da Rocha – Novembro/90”, Caramelo, nº 1, São Paulo: GFAU, 1990, p.30-35. 60 Idem, Ibid. 61 Promovido pelo Ministério das Relações Exteriores (Itamaraty) e organizado pelo Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB), o concurso contou com 253 equipas inscritas e 165 anteprojectos entregues ao júri. SEGAWA, Hugo, “Pavilhão do Brasil em Sevilha: deu em vão”, Revista Projeto, nº 138, Sevilha’92 – Pavilhões Internacionais e o concurso brasileiro, editor Vicente Wissenbach, São Paulo: Arco Editora, 1991, p.37 e Caramelo, nº 2, São Paulo: GFAU, 1991, p.21.


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1991 | Ante-projecto vencedor do Concurso para o Pavilhão do Brasil na Expo’92 - Sevilha Alvaro Puntoni, Angelo Bucci e José Oswaldo Villela

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Ante-projecto Pavilhão do Brasil Expo’92 - Sevilha - Espanha planta piso 0, planta piso 1 e planta de cobertura

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Ante-projecto Pavilhão do Brasil Expo’92 - corte longitudinal

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Ante-projecto Pavilhão do Brasil Expo’92 - perspectiva da maqueta

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Geraldo Vespasiano Puntoni e Edgard Dente, pelos estudantes Clóvis Cunha e Fernanda Barbara e pelo historiador Pedro Puntoni.62 “Nosso pavilhão deve ter como orientação necessária a cultura brasileira. …uma arquitetura que se desenvolveu baseada em uma visão brasileira, em um projeto para o país. A procura das formas claras, dos traços firmes e resolutos, da construção dos espaços de amplo uso coletivo é a sua característica…” 63 Localizado ao lado do Pavilhão Português, o anteprojecto premiado64 retomava directamente o vínculo com a tradição da Arquitectura Paulista Brutalista65, até então subjugada pela popularidade do pós-moderno na segunda metade dos anos de 1980 e pelo discurso dos promotores públicos. O debate suscitado pelo ‘ultraje revivalista’ não se limitou aos bastidores, já que a 27 de Março de 1991, se realizou uma sessão pública de discussão no auditório do Museu de Artes de São Paulo (MASP), organizada por Anne Marie Sumner (na ocasião adepta ao pós-modernismo norteamericano) com cerca de quinhentas pessoas. “Parecia que diversas questões que haviam sido guardadas nos últimos vinte anos estivessem sendo trazidas a público ao mesmo tempo, naquele instante.” 66 A discussão foi amplamente manifestada e, mais uma vez, divulgada pela Caramelo nº2, em Junho de 1991. Nesta segunda edição, a questão do projecto arquitectónico confunde-se com a crítica arquitectónica. O foco é o debate sobre o concurso para o Pavilhão do Brasil, seu reflexo capa revista Caramelo 2 | 1991

62 Ver também: “Conversa com Ângelo Bucci” (11-01-2009), in Anexo, p.227-232; “Conversa com Álvaro Puntoni” (17-12-2009), Idem, p.233-237. 63 PUNTONI, Alvaro, BUCCI, Angelo, VILELA, José Oswaldo, “Pavilhão do Brasil na Expo 92 Sevilha”, Revista Projeto, nº 138, Sevilha’92 – Pavilhões Internacionais e o concurso brasileiro, editor Vicente Wissenbach, São Paulo: Arco Editora, 1991, p.40. Memorial Descritivo para o concurso do Pavilhão do Brasil na Exposição Universal de Sevilha. 64 O júri possuía no total onze membros, entre eles a arquitecta Maria Luiza Ribeiro Lopes da Silva e o arquitecto convidado Paulo Mendes da Rocha, que optaram por uma linguagem arquitectónica conhecida e, de certa forma, conservadora. Ver: FIALHO, Valéria Cássia dos Santos, Concursos de Arquitetura em São Paulo, São Paulo: FAU-USP, 2002, p.150 e Revista Projeto, nº 138, Sevilha’92 – Pavilhões Internacionais e o concurso brasileiro”, editor Vicente Wissenbach, São Paulo: Arco Editora, 1991, p.37. 65 Sobre este assunto ver: ZEIN, Ruth Verde, “Breve introdução à Arquitetura da Escola Paulista Brutalista”, Portal Vitruvius, Arquitextos, 069.01, Fevereiro 2006. [versão electrónica]; ZEIN, Ruth Verde, “Brutalismo, sobre sua definição (ou, de como um rótulo superficial é, por isso mesmo, adequado)”, Portal Vitruvius, Arquitextos, 084, Maio 2007. [versão electrónica] e também ZEIN, Ruth Verde, Arquitetura Paulista Brutalista 1953-1973 <http://www.arquiteturabrutalista.com.br/index1port.htm>. 66 ASQUINO, Marcelo Sacenco, “Quem somos nós?”, Caramelo, nº 2, São Paulo: GFAU, 1991, p.12.


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1991 | Ante-projecto premiado no Concurso para o Pavilhão do Brasil na Expo’92 - Sevilha Via Arquitetura (Fernando de Melo Franco, Marta Moreira, Milton Braga e Vinícius Gorgati)

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1991 | Ante-projecto menção especial no Concurso para o Pavilhão do Brasil na Expo’92 Paulo Roberto Frade Laender e equipe

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1991 | Ante-projecto menção no Concurso para o Pavilhão do Brasil

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Sevilha - Espanha Marcos Acayaba


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das incertezas do momento histórico67, a possibilidade de afirmação de um projecto que busca a inovação a partir de uma releitura da história, distinguindo uma operação de maturidade crítica e artística68, verdadeiramente nova, em uma contemporaneidade que reivindica a democracia e a pluralidade e mantém a ávida compulsivamente pelo ‘novo’. 69 Por fim, devido a dificuldades sobretudo políticas70, o Itamaraty comunicou a decisão do governo brasileiro de não participar da EXPO 92 com um pavilhão próprio, e sim em uma área alugada no pavilhão colectivo “Plaza de Américas”. Apesar do projecto vencedor dos jovens seguidores de Mendes da Rocha, retomar a tradição paulista através de uma releitura mais crítica e apurada, o que ficou patente naquela época foi apenas a legitimação de uma arquitectura datada, que insistia em manter-se viva pela ‘ressurreição’ formal de Artigas e da ‘Escola Paulista’. “Esse é o tipo de arquitetura que faremos, por acreditarmos nela e por não acreditarmos que temos de começar todas as décadas dizendo que faremos uma coisa nova.” 71 Dessa forma, o conselho editorial da revista acaba por reafirmar esta posição através da publicação do texto ‘A negaça do pós-moderno e a negação do moderno’, onde o historiador Pedro Puntoni salienta a crise da modernidade à partir de um cenário de estilização generalizada somado às questões de mercado e do capital, que inviabilizam o projecto enquanto desígnio e converte a Arquitectura Moderna, como ‘estilo moderno’, em mercadoria de consumo.

67 ASQUINO, Marcelo Sacenco, “Quem somos nós?”, Caramelo, nº 2, São Paulo: GFAU, 1991, p.12.. 68 AB’SÁBER, Tales A. M, “Arquitetura e Hitória, Arte e Política – Um Debate”, Idem, p.17. 69 SILVA, Dalva Thomaz, “Sevilha no MASP como desfile de prêt-a-porter”, Idem, p.18. 70 Várias condicionantes dificultaram sua conclusão. O projecto não possuía definição na utilização dos espaços, além da resolução inadequada para o subsolo, inadequação às condições climáticas e inexequibilidade da construção em tempo hábil. A desmobilização da categoria e o desprestígio do IAB. Os conturbados anos do governo de Fernando Collor de Mello, que também inviabilizaram o projecto por desinteresse e corrupção, visto que o terreno brasileiro era muito bem localizado e foi vendido de forma um tanto nebulosa. E, finalmente, por falta de mobilização, ninguém de expressão se posicionou de forma pública e enfática na defesa do projecto. 71 PUNTONI, Alvaro, BUCCI, Angelo, VILELA, José Oswaldo, Revista Projeto, nº 139, “A polêmica de Sevilha e os premiados no concurso do pavilhão do Brasil”, editor Vicente Wissenbach, São Paulo: Arco Editora, 1991, p.63.


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1988-91 | Casa Gerassi - São Paulo Paulo Mendes da Rocha

Casa Gerassi - detalhe da escada de acesso ao piso da casa

Casa Gerassi - vista interior para a rua

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Casa Gerassi - vista interior

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“Se a primeira redução feita pelos nossos arquitectos é entender a arquitectura moderna como o “estilo moderno”; a segunda é entender esta estilização como a própria modernidade. Um verdadeiro quid pró quod.” 72 Nesse momento os arquitectos seguidores de uma ‘tradição moderna’ nutriam um completo desprezo pela produção arquitectónica pósmoderna, muito justificada por uma necessidade de defesa desta mesma tradição contra sua própria ridicularização frente às novas formas e tecnologias da arquitectura contemporânea. “Se faz apelo à cultura do novo. Qual cultura e qual novo? Seria por acaso a cultura massificada pela veiculação rápida de imagens que se sobrepõem produzindo um novo que nada mais é do que a restauração do velho?” 73 Particularmente na FAU, esta postura é também assumida pelos próprios alunos e concretizada através da eloquência comovente na defesa do património (físico e intelectual) interno da escola.74 Este sentimento e consequente posicionamento académico é muito bem traduzido no texto do então aluno Guilherme Wisnik, uma crítica clara à mitificação da escola através da analogia entre arquitectura e religião, onde o ‘Deus’ é a evocação do espírito do arquitecto Vilanova Artigas, idealizador, fundador, e matéria de culto e orações dentro de um ‘templo’, o edifício da FAU-USP, local sagrado de uma ‘religião’, a arquitectura paulista, já tão propagada e desgastada.75 “Em meio a tanta fé e a tanta crença, a arte do nosso ofício tem sido mais a de elogiar do que de negar o ócio… É louvável que se queira dar a formação mais completa possível, mas é decepcionante quando a pretensa união é esvaziamento, e a pluralidade conceptual associada à unificação estética cede lugar ao mito.” 76 No início de 1990, com o objectivo de diminuir o hiato entre a produção interna e as questões de debate internacional, os profissionais brasileiros procuram reassumir, de forma mais directa, a iniciativa quanto a discussão 72 PUNTONI, Pedro, “A negaça do pós-moderno e a negação do moderno”, Caramelo, nº 2, São Paulo: GFAU, 1991, p.8. 73 SILVA, Dalva Thomaz, “Sevilha no MASP como desfile de prêt-a-porter”, Idem, p.20. 74 Em Julho de 1991, se celebravam dos 30 anos dos primeiros croquis para o prédio da FAU e sua nova concepção de ensino. Ainda sob a energia destas comemorações a revista Caramelo nº 3 ascende as discussões acerca da tão desejada reforma no edifício da FAU, pondo em causa também a actuação estudantil, seu conformismo e sua falta de organização conjunta e efectiva. PONTES, Ana Paula, BARBARA, Fernanda, et al. (ed.), “FAUUSP uma reforma em questão”, Caramelo, nº 3, São Paulo: GFAU, 1991, p.15. 75 WISNIK, Guilherme, “Deus contemplado e completo – Arquitectura em profanação”, Caramelo, nº 3, São Paulo: GFAU, 1991, p.79. 76 WISNIK, Guilherme, Idem, p.80.


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1991-94 | Casa Baeta - Guarujá - SP Marcos Acayaba

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Casa Baeta - vista sob a estrutura da casa

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Casa Baeta - vista do interior

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Casa Baeta - vista sobre a paisagem

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sobre a produção crítica nacional e o seu consequente processo de revisão. Dessa forma, estabelecem-se princípios de discussão próprios, inclusive no interior de escola, como por exemplo o ciclo de debates “Arquitetura pós-moderna”, organizado na disciplina de Estética do Projecto ministrada por Marlene Yurgel no Departamento de Historia e Estética do Projecto da FAU-USP. Os debates aconteceram às quartas-feiras no horário de aulas e procuravam esclarecer as opiniões diversas à partir das discussões entre os convidados: Otilia Arantes e Miguel Alves Pereira; Julio Katisnky e Décio Pignatari; Eduardo Corona e Joaquim Guedes; Bruno Padovano e João Toscano; Nelson Aguilar e Flavio Motta; Paulo Bruna e Giancarlo Gasperini; Silvia Ficher e Eduardo de Almeida.77 Apesar de muito tímida e restrita, a iniciativa proposta como parte de uma disciplina acabou por contar com grande participação dos alunos78, inclusive de outros anos, curiosos e ansiosos pela abertura dada a discussão de um tema corrente, mas de grande restrição, na época. Nesse mesmo sentido, em Outubro de 1991, é publicada a Caramelo nº3, agora reflectindo o entendimento da produção crítica muito mais associada à lógica e à prática de projecto. É sob a coerência entre uma memória crítica e o processo de projecto que se insere a entrevista com o arquitecto Marcos Acayaba, que comenta seu mais recente projecto da capa revista Caramelo 3 | 1991

época, a residência Baeta (1991-94), a influência de Frank Lloyd Wright, além de seu período académico na FAU-USP e a intensa vivacidade da presença de Artigas. A entrevista evidencia, por outro lado, a notória busca de uma liberdade técnica e formal por parte do arquitecto. O desenvolvimento peculiar de cada solução de projecto, aliada à experimentação consciente de materiais e possibilidades tecnológicas, destacam a produção arquitectónica de Acayaba como uma crescente e renovada visão sobre a arquitectura contemporânea paulista. Se dentro da escola, do ‘templo’, os seus arquitectos mais representativos são os ‘deuses’, o meio para atingi-los é só um, o desenho. Na FAU (assim como no Porto) o desenho e sua prática enquanto ferramenta para o projecto constituem o fundamento base do ensino académico de arquitectura e suporte de todo um conceito pedagógico, mas fragilizado pela banalização da imagem, a desvalorização do objecto arquitectónico real e do “tempo arquitectónico”, durante a década de 90. O facto é que, 77 Informações cedidas em conversa com a arquitecta Marlene Yurgel (23-04-2010). 78 Ver: “Conversa com Álvaro Puntoni” (17-12-2010), in Anexo, p.233-237.


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1992 | Praça do Patriarca - São Paulo Paulo Mendes da Rocha

Praça do Patriarca - detalhe da viga estrutural e cobertura

Praça do Patriarca - vista geral da praça

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Praça do Patriarca - detalhe do pilar estrutural

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depois de 1980, o desenho não seria mais visto da mesma forma, ou teria a mesma importância, dentro da Escola. Já em 1992 a Caramelo nº4 aborda, em grande parte, questões urbanísticas. Desde os projectos de renovação urbana na área central de São Paulo e as propostas e dúvidas do novo Plano Director no planeamento e regulamentação das cidades até aos projectos práticos apresentados, desenvolvidos por alunos para a conclusão do curso, todos capa revista Caramelo 4 | 1992

giram em torno desta temática. 79 A quarta edição da revista é acompanhada por um caderno completo dedicado à arquitecta Lina Bo Bardi, falecida em Março de 1992. A sequência de textos, depoimentos, artigos da própria arquitecta, desenhos e aguarelas inéditas prestam uma homenagem colectiva (de diversos profissionais, amigos e alunos) à prática e ao conhecimento de arquitectura. A iniciativa explicita, uma vez mais, o valor projectual, crítico, social e histórico do conjunto da obra de Lina Bo Bardi no Brasil.80 Ainda no mesmo ano, a Caramelo nº5, mantém a temática mais urbana com a publicação de uma reflexão sobre a cidade de São Paulo, além de diversas propostas de projecto desenvolvidas por alunos finalistas para diversas áreas da cidade.81 A edição também apresenta um conjunto de textos internacionais, seleccionados por Sophia Silva Telles. Os artigos

capa revista Caramelo 5 | 1992

de Mies Van der Rohe, Vittorio Gregotti, Giulio Carlo Argan e Álvaro Siza procuram expressar, sobre as mais diversas temáticas, a Arquitectura como um pensamento e não apenas uma atitude. 82 De salientar que foi necessária uma figura externa a escola, uma filósofa muito ligada à arquitectura e muito respeitada por esta geração mais jovem, para que a revista começasse, já tardiamente no início da década de 1990, a buscar referências e contextos externos. Embora não publicado na revista, acontecia um dos encontros mais importantes daquele ano, a ‘Conferência das Nações Unidas para o Meio

79 Ver: PONTES, Ana Paula, BARBARA, Fernanda, et al. (ed.), “Renovação urbana na área central”, Caramelo, nº 4, São Paulo: GFAU, 1992, p.6. O texto, escrito pelo corpo editorial da Caramelo, abre a temática do urbano, que desenvolve-se por toda a primeira parte da revista em uma sequência variada de abordagens e autores até a página 38 e depois o tema é retomado novamente nas últimas páginas com os trabalhos de conclusão de curso. 80 “Caderno especial Lina Bo Bardi”, Caramelo, nº 4, São Paulo: GFAU, 1992. 81 COSTA, Horácio, “São Paulo A-Z (Fragmentos de um Discurso Piratininga)”, Caramelo, nº 5, São Paulo: GFAU, 1992, p.6. Os trabalhos curriculares são apresentados sequencialmente nas páginas 12 à 28. 82 Os textos dos arquitectos são: MIES, Van der Rohe, “A nova era” [1930], Idem, p.42. Discurso proferido na Werkbund, Viena, 1930; GREGOTTI, Vittório, “Sobre a imagem” [1990], Idem, p.43; ARGAN, Giulio Carlo, [1968], Idem, p.45 e SIZA, Álvaro, “Sobre materiais” [1988], Idem, p.47.


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1993-99 | Pinacoteca do Estado - SP 83 Paulo Mendes da Rocha e Eduardo Colonelli

Pinacoteca do Estado - vista do átrio interior

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Pinacoteca do Estado - detalhe das aberturas internas

Pinacoteca do Estado - detalhe do acesso a cobertura

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Pinacoteca do Estado - vista do pátio interno, acessos e cobertura

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Ambiente e o Desenvolvimento’ ou ‘Eco 92’ 83, cujo objectivo principal era conciliar o desenvolvimento socioeconómico e a conservação e protecção dos ecossistemas mundiais. A Conferência procurou estabelecer um modelo de crescimento económico mais adequado ao equilíbrio ecológico e, acima de tudo, consagrou o conceito de “desenvolvimento sustentável”. Este conceito, de grande importância para a arquitectura recente e foi também um factor decisivo para as alterações na legislação da construção civil na Europa. Contudo, a eficácia das negociações diplomáticas não se reflectiu na opinião pública, cuja repercussão no Brasil foi quase inexistente, inclusive no meio arquitectónico. No ano seguinte, 1993, a Caramelo nº6, último número sob a direcção da mesma equipa editorial84, apresenta uma temática de reflexão e revisão sobre o seu maior referencial, a própria FAU-USP. A questão académica é retomada como uma necessidade de entendimento sobre a trajectória histórica do ensino, sua compreensão e questionamento de forma capa revista Caramelo 6 | 1993

coerente e consciente. “A FAUUSP representou e ainda representa um modelo para a grande maioria das escolas de arquitectura em todo o país, e que, na sua história, as discussões sobre o ensino e o papel do arquitecto na sociedade foram indissociáveis.” 85 A Caramelo inicia e conclui um ciclo circunscrito sob os parâmetros da escola, do seu próprio fazer e pensar arquitectónico (ou da falta deles).

83 Nome pelo qual é conhecida a Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (CNUMAD), realizada entre 3 e 14 de Junho de 1992 no Rio de Janeiro, com grande presença de chefes de Estado, factor indicativo da importância atribuída à questão ambiental no início da década de 1990. 84 A revista Caramelo teve ainda mais quatro números em anos posteriores, todos sob a direcção de novas e numerosas equipas editoriais. Caramelo nº 7, 1994, Caramelo nº 8, 1995, Caramelo nº 9, 1997 e Caramelo nº 10, publicada em 1998. 85 PONTES, Ana Paula, BARBARA, Fernanda, et al. (ed.), “Editorial”. Caramelo, nº 6, São Paulo: GFAU, 1993.



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Considerações:

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Acerca da diversidade Se a primeira metade da década de 1980 se enquadrava na ressaca da queda do Regime Militar, no Brasil, e do Período Revolucionário, em Portugal, bem como o facto da geração académica anterior se distinguir como fruto de uma formação vinculada às lutas e conquistas ideológicas de uma época, a segunda metade mostra definitivamente a superação deste período. Caem as ideologias, prevalece a experimentação. Neste sentido, e em ambas escolas (FAUP e FAU-USP), pertenceu aos alunos o papel motor das dinâmicas académicas. Tanto no Porto como em São Paulo, as revistas Unidade e Caramelo reflectiram a procura por respostas, ou antes a fuga da alienação de alguns alunos em nome de toda uma geração de futuros arquitectos. As revistas académicas e principalmente as relações renovadoras que essas permitiram, foram a escola quando apenas a imagem desta, ou nem isso, subsistia. Enfim, revistas da escola, sobre a escola e para a escola. Apesar dos objectivos das duas iniciativas serem muito semelhantes, ao criar um espaço aberto para a discussão, os seus desenvolvimentos foram bastante distintos. No Porto, apesar da revista Unidade apresentar, nos seus dois primeiros números, uma atitude muito contestativa, irónica e por vezes agressiva à estrutura académica em que estava inserida, no terceiro número essas dúvidas já se apresentavam muito mais diluídas. Se a princípio houve a necessidade de se mostrar as múltiplas possibilidades da época, no fim acabou prevalecendo a compreensão e, de certa forma, a opção pelo modelo intelectual sustentado da própria instituição. Já na Caramelo, a assumpção de uma tradição paulista de um pensar e fazer arquitectónico sempre foi muito clara e distinta, desde o primeiro número. Na FAU-USP as dúvidas eram diminutas, talvez pela inconsistência de qualquer outra conjuntura, ou simplesmente pela força e resistência do modelo estabelecido desde sua fundação. Neste sentido, também os concursos de arquitectura, exposições e conferências manifestaram, mais uma vez, uma maior disponibilidade portuguesa para com as novas vertentes da arquitectura que se apresentam na época do que paulista, onde a proximidade com a forte tradição e o distanciamento dos debates internacionais, tende a sustentar uma linguagem já estabelecida. Apesar de tudo, esta nova análise cada vez mais crítica e consciente entre professores e alunos, a partir de 1990, assinalam um explícito manifesto quanto a urgência de revisão sobre o período e procura



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valorizar o necessário equilíbrio dinâmico entre a arquitectura enquanto identidade (autonomia e imagem nacionais) e o conhecimento da cultura arquitectónica internacional. Embora esses alunos tenham estado na escola por um curto período de tempo, são eles, como categoria, que garantiram a perene actualidade da mesma. Mais ligados ao contexto imediato, passam a ter maior percepção do próprio processo de aprendizagem, deixando para as gerações vindouras um exemplo de postura estudantil dentro da escola e também uma notável contribuição (talvez inconscientemente) para a sobrevivência de um ‘modo de pensar’ próprio de cada instituição.


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Alongar-se com o passado, quando o que se pretende é apontar o futuro próximo da arquitectura contemporânea, justifica-se quando este passado é alicerce para o desenvolvimento da arquitectura nos dias actuais, de forma cumulativa, eficaz e resistente. Como visto anteriormente, através da participação pontual mas activa de uma determinada geração relativamente jovem, a história é mutável de acordo com a visão que dela é feita desde o presente. Nesse sentido, o termo ‘jovem’ merece um esclarecimento, porque a produção arquitectónica requer um amadurecimento e desenvolvimento mais longo que em outras manifestações artísticas. Não se trata, portanto, de recém-formados, mas sim de uma geração um pouco mais madura, de arquitectos formados a partir dos anos de 1990 e com cerca de duas décadas de trabalho. Também é necessário sublinhar que sem o necessário distanciamento temporal seria difícil e redutor compor um perfil que caracterize este grupo, tanto no Porto como em São Paulo. O que se procura é observar uma continuidade da tendência dominante em anos anteriores e delimitar a mudança que anunciam. Desse modo, opta-se falar da actualidade, da produção profissional desta geração, através de temas que, de modo geral, reúnam uma série de condições e preocupações com que lidam estes arquitectos e analisar, de forma mais específica, como estes se apresentam, através da produção crítica e prática, frente ao seu tempo.


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1989- | Convento e Centro Cultural Dominicano - Lisboa José Fernando Gonçalves e João Paulo Providência

Convento e Centro Cultural Dominicano - vista exterior da capela

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Convento e Centro Dominicano - vista interior

Convento e Centro Cultural Dominicano - vista do altar

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Cultural

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PORTO

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Tradição: continuidade versus transformação A1partir de 1990 a geração que na FAUP se identifica por uma activa participação académica e disciplinar2, deixa a escola devidamente desencantada dos heroísmos e discursos arquitectónicos que marcaram a geração anterior, impotentes na transformação da sociedade contemporânea, da contaminação ilusória (ou ideológica) da ‘revolução pelo desenho’ e da desilusão do ‘não-desenho’. À procura de um espaço de actuação profissional mas inseridos no cenário contemporâneo e globalizado (reflexo da entrada de Portugal na CEE) essa geração depara-se com uma complexa simultaneidade. Por um lado, a multiplicidade de uma dimensão mais comunicativa da arquitectura, apreendida através dos meios de comunicação de massas, da cultura pop, pela valorização do design e da imagem, enfim, tudo o que é concebido no tempo e no movimento contemporâneos. Por outro, a sujeição às condições reduzidas do meio, restringido pelo mercado e pela especulação imobiliária, pelas dificuldades no exercício da profissão, pela crescente popularidade e consumo da imagem de uma elite reduzida de arquitectos, reforçado tanto pela fragilidade do mercado editorial especializado3 quanto pelo campo da investigação disciplinar. “Não aquilo que é, mas aquilo que conseguimos apreender, transforma a palavra no fazedor do mundo.” 4 Nesse sentido, a capacidade de manobra disponível a estes jovens profissionais torna-se inversamente proporcional à inquietude que os sustenta5 e onde a perda do valor específico da arquitectura conduz a 1 ← Todas as imagens que acompanham o desenvolvimento do texto são uma referência da produção portuguesa recente considerada mais relevante para cada tema mencionado. Foi utilizado como referência na selecção das obras as seguintes publicações: RODEIA, João Belo, “Ritos antigos e caminhos novos: obras recentes de uma Arquitectura portuguesa contemporânea”, Portal Vitruvius, Arquitextos, nº 081, Fevereiro 2007. [versão electrónica]; GADANHO, Pedro, PEREIRA, Luís Tavares (coord.), Influx: arquitectura portuguesa recente, Civilização, 2003; GADANHO, Pedro, PEREIRA, Luís Tavares (coord.), Metaflux: duas gerações na arquitectura portuguesa recente, Civilização, 2004 e MOURA, Eduardo Souto, FERNANDES Fátima, FIGUEIRA, Jorge, et al. (com.), Des-continuidade: arquitectura contemporânea, Norte de Portugal, Civilização, 2005. 2 Refere-se como relevantes componentes desta geração os arquitectos que participaram, enquanto discentes, da publicação da revista Unidade, e em particular nos seus três primeiros números, como Jorge Figueira, Nuno Grande, Luís Tavares Pereira, Pedro Gadanho, Nuno Lourenço, Paulo Seco, Pedro Cortesão, e outros, que partilharam deste mesmo período académico ou do mesmo engajamento. 3 Ver: GREGOTTI, Vittorio, “Cari architetti non ci cono più riviste”, L’Architetto, nº 143, Consiglio Nazionale degli Architetti, Roma, 2000, p.18-19. 4 SAFRAN, Yehuda, “Connoisseurs do Caos, Notas sobre a geração emergente de arquitectos em Portugal”, in GADANHO, Pedro, PEREIRA, Luís Tavares (coord.), Influx: arquitectura portuguesa recente, Civilização, 2003, p.13. 5 RODEIA, João Belo, “Línea de tierra: presentación de una nueva geración de arquitectos


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1992-99 | Escola Superior de Tecnologia e Gestão do Istituto Politécnico de Portalegre António Portugal e Manuel Maria Reis

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Escola Superior do IPP - detalhe da fachada

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Escola Superior do IPP - circulação interior

Escola Superior do IPP - detalhe das clarabóias de iluminação na cobertura

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uma definição imprecisa de fluidez, descontinuidade e fragmentação, reforçando um cenário onde a acção é tida como mais importante que qualquer outra qualidade.6 “Viver o próprio tempo significa sempre, para todos, alcançar uma distância crítica diante da realidade imediata.” 7 Se durante o período académico o distanciamento crítico tendia muitas vezes à uma provocativa ruptura, a partir da saída da escola passase a assumir, ainda que de forma parcial, uma postura de redescoberta e de revalorização da história e da tradição, em grande parte evidenciado pelo desenvolvimento posterior de mestrados e pelo início de muitos na carreira académica, como o percurso desenvolvido por Jorge Figueira, Nuno Grande, Luís Tavares Pereira, Pedro Gadanho, entre outros.8 Nega-se a ávida e inconsequente ruptura com o modernismo, revisitando-o no que ele tem de mais rico e permanente: a montagem de todo um vocabulário estético e formal elegante e hoje culturalmente assimilado por toda a sociedade na forma de arquitectura corrente.9 Esta postura revisionista e não específica desta geração no Porto permite a redescoberta de arquitectos não engajados, e por isso menos celebrados, como por exemplo Erich Mendelsohn, Guiuseppe Terragni e a valorização da obra de Alvar Aalto, todos arquitectos que trabalharam com a herança gramatical e formal do Moderno, de forma a transmitir um sentido cultural e estético livre de discursos funcionalistas e sociais.10 “A revelação da produção moderna surge neste quadro como uma referência geracional capaz de repor a visão estimulante de um passado recente. E, sobretudo, articulando um sentido de continuidade capaz de alimentar a radicalidade com a verdadeira originalidade no que ela significa de portugueses”, 2G – Revista Internacional de Arquitectura, nº 20, “Arquitectura Portuguesa, una nueva generación”, Barcelona: Gustavo Gili, 2001, p.4. 6 MONEO, Rafael, “Paradigmas fin de siglo: Los noventa, entre fragmentación y la compacidad”, Arquitectura Viva, nº 66, 1999, p.17-24. 7 RODEIA, João Belo, “Línea de tierra…”, p.17. 8 Como exemplo o percurso de Jorge Figueira (que após a licenciatura colaborou no Centro de Estudos da FAUP de 1991 a 1996) e Nuno Grande, ambos docentes do Departamento de Arquitectura da Universidade de Coimbra (FCTUC), membros do Conselho Directivo Regional Norte da Ordem dos Arquitectos (1999 à 2004). 9 Para uma definição de “arquitectura corrente” ver: RAMOS, Rui J. G., “«Produções correntes» em arquitectura: a porta para uma diferente gramática do projecto do início do século XX”, NW noroeste. Revista de História, nº 1, Núcleo de Estudos Históricos da Universidade do Minho, 2005, p.53-80. 10 GONÇALVES, Fábio Mariz, “Modernismo Hoje?”, Caramelo, nº 2, São Paulo: GFAU, 1991, p.80-81 e ROGERS, Ernesto Nathan, “La arquitectura moderna depués de la geración de los maestros”, [1958], in HEREU, P., MONTANER, J. M., OLIVERAS J., Textos de arquitectura de la modernidad, Madrid: Nerea, 1994, p.325.


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1993-97 | Capelas Mortuárias de Santa Eulália - Vila Nova de Gaia José Fernando Gonçalves

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Capelas Mortuárias - sequência dos três blocos edificados

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Capelas Mortuárias - vista do interior

Capelas Mortuárias - corredor de ciculação entre os blocos

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redução: às origens e às raízes, a uma autenticidade radical, a arquétipo sem renunciar à história.” 11 Dessa forma, a história é redescoberta não necessariamente com uma perspectiva ideológica, mas pelo contrário, antes prospectiva, tomando a história como passado a revisitar e plataforma para a construção de um futuro desejado. “A tradição, da qual somos hoje portadores, não é uma opção. A única escolha disponível no nosso tempo é a que se edifica sobre o tempo que nos antecede.” 12 No entanto, este percurso transitório mostra-se, como se podia pressentir, peculiarmente delicado para esta nova geração. Não sendo a tradição o objecto da criação arquitectónica, esta passa, por vezes e erroneamente, a ser entendida de forma minoritária e distanciada, permanecendo à margem das articulações da prática disciplinar e de projecto. Conscientes tanto do legado existente, como da afirmação concreta que procuram representar, alguns dos então profissionais passam a questionar criticamente este pressuposto e confrontá-lo com outros modos de entender a história e a tradição. “Estar apenas em concordância seria para a obra nova não estar de todo em concordância: não seria nova…” 13 Questiona-se o valor do tempo, do passado e consequentemente da tradição como base da actividade de projecto, fragmentando arbitrariamente um processo em função da valorização de um presente excepcional e permanentemente ‘novo’, criando, muitas vezes, uma interpretação condicionada, ambígua e hegemónica sobre a arquitectura contemporânea, além de divergências entre discurso crítico/teórico e a produção arquitectónica propriamente dita. Essas contradições são perceptíveis nas exposições e catálogos do início do século XXI, que contaram com a organização e participação de diversos representantes dessa geração. O catálogo da exposição ‘Influx:

11 TOSTÕES, Ana, “O lugar da paisagem europeia”, in CAYATTE, Henrique (com.), Portugal 1990-2004, Triennale di Milano, 2004, p.18-23. 12 RAMOS, Rui Jorge Garcia, “A formulação da descontinuidade na crítica de arquitectura contemporânea ou a transitoriedade da tradição”, 2007, p.17. <http://hdl.handle. net/10216/15388> 13 ELIOT, T. S., “A tradição e o talento individual”, in Ensaios de Doutrina Crítica, Lisboa: Guimarães Editores, 1997, p.24.


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1993-94 | Café do Cais - Porto Cristina Guedes e Francisco de Campos (Menos é Mais Arquitectos)

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Café do Cais - detalhe da fachada nascente

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Café do Cais - fachada sul voltada para o Rio Douro

Café do Cais - detalhe da facada poente

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arquitectura portuguesa recente’14, publicado em 2003 por Pedro Gadanho e Luís Tavares Pereira, cria um enquadramento que propõe divulgar os novos vectores da produção arquitectónica portuguesa recente através da alusão desses à absorção de sinais e à incorporação de novos estímulos.15 No entanto o panorama apresenta-se menos consciente e mais propositado. A selecção de factos para a obtenção do resultado de aparente diversidade desejado valoriza antes o sentido de afluência e abundância capa do catálogo da exposição ‘Influx’ | 2003

(fluxo), do que de pressão ou acção exercida sobre, influência (influxo), indicado no próprio título da publicação.16 A produção arquitectónica portuguesa recente passa a ser superficialmente caracterizada por valores menores como a “imaginação”, a “necessidade de criações” ou o “talento próprios”.17 Argumentos narcisistas que valorizam apenas o presente imediato. Essa questão fica bastante clara no artigo ‘Relatório Minoritário’, de Luís Tavares Pereira. Apesar de ainda muito parcial e auto-justificativo, o texto reconhece a importância de ‘traços familiares’, evidenciando as contradições de uma postura aparentemente descomprometida e da ainda presente relação com a história e com o passado recente da arquitectura portuguesa. “Mais do que nunca, a vitalidade cultural portuguesa passa pela pluralidade que se desenha entre seus modos de expressão, mas também pela ausência de nostalgia e pelo afastamento das preocupações ideológicas de ‘identidade’ que marcaram sucessivas gerações… Não se trata aqui de adoptar os modelos culturais do outro, mas sim de saber que relação estabelecemos com eles…” 18 14 A exposição foi apresentada no Silo-Espaço Cultural do Norte Shopping, em Matosinhos, e no Porto, no âmbito da programação da Fundação Museu de Arte Contemporânea de Serralves, entre os anos de 2002-2003. Os arquitectos e ateliers presentes no catálogo da exposição, e organizados por temas, são: confluência, com a.s*Atelier de Santos, Guedes + de Campos e ARX Portugal; compulsão, com Nuno Brandão Costa, CVDB arquitectos e Bernardo Rodrigues; confrontação, com Inês Lobo, Promontório e Gonçalo Afonso Dias; condensação, com João Mendes Ribeiro, João Pedro Falcão de Campos e Serôdio, Furtado & Associados; e deslocação, com marcosandmarjan architects, Equipo4d e Didier Fiuza Faustino|Bureau des Mésarchitectures. 15 GADANHO, Pedro, PEREIRA, Luís Tavares (coord.), Influx: arquitectura portuguesa recente, Civilização, 2003, p.10. 16 Como explica Harold Bloom: “A palavra ‘influência’ recebeu o seu significado de ‘ter um poder sobre outra pessoa’ logo no latim escolástico de São Tomé… um sentido etimológico de ‘influxo’, e o seu sentido primordial de uma emanação ou força sobre a humanidade proveniente dos astros… que afectava o carácter e o destino de uma pessoa e que alterava todas as coisas sublunares”. BLOOM, Harold, A angústia da influência: uma teoria da poesia, [1973], Lisboa: Cotovia, 1991, p.40. 17 SAFRAN, Yehuda, “Connoisseurs do Caos, Notas sobre a geração emergente de arquitectos em Portugal”, in GADANHO, Pedro, PEREIRA, Luís Tavares (coord.), Influx: arquitectura portuguesa recente, Civilização, 2003, p.13-14. 18 PEREIRA, Luís Tavares, “Relatório Minoritário”, in Idem, p.156-163.


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1996-98 | Pavilhão de Oficinas da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto - Porto Cristina Guedes e Francisco de Campos (Menos é Mais Arquitectos)

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Oficinas da FBAUP - vista interior do corredor de ligação entre os blocos

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Oficinas da FBAUP - vista interior de uma das oficinas

Oficinas da FBAUP - vista exterior do corredor de ligação entre os blocos

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Multiplicidade de influências Perdidos os mitos e ideologias redentoras, as relações do ‘fazer arquitectónico’ são restabelecidas pelo renovado respeito e evidente vínculo, mais ou menos directo, aos arquitectos reconhecidos (professores na FAUP ou não), cuja influência e reaproximação são decisivos no desenvolvimento da cultura arquitectónica desta nova geração. Estas relações têm origem nos anos enquanto estudantes, na relação professor-aluno e na admiração e consideração por esses mestres mas também, de forma pontual e não menos importante, pela colaboração destes alunos, como estagiários ou profissionalmente, nos ateliers de arquitectos portugueses de Lisboa e Porto, como Gonçalo Byrne, Eduardo Souto de Moura, João Luís Carrilho da Graça, Manuel Graça Dias e evidentemente Álvaro Siza, entre outros.19 Além do trabalho com prestigiados ateliers portugueses, muitos estudaram, colaboraram ou trabalharam também em escolas e ateliers de outros países, em particular na Suíça, Itália, Espanha, Holanda e, em alguns casos, em alguns dos ateliers europeus mais importantes.20 “Neste contexto, poderia se dizer que sua juventude não é em absoluto sinónimo de imaturidade profissional.” 21 Essas experiências no exterior contribuíram também para uma maior inclinação desta geração para novas tecnologias e para uma linguagem mais expressiva, tanto na forma quanto na dissimilaridade dos materiais empregados, como pedra, aço, madeira, cerâmica, polímeros, etc. Sendo esta a primeira geração plenamente informatizada, a terceira dimensão do projecto arquitectónico ganha evidência, debatendo a capacidade da construção em sustentar a forma, em resistência à sua arbitrariedade. 22

19 Paulo Providência e Cristina Guedes com Álvaro Siza; Francisco de Campos, Pedro Mendes e José Fernando Gonçalves com Eduardo Souto de Moura (José Fernando Gonçalves trabalhou também com José Paulo dos Santos); Francisco e Manuel Aires Mateus com Gonçalo Byrne; Inês Lobo e Pedro Domingos com João Luis Carrilho da Graça; entre outros. RODEIA, João Belo, “Línea de tierra: presentación de una nueva geración de arquitectos portugueses”, 2G – Revista Internacional de Arquitectura, nº 20, “Arquitectura Portuguesa, una nueva generación”, Barcelona: Gustavo Gili, 2001, p.7. 20 Como exemplo Isabel Furtado com Michael Alder, João Pedro Serôdio e Nuno Brandão Costa com Herzog & de Meuron. RODEIA, João Belo, Idem. 21 RODEIA, João Belo, Idem. 22 Sobre este tema ver discursos de Rafael Moneo: MONEO, Rafael, “La Soledad de los Edificios, [1985], in MONEO, Rafael, 1967-2004: antologia de urgencia, El Croquis, 2004, p.608-614; MONEO, Rafael, “Sul concetto di arbitrarietà in architectura”, Casabella, nº 735, 2005, p.22-23.


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1997-2000 | Casa de Chá - Paço das Infantas - Castelo de Montemor-o-Velho João Mendes Ribeiro

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Casa de Chá - vista pelo interior

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Casa de Chá - fachada e pré-existências

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“O desafio é, paradoxalmente, garantir que a comunicação não substitui a construção, que o domínio do discurso das ideias não substitua o domínio sobre os problemas materiais da construção.” 23 A conservação dessa estrutura de desenvolvimento geracional ou a reconstrução da tradição e da memória através da aprendizagem com os arquitectos que os antecederam, é um dos factores que permite a essa geração continuar criticamente seus mestres e de adicionar a esses algo de novo ao fazer arquitectónico. “A tradição…não pode ser herdada, e se a quisermos, tem de ser obtida com árduo labor. Envolve, em primeiro lugar, o sentido histórico, o qual … compreende uma percepção não só do passado mas da sua presença; [e] compele o [arquitecto] a trabalhar não apenas com a sua própria geração no sangue, mas também com um sentimento de que toda a [arquitectura europeia] desde [Ictinus], e nela a totalidade da [arquitectura] da sua pátria, possui uma existência simultânea e compõe uma ordem simultânea. Esse sentido histórico, que é um sentido do intemporal bem assim como do temporal, e do intemporal e do temporal juntos, é que torna um [arquitecto] tradicional. E é, ao mesmo tempo, o que torna um [arquitecto] mais agudamente consciente do seu lugar no tempo, da sua própria contemporaneidade. Nenhum [arquitecto], nenhum artista de qualquer arte, detém, sozinho, o seu completo significado…” 24 A arquitectura enquanto disciplina aberta e integrada em outros campos, como o das artes, ganha grande força com a globalização da informação e da cultura de massas, sendo assimilada de forma dinâmica por esses jovens arquitectos através de um intercâmbio osmótico constante25, integrando os mais variados estímulos de forma natural e dilatando as possibilidades de adaptar reflectidamente estas influências. Esta facilidade com que retêm e se apropriam das mais diversas práticas, permite a este grupo uma viva e profícua compartilha de experiências, característica muitas vezes reflectida na forma de um certo nomadismo profissional, onde as associações alternadas a diferentes arquitectos, ou ateliers, propõem adicionar ao projecto, e às experiências particulares, 23 GADANHO, Pedro, PEREIRA, Luís Tavares (coord.), Metaflux: duas gerações na arquitectura portuguesa recente, Civilização, 2004, p.165. 24 O texto original é de ELIOT, T. S., “A tradição e o talento individual”, in Ensaios de Doutrina Crítica, Lisboa: Guimarães Editores, 1997, p.22-23, e refere-se ao campo das artes. A adaptação do texto de T. S. Eliot para a arquitectura é de WILSON, Colin St. John, “The Historical sense: T. S. Eliot’s concept of tradition, and its relevance to architecture”, [1992], in Architectural reflections: studies in the philosophy and practice of architecture, Butterworth Architecture, Oxford, 2ª ed., 1994. 25 CONFURIUS; Guerrit, “Le Corbusier sorri”, in GADANHO, Pedro, PEREIRA, Luís Tavares (coord.), Metaflux ..., p.181.


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1999-02 | Bares em Gaia - Vila Nova de Gaia Cristina Guedes e Francisco Vieira de Campos (Menos é Mais Arquitectos)

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Bares em Gaia - ligação em fole entre o bloco de serviços e o de restauração

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Bares em Gaia - vista interior do espaço de restauração

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as reflexões complementares de outras disciplinas e as influências e afinidades pessoais de forma a unir esforços na gestão dos meios para melhor responder às encomendas. Se no ano anterior, em Influx, se salientava a abundância de fluxos de influência e a alteração de referentes, esses são, no catálogo da exposição ‘Metaflux: duas gerações na arquitectura portuguesa recente’26 para a 9ª Bienal de Arquitectura de Veneza (2004), também de Pedro Gadanho e Luís Tavares Pereira, assumidos como dados adquiridos, como factores de transformação e metamorfose do contexto e da identidade da arquitectura recente.27

capa do catálogo da exposição ‘Metaflux’ | 2004

“A metamorfose que aqui se retrata não é, portanto, de formas mas de modos; não diz respeito a uma alteração de linguagens ou estilos, mas sim de atitudes. E não é localizada num espaço geográfico… mas sim inscrita na redefinição genética da identidade europeia.” 28 Mais uma vez o presente é apresentado como tempo decisivo e perene, desconsiderando os fluxos de conhecimento como uma actividade intrínseca à tradição formativa do arquitecto e enaltecendo um constante renovar de atitudes, evidenciadas pelas transformações profundas do contexto social e cultural português e justificadas na ambição pelo alinhamento da arquitectura portuguesa com as expressões europeias contemporâneas mais arrojadas. É mais uma vez num artigo de Luís Tavares Pereira que, o que à priori se poderia entender como um possível delinear de uma linha de influência a partir de gerações anteriores da arquitectura portuguesa demonstra, na realidade, o distanciamento e a superficialidade em relação aos aspectos da prática e do percurso de arquitectos como Fernando Távora, Álvaro Siza, Eduardo Souto de Moura ou João Luís Carrilho da Graça e elogiando, propositadamente, o “brilhantismo das ideias” da nova geração. 29 Todavia, com um olhar mais atento e profundo sobre o material de projecto apresentado, percebe-se de forma mais evidente que todos 26 Além da 9ª Bienal de Arquitectura de Veneza (2004), a exposição foi apresentada também na Cordoaria Nacional em Lisboa (2004) e no Instituto Tomie Othake em São Paulo (2005). Os arquitectos e ateliers presentes no catálogo da exposição são: Guedes + de Campos; Inês Lobo; João Mendes Ribeiro; Promontório Arquitectos; Serôdio, Furtado & Associados; A.S Atelier de Santos; Bernardo Rodrigues; Marcosandmarjan Architects; Nuno Brandão Costa; S’A Arquitetos; Augusto Alves da Silva; Didier Fiuza Faustino; Nuno Cera + Diogo Lopes; Pedro Bandeira e Rui Toscano. 27 GADANHO, Pedro, PEREIRA, Luís Tavares (coord.), Metaflux: duas gerações na arquitectura portuguesa recente, Civilização, 2004, p.21. 28 GADANHO, Pedro, “X vs. Y – not = Diversidade. Equações de identidade na arquitectura portuguesa recente”, in Idem, p.35. 29 PEREIRA, Luís Tavares, “Coluna dorsal. Sensível, sob a superfície”, in Idem, p.163.


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1999-07 | Recuperação da Quinta dos Bouçós - Valença do Minho Nuno Brandão Costa

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Quinta dos Bouçós - vista interior de um dos quartos

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Quinta dos Bouçós - detalhe do volume da casa de banho em um dos quartos

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exibem as mesmas virtudes das obras de seus antecessores. A diferença essencial está nos objectivos e no discernimento do tratamento de circunstâncias diversas.30 “O espírito do [arquitecto] é, de facto, um receptáculo para a apreensão e acumulação de inúmeros sentimentos, frases, imagens que aí permanecem até estarem presentes, em conjunto, todas as partículas susceptíveis de se unir para formar um novo composto.” 31

Responsabilidade colectiva: urbana e disciplinar Apesar do distanciamento, mais desejado que efectivo e mais parte de um discurso crítico/teórico do que propriamente de uma realização prática, o que se observa como certo é que a incorporação de referências prescinde de um delicado ponderar da estratégia urbana de que o objecto não é isolado32, ampliando o debate acerca das transformações urbanas, questão também díspar entre o plano teórico e prático.33 “O tratamento físico obrigatório com a arquitectura precedente, característico da cidade tradicional, fora inevitavelmente quebrado no mundo moderno. E com ele se quebrou também a continuidade da experiência, fazendo com que aparecesse o mal da cidade contemporânea que é o desenraizamento.” 34 Foram estruturadores desse debate os projectos de requalificação urbana de cidades como Paris, Berlim e Barcelona – esta última reurbanizada por ocasião da Olimpíada de 1992 – projectos este contemporâneos ao fim do percurso académico e iniciação profissional desta geração, que afrontaram a cidade real favorecendo a mutação entre os múltiplos factores que a movimentam. Conscientes das responsabilidades inerentes às transformações do centro urbano onde vivem, ao capitalismo e à especulação imobiliária, esta geração, que cresceu muito mais miscigenada e indiferenciada, parece 30 CONFURIUS; Guerrit, “Le Corbusier sorri”, in GADANHO, Pedro, PEREIRA, Luís Tavares (coord.), Metaflux: duas gerações na arquitectura portuguesa recente, Civilização, 2004, p.183. 31 ELIOT, T. S., “A tradição e o talento individual”, in Ensaios de Doutrina Crítica, Lisboa: Guimarães Editores, 1997, p.28. Adaptação para a arquitectura feita pela autora. 32 PEREIRA, Luís Tavares, “Relatório Minoritário”, in GADANHO, Pedro, PEREIRA, Luís Tavares (coord.), Influx: arquitectura portuguesa recente, Civilização, 2003, p.162. 33 ROGERS, Ernesto Nathan, “La arquitectura moderna depués de la geración de los maestros”, [1958], in HEREU, P., MONTANER, J. M., OLIVERAS J., Textos de arquitectura de la modernidad, Madrid: Nerea, 1994, p.324. 34 MARTÍ ARÍS, Carlos, “El concepto de transformacíon como motor del proyecto”, in La cimbra y el arco, Fundacíon Caja de Arquitectos, 2005, p.49.


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2000-05 | Casa no Carreço - Viana do Castelo Nuno Grande e Pedro Gadanho

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Casa no Carreço - vista da entrada

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Casa no Carreço - vista posterior

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ter, neste sentido, uma privilegiada identidade urbana, capaz de permitir uma relação muito mais clara e distinta nas reciprocidades entre o projecto e o urbano. “A arquitectura numa situação tão específica tem de fazer mais do que apenas encaixar-se no meio e fazer muito mais do que apenas ter um impacto civilizador no mesmo.” 35 O fenómeno que até à 30 anos atrás produzia diversidades específicas entre Lisboa e Porto, quanto à expressão e metodologia da produção arquitectónica, torna-se muito mais ténue nos últimos 20 anos, devido sobretudo à grande mobilidade dos arquitectos mais jovens36, valorizando uma maior unidade enquanto país, para além de uma cidade, o Porto. “Por conseguinte o Projecto de Arquitectura é sempre um fazer cultural que se faz local com o conhecimento global e que se faz mais global, mais capaz de responder a todas as condições e situações, com cada conhecimento global acrescentado.” 37 Dessa forma, assumem uma certa responsabilidade colectiva no seu modo de actuar, considerando o hoje não apenas como o resultado directo do que foi feito anteriormente, mas sim como a possibilidade de antever um futuro e ser resultado deste futuro desejado.38 Este comprometimento reflecte-se no interesse e constante proximidade com os conhecimentos directamente vinculados ao exercício da disciplina da arquitectura e na necessidade de transmiti-los. A ideologia antes política e social converte-se em ideologia disciplinar. A disciplina de projecto destaca-se, reflectindo sobre o imprescindível em arquitectura e, neste sentido, o essencial, temporal e resistente.39 É também de salientar a participação de um número significativo de integrantes deste grupo geracional em escolas, a exercer a função docente,

35 CONFURIUS; Guerrit, “Le Corbusier sorri”, in GADANHO, Pedro, PEREIRA, Luís Tavares (coord.), Metaflux: duas gerações na arquitectura portuguesa recente, Civilização, 2004, p.187. 36 CANNATÀ, Michele, FERNANDES, Fátima, “De Exílio da Arquitectura Moderna à Contemporaneidade”, in MOURA, Eduardo Souto, FERNANDES Fátima, FIGUEIRA, Jorge, et al. (com.), Des-continuidade: arquitectura contemporânea, Norte de Portugal, Civilização, 2005, p.18. 37 RODEIA, João Belo, “Ritos antigos e caminhos novos: obras recentes de uma Arquitectura portuguesa contemporânea”, Portal Vitruvius, Arquitextos, nº 081, Fevereiro 2007. [versão electrónica]. 38 RODEIA, João Belo, “Línea de tierra: presentación de una nueva geración de arquitectos portugueses”, 2G – Revista Internacional de Arquitectura, nº 20, “Arquitectura Portuguesa, una nueva generación”, Barcelona: Gustavo Gili, 2001, p.20. 39 RODEIA, João Belo, Idem, p.18.


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2001-04 | Casa em Louro - Vila Nova de Famalicão Luís Tavares Pereira e Guiomar Rosa ([A]. ainda arquitectura)

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Casa em Louro - vista interior da área de estar

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Casa em Louro - sala de estar e varanda

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Casa em Louro - vista do corredor de aceso aos quartos

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retomando de forma mais completa e efectiva a tríade: prática, crítica e ensino da arquitectura.40 “Existe uma estreita relação entre o crítico e o professor. Se poderia dizer que uma forma de ser professor é exercer a crítica para os estudantes… [entendendo] a crítica como um procedimento que evita que a teoria e a prática desenvolvam-se separadamente, garantindo uma relação de reciprocidade entre ambas… Analisar, criticar e propor são, então, partes entrelaçadas de um único processo de conhecimento.” 41 A partir desta visão mais colectiva e global, a exposição e catálogo ‘Des-continuidade: arquitectura contemporânea, Norte de Portugal’ (2005), de Eduardo Souto Moura, Fátima Fernandes, Jorge Figueira, Michele Cannatà e Nuno Grande, pretende ir além de uma proposta evidente de divulgação da arquitectura portuguesa. Organizada propositadamente para ser apresentada em São Paulo42 a mostra procura promover e capa do catálogo da exposição ‘Des-continuidade’ | 2005

aprofundar o conhecimento da melhor arquitectura produzida no Norte de Portugal.43 A iniciativa foi muito bem recebida e a aproximação adquirida por estes jovens arquitectos com a geração correspondente no Brasil, e especificamente em São Paulo44, permitiu o encontro sem precedentes de gerações de arquitectos influentes dos dois países.45 O catálogo, apesar de ainda expor uma linha crítica muito voltada para a reivindicação (forçosa) de uma pretensa descontinuidade com o seu 40 Ver “Conversas com Arquitectos”, in Anexo, p. 189-219. 41 MARTÍ ARÍS, Carlos, “Una opinión sobre la crítica”, in La cimbra y el arco, Fundacíon Caja de Arquitectos, 2005, p.15-20. 42 O projecto contou com o apoio da Ordem dos Arquitectos - Secção Regional Norte (OASRN) e o Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB) foi organizado na forma de uma exposição de trabalhos de alguns arquitectos, apresentados no Centro de Convenções da Fecomércio, em São Paulo, seguida de uma série de quatro sessões de apresentação das obras além de conferências e debates com diversos arquitectos. 43 MOURA, Eduardo Souto, FERNANDES Fátima, FIGUEIRA, Jorge, et al. (com.), Descontinuidade: arquitectura contemporânea, Norte de Portugal, Civilização, 2005. 44 Ana Vaz Milheiro viveu em São Paulo para a realização da sua tese de Doutoramento em Arquitectura pela FAU-USP, orientada pelo arquitecto João Walter Toscano e intitulada “Imenso Portugal: culturas arquitectónicas portuguesa e brasileira - um diálogo a três tempos” (2001). Neste período a arquitecta estabelece maior relação com diversos arquitectos brasileiros, e em particular com os integrantes do atelier UNA Arquitetos (Cristiane Muniz, Fábio Valentim, Fernanda Barbara e Fernando Viégas). 45 Os ciclos de conferência foram organizados da seguinte forma: 1º dia: conferência com Álvaro Siza Vieira e debate com Paulo Mendes da Rocha e Ruy Ohtake; 2º dia: conferência de Eduardo Souto de Moura, Manuel Graça Dias, e debate com Paulo Bruna, João Filgueiras Lima e Benedito Lima de Toledo, como moderador o arquitecto Fernando Melo e Franco; 3º dia: apresentação de Paulo Sophia como moderador, conferência com Fátima Fernandes e Michele Cannatà, João Luís Carrilho da Graça e debate com Décio Tozzi, Sylvio Sawaya e João Walter Toscano; 4º dia: Fernanda Barbara como moderadora nas conferências com Nuno Grande e Jorge Figueira e debate com Miguel Pereira, Dácio Ottoni e Julio Katinsky.


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2001-04 | Casa em Afife - Afife Nuno Brandão Costa

Casa em Afife - detalhe da entrada e lateral

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Casa em Afife - detalhe da escada interior

Casa em Afife - vista da sala de jantar e estar para o exterior

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tempo antecedente, apresenta indícios mais directos de uma relação não tão distante, ou ao menos possível. “Comparando essas duas idades [dos arquitectos de 1940 à 1975 e 1990 à 2005], encontramos, naturalmente, sinais de descontinuidade (conceito inerente ao tema da exposição) mas também de comunhão intergeracional, sobretudo na forma de encarar e operar dentro da matriz universalista da modernidade (outra possível leitura do mesmo tema).” 46 Esta dubiedade torna-se ainda mais evidente pela oposição existente entre a argumentação de seus artigos e a organização gráfica de projectos e obras. Apesar da pretendida distinção por temas (cidade moderna, edifícios de referência e des-continuidade) a apresentação contínua, inicialmente a preto e branco, de algumas obras chave da arquitectura do Porto e do Norte de Portugal entre 1940 e 1970, seguidas de obras recentes de referência, introduzem a ideia de precedente e traçam juntas o património disciplinar ao qual sucedem as obras da geração mais recente.47 “O conjunto de obras… pretende afirmar uma atitude actual e preponderante da arquitectura portuguesa, capaz de desenvolver as raízes da própria cultura arquitectónica e paralelamente inovar e acrescentar valores à cultura arquitectónica internacional. Demonstram portanto a existência do real potencial de um vasto património de recursos intelectuais, técnicos e artísticos, disponíveis para realizar mudanças concretas e qualificadas na forma desumana e degradada de habitar e viver do homem contemporâneo.” 48 A evidente afinidade entre os projectos apresentados indica a formulação de uma arquitectura corrente na medida em que estabelecem 46 GRANDE, Nuno, “Portugal: terrirório, cidade e arquitectura. Da Nação-navio ao Paísarquipélago”, in MOURA, Eduardo Souto, FERNANDES Fátima, FIGUEIRA, Jorge, et al. (com.), Des-continuidade: arquitectura contemporânea, Norte de Portugal, Civilização, 2005, p.30. 47 Os arquitectos e ateliers presentes no catálogo da exposição sob o tema “des-continuidade” são: Adalberto Dias, Alcino Soutinho, Atelier 15, Álvaro Siza Vieira, Álvaro Leite Siza Vieira, António Leitão Barbosa, António Portugal e Manuel Maria Reis, Arx Portugal, António Belém Lima, Bernardo Távora, Carlos Martins e Elisiário Miranda, Cristina Guedes e José Fernandes Gonçalves, Eduardo Souto de Maura, Cannatà e Fernandes, Fernando Távora, Gonçalo Byrne, Isabel Furtado e João Pedro Serôdio, José Gigante, João Álvaro Rocha, João Luís Carrilho da Graça, João Mendes Ribeiro, Jorge Nuno Monteiro, José Fernando Gonçalves, Nuno Valentim Lopes, José Manuel Soares, [A] Ainda Arquitectura, Luís Ferreira Rodrigues, Manuel Aires Mateus e Francisco Aires Mateus, Manuel Graça Dias e Egas José Vieira, Nuno Brandão Costa, Paula Santos, Paulo Providência e ANC arquitectos. Nomes já consagrados da arquitectura portuguesa estão aqui reunidos pelo valor e especificidade de obras mais recentes. 48 CANNATÀ, Michele, FERNANDES, Fátima, “De Exílio da Arquitectura Moderna à Contemporaneidade”, in MOURA, Eduardo Souto, FERNANDES Fátima, FIGUEIRA, Jorge, et al. (com.), Des-continuidade: ..., p.20.


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2002-05 | Casa em Vila Marim - Vila Real Jorge Figueira

Casa em Vila Marim - detalhe do duplo pé-direito na ligação entre os pisos

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Casa em Vila Marim - fachada posterior e piscina

Casa em Vila Marim - detalhe do material trasnlúcido na façhada vista da rua

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uma identidade genérica, fruto de uma sociedade global, mas ainda identificável como portuguesa, para além de possíveis ‘estilismos’.49 “Será que… todas as outras proporções de revisão ajudam os [arquitectos] a individualizar-se a si próprios, a serem verdadeiros eles, ou pelo contrário distorcem os filhos [arquitectónicos] tanto quanto estes distorcem os pais?” 50 Neste sentido, o título Des-continuidade acaba por ressoar muito mais como uma afirmação (continuidade) a partir da sua negação (prefixo “des-”) do que propriamente a sua recusa que, através de uma afirmação de defesa psíquica, salienta ainda mais o seu oposto. As diferenças e contradições identificadas por uma desejada inovação surpreendente resultam, na verdade, em variantes muito subtis de atitudes e práticas relativamente semelhantes. Como dois lados da mesma moeda. Por um lado, experiencia-se o desenraizamento através da crítica, do desejo de obra própria, única, talvez num processo de “angústia da influência”. Por outro, experiencia-se a pertença das suas obras efectivas a uma linha de tradição, talvez por necessidade de pertencer ao sistema. “A influência [arquitectónica] é perda e ganho, inseparavelmente entretecidos no labirinto da história... Precisamos de deixar de pensar nos [arquitectos] como egos autónomos, por muito solipsistas que os [arquitectos] mais fortes possam ser. Todo o [arquitecto] é apanhado por uma relação dialéctica (transferência, repetição, erro, comunicação) com outro [arquitecto] ou [arquitectos].” 51 Desse modo, talvez se possa dizer que, através da presença e da conservação de um conjunto de instrumentos projectuais que suportam de forma subtilmente oculta o trabalho destes jovens arquitectos portugueses, a diversidade da sua actividade profissional e a hibridez inclusiva da suas soluções projectuais estejam, cada vez mais, ligadas a uma identificação e especificidade propriamente portuguesas.

49 Para a observação e análise de uma obra contemporânea ver artigo de Rui Ramos sobre casa de Jorge Figueira, a obra não se apresenta no referido catálogo mas foi produzida também nesse período (2002-2005): RAMOS, Rui Jorge Garcia, “Elenco para uma arquitectura doméstica: casa em Vila Marim”, Opúsculo, nº 5, Porto: Dafne, 2007. 50 BLOOM, Harold, A angústia da influência: uma teoria da poesia, [1973], Lisboa: Cotovia, 1991, p.101. Adaptação para a arquitectura feita pela autora. 51 A relação de defesa psíquica e a noção de angústia da influência são apresentados por Harold Bloom. BLOOM, Harold, Idem, p.43 e 104. Adaptação para a arquitectura feita pela autora.


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1992-94 | Casa em Orlândia - Orlândia - SP Alvaro Puntoni e Angelo Bucci

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Casa em Orlândia - sala de estar e pátio interno

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Casa em Orlândia - vista posterior

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Tradição: continuidade e transformação A52partir de 1990 também a geração de activa participação académica e disciplinar da FAU-USP53 deixa a escola ciente da inadequação dos discursos heróicos precedentes, em muito reforçado pelo cenário brasileiro extremamente conturbado do período pós-redemocratização. Apesar da globalizada sociedade de consumo que se estabelecia nas áreas metropolitanas, a situação económica e política do país (devido à inflação acelerada e o desastroso governo Collor)54 era extremamente crítica. Também a dinâmica arquitectónica, dominada pela iniciativa privada, pela especulação imobiliária e ainda muito ausente dos meios de comunicação brasileiros, à excepção dos velhos mestres (como Oscar Niemeyer que sempre dominou a dinâmica da informação nacional), dificultava a assimilação das contribuições arquitectónicas elaboradas pelas novas gerações na cultura social, limitando o espaço de actuação profissional do arquitecto e restringindo sua inserção no mercado de trabalho. “Nas últimas décadas do século XX se acompanhou a dinâmica estilística e o debate teórico assumidos no exterior, sem concretizar um movimento renovador coeso que identificasse a produção brasileira no panorama mundial, como aconteceu com a vanguarda modernista.” 55

52 ← Todas as imagens que acompanham o desenvolvimento do texto são uma referência da produção portuguesa recente considerada mais relevante para cada tema mencionado. Foi utilizado como referência na selecção das obras as seguintes publicações: ZEIN, Ruth Verde, “Arquitetos de SP: breve panorama de uma nova geração”, [2000], < http://sites. google.com/site/rvzein/>, SEGRE, Roberto, Jovens arquitetos, Rio de Janeiro: Viana & Mosley, 2004, CAVALCANTI, Lauro, LAGO, André Corrêa, Ainda moderno? Arquitetura brasileira contemporânea, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005 e MILHEIRO, Ana Vaz, NOBRE, Ana Luiza, WISNIK, Guilherme (com.) Coletivo – 36 projetos de arquitetura paulista contemporânea, São Paulo: Cosac Naify, 2006. 53 Refere-se como relevantes componentes desta geração os arquitectos que participaram, enquanto discentes, da publicação da revista Caramelo, e em particular nos seus seis primeiros números, como Ana Paula Pontes, André Stolarski, Catherine Otondo, Cristiane Muniz, Fábio Rago Valentim, Fernanda Barbara, Fernando Felippe Viégas, Fernando Nigro Rodrigues, Juliana Mendes Prata, e outros como Guilherme Wisnik, Vinicius Andrade, e não só, que partilharam deste mesmo período académico ou do mesmo engajamento. 54 Fernando Affonso Collor de Mello (1949), foi o primeiro presidente eleito por voto directo após o Regime militar, em 1989. A meta de eliminar a inflação passou pela adopção de um neoliberalismo desastroso. Embora inicialmente tenha-se reduzido a inflação, o plano adoptado ocasionou a maior recessão da história brasileira. Paralelamente montavase um esquema de corrupção e, em 1992, o Congresso Nacional instala uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar o caso. Durante os trabalhos da CPI, a população brasileira sai às ruas para pedir o impeachment (impugnação de mandato). O processo de impeachment foi aberto, contabilizando 441 votos a favor. Collor renunciou ao cargo, mas com o processo já aberto, teve seus direitos políticos cassados até 2000. Ver acervo revista Veja <http://veja.abril.com.br/acervodigital/> 55 SEGRE, Roberto, Jovens arquitetos, Rio de Janeiro: Viana & Mosley, 2004, p.18.


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1993-98 | Pousada em Juquehy - São Sebastião - SP Alvaro Puntoni e Angelo Bucci

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Pousada em Juquehy - detalhe dos vãos laterais

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Pousada em Juquehy - vista posterior da sequência de blocos

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A esperança utópica é então substituída pela realidade, pelo objectivo fundamental de superação dos ‘anos de crise’ da arquitectura no Brasil, abandonando a posição defensiva de ‘vítimas da história’. “O conhecimento do elo que cada arquitectura tem com o passado é a condição que permite sermos construtores do nosso tempo, superando, no melhor dos casos, a nossa tradição.” 56 O que antes caracterizava um posicionamento provocativo de carácter estudantil passa a revelar, com a entrada na actividade profissional, o forte legado da peculiar tradição moderna da “Escola Paulista Brutalista”57, da qual esses jovens arquitectos são herdeiros, e como pode-se notar no percurso desenvolvido por Fernanda Barbara, Guilherme Wisnik, Vinicius Andrade, entre outros. Em oposição ao imediatismo contemporâneo, essa nova geração reaproxima-se do caminho já aberto pelos seus precedentes, na procura de uma maior consciencialização sobre as obras dos anos de 1940/6058 e assumindo, consequentemente, muitos dos valores já estipulados. Temas de há cinquenta anos são reavaliados não de forma anacrónica, mas sob uma nova perspectiva, a de poderem ser finalmente realizados com os recursos científicos e tecnológicos da contemporaneidade e com objectivos éticos e morais voltados para as necessidades da sociedade contemporânea.59 “No mesmo foco eu tenho um pára-brisa, um futuro, e um retrovisor, que me dá as referências do passado… duas imagens que se superpõem… o presente é só o pára-brisa. Tudo o que vem a frente é futuro e tudo o que vem atrás é passado, o presente como uma fronteira em movimento.” 60 Esta postura revisionista acompanha a tendência de redescoberta de arquitectos menos engajados, como visto anteriormente. No entanto, este 56 RAMOS, Rui Jorge Garcia, “A formulação da descontinuidade na crítica de arquitectura contemporânea ou a transitoriedade da tradição”, 2007, p.19. <http://hdl.handle. net/10216/15388> 57 Posicionamento desenvolvido também no primeiro capítulo. Sobre a Escola Paulista Brutalista ver: ZEIN, Ruth Verde, Arquitetura Paulista Brutalista 1953-1973. <http://www. arquiteturabrutalista.com.br/index1port.htm> 58 ZEIN, Ruth Verde, “Arquitetos de SP: breve panorama de uma nova geração”, [2000], < http://sites.google.com/site/rvzein/> 59 SEGRE, Roberto, “A espiral da história: 1959-2009”, Portal Vitruvius, Resenhas, ano 9, vol.97, p.271, Janeiro 2010. [versão electrónica]. 60 Depoimento de Antônio Carlos Sant’Anna Jr. onde defende a “metáfora do pára-brisa e do retrovisor”, em: SANTOS, Cecília Rodrigues, SEGAWA, Hugo, ZEIN, Ruth Verde, et al. (coord.), “Em debate, a crise dos anos 80 e tendências da nova década”, Revista Projeto, nº 129, “2 Décadas: arquitetura dos anos 80 e as tendências da nova década”, editor Vicente Wissenbach, São Paulo: Arco Editora, Jan./Fev., 1990, p.144.


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1994-95 | Edifício da DPTO Propaganda e Marketing - São Paulo Fernando de Mello Franco, Marta Moreira e Milton Braga (MMBB Arquitetos)

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DPTO Propaganda e Marketing - vista posterior

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DPTO Propaganda e Marketing - vão de escadas

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DPTO Propaganda e Marketing detalhe da fachada durante o dia

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DPTO Propaganda e Marketing detalhe da fachada ao fim do dia

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processo crítico desencadeado na Europa nunca chegou a ser devidamente experimentado entre os arquitectos brasileiros.61 Nesse sentido, a afirmação da qualidade ‘paulista’ dessa geração, apesar de talvez demasiado cómoda, apresenta-se livre de posições dogmáticas e acepções tipificadas da cultura arquitectónica, sendo a sua atitude receptiva e descomprometida, permitindo novas perspectivas a partir de uma releitura do modernismo que valoriza o vocabulário corbusiano, no relacionamento entre formas simples e princípios éticos, bem como dinamiza as suas potencialidades através de novas contribuições críticas. “Os conceitos da arquitectura contemporânea e moderna confundem-se… acentuando o uso da arquitectura moderna como repertório preservado.” 62 Conhecedora do peso do legado que assumia e, sobretudo, consciente do necessário alinhamento com o seu tempo presente, essa jovem geração parece sempre procurar a justa medida entre continuidade e transformação, ora mostrando-se mais ligada a uma certa tradição e por vezes demasiadamente centrada sob esta, ora confrontando-a com novas perspectivas. “…não dizemos precisamente que a obra nova possui mais valor porque se ajusta, mas que o seu ajustamento é uma prova do seu valor…” 63 Este alinhamento de coordenadas era perceptível já em 1991, quando da publicação, pela revista Projeto, de ‘Jovens Arquitetos - O espaço e o mercado’, matéria dirigida à apresentação da nova geração de arquitectos brasileira.64 Os textos críticos que antecedem a apresentação dos trabalhos distinguem, por um lado, a presença de uma abordagem de operações intelectuais rigorosas e a necessidade do resgate da relação com capa revista Projeto, 143 | 1991

a construção e do carácter social da arquitectura com o depoimento de Antônio Carlos Sant’Ana Jr.

61 NOBRE, Ana Luiza, “Arquitetura brasileira, prática jovem”, Rio de Janeiro, versão de Julho de 2004. [texto inédito cedido pela autora]. 62 LUCAAS, Luís Henrique Haas, “Arquitetura contemporânea no Brasil: da crise dos anos setenta ao presente promissor”, Portal Vitruvius, Arquitextos 101, Outubro 2008. [versão electrónica]. 63 ELIOT, T. S., “A tradição e o talento individual”, in Ensaios de Doutrina Crítica, Lisboa: Guimarães Editores, 1997, p.24. 64 A matéria possuía três artigos e a sequencial apresentação dos novos arquitectos e ateliers, com imagens dos projectos ou obras mais relevantes e uma breve descrição do seu percurso académico e profissional. SANTOS, Cecília Rodrigues, “Novíssimos Arquitetos”, Revista Projeto, nº 143, editor Vicente Wissenbach, São Paulo: Arco Editora, Julho de 1991, p.54. No mesmo número da revista é publicada uma extensa matéria sobre o projecto de reconstrução do Chiado, de Álvaro Siza, também apresentada nesta edição como imagem de capa.


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1996-99 | Garagem Trianon Park - São Paulo Fernando de Mello Franco, Marta Moreira e Milton Braga (MMBB Arquitetos)

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Garagem Trianon Park - piso de estacionamento tipo

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Garagem Trianon Park - volume de serviços suspenso

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“Antes, a abordagem dos problemas estava muito fundada na sensibilidade… A arquitectura se fazia com paixão e o objectivo era provocar emoções… [Hoje] ao invés da paixão (a paixão cega oblitera, embota a razão), instaura-se o primado da razão. O objetivo não é emocionar, mas provocar a reflexão.” 65 Em contraponto, o depoimento de um jovem arquitecto, Sérgio Moacir Marques, aponta o desequilíbrio na actuação dos arquitectos seus contemporâneos, em parte fruto da falta de valorização de uma boa formação, das circunstâncias negativas do mercado e também da pouca experiência que têm em lidar com as contradições entre a perenidade da arquitectura e o imediatismo contemporâneo. “Se a formação atual é extremamente positiva, pela óptica do fazer arquitetura, creio que perdemos em termos de valores humanos… para o jovem arquitecto, o mais importante seria procurar o equilíbrio: um pouco de teoria, um pouco de repertório, um pouco de prática, um pouco de política, um pouco de cerveja… O importante é não fechar nenhuma porta e não abrir apenas uma…” 66 Apesar de assumidamente parcial e restrita, como uma publicação numa revista assim exige, os textos críticos apresentados compõem de forma clara e objectiva o cenário de formação, desenvolvimento e prática profissional desta geração, não se limitando a uma visão única sobre os factos mas expondo-os sob as duas vertentes. Sintoma de um renovado interesse sobre a produção mais recente de arquitectura67, a mostra dos 37 jovens arquitectos surpreende pelo número de obras construídas ou em construção apresentadas, estimulando a divulgação da produção mais jovem e o debate crítico que essa propõe.68

65 SANTA’ANNA JR, Antônio Carlos, “Strada novíssima. Os caminhos da nova geração de arquitectos”, Revista Projeto, nº 143, editor Vicente Wissenbach, São Paulo: Arco Editora, Julho de 1991, p.56. Antonio Carlos Sant’Anna Jr é arquitecto, professor da FAU-USP e da FAU Mackenzie, e sócio-diretor do atelier Rino Levi Arquitetos Associados. 66 MARQUES, Sérgio Moacir, “O avesso do avesso: com a palavra, o protagonista”, Revista Projeto, nº 143, …, p.58. 67 A primeira publicação dirigida especificamente à produção arquitectónica de uma geração mais jovem ocorreu dez anos antes, em 1981, na revista Módulo, nº 71. 68 Os arquitectos e ateliers presentes nesta edição da Projeto representam, através de diferentes escolas, os estados do Rio Grande do Sul e São Paulo, nomeadamente Alexandre Loureiro e Givaldo Medeiros (EA Escritório de Arquitetura S.C.L.), ALfieri Chiamolera, Artur Katchborian, Francisco Sampaio e Mário Biselli (GPA S.C. Ltda. Arquitetura), Álvaro Puntoni, Álvaro Razuk e Ângelo Bucci (Arquitetura Paulista), Eurico Francisco, Fábio Mariz Gonçalves, Lívia França, Luís Freire, Maria do Carmo Vilariño e Zeuler Lima (Arquitetos Paulistas Associados S.C. Ltda.), Henrique Fina, Luciano Margotto, Marcelo Ursini, Sérgio Gomes e Sérgio Sousa (Núcleo de Arquitetura) e Fernando de Mello Franco, Marta Moreira, Milton Braga e Vinícius Gorgati (Via Arquitetura).


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1997- |Concurso para Espaço Cultural e Agência Central dos Correios - SP

Agência Central dos Correios - maqueta

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Agência Central dos Correios - Ana Paula Pontes, Catherine Otondo, Cristiane Muniz, Fábio Valentim, Fernanda Barbara, Fernando Viégas (UNA Arquitetos)

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Agência Central dos Correios - perspectiva da cobertura do pátio interior

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Multiplicidade de influências Sob esta perspectiva, esta geração apresenta-se voltada para os desígnios disciplinares da arquitectura, onde o interesse renovado pelo projecto e a desobrigação de tendências ou “Escolas” destaca o reconhecimento de alguns grandes mestres. A relevância de arquitectos reconhecidos na formação académica e profissional desses jovens possui algumas razões precedentes. Inicialmente a reafirmação e longevidade de importantes figuras da arquitectura moderna brasileira, como Oscar Niemeyer e Lucio Costa69, que tanto prolongam e enriquecem a vigência do moderno quanto fragilizam qualquer tentativa de emancipação.70 Em segundo, a publicação de monografias sobre os arquitectos modernos brasileiros71 e, especificamente em São Paulo, o rigor metodológico empregue por arquitectos como Paulo Mendes da Rocha, Gian Carlo Gasperini, Joaquim Guedes, João Walter Toscano, Julio Katinsky, Paulo Bruna, Sigfried Zanettini, Dácio Ottoni e Nestou Goulart, entre outros, ligados ao ensino de Vilanova Artigas, o que estabeleceu uma continuidade, antes construtiva que estilística, de uma identidade ‘paulista’ e na fundamentação de muita da teoria e da prática aplicada dentro da FAU-USP.72 Dessa maneira, diferentes grupos de alunos, recém-formados e desejosos em consolidar sua formação profissional, procuraram colaboração, como estagiários ou profissionalmente, nos ateliers de arquitectos paulistas, como Paulo Bruna, Isay Weinfeld, Rui Ohtake, Joaquim Guedes, entre outros, retomando problemas por eles identificados. Para além dessa possibilidade bastante restrita de trabalho com os seus mestres, as dificuldades de inserção profissional, a crise económica ocasionada pela crise do petróleo73 e o desgaste da própria disciplina 69 Em 1995 é publicado o livro autobiográfico de Lucio Costa (1902-1998), já aos 93 anos de idade, “Registro de uma vivência”. E em 1996 Niemeyer inaugura sua primeira obra relevante no Brasil após Brasília, o Museu de Arte Contemporânea (MAC) de Niterói. 70 NOBRE, Ana Luiza, “Arquitetura brasileira, prática jovem”, Rio de Janeiro, versão de Julho de 2004. [texto inédito cedido pela autora]. 71 Pode-se citar a série “Arquitetos Brasileiros” (Instituto Lina Bo e P.M.Bardi) e a colecção “Espaços da Arte Brasileira” (editora Cosac & Naify) que dedicam grande atenção à produção de Lina Bo Bardi, João Vilanova Artigas, Affonso Eduardo Reidy, Lucio Costa, Roberto Burle Marx e outros. 72 SEGRE, Roberto, Jovens arquitetos, Rio de Janeiro: Viana & Mosley, 2004, p.20. Note-se também que nenhum dos arquitectos pertencentes à esta geração mais jovem foi aluno de Vilanova Artigas, sendo o conhecimento sobre a importância de sua obra e seu discurso transmitidos por seus discípulos. 73 Com a Guerra do Golfo, em 1991, provocada pela invasão do Kuwait, um dos maiores produtores de petróleo do mundo, pelo Iraque, governado por Saddam Hussein. Com a invasão foram incendiados alguns poços de petróleo do emirado provocando uma grave crise económica.


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1997-98 | Residência P. A. - Carapicuíba - SP Vinicius Andrade e Marcelo Morettin (Andrade e Morettin Arquitetos)

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Residência P. A. - vista do interior

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Residência P. A. - detalhe do encontro dos dois sistemas construtivos

Residência P. A. - vista lateral, detalhe do material translúcido em todo o entorno da casa

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arquitectónica foram factores determinantes para que dezenas de jovens recém-formados procurassem alternativas mais estimulantes no exterior, e principalmente na Europa, em países como Espanha, França ou Itália.74 Também a atracção pelos conteúdos expressivos das tecnologias avançadas, apresentadas noutros países passa a ser notória na linguagem de alguns jovens. As opções por estruturas geométricas complexas, integração de funções e materiais diversos, como fibrocimento, madeira, cerâmica, polímeros, pedra, aço, procuram integrar a ‘high tech’ internacional à ‘low tech’ nacional, exemplarmente desenvolvida por João Filgueiras Lima, Helio Olga e Marcos Acayaba.75 Neste sentido, o rigor técnico e construtivo que assumem opõe-se ao formalismo e à artisticidade associada à ‘brasilidade’ típica da produção moderna, mas também às extravagâncias e estilismos contemporâneos. “Creio firmemente que a arquitectura necessita do suporte da matéria… Os arquitectos no passado eram ao mesmo tempo arquitectos e construtores… a invenção da forma era também a invenção de sua construção. Uma implicava a outra… o que, ao meu modo de ver, é o mais valioso atributo da arquitectura – fazer-se de ponte entre a arbitrariedade e a construção.” 76 Os que permaneceram ou retornaram, impossibilitados de concorrer as restritas encomendas públicas ou privadas, outorgadas pelo sistema das licitações aos escritórios de renome, criam esquipas de trabalho para elaborar projectos de pequeno porte para prefeituras, empresas locais e clientes pessoais77, reflectindo a metodologia de trabalho praticada na FAU-USP e salientando as afinidades pessoais entre os próprios jovens profissionais e destes com os seus mestres. Este mutualismo frutífero entre um grupo de jovens e um arquitecto consagrado, já bastante visível em São Paulo com Lina Bo Bardi e seus

74 Como exemplo pode-se citar as experiências de Alexandre Cafcalas, Vinicius Andrade (com E. Donato) e Tiago Holzmann, em Espanha; Otávio Leonídio (com Christian de Portzamparc), Francisco Spadini (Kenzo Tange & Associates) em França; Flávia de Farias, Assunta Viola (com Massimiliano Fuksas) em Itália, entre outros. Ver: GUERRA, Abilio, “Depoimentos de uma geração migrante”, Portal Vitruvius, Arquitextos 030.00, Novembro 2002. [versão electrónica]. 75 SEGRE, Roberto, Jovens arquitetos, Rio de Janeiro: Viana & Mosley, 2004, p.26 e NOBRE, Ana Luiza, “Arquitetura brasileira, prática jovem”, Rio de Janeiro, versão de Julho de 2004. [texto inédito cedido pela autora]. 76 MONEO, Rafael, “La Soledad de los Edificios, [1985], in MONEO, Rafael, 1967-2004: antologia de urgencia, El Croquis, 2004, p.608-614. 77 SEGRE, Roberto, Jovens arquitetos, Rio de Janeiro: Viana & Mosley, 2004, p.20.


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1996 | Terminal Parque Dom Pedro II - São Paulo Paulo Mendes da Rocha, Angelo Bucci, Fernando de Mello Franco, Marta Moreira e Milton Braga

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1996- | Centro Cultural FIESP - São Paulo Paulo Mendes da Rocha, Angelo Bucci, Fernando de Mello Franco, Marta Moreira e Milton Braga

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1998 | OCA Parque do Ibirapuera - São Paulo (projecto de Oscar Niemeyer) Paulo Mendes da Rocha, Angelo Bucci, Fernando de Mello Franco, Marta Moreira e Milton Braga

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1999 | Poupatempo Itaquera - São Paulo Paulo Mendes da Rocha, Angelo Bucci, Fernando de Mello Franco, Marta Moreira e Milton Braga

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colaboradores78, torna-se patente na figura de Paulo Mendes da Rocha e os jovens arquitectos e ateliers autónomos com quem se associa.79 “Quando o efebo, ou figura do jovem como [arquitecto] viril, é descoberto por seu Grande Original, é tempo de continuar, porque tem tudo a ganhar e o seu precursor nada a perder…” 80 Da mesma forma que os jovens procuraram os seus precursores para com eles desenvolverem os seus conhecimentos, os arquitectos da geração mais experiente também viram nos mais jovens possibilidades de aprendizagem e renovação. “Aquilo que divide qualquer [arquitecto] de seu Pai [Arquitectónico] (e, portanto pela divisão o salva) é um exemplo de revisionismo criativo.” 81 Este privilegiado cenário de trabalhos em equipa distancia as possibilidades de um individualismo heróico, bem como tende a dissolver o carácter autoral sobre a obra, privilegia as possibilidades multidisciplinares da arquitectura e o contínuo intercâmbio de influências, possibilitando também nomadismos entre estes para melhor adequação e resposta às solicitações e constante integração e adaptação dos mais diversos estímulos e experiências. Sob a perspectiva desta notória afinidade geracional, o livro ‘Jovens Arquitetos’, publicado em 2004 por Roberto Segre é responsável por um dos primeiros enquadramentos específicos desta geração de arquitectos. Apesar de apresentado em texto único do arquitecto, a obra reúne 48 obras de jovens profissionais, criando um primeiro panorama da arquitectura capa do livro ‘Jovens Arquitetos’ | 2004

brasileira contemporânea.82

78 Foram colaboradores próximos de Lina: Marcelo Ferraz (1955) e Francisco Fanucci (1952) responsáveis pelo atelier Brasil Arquitetura e também, em graus diversos, Marcelo Suzuki, André Vainer e Guilherme Paoliello. 79 A pouco mais de dez anos, Paulo Mendes da Rocha optou por trabalhar associados a colaboradores externos ao invés de trabalhar em um atelier próprio com uma estrutura tradicional. Os projectos são desenvolvidos com os ateliers: Escritório Paulistano de Arquitetura (Eduardo Colonelli e Silvio Oksman), Piratininga Arquitetos Associados (João Paulo Beugger, João Armênio Brito Cruz, Marcos Aldrighi e Renata Semin), MMBB (Fernando de Mello Franco, Marta Moreira e Milton Braga), Pedro Mendes da Rocha Arquitectos/Arte 3 (Pedro Mendes da Rocha, Felipe Noto, Maira Rios e Paulo Ferreira) e Metro Arquitetos Associados (Anna Ferrari, Gustavo Cedroni e Martín Corullón). Ver: 2G – Revista Internacional de Arquitectura, nº 45, “Paulo Mendes da Rocha. Obra reciente”, Barcelona: Gustavo Gili, 2008. 80 BLOOM, Harold, A angústia da influência: uma teoria da poesia, [1973], Lisboa: Cotovia, 1991, p.45. Adaptação para a arquitectura feita pela autora. 81 BLOOM, Harold, Idem, p.54. 82 SEGRE, Roberto, Jovens arquitetos, Rio de Janeiro: Viana & Mosley, 2004, p.8-26.


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1998-99 | Casa no sertão de Juquehy - São Sebastião - SP Alvaro Puntoni

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Casa no sertão de Juquehy - vista da varanda

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Casa no sertão de Juquehy - vista do interior da casa

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“Despertar para os desafios da vida significa para os jovens inserir-se em um sistema social, econômico e cultural, dominado geralmente pela geração que os precede.” 83 Assinalável pela sua iniciativa de projecto exclusivamente destinado à divulgação da produção arquitectónica de uma geração mais jovem e por reunir um grande número de arquitectos e tipologias de projecto (desde projectos residenciais a institucionais) de várias regiões do país, ‘Jovens Arquitetos’ parece encerrar-se um pouco em si mesmo, talvez pela falta de um maior debate e exposição sobre os projectos apresentados ou pela unicidade e consequente parcialidade de seu artigo crítico. Por outro lado, a exposição e catálogo ‘Ainda Moderno? Arquitetura brasileira contemporânea’ de Lauro Cavalcanti e André Corrêa do Lago, editado no ano seguinte (2005) por ocasião da exposição ‘Encore moderne? Architecture brésilienne 1928-2005’, em Paris84, mostra-se mais abrangente ao revisitar o período ‘heróico’ do modernismo brasileiro, mostrando a complexidade deste movimento (muitas vezes visto de maneira capa do catálogo da exposição ‘Ainda Moderno?’ | 2005

simplificada) e identificar a relação da geração jovem contemporânea com esse legado nacional.85 “Algo de interessante parece estar no ar: um modernismo revisitado, com alguns aspectos descartados e outras questões recolocadas em movimento.” 86 A ideia de um “modernismo em movimento” defendida pelos organizadores remete ao entendimento da pós-modernidade como um desdobramento de questões colocadas ainda dentro do universo moderno. Desta forma, a apresentação das obras dos jovens contemporâneos é sempre precedidas de imagens de exemplares paradigmáticos da arquitectura moderna brasileira, de modo a ser possível estabelecer, sem ilusões e de maneira dialéctica e conciliadora, “filiações e linhas de força” que caracterizam a nova geração.87 83 SEGRE, Roberto, Jovens arquitetos, Rio de Janeiro: Viana & Mosley, 2004, p.8. 84 Apresentada no Palácio Porte Dorée na Cité de l’architecture et du patrimoine, em Paris, entre Outubro de 2005 e Janeiro de 2006. Esta esposição estava inscrita no programa oficial do Brésil Brésils – Ano do Brasil na França, e apoiada pelo Comissariado Geral do Brasil, o Ministério da Cultura e o Ministério das Relações Exteriores do Brasil, assim como o Comissariado Geral da França, o Ministério das Relações Exteriores e o Ministério da Cultura e da Comunicação da França/Direcção da arquitectura e do património e a Associação Francesa de Acção Artística. 85 CAVALCANTI, Lauro, LAGO, André Corrêa, Ainda moderno? Arquitetura brasileira contemporânea, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005, p.09-19. 86 CAVALCANTI, Lauro, LAGO, André Corrêa, Idem, p.19. 87 CAVALCANTI, Lauro, “Filiações e linhas de força”, Idem, p.43-379. Os arquitectos e ateliers presentes no catálogo da exposição são: AAA - -Azevedo Arquitetos Associados, Alexandre Chan, Alvaro Puntoni, Angelo Bucci, Ana Paula Polizzo, André de Oliveira,


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1998-2000 | Clínica Odontológica - Orlândia - SP Angelo Bucci, Fernando de Mello Franco, Marta Moreira e Milton Braga (MMBB Arquitetos)

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Clínica Odontológica - entrada e detalhe da cobertura

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Clínica Odontológica - vista posterior em vidro

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Neste sentido, o título da publicação ‘Ainda Moderno?’ apresenta-se como um gesto ousado que questiona a pertinência, e antes o significado, do adjectivo ‘moderno’, contradição esta justificada nas palavras de Lucio Costa e muito bem defendida por Lauro Cavalcanti. “Para Lucio Costa, ser moderno era “conhecendo a fundo o passado, ser atual e prospectivo. Assim cabe distinguir entre moderno e modernista, a fim de evitar designações inadequadas. A arquitetura dita moderna, tanto aqui como alhures, resultou de um processo com raízes profundas, legítimas, e, portanto, nada tem a ver com certas obras de feição afetada e equívoca – estas sim, modernistas.” 88 Devido ao recorte singular e específico da exposição, foi propositadamente omitida a produção efectuada entre o período posterior à inauguração de Brasília (1960) e os anos de 1980 o que, de certa forma, encobre a forte influência que também tiveram de arquitectos em exercício na época, como João Filgueiras Lima ou Marcos Acayaba, factor importante para a compreensão deste retorno à história da nova geração. No entanto, a mostra em paralelo de obras modernas dos anos 1940 e 1950 permite o reconhecimento da particular aproximação desta jovem geração aos seus reconhecidos precursores, não simplesmente pela solução formal e estética mais evidente, mas principalmente pela sua relação conscientemente revisionista e coerente sobre este passado. “Uma arquitetura múltipla e plural praticada por profissionais que, sem reverenciar um tempo já passado, sabem nele encontrar riquezas e não fardos.” 89

Gustavo Martins, Marco de Almeida, Thorsten Nolte, Andrade Morettin Arquitetos Associados, André Vainer e Guilherme Paolielo Arquitetos, MMBB, Antônio Massa e Ernani Henrique Jr. Arquitetura, Arqdonini, Arquitetos Associados, Arquitetura Gilberto Guedes, Beatriz Lima, Mônica Schramm Andréa Bagniewski, Rodrigo Fortes, Igor Lacroix, Bel Lobo & Bob Néri Arquitetos, Bernardes e BLAC – Backheuser e Leonídio Arquitetura e Cidade, Borsoi Arquitetura, Brasil Arquitetura, Carla Juaçaba, Mário Fraga, Claudio Bernardes & Jacobsen Projetos, DDG Arquitetura, EDIF, Flávia de Faria e Israel Nunes, Geder Meotti, GRAU – Grupo de Arquitetura e Urbanismo, Gustavo Penna Arquiteto & Associados, Isay Weinfeld, José Kós, M2P Arquitetura e Engenharia, Marcio Kogan, Bruno Gomes, Diana Radomysler, Renata Furlanetto, Samanta Cafardo, Meia Dois Nove Arquitetura e Consultoria, Miguel Guimarães Arquitetos Associados, Thiago Bernardes, Muti Randolph, Núcleo de Arquitetura, Procter:Rihl, RAF Arquitetura e Planejamento e Mais Dois Arquitetos Associados, Rena Todeschi Arquitetura, Roberto Behar, Rosario Marquardt, Carlos Eduardo Comas, Glenio Bohrer, Roberto Moita, Rosa Grena Kliass Arquitetura Paisagística Planejamento e Projetos, Sérgio Parada, Setre43 Arquitetura, Studio Bertoldi, Studio Paralelo, Sylvio de Podestá, Benedito Moreira, Júlio Teixeira, Tao Arquitetura e Engenharia (Paulo Henrique Paranhos) e UNA Arquitetos. 88 Lucio Costa citado por Lauro Cavalcanti. CAVALCANTI, Lauro, Ainda moderno? Arquitetura brasileira contemporânea, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005, p.39-41. 89 CAVALCANTI, Lauro, “Ainda Moderno?”, in Idem, p.41.


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2000-01 | Centro Universitário Maria Antonia e Instituto de Arte Contemporânea - São Paulo Cristiane Muniz, Fábio Valentim, Fernanda Barbara, Fernando Viégas (UNA Arquitetos)

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Centro Universitário Maria Antonia - vista da entrada para o pátio interno

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Centro Universitário Maria Antonia - vista do pátio interno à partir da rampa exterior

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Responsabilidade colectiva: urbana e disciplinar Com o enfraquecimento do embate moderno/pós-moderno, as referências tornam-se mais amplas, dilatando a abrangência do sentido de produção do espaço e o entendimento das diversas escalas de trabalho e das relações entre essas. Muito deste debate estruturava-se sobre as experiências de gestão urbana desenvolvidas por Jaime Lerner em Curitiba90 e Luiz Paulo Conde no Rio de Janeiro91, assim como as experiências de europeias em Paris, Berlim e Barcelona, como salientado anteriormente. É certo que o Brasil, ainda pouco desenvolvido, dominado pelo capital, submetido à especulação imobiliária e à fragilidade das políticas públicas encontrava poucos parâmetros de viabilidade para a prática dessas transformações, seja de ordem social, espacial e económica, especialmente numa grande metrópole como São Paulo, onde a urgência é grande e a disponibilidade mínima. “O caos metropolitano constitui-se em um contexto mais propício para o desafio inovador que a rígida e controlada estrutura formal de Brasília.” 92 No entanto, através deste conhecimento adquirido com experiências pontuais mas emblemáticas, garantiu-se a primazia do desenho urbano enquanto instrumento de acção sobre o espaço e a afirmação da dimensão pública das áreas urbanas entre as novas gerações. Essa responsabilidade colectiva para com a sociedade de que fazem parte e para com o futuro para ela desejado não está ligado somente às soluções urbanas ou de projecto caracterizando-se, mais especificamente, por um maior interesse e proximidade desta geração com os conhecimentos directamente vinculados à disciplina de arquitectura e à sua transmissão enquanto conhecimento, sendo relevante a participação de grande número de arquitectos desta geração a exercer a função docente.93 90 Jaime Lerner (1937) foi prefeito de Curitiba em três gestões, no período compreendido entre 1971 e 1992, e governador do Estado do Paraná de 1994 a 2002. Lerner orientou o processo de crescimento urbano de Curitiba com base em seu Plano Diretor, elaborado pelo arquitecto Jorge Wilheim após Brasília, criando uma imagem urbana positivada de “cidade-modelo”. Actualmente é consultor da Organização das Nações Unidas para assuntos de urbanismo. NOBRE, Ana Luiza, “Arquitetura brasileira, prática jovem”, Rio de Janeiro, versão de Julho de 2004. [texto inédito cedido pela autora]. 91 Luiz Paulo Conde (1934) governou a capital do Rio de Janeiro de 1997 a 2000. Idealizador de projectos como Rio Cidade e o projecto Favela Bairro. Actualmente é membro do Conselho de Administração de Furnas e actua na ONG Vivercidades, dedicada a arquitectura e ao urbanismo. NOBRE, Ana Luiza, Idem. 92 SEGRE, Roberto, Jovens arquitetos, Rio de Janeiro: Viana & Mosley, 2004, p.20. 93 Ver “Conversas com Arquitectos”, in Anexo, p.221-249. Em São Paulo, esta preocupação se materializou na fundação, em 2001, da Escola da Cidade, por uma associação de arquitectos. Localizada estrategicamente na região central da cidade de São Paulo, próxima


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2001-02 | Residência em Aldeia da Serra - São Paulo Angelo Bucci, Fernando de Mello Franco, Marta Moreira e Milton Braga

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Residência em Aldeia da Serra - vista do interior, detalhe da laje fungiforme

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Residência em Aldeia da Serra - vista ao fim do dia, detalhe da cobertura protegida com espelho de água

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Sob esta perspectiva a exposição e o catálogo ‘Coletivo - 36 projetos de arquitectura paulista contemporânea’ publicado em 2006 é o mais contundente exemplo da afirmação da geração formada em 1990 na FAUUSP. Seis ateliers apresentam seis trabalhos cada (entre obras construídas ou projectos).94 Apesar de não assumirem a autoria do catálogo, devido à capa do catálogo da exposição ‘Coletivo’ | 2006

postura colectiva que adoptam, assumem-se de início na apresentação do projecto afirmando, mais uma vez, suas afinidades éticas, o vinculo com a escola (ou com a ideia de escola), a proximidade e o respeito para com o trabalho de seus ‘mestres’ e sua postura em relação à cidade, talvez sua maior distinção.95 Os ensaios críticos que acompanham a mostra de projectos compõem uma visão bastante completa mas muito peculiar. Em texto onde pontua alguns pontos-chave da historiografia da arquitectura brasileira, Ana Vaz Milheiro permite a percepção das circunstâncias e padrões em que se insere essa nova geração e de que forma esses transformam a universalidade a que pertencem na particularidade que necessitam. “A circunstância atenua instintivamente as diferenças entre grupos e contribui para a afinação de padrões. A partilha de uma mesma obra de referência [o edifício da FAU/USP] estreita as relações e conforma o grupo. O modo como se encontra uma “saída” aguça a criatividade e estabelece as diferenças. Agindo num quadro muito particular, estes escritórios vão traçando as suas próprias cumplicidades, num contexto onde a cultura nacional é interpretada a partir da sua universalidade. Mais do que noutro lugar, a arquitetura que produzem está comprimida entre a urgência de agir e as exigências inerentes à disciplina.” 96 Apesar de ser uma contribuição extremamente válida enquanto depoimento e visão exterior à produção paulista contemporânea, este do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB), de outros influentes pólos académicos (Universidade Mackenzie e FAU Maranhão) e, sintomaticamente, nas proximidades dos ateliers de diversos representantes desta jovem geração, é também considerada uma das Faculdades de Arquitectura e Urbanismo mais promissoras e inovadoras da América Latina, possuindo uma proposta e filosofia inovadoras. 94 Este livro/catálogo é resultado da exposição de mesmo nome realizada pelo Centro Universitário Maria Antônia da Universidade de São Paulo, entre Agosto e Novembro de 2006. MILHEIRO, Ana Vaz, NOBRE, Ana Luiza, WISNIK, Guilherme (com.) Coletivo – 36 projetos de arquitetura paulista contemporânea, São Paulo: Cosac Naify, 2006. 95 Os arquitectos e ateliers presentes no catálogo da exposição são: Andrade Morettin Arquitetos (Vinícius Andrade e Marcelo Morettin), MMBB (Fernando de Mello Franco, Marta Moreira e Milton Braga), Núcleo de Arquitetura (Luciano Margotto, Marcelo Ursini e Sérgio Salles), Puntoni Arquitetos e SPBR Arquitetos (Alvaro Puntoni e Angelo Bucci), Projeto Paulista (Luis Mauro Freire e Maria do Carmo Vilariño) e UNA Arquitetos (Cristiane Muniz, Fábio Valentim, Fernanda Barbara e Fernando Viégas). 96 MILHEIRO, Ana Vaz, “Coletivo: a invenção do clássico” in MILHEIRO, Ana Vaz, NOBRE, Ana Luiza, WISNIK, Guilherme (com.), Coletivo ..., p.86-96.


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2001-03 | Residência M. M. - São Roque - SP Vinicius Andrade e Marcelo Morettin (Andrade e Morettin Arquitetos)

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Residência M. M. - vista do interior

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Residência M. M. - vista posterior com volume em consola

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entretanto não se figura na sua totalidade. Devido à proximidade, e amizade que estabeleceu com grande parte desta geração durante os anos em que viveu em São Paulo, e particularmente com os envolvidos nesta publicação, o artigo de Ana Vaz Milheiro acaba por adquirir um carácter mais afectivo e parcial do que propriamente crítico.97 Desta mesma forma se insere o texto de Guilherme Wisnik, ligado desde os seus anos académicos à revista Caramelo98 e ao percurso académico delineado por esta geração de arquitectos formados pela FAUUSP nos anos de 1990 e, portanto, uma análise assumidamente pessoal e compreensivamente distante de um posicionamento crítico sobre a arquitectura apresentada. “Em tempos de abrandamento ideológico e arrefecimento geral da capacidade de formalizar tensões sociais, há indícios de que a produção desses escritórios procura meios de manter reflexões que impeçam os seus projectos de se tornarem apenas construções…vejo nessa direcção uma atualização crítica possível daquele legado [o humanismo marxista de Vilanova Artigas].” 99 Já o texto de Ana Luiza Nobre apresenta-se como o mais imparcial, talvez devido ao seu contacto menos directo com estes profissionais. Outro factor importante é a relevância dada pela autora aos ‘personagens secundários’ (mas principais) desta narrativa, os ‘mestres’, como Paulo Mendes da Rocha, Marcos Acayaba, Lina Bo Bardi, Joaquim Guedes, e não só, pertinentemente evocados como grandes e essenciais referências no processo formativo desta geração.100 “Talvez não sejam a princípio atraentes esses projetos, e certamente eles estão longe de serem vistosos ou monumentais. Mas, assim como a cidade onde se encontram enraizados, eles vão aos poucos se abrindo e cativando 97 Desta experiência da arquitecta Ana Vaz Milheiro em São Paulo, descrita anteriormente, também é fruto uma série de artigos para os jornais JA - Jornal de Arquitectos, Público, entre outros, sobre a arquitectura e os arquitectos brasileiros, posteriormente publicados em colectânea. Ver: MILHEIRO, Ana Vaz, A Minha Casa é um Avião, Lisboa: Relógio d’Água, 2007. 98 Guilherme Wisnik (1972) contribui para a revista Caramelo com o artigo “Deus contemplado e completo – Arquitectura em profanação”, Caramelo, nº 3, São Paulo: GFAU, 1991, p.79. Ver: Parte 2 | Diversidade, p.107. 99 WISNIK, Guilherme, “Disposições espaciais” in MILHEIRO, Ana Vaz, NOBRE, Ana Luiza, WISNIK, Guilherme (com.) Coletivo – 36 projetos de arquitetura paulista contemporânea, São Paulo: Cosac Naify, 2006, p.179. 100 Ana Luiza Nobre (1964) nasceu, vive e trabalha no Rio de Janeiro. Formada em Arquitectura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Doutora em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e actualmente é professora de Teoria e História da Arquitectura no Curso de Arquitetura e Urbanismo também na PUC-Rio. NOBRE, Ana Luiza, “Prática comum” in MILHEIRO, Ana Vaz, NOBRE, Ana Luiza, WISNIK, Guilherme (com.) Coletivo …, 2006, p.18-25.


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2003-08 | Casa em Carapicuíba - Carapicuíba - SP Alvaro Puntni e Angelo Bucci

Casa em Carapicuíba - vista anterior, piso 0

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Casa em Carapicuíba - vista posterior, piso 0

Casa em Carapicuíba - vista da rua sob o corpo em consola

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aqueles que se dispõem a experimentá-los. Até que, ao final da amostra, ficamos com a urgência desssa arquitetura; e, mais, do conteúdo de dignidade que nela permanece latente.” 101 Sem dissonâncias expressivas de projecto e resgatando o rigor da disciplina profissional, a generalidade das propostas pode sugerir que estas estariam na contra-mão de um certo cenário internacional, mantendo ainda com certa rigidez os códigos arquitectónicos originais e repetindo esquemas esgotados, numa imagem de submissão que reflecte uma posição mais pessimista sobre esta geração.102 Apesar da arquitectura contemporânea paulista estar bastante ligada ao seu passado, essa também possui uma perspectiva com horizonte mais largo sobre o futuro. Conscientes de que a identidade brasileira é múltipla e a nossa cultura é plural, assim como a sociedade contemporânea, este jovem grupo contribui, em parte, para a revalorização de seus próprios mestres, revigorados pela proximidade do seu vigor juvenil. “[As obras] de um [arquitecto] influenciam [as obras] de outro, através de uma generosidade do espírito, mesmo de uma generosidade partilhada.” 103 [e] “Aquele que está disposto a trabalhar, dá à luz o seu próprio pai.” 104 A arquitectura contemporânea paulista estabelece uma forte e profícua relação com o passado, sem nostalgia e com grande respeito pelas suas lições, respeito esse evidente na relação de equilíbrio e coerência que buscam manter, tanto nas suas actividades profissionais como nos seus discurso teóricos, em relação aos ensinamentos, bons e maus, de experiências predecessoras, sem abdicar do desejo prepositivo da sua geração, propondo inovações e obtendo resultados actuais.

101 NOBRE, Ana Luiza, “Prática comum” in MILHEIRO, Ana Vaz, NOBRE, Ana Luiza, WISNIK, Guilherme (com.) Coletivo – 36 projetos de arquitetura paulista contemporânea, São Paulo: Cosac Naify, 2006, p.25. 102 SEGRE, Roberto, “Jovens rebeldes? Reflexões sobre a arquitetura na América Latina e os caminhos das novas gerações”, revista aU – Arquitetura e Urbanismo, nº 172, Entrevista, Julho 2008. [versão electrónica]. 103 BLOOM, Harold, A angústia da influência: uma teoria da poesia, [1973], Lisboa: Cotovia, 1991, p.43. Adaptação para a arquitectura feita pela autora. 104 Søren Kierkegaard, teólogo e filósofo dinamarquês do século XIX, citado por Harold Bloom: BLOOM, Harold, Idem, p.39.



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Considerações:

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Sobre uma certa coerência Com a década de 90 a arquitectura começa a perder a sua especificidade e o carácter de permanência que possuía no passado para assumir uma condição mais efémera, própria da contemporaneidade. Nesse sentido, a diversidade e o volume das mais variadas fontes de referências e experiências assimiladas por essa jovem geração assume, para ambos os contextos arquitectónicos, aspectos bastante diferentes. No Porto, essa afluência resultou no cultivo propositado de um sentimento de desenraizamento e desagregação, sendo mais um desejo teórico do que propriamente uma atitude projectual, em relação ao passado arquitectónico recente, responsável pelo reconhecimento e apogeu de uma determinada arquitectura portuguesa. Com isso, procuravam novas possibilidades, mais amplas e reanimadoras, de acção profissional. Já em São Paulo, a mesma multiplicidade era tida como excessivamente imediatista e despropositada, visto que a produção imediatamente anterior sofrera um período de forte crise, resultando assim, e de maneira oposta, num sentimento de pertença e no desejo consciente de integração a um legado já estabelecido por um passado arquitectónico um pouco mais distante. “A [arquitectura] é assim ao mesmo tempo contracção e expansão; porque todas as proporções de revisão são movimentos de contracção e no entanto o fazer é um movimento de expansão. A boa [arquitectura] é uma dialéctica de movimento de revisão (contracção) e de refrescante extravio.” 105 No entanto, os fins e efeitos desse processo de apropriação, tanto da pluralidade contemporânea quanto do revisionismo crítico sobre seu passado mais expressivo são, na realidade, similares. Para a diversidade respondem com coerência. O que permanece é a assimilação de um processo do fazer arquitectónico e a concordância com os princípios assimilados criticamente, actuando sobre a realidade em que se inserem, ou sobre contextos pré-determinados, como no Porto, ou dotando de contexto áreas descaracterizadas, como em São Paulo. “Poder-se-ia postular assim coerência no fazer, e não necessariamente no feito: a variedade dos resultados formais seria então menos relevante que a procura contínua de adequação às potencialidades, buscando soluções nas possibilidades naturais e culturais…, construindo com persistência

105 BLOOM, Harold, A angústia da influência: uma teoria da poesia, [1973], tradução Miguel Tamen, Lisboa: Cotovia, 1991, p.109. Adaptação para a arquitectura feita pela autora.



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e simplicidade um arquitectura voltada para a realidade em que vivemos…” 106 Dessa maneira essa geração possui plena consciência tanto da complexa e plural realidade arquitectónica e da vasta rede de possibilidades que dispõem actualmente, como do facto que estes mesmos factores acarretam um controlo cada vez menor sobre os limites que condicionam o seu trabalho. Assim, o estar ou não estar em concordância com uma herança tornase um juízo de valor improfícuo e, sendo esta uma produção que ainda se encontra em processo de maturação, evidencia-se que a imediatez não é possível e o comodismo insustentável. “Estar apenas em concordância seria para a obra nova não estar de todo em concordância: não seria nova... E nós não dizemos precisamente que a obra nova possui mais valor porque se ajusta, mas que o seu ajustamento é uma prova do seu valor – uma prova, é verdade, que só pode ser aplicada lenta e cautelosamente, pois nenhum de nós é juiz infalível dessa concordância.” 107

106 ZEIN, Ruth Verde. O lugar da crítica: ensaios oportunos de arquitetura. Porto Alegre: Editora Ritter dos Reis: ProEditores Associados, 2001, p.86-87. 107 A citação foi utilizada em momentos distintos da dissertação, em alusão à postura diferenciada de cada grupo de arquitectos. Agora, apresenta-se por completo, o que garante o seu entendimento por completo. ELIOT, T. S., “A tradição e o talento individual”, in Ensaios de Doutrina Crítica, editor J. Monteiro-Grillo, Lisboa: Guimarães Editores, 1997, p.24. Adaptação para a arquitectura feita pela autora.


CONSIDERAÇÕES FINAIS


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Com este estudo pretendeu-se constituir uma aproximação crítica à produção da arquitectura contemporânea brasileira e portuguesa, abordando a relação com o legado das escolas (nomeadamente a FAUP e a FAU-USP nas décadas de 70/80) e a própria actividade académica e profissional da geração de arquitectos formada na primeira metade da década de 1990. A leitura que se procurou aqui fazer não pretende esgotar a totalidade dos meios e efeitos desse processo de desenvolvimento, nem tampouco realizar um levantamento completo da produção actual. Pretendeu-se, num exercício mais preciso, de recorte singular e específico, delinear uma tendência perceptível entre uma mesma geração de arquitectos emergentes que, apesar das dissemelhanças do meio histórico, físico e cultural, estabelecem diálogos análogos de proximidade e distanciamento em relação à produção modernista histórica. Os diversos aspectos desenvolvidos nas três partes desta dissertação procuram estabelecer uma linha de desenvolvimento onde, a priori, se sublinha a ideologia que norteava os conceitos e princípios académicos de ambas as escolas; a convicção de um ‘moderno inacabado’ e ainda pertinente; a consciência sobre o sentido de ‘Escola’ (enquanto tendência) que nunca existiu, a não ser pela hegemonia de algumas obras e autores individuais e o antagónico declínio do prestígio alcançado pelas mesmas, quando estas apostaram na materialização edificada das escolas e desejado ‘renascimento’ e os seus planos pedagógicos como meio de superação de crises internas. O período subsequente evidencia a experimentação e dinamismo académico de uma nova geração muito jovem marcada pela diversidade e


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multiplicidade de meios; o papel motor desses estudantes na contestação e transformação (FAUP) e na assimilação e resistência (FAU-USP) de uma tradição anterior assim como a consolidação de uma postura estudantil que garantiu a sobrevivência do legado das escolas entre os estudantes. Finalmente, a coerência de um fazer arquitectónico estabelecido por essa geração no decorrer do seu desenvolvimento profissional, através da consciência da impossibilidade da imediatez e desenraizamento pretendidos (Porto) e da insustentabilidade de uma integração cómoda (São Paulo). Cabe reiterar que a produção arquitectónica contemporânea, e particularmente a manifestada por essa geração configura, tanto no Porto como em São Paulo, um quadro muito mais impreciso do que o aqui apresentado, onde se cruzam caminhos e vertentes que partem de pressupostos diversos, por vezes conflituantes e mesmo incompatíveis entre si. Desta forma, torna-se improfícuo qualquer desejo em estabelecer, a partir desta perspectiva, uma directriz precisa e imutável que norteie esta ou outras gerações vindouras e corre-se o risco de perder a trama densa e complexa que cada arquitecto ou arquitectura traz consigo. Apesar do entendimento da história e o seu desenvolvimento não constituírem factos isolados, estes não impedem que se observe uma certa convergência nesse processo de reavaliação por parte dessa jovem geração. Como tendem, então, dois grupos aparentemente discordantes, a identificar-se por uma semelhante conformidade de seu exercício arquitectónico? Certamente na origem desse processo estão os ‘mestres’ que, a partir da herança de um rigor metodológico, estabelecem através dos seus discursos e obras uma matriz de excelência arquitectónica capaz de mobilizar uma tradição já estabelecida e, simultaneamente, superar os limites de sua própria época. Dessa forma, esses arquitectos de referência trabalham como ‘antenas da época’, emitindo e recebendo os estímulos de forma a promover a produção arquitectónica e assinalando uma atitude singularmente contemporânea. Ao mesmo tempo que a proximidade desses jovens arquitectos com os seus mestres estimula uma reavaliação histórica sobre a produção arquitectónica de cada país. A consequente reformulação crítica da mesma abre caminho para que esta geração adopte uma postura de certa ‘falsa vanguarda’, absorvendo alguns vícios anteriores e onde prevalece um


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sentimento antes conservador que propriamente inovador, mantendo, mesmo que de forma não assumida, a perpetuação de um legado anterior. Também a lógica de grupo mantida pela conservação de uma certa especificidade definida tanto pela localização geográfica, Porto/São Paulo, pela influência directa de uma personagem, Álvaro Siza/Paulo Mendes da Rocha, quanto pelo percurso académico ou a forma endógena como mantêm seu círculo de trabalho e afinidades (não por acaso as duas publicações assinaláveis dessa geração, Descontinuidades e Colectivo, foram produzidas por seus próprios representantes), estabelece o que se pode demarcar como um comportamento padrão, factor expressivo desse raciocínio, mas não condição redutora do seu trabalho. Assim como a capacidade de assimilação crítica de um passado heróico e da multiplicidade contemporânea. A tradição deixa de ser entendida apenas pelo que se herda mecânica e passivamente, mas por tudo o que se constrói activamente a partir do presente, procurando sempre a mais pertinente e justa adequação à realidade a que pertencem. Dessa forma, a relação dessa geração com o passado e com o futuro não é de todo atormentada1, mas sim de admiração e gratidão2, pois estas não são entendidas como questões constrangedoras, mas apenas como pontos de valorização das qualidades da própria disciplina arquitectónica. O presente em que se inserem é então o resultado do aperfeiçoamento técnico e do conhecimento e domínio das ferramentas da arquitectura em benefício da colectividade. Portanto, talvez o único paralelismo possível de se estabelecer entre esses dois grupos geracionais do Porto e de São Paulo seja a paridade de uma mesma lógica de desenvolvimento. Por um lado histórico e cultural marcado pelas condicionantes e dualidades de uma marginalidade delimitada pela condição periférica enquanto país – Portugal em relação à Europa e o Brasil em relação a todos os países desenvolvidos, enquanto país ainda em desenvolvimento – e de uma centralidade, no âmbito interno, assinalada pela importância de cidades centrais, pólos económicos, sociais, académicos e arquitectónicos, Porto e São Paulo. Por outro, a própria lógica de desenvolvimento académico de ambas as escolas, que conseguiram (e ainda conseguem apesar das percas de significação) 1 Como sugere Harold Bloom: BLOOM, Harold, A angústia da influência: uma teoria da poesia, [1973], Lisboa: Cotovia, 1991. 2 Como aponta Ezra Pound: SAMPAIO, Maria de Lurdes R. M, Ezra Pound: dos sentidos da influência, Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 1993. <http://ler.letras. up.pt/uploads/ficheiros/2668.pdf> Acedido em: 28/02/2010.


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manter um programa pedagógico muito forte e um legado de conceitos e princípios ainda muito vivos. Neste sentido, o recorte feito sobre a produção de arquitectura contemporânea deste ensaio pode mostrar-se por vezes irregular e arbitrário, a delimitar apenas uma parcialidade do argumento real, mas passa a ter um certo interesse não por ele mesmo, mas pela singularidade do recorte que o fez existir como objecto a ser analisado. Por fim mas não por último, a aproximação crítica resultou num valioso instrumento de reflexão pessoal a partir da condição, também muito particular, de estrangeira, expressa na experiência contraditória da interacção entre proximidade espacial e distanciamento social em relação à produção portuense, e como oposto à produção paulista. Esta postura caracteriza, antes de mais, uma predisposição na interacção entre culturas, de forma livre e objectiva, estabelecendo aproximações e hipóteses como conhecimento que se pretende aberto e disponível para outras perspectivas, uma vez que esta geração ainda se encontra em processo de maturação, mas com capacidade de suceder e permanecer.



REFERÊNCIAS


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Artigos específicos ARTIGAS, João Batista Vilanova, “O Desenho”, [1967], in ARTIGAS, João Batista Vilanova, Caminhos da Arquitetura. Vilanova Artigas 1915-1985, organização José Tavares Lira e Rosa Artigas, São Paulo: Cosac Naify, 4ª ed., 2004. [1ª edição de autor, 1981]. ARTIGAS, João Batista Vilanova, “A Função Social do Arquiteto”, [1984], in ARTIGAS, João Batista Vilanova, Caminhos da Arquitetura. Vilanova Artigas 1915-1985, organização José Tavares Lira e Rosa Artigas, São Paulo: Cosac Naify, 4ª ed., 2004. [1ª edição de autor, 1984]. GUERRA, Abilio, “Depoimentos de uma geração migrante”, Portal Vitruvius, Arquitextos 030.00, Novembro 2002. [versão electrónica]. <www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq030/arq030_00.asp>. Acedido em: 25/07/2009. LUCAAS, Luís Henrique Haas, “Arquitetura contemporânea no Brasil: da crise dos anos setenta ao presente promissor”, Portal Vitruvius, Arquitextos 101, Outubro 2008. [versão electrónica]. <http://www.vitruvius.com.br/arquitextos/ arq101/arq101_00.asp> . Acedido em: 29/12/2008. NOBRE, Ana Luiza, Arquitetura brasileira, prática jovem, Rio de Janeiro, versão de Julho de 2004. [texto inédito cedido pela autora]. PUNTONI, Alvaro; BUCCI, Angelo; VILELA, José Oswaldo. Memorial Descritivo para o concurso do Pavilhão do Brasil na Exposição Universal de Sevilha, 1992. [versão electrónica]. <http://www.gruposp.arq.br/ e http://www.spbr.arq.br/>. Acedido em: 10/11/2009. PUNTONI, Alvaro, BUCCI, Angelo, VILELA, José Oswaldo, “Pavilhão do Brasil na Expo 92 Sevilha”, Revista Projeto, nº 138, Sevilha’92 – Pavilhões Internacionais e o concurso brasileiro, editor Vicente Wissenbach, São Paulo: Arco Editora, 1991. PUNTONI, Alvaro, BUCCI, Angelo, VILELA, José Oswaldo, Revista Projeto, nº 139, “A polêmica de Sevilha e os premiados no concurso do pavilhão do Brasil”, editor Vicente Wissenbach, São Paulo: Arco Editora, 1991. PAZZANESE, Celso, “Trajetória de Artigas na Arquitectura Brasileira”, Caramelo, nº 1. São Paulo: GFAU, 1990. PONTES, Ana Paula, BARBARA, Fernanda, et al. (ed.), “Fórum, o percurso do ensino na FAU”, Caramelo, nº 6. São Paulo: GFAU, 1993. SANTA’ANNA JR, Antônio Carlos, “Strada novíssima. Os caminhos da nova geração de arquitectos”, Revista Projeto, nº 143, editor Vicente Wissenbach, São Paulo: Arco Editora, Julho 1991.


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GERAÇÃO 90: UMA LEITURA DO PERCURSO ACADÉMICO PORTO | SÃO PAULO

SEGAWA, Hugo, “Pavilhão do Brasil em Sevilha: deu em vão”, Revista Projeto, nº 138, Sevilha’92 – Pavilhões Internacionais e o concurso brasileiro, editor Vicente Wissenbach, São Paulo: Arco Editora, 1991. SEGRE, Roberto, “Jovens rebeldes? Reflexões sobre a arquitetura na América Latina e os caminhos das novas gerações”, revista aU – Arquitetura e Urbanismo, nº 172, Entrevista, Julho 2008. [versão electrónica]. <http://www.revistaau.com. br/arquitetura-urbanismo/172/entrevista-jovens-rebeldes-94531-1.asp>. Acedido em: 09/03/2009. SEGRE, Roberto, “A espiral da história: 1959-2009”, Portal Vitruvius, Resenhas, ano 9, vol.97, p.271, Janeiro 2010. [versão electrónica]. <http://www.vitruvius.com.br/resenhas/textos/resenha271.asp>. Acedido em: 10/02/2010. SPADONI, Francisco, “Dependência e resistência: transição na arquitetura brasileira nos anos de 1970 e 1980”, Portal Vitruvius, Arquitextos, nº 102, Novembro 2008. [versão electrónica]. <http://www.vitruvius.com.br/arquitextos/ arq102/arq102_00.asp> . Acedido em: 29/12/2008. ZEIN, Ruth Verde, “Breve introdução à Arquitetura da Escola Paulista Brutalista”, Portal Vitruvius, Arquitextos, 069.01, Fevereiro 2006. [versão electrónica]. <http://www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq069/arq069_01.asp>. Acedido em: 29/12/2008. ZEIN, Ruth Verde, “Brutalismo, sobre sua definição (ou, de como um rótulo superficial é, por isso mesmo, adequado)”, Portal Vitruvius, Arquitextos, 084, Maio 2007. [versão electrónica]. <http://www.vitruvius.com.br/arquitextos/ arq084/arq084_00.asp> Acedido em: 29/12/2008. ZEIN, Ruth Verde, Arquitetos de SP: breve panorama de uma nova geração, [2000], Ruth Verde Zein website. [versão electrónica]. <http://rvzein.googlepages.com/seminariodedoctorado%2Cunr2> Acedido em: 11/02/2009.

Referências periódicas Caramelo, nº 1, São Paulo: GFAU, 1990. Caramelo, nº 2, São Paulo: GFAU, 1991. Caramelo, nº 3, São Paulo: GFAU, 1991. Caramelo, nº 4, São Paulo: GFAU, 1992. Caramelo, nº 5, São Paulo: GFAU, 1992. Caramelo, nº 6, São Paulo: GFAU, 1993. Revista Projeto, nº 53, Panorama da Arquitetura Brasileira Atual, editor Vicente Wissenbach, São Paulo: Arco Editora, 1983. Revista Projeto, nº 129, “2 Décadas: arquitetura dos anos 80 e as tendências da nova década”, editor Vicente Wissenbach, São

Paulo: Arco Editora, Jan./Fev., 1990. Revista Projeto, nº 138, “Sevilha’92 – Pavilhões Internacionais e o concurso brasileiro”, editor Vicente Wissenbach, São Paulo:

Arco Editora, 1991. Revista Projeto, nº 143, editor Vicente Wissenbach, São Paulo: Arco Editora, Julho de 1991. Revista Projeto Design, nº 228, “Cinquentenário da FAU/USP”, editor Fernando Serapião, São Paulo: Arco Editora, Jan./Fev.,

1999. 2G – Revista Internacional de Arquitectura, nº 45, “Paulo Mendes da Rocha. Obra reciente”, Barcelona: Gustavo Gili, 2008.

Catálogos SEGRE, Roberto, Jovens arquitetos, Rio de Janeiro: Viana & Mosley, 2004. CAVALCANTI, Lauro, LAGO, André Corrêa, Ainda moderno? Arquitetura brasileira contemporânea, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005. MILHEIRO, Ana Vaz, NOBRE, Ana Luiza, WISNIK, Guilherme (com.) Coletivo – 36 projetos de arquitetura paulista contemporânea, São Paulo: Cosac Naify, 2006.

Referências audiovisuais ROCHA, Paulo Mendes, O programa da casa, Conferências Casa da Arquitectura, Matosinhos, Junho, 2009.

Referências electrónicas Portal Vitruvius, <http://www.vitruvius.com.br> ZEIN, Ruth Verde, Arquitetura Paulista Brutalista 1953-1973,

<http://www.arquiteturabrutalista.com.br/index1port.htm> ZEIN, Ruth Verde, website, <http://sites.google.com/site/rvzein/>


REFERÊNCIAS

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Referências Internacionais Bibliografia BLOOM, Harold, A angústia da influência: uma teoria da poesia, [1973], tradução Miguel Tamen, Lisboa: Cotovia, 1991. CATROGA, Fernando, Entre Deuses e Césares. Secularização, laicidade e religião civil: Uma perspectiva histórica, Coimbra: Almedina, 2006. VENTURI, Robert, Complejidad y contradicción an la arquitectura, Barcelona: Gustavo Gili, 1977. [1ª edição, 1966]. ROSSI, Aldo, A Arquitetura da Cidade, tradução Eduardo Brandão, São Paulo: Martins Fontes, 2ª ed., 2001. [1ª edição, 1966].

Artigos específicos ELIOT, T. S., “A tradição e o talento individual”, in Ensaios de Doutrina Crítica, editor J. Monteiro-Grillo, Lisboa: Guimarães Editores, 1997. GREGOTTI, Vittorio, “Faculdades de Arquitectura”, rA-Revista da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, nº 0, Porto, 1987. GREGOTTI, Vittorio, “Cari architetti non ci cono più riviste”, L’Architetto, nº 143, Consiglio Nazionale degli Architetti, Roma, 2000, p.18-19. ROSSI, Aldo, “Arquitetura para los museos”, Para una arquitectura de tendência, Escritos: 1956-1972, Barcelona: Gustavo Gili, 1998. MARTÍ ARÍS, Carlos, “El concepto de transformacíon como motor del proyecto”, in La cimbra y el arco, Fundacíon Caja de Arquitectos, 2005. MARTÍ ARÍS, Carlos, “Una opinión sobre la crítica”, in La cimbra y el arco, Fundacíon Caja de Arquitectos, 2005. MONEO, Rafael, “La Soledad de los Edificios, [1985], in MONEO, Rafael, 1967-2004: antologia de urgencia, El Croquis, 2004. [Discurso de tomada de posse como Director do Department of Architecture of the Havard University Graduate School of Design]. MONEO, Rafael, “Sul concetto di arbitrarietà in architectura”, Casabella, nº 735, 2005. [Discurso na Academia Real de Bellas Artes em Madrid, 2005]. MONEO, Rafael, “Idear, representar, construir”, in XI Congreso Internacional de Expresión Gráfica Arquitectónica: funciones del dibujo en la producción actual de arquitectura, Vol. II Debates, Sevilha: 2006. MONEO, Rafael, “Paradigmas fin de siglo: Los noventa, entre fragmentación y la compacidad”, Arquitectura Viva, nº 66, 1999. ROGERS, Ernesto Nathan, “La arquitectura moderna depués de la geración de los maestros”, [1958], in HEREU, P., MONTANER, J. M., OLIVERAS J., Textos de arquitectura de la modernidad, Madrid: Nerea, 1994. WILSON, Colin St. John, “The Historical sense: T. S. Eliot’s concept of tradition, and its relevance to architecture”, [1992], in Architectural reflections: studies in the philosophy and practice of architecture, Butterworth Architecture, Oxford, 2ª ed., 1994.

Epígrafe Citação de Vilanova Artigas na aula inaugural “O Desenho” proferida na FAU-USP em Março de 1967. Vilanova Artigas: Arquitetos brasileiros, São Paulo: Instituto Lina Bo e P.M. Bardi: Fundação Vilanova Artigas, 1997.


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GERAÇÃO 90: UMA LEITURA DO PERCURSO ACADÉMICO PORTO | SÃO PAULO

Procedência das imagens PARTE 1 | Ideologia 01, 48, 49, 50, 51 | Fotografias de Fernando Guerra e Sérgio Guerra. <http://www.ultimasreportagens.com/index.php> Acedido em 29/05/2010. 02, 04 | Fotografias de Mariana Santana. <http://www.flickr.com/photos/marianasantana> Acedido em 29/05/2010. 03, 08, 09, 10, 12, 13, 14, 15, 18,19, 26, 27, 28, 29, 30, 42, 43, 44, 45, 46, 47, 52, 53, 54, 55, 93, 94, 95, 96, 97, 98, 99, 100 | Fotografias da autora. 05, 06, 07 | Fotografias de Carlos Castro. <http://picasaweb.google.com/rucativaca/VilaDoConde#> Acedido em 29/05/2010. 11| FIGUEIRA, Jorge, A Periferia Perfeita - Pós-Modernidade na Arquitectura Portuguesa Anos 60-Anos 80, Dissertação de Doutoramento em Arquitectura, Coimbra: Departamento de Arquitectura da FCTUC, Março, 2009. 16, 17 | 1958-2000 Álvaro Siza, El Croquis, 68, 69 + 95, edición conjunta [ampliada y revisada], Madrid: 2000. 20, 21, 22, 23 | SANTOS, José Paulo (org.), Álvaro Siza, work and projects 1954-1992, Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 1993. 24, 25 | Álvaro Siza, 54 projects, Bucuresti: Iglooprfil, 2008. 31, 32, 33 | SCHWARTZ, Frederic, VACCARO, Carolina, Venturi Scott Brown and Associates, Works and projects, Barcelona: Gustavo Gili, 1995. 34, 35, 36, 37, 38 | Fotografias de Daniela Sá. 39 | Fondazione Aldo Rossi <http://fondazionealdorossi.org/> Acedido em 29/05/2010. 40, 41 | Centro Comercial Amoreiras website. <http://www.amoreiras.com/> Acedido em 29/05/2010. 56, 58, 59, 60, 61, 63, 92 | FERRAZ, Marcelo C. (coord.), Vilanova Artigas: arquitetos brasileiros – brazilian architects, São Paulo: Instituto Lina Bo e P. M. Bardi: Fundação Vilanova Artigas, 1997. 57, 64 | ANDREOLI, Elisabetta, FORTY, Adrian (coord.), Arquitetura Moderna Brasileira, Phaidon, 2004. 62 | Blog ‘Arquiteturas… trocando ideias e visões sobre arquitetura e a vida’. <http://arquis.blogspot.com> Acedido em 29/05/2010. 65, 66 | ARANTES, Pedro Fiori, Arquitetura Nova: Sérgio Ferro, Flávio Império e Rodrigo Lefèvre, de Artigas aos mutirões, São Paulo: Editora 34, 2ª ed., 2004. 67, 68, 69, 70 | Fotografias de Adriane De Luca. 71 | Fotografia de Sarah Bastos. 72 | MONTEZUMA, Roberto (org.), Arquitetura Brasil 500 anos, O espaço intrgrador, Recife: Universidade Federal de Pernambuco, 2008. 73, 74, 75 | Fotografias de Nelson Kon. <http://www2.nelsonkon.com.br/> Acedido em 29/05/2010. 76 | Fotografia de Flávio Bragaia. <http://www.flickr.com/photos/fadb//> Acedido em 29/05/2010. 77, 78, 79, 80, 81, 82 | FERRAZ, Marcelo C. (coord.), João Filgueiras Lima, Lelé: arquitetos brasileiros – brazilian architects, São Paulo: Instituto Lina Bo e P. M. Bardi: Fundação Vilanova Artigas, 2000. 83, 84 | Fotografias de Carlos Rennò. <http://www.centrocultural.sp.gov.br> Acedido em 29/05/2010. 85 | Fotografia de João Mussolin. <http://www.centrocultural.sp.gov.br> Acedido em 29/05/2010. 86, 87, 88, 89, 90, 91 | Bratke Collect Construtora website. <http://www.bratkecollet.com> Acedido em 29/05/2010.

PARTE 2 | Diversidade 01, 02, 03, 04, 05, 06, 07, 32, 33 | Fotografias de Fernando Guerra e Sérgio Guerra. <http://www.ultimasreportagens. com/index.php> Acedido em 01/06/2010. 08, 09, 12, 13, 14, 15, 16, 20, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 34, 35, 36, 37, 38, 39, 40, 41, 42, 43, 60, 61, 62, 82, 83, 84, 86 | Fotografias da autora. 10, 11 | JODIDIO, Philip (org.), Álvaro Siza, Taschen Verlag, 2003. 17, 18, 19 | Contemporânea, Lda. website. <http://www.contemporanea.com.pt/> Acedido em 01/06/2010. 21 | Concurso de arquitectura, Sede da Federação Académica do Porto, catálogo do concurso, Porto: FAP, 1991. 28, 29, 30, 31 | 1995-2005 Eduardo Souto de Moura, El Croquis, 124, Madrid: 2005.


REFERÊNCIAS

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44, 53, 80, 81, 85, 87 | Fotografias de Nelson Kon. <http://www2.nelsonkon.com.br/> Acedido em 01/06/2010. 47 | Fotografia de Luiz Seo. <http://www.flickr.com/photos/lf_seo/> Acedido em 01/06/2010. 48 | ANDREOLI, Elisabetta, FORTY, Adrian (coord.), Arquitetura Moderna Brasileira, Phaidon, 2004. 49, 50, 51, 52, 69, 75, 76, 77, 78 | ACAYABA, Marcos, Marcos Acayaba, São Paulo: Cosac Naify, 2007. 54, 55, 56, 71, 72, 73 | Fotografias de Flávio Bragaia. <http://www.flickr.com/photos/fadb//> Acedido em 01/06/2010. 57, 58, 74 | ARTIGAS, Rosa (org.), Paulo Mendes da Rocha, São Paulo: Cosac Naify, 2ª ed., 2002. 59 | Rogers Stirk Harbour + Partners website <http://www.richardrogers.co.uk/> Acedido em 01/06/2010. 63, 64, 65, 66 | SPBR Arquitectos website. <http://www.spbr.arq.br/> Acedido em01/06/2010. 67 | MMBB Arquitectos website. <http://www.mmbb.com.br/> Acedido em 01/06/2010. 68 | Revista Projeto, nº 138, “Sevilha’92 – Pavilhões Internacionais e o concurso brasileiro”, editor Vicente Wissenbach, São Paulo: Arco Editora, 1991. 70 | Marcos Acayaba website. <http://www.marcosacayaba.arq.br/> Acedido em 01/06/2010. 79 | Fotografia de Leonardo Finotti. <http://leonardofinotti.blogspot.com/> Acedido em 01/06/2010.

PARTE 3 | Coerência 01, 09, 10 | José Fernando Gonçalves Arquitecto website. <http://www.josefernandogoncalves.com/> Acedido em 06/06/2010. 02, 03, 04 | Igreja do Convento de São Domingos website. <http://www.isdomingos.com> Acedido em 06/06/2010. 05, 06, 07, 08 | António Portugal e Manuel Maria Reis Arquitectos website. <http://www.aportugal-mreis.com/> Acedido em 06/06/2010. 11, 12 | Blog ‘O cacifo nº 200’. <http://cacifo200.blogspot.com/2007/10/capelas-morturias-de-oliveira-do-douro. html> Acedido em 06/06/2010. 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20 | Guedes + de Campos Arquitectos website,. <http://www.menosemais.com/> Acedido em 06/06/2010. 21, 22, 23, 36 | MOURA, Eduardo Souto, FERNANDES Fátima, FIGUEIRA, Jorge, et al. (com.), Des-continuidade: arquitectura contemporânea, Norte de Portugal, Civilização, 2005. 24, 25, 26, 33, 34, 35 | Portugal 2000-2005, 25 edifícios do século XXI, 2G Dossier, Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 2006. 27, 28, 29 | Nuno Brandão Costa Arquitecto website. <http://www.nunobrandaocosta.com/> Acedido em 06/06/2010. 30, 31, 32, 37, 38, 39, 40, 41, 42, 43, 44 | Fotografias de Fernando Guerra e Sérgio Guerra. <http://www.ultimasreportagens.com/index.php> Acedido em 06/06/2010. 45, 46, 47, 48, 49, 50, 71, 72, 73 | GRUPOSP Arquitetos website. < http://www.gruposp.arq.br/> Acedido em 06/06/2010. 51, 53, 56, 57, 58, 67, 68, 69, 70, 80, 81, 82 | MMBB Arquitetos website. <http://www.mmbb.com.br/> Acedido em 06/06/2010. 52, 54, 55 | MILHEIRO, Ana Vaz, NOBRE, Ana Luiza, WISNIK, Guilherme (com.) Coletivo – 36 projetos de arquitetura paulista contemporânea, São Paulo: Cosac Naify, 2006. 59, 60, 61, 62, 77, 78, 79 | UNA Arquitetos website. <http://www.unaarquitetos.com.br/> Acedido em 06/06/2010. 63, 64, 65, 66, 83, 84, 85 | Andrade Morettin Arquitetos website. < http://www.andrademorettin.com.br/> Acedido em 06/06/2010. 74, 75, 76, 86, 87, 88, 89 | SPBR Arquitetos website. <http://www.spbr.arq.br/> Acedido em 06/06/2010.


ANEXO | CONVERSAS COM ARQUITECTOS


ANEXO | CONVERSAS COM ARQUITECTOS

Porto José Fernando Gonçalves Francisco de Campos e Cristina Guedes | Menos é Mais Jorge Figueira Nuno Brandão Costa | Nuno Brandão Costa Arquitecto Filipa Guerreiro | Atelier da Bouça André Tavares

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GERAÇÃO 90: UMA LEITURA DO PERCURSO ACADÉMICO PORTO | SÃO PAULO

Conversa com José Fernando Gonçalves Arquitecto pela FAUP (1988), responsável pelo atelier José Fernando Gonçalves Arquitecto. (Realizada em 25-03- 2010)

Os professores que compunham o corpo docente e leccionavam em 1980-1990 foram formados numa época em que a linguagem da arquitectura esteve muito associada a uma espécie de militância, à ideia de que a sociedade se devia construir. Quando ingressou na FAUP, esta postura era ainda muito marcante entre os professores? Eu entrei em 1982, ainda era a Escola de Belas Artes, que funcionava em São Lázaro, em conjunto com as Artes Plásticas, e sete anos depois do 25 de Abril, portanto um momento ainda muito activo do ponto de vista da participação cívica da população. O arquitectoassumia o papel social no momento, por isso era difícil discutir questões de linguagem, no sentido de uma acção específica da disciplina, porque antes estava a resposta profissional, socialmente empenhada e com um programa ideológico. Isso vinha de facto de uma evidente coesão dos professores entre si, com algumas excepções claro, mas de facto havia um projecto ideológico muito vincado, já a sofrer um processo de ‘normalização’, mas ainda muito visível. Para mim, que vinha de um contexto completamente diferente e diria um pouco mais conservador, aquele grupo de professores foi uma revelação. Era um mundo que eu não frequentava regularmente, o meu círculo familiar e as pessoas próximas tinham uma aproximação maior às ciências, eventualmente a história, mas menos às artes, e portanto aquilo para mim foi uma revelação. Eu tinha, na época, essa visão do artista como um ser isolado, com um pensamento próprio e com algo a dizer individualmente sobre o mundo, de uma forma ambiciosa digamos, e tive essa descoberta oposta: do arquitecto empenhado socialmente como parte de um problema ideológico mais vasto e em que o grupo e a coesão do grupo são determinantes. Isso para mim foi uma revolução interior muito forte, quer dizer, mudou completamente os meus paradigmas a vários níveis. A coesão era ainda muito evidente, desde as disciplinas de história, dadas pelo arquitecto Távora, até ao projecto, a forma como a informação passava, era sempre muito canalizada por esse empenho da construção e reconstrução da sociedade e o arquitecto enquanto agente activo desse processo, portanto, sim, havia uma coesão de facto muito forte. Já os seus anos académicos fazem parte de um outro momento, posterior, de maior desligamento das questões ideológicas, de uma diversidade muito grande de caminhos e até de certa aleatoriedade. Qual era o “espírito de época” entre os estudantes? A geração que entrou comigo era bastante diversificada. Havia um grupo mais próximo àquele grupo de professores, talvez por relações pessoais ou familiares (porque é preciso explicar que, na altura, a escola era muito pequena, não deveria ter muito mais do que 400-500 alunos, e tinha uma influência directa muito forte em alguns meios), e que constituía, de alguma maneira, a intelligenzia, da cidade do ponto de vista cultural. Como já expliquei, eu não tinha de facto nenhuma relação, nem familiar nem de proximidade, com qualquer daqueles professores ou daquele meio, e como eu haviam imensos alunos, que estavam fascinados por este universo da arquitectura, de forma ainda muito empírica, uma vontade interior muito forte. Portanto era um grupo muito heterogéneo. Já se haviam passado 10 anos do 25 de Abril, éramos adolescentes naquele período mais quente pós-25 de Abril, ou seja, já não participamos como jovens adultos nessas acções e portanto esse momento revolucionário já era um pouco distante para nós. Não tínhamos participado nele activamente, e por isso começávamos a ter outras influências e outras referências. Também foi um momento em que a sociedade começou a abrir-se claramente para o exterior - eu tinha começado a fazer as minhas primeiras viagens de InterRail para a Europa, e como eu uma série de colegas, e portanto as referências urbanas começavam a ser um pouco diferentes. Essa heterogeneidade, em algumas circunstâncias, gerou algum conflito com os professores. Conflito no sentido quase de afirmação de mundos opostos, ou seja, aquele era um grupo com um programa e nós víamos a realidade de uma maneira um pouco diferente. Na verdade ao longo dos cinco anos esse conflito foi sendo apaziguado e anulado, e ao fim do 5º ano não existia de todo. Fazíamos todos parte da mesma família, os que acabavam o curso (eu acabei em 1988), pertencíamos todos à escola, já éramos todos parte daquele grupo. Não só porque o grupo se abriu, mas também porque nós nos integrá-


ANEXO | CONVERSAS COM ARQUITECTOS

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mos e a sociedade mudou. Enquanto em 82 o antagonismo Porto – Lisboa era muito forte do ponto de vista de escola, de formação, de interesse e de orientação metodológica, no final do curso em 88-89 já não tinha esse peso, estava muito mais apaziguado, ainda existia e era tema de conversa, mas não tinha aquele antagonismo quase visceral. A vossa geração académica parece ter assumido um sentido crítico e arquitectónico de maior comprometimento com o seu tempo e com a escola. Estar engajado num projecto académico passa a ser meio e termo para a discussão da condição académica e disciplinar da arquitectura? Seria esta uma mostra de maior consciência e responsabilidade com o seu tempo? Sim, eu penso que esse processo começou um pouco antes, mas na minha geração ficou bastante claro. e talvez tenha ficado ainda mais expresso na geração seguinte, que acabou o curso em 90-91. Mas lembro-me, por exemplo, que no 4º ano o meu professor de projecto foi o Eduardo Souto de Moura e ele foi de facto o único professor (e o Eduardo também estava a construir um caminho não alinhado, chamemos assim, àquilo que se chamava já a ‘Escola do Porto’), que apoiou as minhas descobertas arquitectónicas da altura. E se eu disser agora que estou a falar de Corbusier, pode parecer um pouco estranho, mas o que é facto é que o Corbusier, embora fosse obviamente o tema como história da arquitectura, como referencia formal era tomado com muitas reservas. Sobretudo como um aluno que olha para as obras do Corbusier, pela natureza da obra, sem programa ideológico por trás, só com a consciência de que aqueles códigos visuais e a manipulação da forma me interessavam, era visto como uma coisa no mínimo bizarra, quase como uma espécie de opção de um vocabulário formalista que a escola não admitia de todo. E lembro-me que nessa minha descoberta e nesse meu fascínio pelo Corbusier, por aquelas formas e por aquela maneira de construir, a única pessoa que deu manifesto apoio foi o Souto de Moura, porque percebia que era uma questão disciplinar. Era uma questão exclusivamente de arquitectura, já não havia ali por trás - não é que não fosse importante, mas não era uma prioridade, esse programa ideológico e social anterior, porque eu pessoalmente não estava menos empenhado socialmente, só que havia uma espécie de desejo de pensar a arquitectura livre de constrangimentos, pela sua própria natureza, resolver problemas de forma, sem ser formalista. Esta era uma descoberta que na altura me lembro que me interessava muito fazer, obviamente aquilo era uma coisa muito intuitiva, mas tinha muito essa curiosidade. E lembro-me depois que, nos anos seguintes, o cruzamento de referências, na escola passou a ser uma coisa natural, mas para a minha geração não era, para a minha geração havia o [Giorgio] Grassi, o [Aldo] Rossi, o Siza evidentemente como referencial máximo, mas era um universo razoavelmente limitado. Estou a falar de referências formais de desenho de arquitectura, os códigos eram todos muito dirigidos, e não era imposto, mas era natural que fosse assim. A minha geração talvez fosse das primeiras a procurar caminhos divergentes e os anos que vieram a seguir também corresponderam a uma altura em que as revistas começaram a chegar em grande quantidade e que as viagens se foram intensificando. A descoberta de outros universos foi muito importante, começaram também a acontecer os programas Erasmus [programa de apoio inter-universitário de mobilidade estudantil] e tinha colegas e que iam fazer o estágio de final de curso no estrangeiro e isso, parecendo que não, mas criou uma dinâmica na arquitectura, eu diria irreversível. Como era a relação aluno/professor com os mestres da escola durante o vosso percurso académico? O que perdura deste convívio? Era uma relação quase de mestre-pupilo, aliás tão forte que ainda hoje eu e meus colegas temos essa visão do professor como uma espécie de tutor, quase de aconselhamento e orientação e de ajuda a reflexão, mais do que um professor distante que está a dar umas informações mais ou menos abstractas. É evidente que ao logo desses cinco anos houve pessoas com quem fui tendo maior ou menor cumplicidade. Por exemplo, um nome que eu ainda não referi, mas que para mim foi muito marcante porque foi meu professor de 1º ano e depois foi tabulando no fundo a minha actividade, não só académica mas também profissional e académica novamente quando eu comecei a dar aulas, foi o do arquitecto Sérgio Fernandez. Ele construiu, ou ajudou a formatar, essa minha nova consciência e essa visão particular do mundo, e depois, sobretudo, também porque me introduziu uma leitura crítica sobre a produção, sobre os métodos e as metodologias de trabalho que foram marcantes penso que até hoje de alguma maneira. O [José] Gigante foi muito marcante, embora nunca tenha sido meu professor directo, mas era professor de construção e era sempre a ele que recorríamos, que era professor da turma ao lado. O Eduardo Souto de Moura, no 4º ano, como professor de projecto foi muito marcante. O arquitecto Siza quando eu estava no 3º ano, julgo que era professor de construção do 4º, e


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quando eu passei para o 4º ano ele deixou de dar aulas, por acaso foi uma das coisas de que tive pena. Embora na altura já era muito solicitado para trabalhos no estrangeiro, foi naquele período em que ele esteve na Alemanha e por isso a ideia que tenho é que ele já não estava muito presente. Nas aulas teóricas, foram três figuras fundamentais (espero não estar a esquecer de ninguém) que foi o Távora, por essa paixão da arquitectura, porque a arquitectura é tudo, é almoçar, é jantar, é passear, é conversar, é tudo! E esse desejo de dizer assim: ‘eu quero ser como este homem quando eu for grande’, o Alexandre Alves Costa como professor de História da Arquitectura Portuguesa, e o Domingos Tavares, também de alguma forma, com a História da Arquitectura Moderna. Outra característica marcante da vossa geração académica é o contacto e a experiência que desenvolveram em gabinetes de ex-professores e conceituados arquitectos portugueses ou estrangeiros logo após a formação. Que influências subsistem resultantes dessa colaboração? Eu infelizmente não trabalhei no estrangeiro, aliás é uma das coisas de que tenho pena. Não aconteceu sobretudo por duas razões A primeira talvez é que eu tinha uma vontade enorme de começar a fazer obras de arquitectura, uma enorme vontade de estar cá para conseguir arranjar clientes e fazer coisas minhas, isso pode ser uma razão, de natureza psicológica, mas no fundo eu não estava preparado para sair. Mas a razão fundamental foi que quando estava a acabar o curso, comecei a trabalhar com o José Paulo dos Santos, durante 2 anos, e entretanto fui cruzando apoios pontuais com o Eduardo Souto de Moura. Quando acabei o curso, o Eduardo Souto de Moura convidou-me para ir para o escritório dele, onde estive 2 ou 3 anos a trabalhar regularmente, penso que foi 89, 90 e parte de 91, depois ainda ficaram uns trabalhos que ele estava a fazer e convidou-me para ajudar, embora já não estivesse lá a trabalhar. A par disso em 89 tinha feito um concurso, com o Paulo Providência, para os Dominicanos em Lisboa [Convento de São Domingos de Lisboa], e ganhamos. No final de 88 entreguei minha prova final, e o concurso foi ganho em 89, ou seja, por um lado eu não tinha muita vontade e queria criar raízes e ter oportunidades de trabalho, e por outro lado ganhei o concurso dos Dominicanos, cuja obra era necessário começar e portanto era completamente inviável fazer qualquer experiência no exterior, sendo que esta foi a segunda razão fundamental. Ainda assim as duas relações, quer com o José Paulo dos Santos, quer com o Eduardo Souto de Moura foram muito profícuas e muito interessantes. O José Paulo tinha relações com o exterior, ele tinha estado em Inglaterra e por isso tinha amigos muito famosos, como o David Chipperfield, que apareciam muitas vezes no escritório, ou seja que o frequentavam. Víamos projectos com eles, inclusive o José Paulo dos Santos esteve na origem, também com o Souto de Moura e com outros professores da escola, das conferências [‘Discursos sobre Arquitectura’] que agora estão a ser reproduzidas no [Cinema] Passos Manuel [‘Discursos Re-visitados’]. O José Paulo dos Santos era um dos membros dessa comissão, e eu diria que foi ele que fez os contactos com todas as personalidades, o [Jacques] Herzog, o Kenneth Frampton, Chipperfield (que era amigo dele), o James Stirling, enfim, uma série de personalidades que iam passando pelo escritório. E eu, embora não tenha tido essa experiencia profissional do exterior, no fundo ia lidando com essa malta muito estimulante, foi um período curioso. A seguir fui para o Souto de Moura e foi uma experiência diferente. Neste caso era mais o Souto de Moura que estava sempre a sair! Porque entretanto tinha começado a dar aulas em Harvard, e nós íamos participando daquele circuito mas ao contrário: ele saia e voltava a contar as histórias. Como se deu o trabalho independente? Quais factores, económicos, sociais e culturais, influenciaram a organização profissional através de uma produção arquitectónica de autor? Não foi uma opção, quer dizer, foi uma coisa natural. Quando fui trabalhar com o José Paulo dos Santos, ele tinha um escritório em São Lázaro, perto das Belas Artes, era um edifício de escritórios que tinha frente e traseiras. O José Paulo estava a ocupar um dos espaços e o que estava do outro lado estava vazio. Eu ainda era estudante e consegui convencer uma série de amigos, estávamos todos no 5º ano, a alugar em conjunto esse escritório para podermos fazer os trabalhos de curso, em vez de cada um trabalhar em sua casa, trabalhámos em conjunto, fizemos as noitadas todos juntos, era mais divertido. Alugámos o escritório todos em conjunto, estava eu, o Paulo Providência, a Cristina Guedes e o Francisco Vieira de Campos, estava o Alfredo Ascensão e a Laura, um casal de arquitectos que agora esta na Maia, estava o Antônio Losa, o Nuno Machado que era de Braga. Éramos um grupo de estudantes muito próximos e portanto a formação do escritório foi um acto colectivo, no sentido de querer ter um espaço de trabalho. Acho que, no fundo, estávamos meio nostálgicos de terminar a escola, e aquilo era uma forma de manter aquele ambiente de escola, que é estarmos todos em conjunto. O José Paulo tinha


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o escritório ao lado e de vez em quando apareciam uns amigos dele e olhavam para os nossos projectos, e criticavam, era uma coisa muito divertida, uma espécie de prolongamento e extensão, não foi uma coisa de criar um escritório para fazer arquitectura com clientes, foi ainda criar uma segunda escola. Nós ganhamos esse concurso, eu e o Paulo em conjunto, para os Dominicanos, e começamos o projecto. Depois, pontualmente, apareciam projectos pequeninos, de um tio que me pediu uma casa, ao Paulo aconteceu o mesmo, à Cristina e ao Francisco a mesma coisa. Quer dizer, todos nós começamos a ter pequeninas coisas para fazer e fazíamos lá. Á medida que as pessoas começaram a ter mais trabalho, ou então que os interesses foram divergindo naturalmente, passo a passo o escritório foi-se desmembrando. Já estava só eu, o Paulo Providência, a Cristina Guedes e o Francisco Vieira de Campos, desses 10 tínhamos ficado 4. Em 2000 eu saí e vim para aqui, não exactamente neste gabinete, mas para um aqui ao lado, e pouco tempo depois os outros saíram todos e cada um foi para o seu lado. A Cristina e o Francisco ficaram juntos, no escritório Menos é Mais, e o Paulo também fez o escritório dele, e a grosso modo aquilo acabou no ano 2000, mas ainda durou 11 anos e apesar de tudo foi interessante. Portanto esse projecto de um escritório individual não existiu, aconteceu naturalmente, fomos tendo trabalho, formos criando oportunidades, entretanto também comecei a dar aulas logo em 91, portanto foi um processo também muito rápido, quase a seguir a acabar o curso, o que não gerou oportunidades para coisas muito diferentes, quer dizer, aconteceu, foi natural. Qual a diferença entre conviver na universidade com um arquitecto cuja obra se admira e o convívio com ele no desenvolvimento de projectos profissionais? Pode-se afirmar que esta relação seria uma espécie de “influência buscada”? A grande utilidade da escola foi, sobretudo, o grupo das pessoas que lá estavam, quer dos professores quer dos colegas, aquele universo, aquele ambiente, aquela forma de estar na vida, muito descontraída, por outro lado muito empenhada, muito apaixonada e esse universo que me moldou fundamentalmente. Claro que no início aprendemos História da Arquitectura e fomos aprendendo as ferramentas básicas para se conseguir projectar, aprender a desenhar para projectar, aprender a pensar criticamente sobre o projecto, tudo isso se aprende na escola, mas foi aquele ambiente sobretudo que foi revolucionário. Depois, do ponto de vista oficinal, realmente foi no trabalho com o José Paulo dos Santos e depois com o Eduardo Souto de Moura, que foi mesmo marcante do ponto de vista da forma do relacionamento, por exemplo, com os clientes, com a equipa dos engenheiros que trabalham connosco, o relacionamento com a obra, tudo isso eu acho que aprendi sobretudo com eles, de maneira diferentes, com interesses diferentes. O José Paulo dos Santos nunca foi meu professor, mas poderia registar duas coisas, uma é a sua enorme atenção ao detalhe, o cuidado construtivo exímio, sempre muito cuidadoso com a forma que se constrói e com o desenho, por outro lado uma postura ética absolutamente irrepreensível, é uma coisa que sempre me deixou uma marca muito forte, uma pessoa que é incorruptível. Aquilo que no Eduardo Souto de Moura era fascinante para mim enquanto professor – o Eduardo Souto de Moura foi meu professor em 85-86, e portanto não era a arquitectura dele o mais marcante – era o discurso dele, a forma como ele estava na arquitectura, como ele discutia as ideias da arquitectura, como nos entusiasmava e nos abria caminhos, deixar que as coisas acontecessem e entusiasmar-se com a conversa sobre arquitectura, sobre como a correspondência entre a construção, o material e o espaço são gerados e a forma como o arquitecto lê isso, isso foi muito marcante para mim. Quando ele foi meu patrão, digamos assim, a experiência foi diferente, o que aprendi fundamentalmente com ele foi uma postura muito profissional, o papel do arquitecto, do profissional, a forma como se aborda o projecto na relação com o lugar, com o cliente, com a circunstância do cliente, do ponto de vista económico e do ponto de vista das expectativas, da forma como em cada momento nós fixamos uma solução com critérios muito claros de desenho e de raciocínio para conseguir passar a mensagem para o cliente, ouvir o cliente e encontrar uma estratégia de trabalhar com ele, sem perdermos aquilo que é a nossa visão de mundo, e essa metodologia de abordagem foi para mim muito, muito marcante. Portanto foram dois mestres, verdadeiramente. A FAUP sempre possuiu uma tradição muito pragmática, onde os professores, na sua maioria arquitectosprofissionais, conciliavam actividade profissional, pedagógica e crítica (como Távora). Acredita no necessário equilíbrio entre ensino, actividade profissional e actividade crítica? Como estas três vertentes se


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relacionam na sua actividade profissional? Mal… mal porque é um universo difícil de compatibilizar. A certa altura a universidade (dou aulas em Coimbra) exige tanto de nós, do ponto de vista do tempo e de tudo que torna difícil o exercício da prática da arquitectura. É difícil em termos de tempo sobretudo, do ponto de vista científico, da disciplina, é fácil porque estamos sempre a falar da mesma coisa. Nesse sentido, a minha experiência profissional é a mais-valia que tenho para dar aos meus alunos, portanto só falo da experiência que eu tenho. E eu acho que assim os alunos podem recolher do professor uma experiência directa, e não uma experiência lida. Obviamente a experiência profissional tem que ser sempre depois enriquecida com pensamentos cruzados e com leitura, e que eu referencio muito as experiências que tenho, por exemplo quando visito obras de outros colegas, sejam portugueses ou estrangeiros, faço sempre essa ponte, mas é a minha experiência na obra dos outros, e essa é a minha leitura, a partir da minha experiência. No ponto académico estrito, é difícil porque de facto as universidades estão a caminhar cada vez mais para uma especialização (desenvolvimento do trabalho académico, doutoramento, depois os trabalhos de pós-doutoramento, de investigação, crítica de arquitectura), um trabalho que para ser bem feito é exigente, obriga concentração e tempo e, portanto, torna difícil depois a gestão de uma obra profissional que também precisa de tempo. É esgotante mesmo, e mais do que na geração dos meus professores, porque nessa altura o trabalho académico era uma coisa que praticamente não existia, ou seja, eles eram profissionais de arquitectura que iam dar umas aulas de projecto, e isso era o que nos fascinava mais naqueles professores, era ir ver depois as obras deles, poucos eram os professores que não tinham actividade profissional. Hoje eu diria que começa a ser o contrário, que poucos são os professores que conseguem ter uma actividade profissional relevante, porque a universidade está, no fundo, a exigir o oposto. Acho que a universidade está errada, vai transformar as escolas de arquitectura num universo mais pobre, posso estar enganado, mas eu acho que vai. Essas três vertentes são fundamentais, acho que a universidade deveria potenciar esses caminhos alternativos, quer dizer, não é só um bom académico aquele que faz doutoramento e que faz trabalhos teóricos, é também aquele que faz bons projectos, porque eles são úteis a uma disciplina como a nossa. Talvez os arquitectos não tenham, nessa transição primeiro das Belas Artes para a faculdade, e agora da faculdade para o regime de Bolonha, tomado bem consciência que estão a entrar num beco sem saída. Não quero ser pessimista, mas acho que há qualquer coisa que não está completamente controlada e não está salvaguardada, porque há um conjunto de profissionais relevantes, que não estão nas universidades, sobretudo não estão nas públicas, que é onde se exige mais esse processo académico, porque é difícil compatibilizar esse universo. Quer dizer, como é que um arquitecto que tem não sei quantas obras para fazer ainda tem tempo para fazer um doutoramento, ou mestrado, é muito difícil, e portanto as pessoas saem. O Souto de Moura já não está por algum motivo na faculdade. A geração anterior a 1980 é muito marcada por um “projecto de futuro”, e toda a actividade era desenvolvida na busca coerente deste projecto, possuíam referências sólidas e acreditavam nessas referências. Acha que a vossa geração teve/tem um “projecto de futuro”? Eu não sei, acho que a minha geração, de uma forma muito simples, estava interessada em construir. Não é fazer qualquer coisa, mas era interessada em construir e interessada em experimentar coisas e em estar disponível para procurar caminhos diversificados, ou seja experimentar sem preconceitos, sem estar pré condicionado a uma forma de materializar, estar disponível para pensar nas coisas, para resolver. Uma espécie de mistura de pragmatismo com desejo de forma e com abertura aos novos materiais. Como diria um poeta, penso que espanhol, ‘o caminho faz-se caminhando’, estar disponível para fazer e querer fazer, e querer construir, e querer enriquecer esse património da experiência profissional. No meu caso pessoal é isso também. Talvez das circunstâncias que fui tendo, das oportunidades de trabalho que foram acontecendo, não procuradas, houve sempre um empenho em poder contribuir para a qualificação da vida das pessoas que estão directamente relacionadas com as oportunidades de projectos que eu tive. Com o meu edifício eu vou tentar ajudar a qualificar o espaço urbano que este edifício vai influenciar, e que essa proposta interfira positivamente na vida das pessoa, que não seja mais uma caixa ou mais uma barreira, mas que seja o contrário, uma ponte, um espaço de transição, de cruzamento, em que as pessoas se sintam integradas. Isso é, no fundo, um projecto social que vem obviamente da escola, mas vem com outras coisas à mistura, porque não é necessariamente um projecto social no sentido da uniformização, mas como é que eu transformo esse edifício e a forma como ele se relaciona com o lugar, num espaço que qualifique a vida das


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pessoas e propicie as condições para que elas sintam dignificadas. Finalmente, como definiria a sua arquitectura hoje? Acho que um pouco nesse sentido. Depois, o que acontece naturalmente, e ainda por ser mais conservador, acho que há um universo que é da perenidade. Quando se faz uma casa, a casa é para estar ali, não é para se desmanchar em 5 anos, há pessoas que pensam o oposto, e eu respeito obviamente, mas acho mesmo que a construção de um espaço físico para viver, idealmente, é permanente, é duradouro, é perene no sentido de não ter limite pensado, físico. E portanto é um projecto de uma importância enorme e as escolhas materiais, de sua materialização, são sempre muito importantes, não tem só a ver com o tacto, a cor, a forma como este conjunto interfere fisicamente e sensorialmente, mas também a forma como esses materiais vivem ao longo do tempo. Ou seja, são todos factores que me influenciam, materiais que não precisem de grande manutenção, porque isso depois domina a vida das pessoas, e para mim uma casa tem de estar sempre bonita e confortável e que se pode acrescentar, transformar, mas não no sentido de ela nos dominar. Nesse sentido, é por isso que muitas vezes as obras acabam por ter escolhas, sistemas construtivos e de materiais, muito próximos, não iguais, mas próximos, porque tem no fundo esta matriz que me ajuda a tomar algumas decisões. Anteriormente, usei o termo “influência buscada” para identificar a busca pessoal de referências conceptuais, mas também para o desenvolvimento da prática arquitectónica. Qual seria a sua influência hoje? Quais arquitectos/arquitecturas o influenciam/despertam interesse hoje? Isso é fácil! E é fácil porque são os mesmos! Na base acabam por ser os mesmos, e eu vou tentar explicar rapidamente. Á medida que o universo da informação foi levado ao limite e a quantidade de informação é de tal forma grande que a maioria da informação, até para alimentar os editores e a possibilidade de publicar coisas novas, cedeu a tentação de não filtrar e essa profusão de informação transformou-se em ruído, para mim é ruído visual puro, e agora não estou a ser exagerado, é tanta coisa que eu nunca fixo o nome das pessoas, nunca sei se aquilo foi feito num sítio ou em outro. E nesse sentido cada vez mais me interessa regressar ao básico, aos fundamentos da arquitectura que me interessa, e por isso que eu ia dizer que são quase sempre os mesmos. São ás vezes redescobertas de arquitectos do século XX em geral, outras vezes do século XIX, arquitectos obviamente para além dos mestres da Arquitectura Moderna do século XX, muitos arquitectos com obras menos conhecidas e menos panfletárias nesse sentido, mas obviamente estimulantes, e citaria os clássicos obviamente, o Corbusier incontornável, cada vez com mais paixão porque acho de facto um autor absolutamente extraordinário, ou o Alvar Aalto, ou o Louis Kahn, uma figura que me interessa muito precisamente pela forma como ele serenamente vai construindo aquele património do saber, de resolver os problemas e literalmente a forma como ele constrói, os materiais que elege, a forma como aqueles edifícios sobrevivem no tempo, não envelhecem, é uma coisa que me interessa muito. Obviamente o Mies Van der Rohe, esses são os clássicos e é até impossível dizer que eles não estão presentes e que não nos influenciam. No campo mais recente obviamente fico sempre muito curioso, embora não me reveja em muitas das obras, do Herzog & de Meuron, confesso que o Rem Kolhhaas nunca me interessou muito como arquitecto, mas talvez porque frequente a Casa da Música e cada vez aquilo se vai entranhando mais em mim, de facto hoje sou mais curioso da obra do Rem Kolhhaas do que era no começo, apesar de ter gostado muito de ler o ‘Delirious New York’ há 20 anos atrás e aquilo foi uma revelação, achei extraordinário, mas de facto não tinha algo que me suscitasse especialmente, hoje sinto pelo menos curiosidade. Peter Zumthor, obviamente, mas também o [Sigurd] Lewerentz que é um arquitecto sueco menos conhecido, e que eu descobri a 20 anos atrás numa visita que fiz a Estocolmo, numa pequena intervenção, e de quem mais recentemente tive a oportunidade de ver uma igrejazinha em Klippan no sul da Suécia. Foi das emoções estéticas que eu tive mais reveladoras, essa obra, que é construída com um único material que é o tijolo de burro, chão paredes e tecto, tudo, é uma obra estranhíssima mas é uma obra maravilhosa, e figuras desse período intermédio do anos 40 aos 70, muitos arquitectos dos anos 60, arquitectos interessantíssimos, que eu talvez por ignorância mas de facto na escola não se falava neles, que foram apanhados por aquela fase de transição entre a modernidade e a pós-modernidade e que construíram um percurso muito interessante e esses, neste momento, são os que me estão a dar imenso prazer redescobrir. Acho que quando estou a fazer um trabalho novo, me interessa mais esse lado, pelas razões que expliquei a pouco, da materialização das obras, interessa-me mais esse regresso ao básico, do que propriamente pegar nas revistas contemporâneas para ver quais os materiais que agora estão a dar, é a última coisa que me ocorre, no sentido em que não me interessa nada a arquitectura panfletária que esta agora em produção.


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Conversa com Francisco Vieira de Campos e Cristina Guedes Arquitectos pela FAUP (1991 e 1992). (Realizada em 29-04- 2010)

Os professores que compunham o corpo docente e leccionavam em 1980-1990 foram formados numa época em que a linguagem da arquitectura esteve muito associada a uma espécie de militância, à ideia de que a sociedade se devia construir. Quando ingressou na FAUP, esta postura era ainda muito marcante entre os professores? FVC: Quando entrei na faculdade em 1982-83, uma década depois do 25 de Abril - década de turbulência do ponto de vista ideológico e até de formação - as coisas já estavam diferentes. Quando entramos, ainda em Rodrigues de Freitas, assisti inclusive às primeiras RGA’s [Reunião Geral de Alunos] promovidas pela Comissão Instaladora para a FAUP, foi a primeira vez que ouvi falar do [Alexandre] Alves Costa (presidente da Comissão Instaladora) e, portanto, ainda fiz dois anos nas Belas Artes que marcam profundamente. Mas essa postura ideológica existia, aliás nunca deixou de existir. O nosso primeiro embate foi com os professores cujas políticas eram muito de esquerda, através de uma série de questões que nós não tínhamos abordado do ponto de vista social e que começavam a ser postas, por parte dos professores em cima da mesa, como os enunciados dos programas dos exercícios, debate de ideias, conceitos e até de formação educacional também. Muitas vezes nós éramos confrontados como a “elite burguesa” e teriam de ser desmistificados uma série de conceitos que nós tínhamos. Esse choque de ideias era uma coisa que nós não estávamos acostumados, nunca tivemos no Liceu e que agora estava por à prova um pouco a nossa educação e as nossas convicções. Nesse sentido as avaliações eram o sítio privilegiado da aprendizagem, era ali que o aluno tinha o poder de contra argumentar as observações que o professor tinha sobre aquilo que estávamos a projectar. Foi interessante porque mexeu com todo o sistema educacional que eu tinha e tive de estar a fazer ajustes, o que depois alastrava para dentro da família, porque as Belas Artes era sempre vista como um antro de comunistas, e essas coisas todas eram um pouco a imagem que nos davam, mas que era completamente diferente. Já os seus anos académicos fazem parte de um outro momento, posterior, de maior desligamento das questões ideológicas, de uma diversidade muito grande de caminhos e até de certa aleatoriedade. Qual era o “espírito de época” entre os estudantes? FVC: O primeiro ano marca profundamente em qualquer faculdade mas, especialmente na Faculdade de Arquitectura, é o ano que marca na formação de quem vem do Liceu e passa para o meio Universitário. Temos a primeira percepção de que, de facto, há uma mudança em termos de resposta ao pedido por parte dos professores completamente diferente e então projecto assume uma importância fulcral, mas mais do que o projecto eu julgo que o desenho. A cadeira de desenho é determinante, é a cadeira que nos tira um pouco o fôlego, porque é exaustiva e isso marca profundamente. O corpo docente do primeiro ano era muito homogéneo, e uma das coisas que acho importantíssimo dentro da faculdade é a homogeneidade. Nós éramos pouquíssimos, na altura eram 6 professores de primeiro ano, e tínhamos aulas num pavilhão com todas as turmas ao mesmo tempo dentro do mesmo espaço, sempre numa contínua aprendizagem colectiva, que é muito importante porque aprende-se muito mais. Lembro-me do Sérgio Fernandez, do Henrique Carvalho, que já morreu e que foi meu professor e era óptimo, do [Manuel] Botelho, o José Quintão, o novinho José Manuel Soares e nas disciplinas teóricas tivemos a sorte de ter o [Fernando] Távora em Teoria Geral da Organização do Espaço [TGOE]. Era muito interessante porque quando um aluno de outra turma tinha uma posposta parecida a minha ia assistir à sua avaliação, e isso é uma experiencia muito enriquecedora. Era um meio muito bom, um ambiente muito saudável. A Faculdade era muito caseira, quase uma família, e sentia-se muito isso dentro da faculdade. A vossa geração académica parece ter assumido um sentido crítico e arquitectónico de maior comprometimento com o seu tempo e com a escola. Estar engajado num projecto académico passa a ser meio e termo para a discussão da condição académica e disciplinar da arquitectura? Seria esta uma mostra de maior consciência e responsabilidade com o seu tempo?


ANEXO | CONVERSAS COM ARQUITECTOS

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Sim, claro. Nessa altura acho que há uma viragem da escola muito mais centrada para as questões de projecto, do desenho, muito ligada à génese do Movimento Moderno como base dos conceitos projectuais e ideológicos que a faculdade adoptava. Estávamos a perceber esse rigor racionalista-modernista em confronto com as primeiras intenções do Távora, o regionalismo crítico do [Kenneth] Frampton, sobre como é que nós podemos fazer o Moderno regional. Apesar de haver questões sociais e políticas também no ar, nós já entramos na faculdade com essas ideias de projecto e da metodologia muito mais centradas no desenho, porque antes não se desenhava, era tudo exterior, era tudo político, na geração anterior nada se fez quanto ao desenho. Como era a relação aluno/professor com os mestres da escola? O que perdura deste convívio? FVC: A relação com os professores era centrada na questão do desenho, tudo o que está ligado à metodologia projectual e quais eram as nossas convicções. Lembro-me que nesses primeiros tempos o “paperback”, aquelas monografias da Gustavo Gili com os arquitectos modernos, que nós líamos eram a nossa colecção de bolso. O Siza marcava-nos profundamente, também o Rossi e o Grassi eram arquitectos extremamente importantes na nossa formação. Outra característica marcante da vossa geração académica é o contacto e a experiência que desenvolveram em gabinetes de ex-professores e conceituados arquitectos portugueses ou estrangeiros logo após a formação. Que influências subsistem resultantes dessa colaboração? FVC: Eu lembro-me perfeitamente, foi quando eu estava no 4º ou 5º ano, que houve os primeiros Erasmus, um protocolo com a faculdade de França, mas ainda não estava totalmente esclarecido. As grandes dúvidas que se nos punham no final do curso e a resposta que a faculdade tinha para nos dar como estágios era muito pouco experimental, era muito académica e vinha no seguimento de uma falta de relação com o mundo profissional. O 4º ano é muito intenso e estimulante, porque é o primeiro ano em que o aluno tem já uma capacidade crítica e auto-crítica para falar do seu projecto. E tivemos o Eduardo [Souto de Moura] como professor que nos falava das referências dele, falava do Donald Judd, do [Bill] Viola, de artistas plásticos e arquitectos como o [Jacques] Herzog, que estava a despontar, ou do [Aldo] Rossi e do [Giorgio] Grassi como a base ideológica chave do racionalismo italiano, e nós começamos a fazer uma viragem no projecto completamente diferente. Quando passamos para o 5º há ali uma travagem, porque não sabemos se aquilo é urbanismo, se é projecto, e é quando nós começamos a sentir que a nossa formação académica está a acabar e isso é um pouco frustrante. Começamos a perceber que aquilo que a faculdade nos tinha para oferecer não era estimulante e começamos a perceber que os estágios fora eram a nossa via. CG: E não era só o Eduardo, as pessoas na altura já estavam preocupadas em fazer essa transição e o facto de ter os “Discursos de Arquitectura”, onde tivemos cá o Herzog, o [David] Chipperfield, o [Josep] Llinás, e alguns nem muito conhecidos como o [Peter] Zumthor. E portanto essa influência que tivemos no fim do 5º anos e nos estágios, de ver essas conferências que nos impressionaram e marcaram pela diferença de método entre a escola do desenho, do método, do “Siza”, onde o desenho é um arquétipo e ao desenhar a pessoa vai descobrir uma coisa que já existe, que é muito poético, muito belo, mas que não é para todos, era para o [Álvaro] Siza. FVC: O drama instalou-se nessa altura porque os outros arquitectos eram tão bons (e peço desculpas), mas as nossas palas eram só duas, ou Eduardo ou Siza, e olhávamos para trás e tínhamos 80 alunos a querer exactamente a mesma coisa. Portanto houve ali uma guerra, e houve jogadas de antecipação, onde nós tivemos sorte. Eu, antevendo que teria uma grande procura, antecipei-me e como fui o primeiro, eu fiquei. E para mim a primeira relação no 4º ano com o Eduardo é fundamental exactamente pela forma como ele orientava os trabalhos e depois, no escritório, como se trabalhava e isso marca profundamente depois a minha carreira profissional, mas marca até um ponto. Qual a diferença entre conviver na universidade com um arquitecto cuja obra se admira e o convívio com ele no desenvolvimento de projectos profissionais? Pode-se afirmar que esta relação seria uma espécie de “influência buscada”? FVC: É exactamente igual, porque uma das coisas que o Eduardo nos incutia na sua metodologia ou na sua orientação é que a discussão que fazia dos trabalho no atelier era um pouco a que fazia nos trabalhos dos alunos, e isso era uma vantagem porque ele punha-se sempre nas discussões como se o nosso trabalho fosse o dele, portanto isso obrigava a que tivesse uma grande relação com a sua própria metodologia projectual e isso é interessante porque dentro do atelier é exactamente


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a mesma coisa. Não há diferença. Eu acho que se sente exactamente essa não diferença também através das monografias e entrevistas, tanto do Eduardo a falar do Siza como do Siza a falar do Távora. Como se deu o trabalho independente? Quais factores, económicos, sociais e culturais, influenciaram a organização profissional através de um gabinete de trabalho colectivo, em oposição à produção arquitectónica de autor? FVC: Essa questão parte um pouco de que saímos da faculdade e começamos a perceber que todo o exercício de projecto até a conclusão da obra é feito em equipa, e o trabalho de equipa não se personifica numa pessoa, mas sim num colectivo, em que a autoria é um pouco diluída e por isso acho que é muito mais democrático o nome não estar associado a um só. Nós na altura achávamos, muito também por questões de linguagem e dos conceitos ligados ao “less is more”, a contenção que o Mies [Van Der Rohe] dizia, a questão estrutural, tudo o que está a volta da própria arquitectura que o Mies fazia era um pouco aquilo que preconizávamos e gostávamos de fazer e achávamos que esse nome [Menos é Mais] significava um pouco a nossa abordagem profissional. Mas hoje em dia também somos muito criticados por estar muito agarrados a esse nome “Less is More / Menos é Mais” da altura. CG: Passando o minimalismo, houve uma altura dos anos 90 em que houve um revivalismo e uma fase de depuração e esse nome era sempre muito conotado com isso. Mas hoje em dia, passados mais de 20 anos da nossa primeira obra, o Café do Cais que tinha referências do Donald Judd, rotularam-nos de uma forma negativa sem perceber que tem a ver com um processo de trabalho. Acho que esse lema já teve a sua história, e já tem a sua aura, depois do “less is more”, “less is bore”, “less and more”, já carrega muito mais significado do que a princípio. E mesmo esse, como foi o primeiro, carrega esses significados todos. O atelier quando tem só uma pessoa carrega o nome dessa pessoa, e a escola do Porto tem muito essa tradição do mestre, artesão, que esquiça e só ele é que pensa, só ele é que faz e quando são duas pessoas ou uma equipa a trabalhar é um bocadinho diferente. FVC: E nós cada vez mais achamos que é uma equipa, cada vez mais vasta, a pensar o projecto. Apesar de haver as directrizes nossas, eu acho que é muito mais correcto da nossa parte o nome da empresa abranger uma série de nomes que estão agarrados a essas autorias do que propriamente o nome. Mas também o nome “Menos é Mais”, em português, não diz muito do ponto de vista de quem vai fazer trabalhos no exterior, workshops, conferências, e portanto muitas vezes adoptamos o nome “Guedes + de Campos”, como sendo um nome mais fácil de sermos reconhecidos fora de Portugal. A FAUP sempre possuiu uma tradição muito pragmática, onde os professores, na sua maioria arquitectosprofissionais, conciliavam actividade profissional, pedagógica e crítica (como Távora). Acredita no necessário equilíbrio entre ensino, actividade profissional e actividade crítica? Como estas três vertentes se relacionam na sua actividade profissional? FVC: Eu não faço distinção nenhuma entre o atelier e a faculdade, ou seja, aquilo que nós fazemos aqui é aquilo que nós dizemos aos alunos. É como o Eduardo diz, só temos credibilidade quando falamos daquilo que fazemos. A orientação pedagógica é o grande desafio para o professor, porque nós estamos sempre a fazer 32 projectos como se fossem os nossos projectos à luz das ideias dos alunos. O grande estímulo que hoje em dia me prende a dar aulas é exactamente esse, eu tenho que formatar a minha cabeça com os meus valores mas conforme as ideias do aluno e esse confronto também se faz aqui no atelier. A parte estimulante do projecto é essa, porque as ideias que nós temos já se encontram no léxico da arquitectura, e indicamos essas referências aos alunos, porque vemos muito mais os potenciais de um projecto de um aluno do que o próprio aluno vê no seu desenho. CG: O aluno ainda está à procura e nós, com a continuidade de dar aulas, desenvolvemos um grande espírito de síntese e que depois trazemos para o escritório, e por isso é muito produtivo e estimulante dar aulas. Temos que ver os 30 projectos e perceber o que cada trabalho tem de intuitivo, quais são as pistas que ele nos dá e muito rapidamente transmitir isso ao aluno. Quando se faz um concurso, por exemplo, tem que se ver muito rapidamente qual é o conceito, como se faz isso ou aquilo e por isso em prática rapidamente, fazer workshops é a mesma coisa, em um curto espaço de tempo por uma equipa a trabalhar, sintetizar, fazer maquetas, programar, e isso é óptimo. FVC: Aquilo que hoje em dia nós transmitimos como uma metodologia projectual parte essencialmente de nós conseguirmos, de uma forma muito precoce, sintetizar quais são os problemas que nós de facto queremos resolver. Qualquer


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arquitectura parte de um problema, já o Corbusier dizia, e isso centra a nossa discussão e organização de como vamos abordar os projectos. Portanto, eu acho muito importante essa questão da metodologia projectual, ligar o tema, o programa e o sítio como sendo um triângulo muito importante para a definição da tal síntese, porque dessas três conjugações vem uma resposta construtiva e isso obriga-nos a um poder enorme de síntese. Finalmente, como definiria a vossa arquitectura hoje? FVC: Objectivamente anda dentro essa síntese, até porque a síntese obriga-nos a ter uma noção muito clara da contenção de custos que temos pela frente, e isso vem também da formação académica, da própria faculdade. Essa síntese, obriga-nos a ter precocemente umas rédeas curtas sobre aquilo que é a possibilidade de fazer, ir avante com o projecto, porque não somos um atelier que faz projectos para meter na prateleira, há sempre uma ligação muito forte com a construção, sempre numa perspectiva não do desenho pelo desenho mas numa relação do desenho com viabilidade construtiva, ou seja, uma coisa é o desenho e outra é nós pensarmos se aquilo que está ali é possível construir, e isso faz toda diferença, porque dános uma capacidade de memória, táctil e sensorial sobre aquilo que estamos a projectar. Eu acho que só faz sentido a nossa formação quando a vemos construída. Costumamos dizer que cada projecto nos obriga a uma leitura do sítio, do cruzamento do programa e de tudo o que gira a volta do que é fazer uma obra e conseguir sintetizar, porque ao sintetizar todo o esforço que canalizamos é para o essencial, e aí vem outra vez o “Less is more”. Por isso, muitas vezes eu acho que é como “pescadinha de rabo na boca” porque andamos ali a voltas e os extremos tocam-se e a forma comoatingimos cada projecto e a obra é uma linha constante, que é dada muito pela metodologia que a escola, que a Faculdade nos incutiu, é quase transversal à nossa formação profissional. Mas há uma grande preocupação em conseguirmos construir, porque não deixamos de pesquisar e de fazer experiências com novos materiais, sempre no intuito de poder ser aplicado na construção e isso é que é muito importante no nosso trabalho. Anteriormente, usei o termo “influência buscada” para identificar a busca pessoal de referências conceptuais, mas também para o desenvolvimento da prática arquitectónica. Qual seria a vossa influência hoje? Quais arquitectos/arquitecturas vos influenciam/despertam interesse hoje? FVC: É nítido que nós temos uma admiração pelos suíços, que têm uma capacidade produtiva e tecnológica enorme, que produzem efeitos fantásticos, e um pouco paradoxalmente eu admiro profundamente também a arquitectura brasileira exactamente porque é o contrário. Porque um é a sofisticação tecnológica e a materialidade, que é aquilo que nos interessa, e esse paradoxo da arquitectura brasileira, tem muito a ver com o modernismo, com a essencialidade com a falta quase de pormenor e que vai ao essencial que é uma das coisas que toca no princípio em que nós nos regemos. No fundo o que nos interessa hoje em dia é a capacidade de trabalhar a matéria (e digo todo tipo de matéria), de dominar o sistema construtivo na transformação da matéria do ponto de vista artístico, da textura e dos efeitos. A nossa investigação dos projectos incide sobre isso, porque quando falamos da síntese estamos a falar logo de um material, de um sistema construtivo que vai alterar o material e que vai ter uma certa expressividade, e é isso que nos move, é isso que nós gostamos, que as coisas sejam bem-feitas e que sejam bonitas. A grande dificuldade é dominarmos isso porque hoje em dia conseguimos ter materiais muito distintos, podemos ter o betão, os polímeros, e de podermos pesquisar muito dentro de uma certa linguagem do design e de como eles se apropriam de materiais compósitos de grande resistência mas de molde, portanto pré-fabricação, que é uma das vertentes que gostamos muito de trabalhar, ligadas à construção civil. Mas quando saímos daqueles moldes mais arcaicos, e entramos numa modulação como os automóveis, que é tecnologia de ponta, de transformação do metal, das ligas leves, dos polímeros e queremos adoptar essa tecnologia à construção, são preços exorbitantes. O nosso drama é que vemos outros edifícios e queremos fazer cá e a nossa limitação parte porque não temos mão-de-obra para a execução desse tipo de coisas, fazemos um low-tech como se costuma dizer.


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Conversa com Jorge Figueira Arquitecto pela FAUP (1992). (Realizada em 24-03- 2010)

Os professores que compunham o corpo docente e leccionavam em 1980-1990 foram formados numa época em que a linguagem da arquitectura esteve muito associada a uma espécie de militância, à ideia de que a sociedade se devia construir. Quando ingressou na FAUP, esta postura era ainda muito marcante entre os professores? Essa é uma boa pergunta. De facto, eu entrei no curso de arquitectura penso que em 1985-86, já tinha passado mais de uma década desde o 25 de Abril, e também sobre o projecto SAAL, que mobilizou muito a Escola em 1975. Do ponto de vista da sociedade portuguesa, já havia uma certa estabilidade pós revolucionária, já não se pensava em termos de revolução, do sonho revolucionário (o que foi muito vivido em Portugal e seguramente muito vivido na Escola do Porto). Mas estava já um pouco esboroado, já em tons de cinzento. Eu apanho uma fase em que há uma espécie de recomposição da Escola, onde há muitos professores que claramente percebem o que está a acontecer e passam da extrema-esquerda para uma posição mais centrista, mais social-democrática. Começam a assumir, um pouco como toda a gente, que o consumo é afinal uma coisa importante, ou pelo menos incontornável, ou seja, começa a haver um ‘aburguesamento’ da Escola e da relação dos próprios professores com a sociedade. Começa a entender-se que fazer projecto de arquitectura não tem que ser necessariamente uma prática proto-revolucionária e que, na verdade, a cidade se constrói de diversos modos. Em meados de 80, começa a haver uma certa “normalização”, no sentido da assunção de uma sociedade democrática e liberal. Apesar de tudo, da parte de alguns protagonistas como seguramente o Alexandre Alves Costa e o Álvaro Siza (já fora do ensino) permanece com intensidade a ideia de que a arquitectura serve para transformar a sociedade. Há uma parte de Escola que se “normaliza” mas há focos (os mais intensos e importantes), que tentam adaptar, sem contradizer, a sua visão do mundo àquele tempo e ao que esta a acontecer. Acho que na prática, e lá fora, na Holanda e em Berlim, o Siza faz essa espécie de reconfiguração do seu projecto modernista no contexto da sociedade que se está a desenvolver nos anos 80. E acho que o Alexandre Alves Costa faz isso no interior da Escola: mantendo-se coerente à sua visão do mundo (nascida no antifascismo e no momento revolucionário), tenta articular e dialogar com as transformações que estão a acontecer na sociedade portuguesa e em todo o mundo, aliás. Eu acho que há estes dois níveis, um nível de “normalização” e um nível de readaptação ou de resistência da visão do mundo moderna no contexto consumista e mercantilista, e até mesmo pós-modernista, dos anos 80. Já os seus anos académicos fazem parte de um outro momento, posterior, de maior desligamento das questões ideológicas, de uma diversidade muito grande de caminhos e até de certa aleatoriedade. Qual era o “espírito de época” entre os estudantes? Eu acho que cada aluno vive a Escola de uma forma diferente, não quero falar de uma forma excessivamente colectiva. Mas o meu testemunho é que, por um lado, tomo consciência de que o passado da Escola (digo os anos 60, 70 e até meados dos anos 80) é muito importante, muito vivido, marcado por uma cultura antifascista, acalentando sempre a Arquitectura Moderna como uma espécie de linguagem de redenção da própria cidade, e que estava a dar na altura (como deu a seguir) resultados extraordinários do ponto de vista da cultura portuguesa, através do Álvaro Siza, Alexandre Alves Costa, Eduardo Souto de Moura e Fernando Távora. Obviamente, e, portanto, tenho consciência e curiosidade sobre esse legado. Mas, ao mesmo tempo, sinto que a sociedade está a mudar e que aquilo que se visita, aquilo que se vê nos jornais, a arquitectura pós-moderna, a cultura pop, a música pop, o cinema, as revistas, a televisão e a publicidade, enfim, nós somos inundados e gostamos de ser inundados por esse tipo de desafio, estético muitas vezes, por essa interpelação do quotidiano. São coisas muito fortes, exigentes e desafiantes. Há uma espécie de tensão, muitas vezes brutal, entre aquilo que eu chamaria essa cultura do quotidiano e uma cultura mais redentora que a Escola do Porto significa. O meu percurso como estudante é tentar lidar com essas duas coisas. A vossa geração académica parece ter assumido um sentido crítico e arquitectónico de maior compro-


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metimento com o seu tempo e com a escola. Estar engajado num projecto académico passa a ser meio e termo para a discussão da condição académica e disciplinar da arquitectura? Seria esta uma mostra de maior consciência e responsabilidade com o seu tempo? Sem dúvida. A Escola incutia muito nos alunos a ideia de um espírito crítico, a ideia de que perante o desenho, a cidade e a realidade não se deve ser conformista, nem burocrata ou resignado, e esse espírito crítico incutido foi agarrado por mim e por muitos da minha geração, ao mesmo tempo que a Escola do Porto tinha também que guardar e defender o seu bastião, o seu templo, o seu legado. Então logo aqui gera-se uma certa contradição: entre incutir o espírito crítico e viver um certo conservadorismo. Por outro lado, como eu dizia, ao mesmo tempo e literalmente por todos os lados, a cidade está a alterarse profundamente, e portanto esse espírito crítico é também posto em teste a cada momento. Depois, a partir de meados dos anos 80, começa a sentir-se que algumas das ideias fundamentais da Escola perdem sentido, perdem intensidade. Ou são difíceis de transpor para a sociedade que se esta a desenvolver e, portanto, há um certo sentimento de perca, ou de crise, como se diz. O sentimento de que muitas das coisas em que se acredita, estão a ser superadas ou absorvidas pelo tempo, uma sensação de uma certa desorientação que se tenta transformar em coisa positiva, mas não é fácil. Neste sentido, qual a importância das actividades e publicações académicas, particularmente a revista Unidade, como suporte para o ensino de Arquitectura dentro da FAUP neste período? A revista Unidade é feita exactamente neste contexto de, por um lado, tentar perceber a história que me era posta a frente, ou que eu sentia que tinha existido até aquele momento, e que me intrigava e, por outro lado, tentar perceber as coisas que estavam a mudar. A Unidade é um nome talvez irónico. Mas, a certa altura, a ideia era que mesmo sendo difícil criar um sentido para tudo o que está a acontecer, isso não significa que não se possa tentar! A Unidade, por um lado, tenta fazer um diagnóstico, ou uma interpelação da escola, tal como ela existia na altura e, por outro, tenta criar linhas de diálogo, nomeadamente com arquitectos de Lisboa e com essa cultura pop que nos rodeava. Há um artigo sobre o David Byrne, outro sobre o John Cage, sobre cinema. No fundo era dizer assim: nós somos estudantes deste tempo, temos estes interesses; vamos colocá-los sobre a mesa e vamos ver como é que isto dialoga com o património que existe, e vamos chamar-lhe Unidade por absurdo, por hipótese limite. Qual foi o ponto de partida para a definição e estruturação da revista Unidade? O que moveu a revista, e seus primeiros editores? Havia um grupo pequeno, o Paulo Seco, o Nuno Grande e o Luís Pereira eram do ano anterior ao meu. Primeiro surgiu a ideia de fazer uma Associação de Estudantes, que era uma coisa mais ou menos óbvia. A Faculdade era nova, tinha-se entrado na Universidade e o mínimo que se podia fazer era uma Associação de Estudantes, para haver um certo encontro das nossas preocupações. Depois começamos a fazer viagens no verão, ‘InterRails’ pela Europa e, na minha passagem do 2º para o 3º ano, esse espírito crítico que nos era incutido começou a ser posto a prova e a certa altura propus que pintássemos no muro da escola a frase “Não há romance nesta escola?”. Uma afirmação-pergunta que era claramente uma interpelação, um desafio: a percepção de que tinha havido muito romance, muita intensidade nas personagens, nas histórias, naquilo que foi construído, antes e depois do 25 de Abril, e que estava a desmoronar, que estava a ser transformado nessa “normalização” que eu falava. Era mais a máquina a funcionar, do que propriamente a poesia a funcionar. Essa frase marcou o ponto de saída, uma espécie de início das “hostilidades”, e a revista surge desse conceito de que se não há romance, nós vamos criar romance, seja com o que existe agora seja com o que existiu antes. Vamos tentar criar um diálogo, um espaço que seja útil à Escola mas que também seja útil a nós próprios, como os estudantes devem pensar, qualquer coisa que eu possa aprender. Havia uma urgência na forma como nos expressávamos. Fizemos uma t-shirt, “A arquitectura comove-me”, ou cartaz “A arquitectura morde”. Eram palavras de ordem, mais ou menos humorísticas e irónicas, porque também nós não queríamos ser muito sérios! Tínhamos uma linguagem juvenil de quem não tinha muito a perder, podíamos dizer coisas mais ou menos disparatadas que elas podiam funcionar (ou só funcionavam durante dois dias!). Porque o problema na Escola nessa altura (como agora) é que qualquer coisa que se faça tem um peso muito grande sobre a grande história e o património… A nossa ideia era estarmos nas tintas para isso, para o lado institucional, formal e sério, mas não para a Escola. Queríamos encontrar uma linguagem que pudesse ser tola e ser grafitada na parede, que fizesse um pouco de


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justiça à nossa condição de estudante, em que não está nada em jogo a não ser a nossa própria vida e as nossas emoções! Como a revista foi recebida entre professores e alunos da época? Com um silêncio profundo. É uma coisa muito portuguesa; fala-se da revista e houve reedições e eu fico muito contente com isso. Mas o que de facto aconteceu, a seguir ao primeiro número da revista, e a seguir ao segundo e ao terceiro, que foram os que eu fiz, foi um silêncio profundo. Eu tive reacções de pessoas de escolas e de alguns jornais de Lisboa, que de repente se depararam com um objecto vindo do Porto, de que não se estava à espera. Tivemos mais reacções de pessoas de fora da Escola do que de dentro. O que não quer dizer que da parte de algumas pessoas, de alguns professores, não tivesse havido apoio e uma certa abertura do espaço para nós continuarmos e para as coisas se poderem desenvolver naquele sentido. Mas eu diria que a reacção essencial no momento, naquele tempo, foi de um silêncio absoluto. Os arquitectos formados na FAUP em meados da década de 1980-1990 possuem afinidades muito particulares. Estariam estas conformidades evidenciadas por um percurso académico semelhante e talvez marcadas pela relação aluno/professor com os mestres da escola? Da relação que existia nessa altura entre os professores e os alunos, embora já com uma certa crise, um certo desmoronamento, permanecia alguma intensidade e alguma proximidade. Os alunos no 1º e 2º anos, mesmo sendo miúdos, pessoas novas e obviamente tendo uma relação ainda muito superficial e inicial com a arquitectura, eram tratados como gente, e isso eu acho super bonito e interessante. Quando mostrava os desenhos e falava com os professores era tratado como um possível futuro arquitecto, não havia paternalismo. Os desenhos estavam sobre o estirador, tinha um lápis na mão, a folha em branco e, portanto, a partir daí começava a doer! E isso é forte, e fica. A seguir, entre 1990 e 92, as pessoas tentaram criar percursos individuais em relação à Escola, sendo obviamente a presença do Eduardo Souto de Moura, a sua visão da arquitectura e as suas obras construídas, já nessa altura, absolutamente marcantes. Era uma linha que ele reiterava, propunha e defendia, e que tinha de facto um enorme sucesso. Também porque correspondia a uma espécie de fórmula, de princípio, que permitia sair um pouco da confusão que existia à volta do que se podia fazer como arquitecto e na arquitectura. Há uma geração de colegas meus, muitíssimo marcada pela obra do Eduardo Souto de Moura (então professor do 4º ano). O Siza continuava a ser uma presença forte, mas já não era professor curricular. A partir de 90, surge o Herzog e o Zumthor, os “suíços”, e uma visão minimalista da arquitectura muito crítica em relação exactamente ao que tinha acontecido nos anos 80: ao chamado pós-modernismo, a uma visão mais efusiva da arquitectura. Há uma forte tendência no sentido de se regressar a uma espécie de arquitectura pura, da forma, do controlo construtivo, das não-narrativas, e isso é absolutamente marcante no início dos anos 90. Esse é o principal avanço que eu sinto no final do meu curso. Outra característica marcante da vossa geração académica é o contacto e a experiência que desenvolveram em gabinetes de ex-professores e conceituados arquitectos portugueses ou estrangeiros logo após a formação. Que influências subsistem resultantes dessa colaboração? Não tive nenhuma experiência desse tipo [estagiar fora do país] mas fiz muitas viagens! Tive um convite muito interessante, ainda antes de acabar o curso, para trabalhar no Centro de Estudos da Faculdade. Para trabalhar num projecto para os Jardins do Palácio de Cristal. O Sergio Fernandez era o director do Centro de Estudos e o trabalho foi coordenado pelo Alexandre Alves Costa, com quem fiz o estágio. Ali tive condições muito boas para fazer essa passagem de um processo académico para um contacto com a realidade, num sítio absolutamente central da cidade, um convite irrecusável. Nos anos que estive lá, talvez entre 92 e 96, fiz o trabalho no Palácio de Cristal, fiz um restaurante, que depois foi construído, e depois fiz um trabalho com o Domingos Tavares para Santo Tirso. O espaço que eu tive nesses anos no Centro de Estudos, como efeito da grande generosidade do Sergio Fernandez e do Alexandre Alves Costa, foi absolutamente incrível porque eu tinha responsabilidade enquanto arquitecto, um sítio absolutamente mítico na cidade, e basicamente o que queria em termos de expressão da arquitectura e de desenho. Foi um trabalho, a muitos níveis, super generoso comigo. Foi-me depositada uma confiança, cedo demais e exageradamente em relação àquelas que eram as minhas capacidades! Mas enfim, foi para mim uma escola interessante, um momento interessante. Depois fui assistente do Alexandre Alves Costa em Coimbra, durante muitos anos. Costumo dizer que fiquei só um mês sem ser estudante nem professor, porque acabei o curso em Junho/Julho de 92 e em Setembro/Outubro, já era professor!


ANEXO | CONVERSAS COM ARQUITECTOS

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O seu trabalho profissional é muito individual e independente, mas também o arquitecto possui uma ligação muito forte à actividade académica. Nesse sentido, a FAUP sempre possuiu uma tradição muito pragmática, onde os professores, na sua maioria arquitectos-profissionais, conciliavam actividade profissional, pedagógica e crítica (como Távora). Acredita no necessário equilíbrio entre ensino, actividade profissional e actividade crítica? Eu dou aulas em Coimbra e no Porto, e tenho atelier no Porto, e é cada vez mais difícil porque a vida académica é cada vez mais exigente. Porque não é só dar aulas: é a investigação, gestão da escola, reuniões, exigências cada vez mais agressivas. Em parte eu compreendo isso, porque acho que de facto ser professor não é só “dar aulas”, no sentido mais prosaico do termo. Mas isso cria problemas, a vários níveis, em relação a uma actividade profissional, que no meu caso é obviamente muito limitada pela minha actividade académica. Mas desse ponto de vista sou ‘filho da escola do Porto’, porque faço parte dessa cultura, que entende que para um arquitecto-professor, mesmo um professor de História ou Teoria como eu sou, ter alguma actividade profissional e algum contacto com a obra, com a construção, é benéfico e importante, para além de nos dar prazer. Penso que no fundo as duas coisas recebem uma da outra. Eu enquanto professor recebo muito da minha própria experiência profissional, que de alguma forma me põe os pés na terra. Mesmo que esteja a falar de coisas super eruditas e vanguardistas que aconteceram na Alemanha ou na Holanda nos anos 20, coisas heróicas do Le Corbusier ou as obras do Mies van der Rohe da América, etc., tenho sempre uma referência muito concreta das fundações que visitei uns dias antes de uma obra que estou a construir e, portanto, estou sempre a fazer esse ciclo de relação. E aqui incluo também a crítica. Quer dizer, ser crítico ou escrever sobre arquitectura nos jornais permite-nos fazer projecto mais rapidamente porque as obras são demoradas, longas e conflituosas. Num texto no jornal, posso escrevê-lo hoje e ele estar cá fora passados dois dias. Há um “presente” muito mais intenso: a crítica permite-nos ser rápidos e actuantes, ter uma visão mais curta do tempo e, para quem é impaciente como eu, isso ajuda! Portanto, eu vejo a crítica quase como uma espécie de exercício rápido de arquitectura que me permite cruzar coisas que eu sei das aulas e das obras. E também actuar no quotidiano, o que para mim é muito importante. Mas a crítica como exercício mais longo, na forma de ensaio, é complementar com a actividade de professor e, se calhar, numa referência a esse espírito crítico que me foi incutido no 1º ano da Faculdade há 25 anos atrás. Como estas três vertentes se relacionam na sua actividade profissional? De forma caótica e mal feita! É complicado porque, na verdade, quanto mais sabemos, mais difícil é escrever, mais dúvidas se colocam. Poderia pensar-se que, se a pessoa escreve há muito tempo, tem facilidade ou tem um treino. Seguramente essa técnica existe e permite-me escrever mais rapidamente ou em qualquer lado mas, ao mesmo tempo, há de facto uma maior complexidade na forma como nós lemos o mundo e essa complexidade contradiz a facilidade técnica. Portanto é uma gestão difícil e, no meu caso, um pouco indisciplinada. Gostava de poder partir para essas vertentes com maior disciplina, num sentido mais norte-europeu, como o Le Corbusier: pintar de manhã e fazer arquitectura à tarde; ter um horário para as diversas actividades. Mas, de forma muito portuguesa, a minha coordenação dessas actividades é bastante caótica e tortuosa... É difícil responder a exigências cada vez mais fortes, a todos os níveis, mantendo apesar de tudo uma disponibilidade poética ou artística em relação ao mundo. A geração anterior a 1980 é muito marcada por um “projecto de futuro”, e toda a actividade era desenvolvida na busca coerente deste projecto, possuíam referências sólidas e acreditavam nessas referências. Acha que a vossa geração teve/tem um “projecto de futuro”? Essa pergunta é crucial e difícil. A primeira coisa que eu diria é que o nosso projecto conta com a sombra ou o espectro do “projecto de futuro” da geração anterior. O nosso projecto, a nossa visão do mundo, não rompe, nem é necessário romper, com essa geração anterior e com esse projecto de futuro que existia. O lastro anterior é muito grande. Os “projectos de futuro” não são só os que pensam o amanhã; podem ser também os que pensam o ontem e o passado. E eu diria que o nosso “projecto de futuro”, no final do século XX, está muito voltado para uma reavaliação dos projectos anteriores, das gerações anteriores, da Escola do Porto, das experiências que acontecem ao longo do século XX. De qualquer modo, definiria esse “projecto de futuro” em relação à arquitectura, não no sentido partidário ou ideológico do século XX, mas a partir da ideia que a arquitectura é uma espécie de acrescento de inteligência e sensualidade sobre as


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coisas, como costumo dizer. Inteligência no sentido imaterial, das ideias; e sensualidade no sentido físico, matérico. Uma intervenção arquitectónica hoje remete para a leitura do sítio, da história da arquitectura, do programa, para as pessoas que o habitam, para os problemas construtivos e questões legais; remete depois para as questões da beleza e da sensualidade ou da conformação das formas, do brilho, das texturas. Há uma série de camadas mais físicas ou imateriais que são o projecto e o edifício de arquitectura. E que são, por natureza, e aí volto à questão política, mais progressistas do que conservadoras. Ou seja, são mais transformadoras e mais agressivas desse ponto de vista do que propriamente defensivas, acríticas e conformistas. Eu gosto que um projecto de arquitectura, ou um edifício, me desperte a vários níveis. Gosto de ser interpelado por aquele objecto, como num hipertexto: remetendo-me para outra obra, para outro arquitecto, ou para qualquer coisa que vi noutro dia. Que seja um objecto estranhamente imóvel mas, apesar dessa imobilidade, me seja muito interpelante, muito instigante, como vocês dizem no Brasil. Que me faça pensar e que me dê um murro no estômago ao mesmo tempo! Que me provoque uma reacção física e emotiva ao mesmo tempo. Comparando isto com a Arquitectura Moderna, que pretendia resolver a cidade e resolver os problemas da habitação, pode parecer pouco. Mas não é, porque algumas dessas componentes “heróicas” ou “messiânicas” podem permanecer nesse conjunto de articulações que o edifício faz; pode haver uma espécie de recuperação desses vestígios da meta-narrativa da Arquitectura Moderna no século XX. É uma forma da história continuar, mesmo que de forma cifrada. Desenhar e olhar para os edifícios e inscrever ou reconhecer neles muitas camadas de inteligência e sensualidade, é um projecto de futuro. É aquilo que nós podemos ter hoje, e não me parece pouco. Como caracteriza a arquitectura portuense contemporânea? É um sucesso, não é? No entanto, acho que este é um momento um pouco cinzento, de transição. Acho que há um certo impasse. Há uma relação muito forte desde os anos 90 com a arquitectura do Eduardo Souto de Moura. Que criou um estilo, que entrou em crise, inclusive na obra do próprio. Enquanto outras formas, via Rem Koolhaas e a Casa da Música, por exemplo, que introduziu uma grande dissonância, estão ainda a ser testadas. E este é um momento ainda um bocadinho inicial e ingénuo, digamos assim, dessa compreensão. Penso que nos próximos anos poderá ser interessante verificar como é que os modelos da escola do Porto, nomeadamente os de Eduardo Souto de Moura, se deixaram cruzar e hibridizar com outras formas de arquitectura. De qualquer forma, o Porto é hoje uma cidade muito esvaziada, de dinheiro, de gente e de actividades, e é por isso que um arquitecto como o Eduardo Souto de Moura tem um atelier também em Lisboa e há um certo êxodo para lá. Este não é um momento muito claro para se perceber o que é a arquitectura do Porto; há uma crise e está tudo a ir para outros sítios. A vossa geração possui essa ligação com a escola, com a FAUP, muito forte. Poderia arriscar que essa relação se dá mais pelas figuras que ali estiveram, que fizeram parte da sua formação, ou poderia dizer também que o próprio edifício físico da FAUP também seja uma grande referência? Eu não cheguei a ser estudante no edifício. Quando trabalhei com o arquitecto Nuno Portas num estudo sobre escolas de arquitectura, tinha um gabinete na Faculdade, e aí vivi o edifício. Agora dou aulas lá, no programa de Doutoramento. Nós éramos alunos no Edifício Cor-de-Rosa e no Pavilhão Carlos Ramos. Este sim foi experimentado e foi fantástico ser aluno naquele edifício. Nós assistimos, com algum ciúme dos nossos futuros colegas, à construção do edifício. Na Unidade 2, suponho, publicamos uma série de fotografias do edifício a ser construído. Sabíamos que estávamos a presenciar um momento importantíssimo, em que a escola conseguia que o seu maior arquitecto construísse o edifício da escola. Mas acabei o curso alguns anos antes da escola começar a funcionar naquele edifício e, portanto, nunca tive essa experiência enquanto estudante. Mas, enfim, a história é complicada porque o edifício é como o que o Oscar Wilde dizia: ‘quando Deus quer castigar-nos, cumpre as nossas preces’. Havia um pouco a ideia que a construção do edifício podia superar a crise que eu mencionei, muito evidente já nos anos 80. Podia ser um momento de arrumação e de projecção, ou de re-fundação, da Escola, e isso não aconteceu, necessariamente. E é um pouco nessa história que nós estamos ainda hoje.


ANEXO | CONVERSAS COM ARQUITECTOS

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Conversa com Nuno Brandão Costa Arquitecto pela FAUP (1994), responsável pelo atelier Nuno Brandão Costa Arquitecto. (Realizada em 24-03- 2010)

Os professores que compunham o corpo docente e leccionavam em 1980-1990 foram formados numa época em que a linguagem da arquitectura esteve muito associada a uma espécie de militância, à ideia de que a sociedade se devia construir. Quando ingressou na FAUP, esta postura era ainda muito marcante entre os professores? Social acho que também, mas era sobretudo, no sentido da preocupação da afirmação da autonomia da disciplina, isso era uma coisa que na altura estava muito presente, a arquitectura como uma disciplina autónoma e com um carácter próprio. Estávamos no início dos anos 90 e essa questão social que está a por já não era tão presente como teria sido, por exemplo, no fim dos anos 70 princípio dos anos 80, já se tinha passado 10 anos, ainda é alguma coisa… Também estávamos num processo de saída das Belas Artes, porque eu, por exemplo, ainda fiz os dois primeiros anos do curso inserido no edifício das Belas Artes, o que não era mau, porque acho que era um contexto interessante para iniciar o curso, porque a arquitectura é uma arte, é um processo criativo. O contexto era realmente muito diferente do de hoje em dia, e seria diferente também daquele contexto dos anos 70, em que a maior parte dos professores, quase todos, mesmo os professores que ensinavam as cadeiras teóricas eram pessoas ligadas à profissão e, portanto, todos desenvolviam prática profissional, a escola não era académica, não é como agora, que o corpo docente esta a ficar desligado da prática profissional, antes era o contrário. Já os seus anos académicos fazem parte de um outro momento, posterior, de maior desligamento das questões ideológicas, de uma diversidade muito grande de caminhos e até de certa aleatoriedade. Qual era o “espírito de época” entre os estudantes? É difícil definir. Uma pessoa quando entra na faculdade não tem muita noção do que vai fazer, só quando se está lá é que se percebe o que é o curso. Portanto, não é possível definir um espírito dos alunos na altura muito diferente do que se passa agora. Acho que este corpo docente, que era muito ligado à prática, tinha ganho muita influência e isso evidentemente trás uma maneira de ensinar diferente do que se tivermos um corpo docente que é muito mais académico e desligado da prática, vão dizer outras coisas aos alunos, é inevitável, o que eu não acho que seja melhor, mas é diferente, as questões são postas de outra maneira. A vossa geração académica parece ter assumido um sentido crítico e arquitectónico de maior comprometimento com o seu tempo e com a escola. Estar engajado num projecto académico passa a ser meio e termo para a discussão da condição académica e disciplinar da arquitectura? Seria esta uma mostra de maior consciência e responsabilidade com o seu tempo? Este ambiente na altura, o que transmitia aos alunos era a questão de que a arquitectura era uma disciplina que tem uma autonomia própria, um processo crítico, muito ligado à obra, à construção e ao projecto. Portanto, o curso de arquitectura na altura era centralizado na questão do projecto, todas as disciplinas convergiam sobre o projecto, que era o núcleo da faculdade. No fundo a escola sempre foi conhecida por isso, foi isso que deu o corpo que se conhece da Escola do Porto, justamente esse critério de o projecto ser um corpo central e que depois as outras disciplinas vertiam para ele. Hoje em dia a escola esta a ficar descaracterizada, está a perder isso e esta a viver só do nome, de uma imagem que já não existe, não corresponde. Neste sentido, qual a importância das actividades e publicações académicas, particularmente a revista Unidade, como suporte para o ensino de Arquitectura dentro da FAUP neste período? Como a revista foi recebida entre professores e alunos da época? Sim. Quando eu entrei na faculdade eles já tinham saído, ou estavam de saída, mas lembro-me da revista perfeitamente. Hoje em dia há milhões de revistas, até há demais, e há muitas que não têm interesse, na altura as revistas de arquitectura


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eram uma coisa especializada, havia a Domus, a Casabella, e eram todas importadas e caras. Por isso, existir uma revista dentro da faculdade representava para nós o acesso muito mais fácil a uma revista da disciplina. Para além disso, a revista trazia os projectos feitos pelos alunos e entrevistas com o Távora e com aquelas pessoas todas, que eram nossos professores e aquilo tudo nos era familiar, mas claro, era diferente. Portanto na altura aquilo era uma coisa interessante e acho que foi muito procurada e toda a gente tinha, acho que eu inclusive as tenho aqui, as primeiras Unidades… Isso realmente na altura, foi um momento muito rico. Os arquitectos formados na FAUP em meados da década de 1980-1990 possuem afinidades e disparidades muito particulares. Estariam estas conformidades evidenciadas por um percurso académico semelhante e talvez marcadas pela relação aluno/professor com os mestres da Escola? O que perdura deste convívio? Na altura as turmas eram mais pequenas, nós éramos menos, até por uma questão de instalações. Como o edifício novo não estava pronto, tivemos metade do curso nas Belas Artes e depois a outra metade íamos para ao Pavilhão Carlos Ramos e para a Casa Cor-de-Rosa, logo era uma relação muito menos dispersa e como éramos menos tínhamos uma relação mais próxima com os professores. Por outro lado, com essa centralização da disciplina de projecto, andava tudo um pouco à volta dos mesmos temas e as relações com os professores, entre disciplinas, eram mais contínuas. Eu lembro-me que quando estava no 3º ano tinha aulas de projecto no Pavilhão Carlos Ramos, e que o [José] Gigante, que era nosso professor de construção vinha para a aula e sobre os nossos projectos fazia a aula dele, portanto era contínuo, havia realmente uma proximidade entre os alunos e os professores que não tinha a ver propriamente com questões pessoais, era como estava organizada a orgânica do curso e até a própria organização do espaço da aula. Acho que nesse sentido o curso era mais forte, era mais compacto, não era tão disperso como é hoje em dia, em que há muitas cadeiras e praticamente tem que se dar uma resposta equitativa a todas, sendo que elas estão a falar de coisas muito diferentes, as vezes sem se perceber muito bem as relações de umas com as outras e sem se perceber o que se pode tirar de cada uma para dentro da questão central, que continua a ser o projecto, como é evidente. Tudo isso era mais evidente e logo o curso era mais compacto. Outra característica marcante da vossa geração académica é o contacto e a experiência que desenvolveram em gabinetes de ex-professores e conceituados arquitectos portugueses ou estrangeiros logo após a formação. Que influências subsistem resultantes dessa colaboração? É importante dizer que isso foi à 20 anos praticamente, e hoje há uma alteração considerável. Primeiro, quando íamos procurar estágio tínhamos muita facilidade em arranjar, depois havia muito menos escolas de arquitectura. Quando eu acabei já não, mas quando eu entrei no curso haviam 3 escolas ou 4, era a Arquitectura do Porto (Coimbra ainda não existia), a Árvore também aqui no Porto, a Escola de Belas Artes de Lisboa e penso que não havia mais nada. Hoje em dia há mais de 20 escolas, está a ver a diferença. Havia muito menos estudantes, e a maior parte se quisesse e com alguma facilidade, arranjava trabalho com um dos professores, porque todos estavam ligados a prática e tinham escritório. Por exemplo com o Gigante, ou com o Adalberto Dias, o João Álvaro Rocha, ou com o próprio Eduardo Souto de Moura, com o Távora, com o Bernardo Távora, que também era professor na altura, ou com o José Manuel Soares, ou o próprio Carlos Prata, que já estava a dar aulas, quer dizer, não era difícil arranjarmos um estágio, ou podíamos ir para as Câmaras porque tinham muito poucos arquitectos. Eu tomei a opção de sair. Não quis fazer Erasmus [programa de apoio inter-universitário de mobilidade estudantil] por exemplo, achei mais interessante fazer o curso todo no mesmo ambiente académico e com alguma continuidade, achei que era mais interessante sair numa situação profissional e por isso escolhi o momento do estágio para sair. E depois por uma questão quase circunstancial, dois anos antes, estava eu no 2º ano, houve aquelas conferências [Discursos de Arquitectura] que estão a ser reeditadas, e veio cá o [Jacques] Herzog, que eu não conhecia. Gostei muito da conferência dele, atraiu-me muito, porque aquilo tudo era novo, e experimentei pedir para lá estágio. O interessante é que foi uma facilidade enorme, pedi, telefonei, na altura tive a ajuda do arquitecto Souto de Moura que era professor e o conhecia, foi tudo muito fácil no fundo, e isso tem a ver com o contexto porque hoje em dia já não será nada disso. E o que foi realmente importante depois na minha formação, naquele estágio, é que realmente na escola, aprendia-se uma forma de fazer projecto a partir de três questões essenciais: o desenho, enfatizava-se muito a questão do desenho e do processo criativo, do croqui; o contexto, cada projecto tinha um sítio, que envolvia a questão da história também, contexto num sentido lato, e depois um terceiro elemento que era a construção. Portanto era impossível desligar o processo de cria-


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ção do projecto desses três elementos, o desenho, a construção e o contexto. E quando eu fui para o Herzog, deparei-me com uma maneira de abordar a disciplina muito mais conceptual, muito mais mental e racional de fazer as coisas, em que a construção tinha importância, mas mais num sentido tecnológico, algo que esta ao serviço do que se pretende conceptualmente no edifício. O desenho, no sentido em que nós conhecemos, praticamente não tem grande importância, é uma importância mais esfumada, muito relativa e, sobretudo, centra-se num sentido conceptual, a ideia mental é uma coisa muito importante para construir um projecto, e que é muito diferente da nossa que acaba por ser mais intuitiva, e o sentido deles é muito mais conceptual. Na altura isso evidentemente teve um impacto enorme em mim, percebi que havia outra maneira, outra forma de abordar as coisas com resultados igualmente muito interessantes, muito positivos e, evidentemente, tive que transportar aquilo, e é evidente que teve de ser tudo filtrado, mas foi muito importante perceber que havia outra forma de fazer as coisas. Como se deu o trabalho independente? Quais factores, económicos, sociais e culturais, influenciaram a organização profissional através de uma produção arquitectónica de autor? Não é possível definir um momento exacto, são coisas circunstanciais que vão acontecendo. Eu estive no Herzog quase 2 anos, depois voltei e fui trabalhar para o gabinete do arquitecto José Fernando Gonçalves durante 5 ou 6 anos, o que somados já são 7 ou 8 anos, é quase uma década de actividade profissional. Depois, saí do escritório do José Fernando e resolvi fazer uns concursos, pois estava com alguma liberdade e independência. E tive a sorte ou o mérito (ou as duas coisas, nunca é só uma) de em um desses concursos ser classificado em segundo lugar, que é um prémio bom, é dinheiro para começar a iniciar uma actividade, depois tive a sorte de no segundo ganhar o concurso. Era um projecto relativamente grande, a Biblioteca Nova da Universidade de Lisboa, e por isso fui mesmo obrigado a abrir um escritório. E a partir desse momento comecei a trabalhar, e a ganhar clientes e fazer outros concursos e, paralelamente aos edifícios públicos, comecei também a fazer muitas casas, explorando bastante esta questão da habitação unifamiliar. A FAUP sempre possuiu uma tradição muito pragmática, onde os professores, na sua maioria arquitectosprofissionais, conciliavam actividade profissional, pedagógica e crítica (como Távora). Acredita no necessário equilíbrio entre ensino, actividade profissional e actividade crítica? Como estas três vertentes se relacionam na sua actividade profissional? Não é nem questão de acreditar, a única coisa que me motiva ser professor de projecto é fazer projectos, porque se não eu não sei o que diria aos alunos. Eu dou aulas de projecto na FAUP, no Porto e na Universidade de Navarra, em Espanha e sou circunstancialmente convidado para dar aulas de Mestrado ou workshops em outras faculdades. Gosto de ser professor porque sinto-me útil, e isso é uma coisa importante. Quando estou a falar com um aluno, sinto que estou a passar conhecimento, estou-lhe a dizer coisas que ele não sabia e passa a saber. Tudo isso é subjectivo e tem um valor crítico, e não é uma ciência exacta, ou seja, tudo o que eu digo não está certo, mas estou a passar-lhe o meu conhecimento e há um sentido de utilidade que é enriquecedor, quer para o professor, quer para o aluno. Tudo o que eu digo aos alunos não é independente do que eu faço na minha actividade profissional, tem sempre directamente a ver com o que eu estive a fazer, com a experiência que eu tenho como profissional, e uma certa reciprocidade, esse vaso comunicante, acaba por ser inevitável. Mas não estou a dizer que a maneira como eu faço os projectos tem influência no que eu digo aos alunos, não é isso, mas sim que a minha experiência profissional, os problemas com que eu me deparo profissionalmente, as questões que eu conheço da construção, do espaço, têm uma influência directa no que eu transmito aos alunos. O meu raciocínio com os alunos, ou seja, quando eu estou a trabalhar e a falar com eles nos projectos deles, não seria a mesma coisa se eu não tivesse a actividade quotidiana do projecto, em que tenho que dar respostas permanentes aos problemas na obra, no escritório, no projecto, a resolver isso e aquilo, e também perceber a relação entre projecto e obra, o que é que uma coisa em papel depois corresponde á escala real da obra e do desenho, isso é uma visão que só quem tem essa relação muito prática pode ter. Acho que qualquer curso, não estou falar só da arquitectura, mas também medicina, economia, engenharia ou outros cursos ligados mais a questões de ordem prática, têm que ter um vínculo muito forte com a realidade porque se não esvaziam-se de conteúdo. Por outro lado, ser professor é outra forma de encarar a disciplina do projecto e da arquitectura que nos mantém em alerta o sentido crítico, porque quando estou numa aula e tenho que ver 15 projectos completamente diferentes, com 15 alunos, cada um tem uma idiossincrasia completamente diferente, o que se reflecte no próprio projecto. Eu sou obrigado a estar


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completamente em sintonia e, para isso, é preciso ter um sentido crítico muito alerta, não posso ter uma mensagem homogénea para toda a gente, tenho que entrar no projecto de cada um, tenho que me meter quase na pele de cada um, tentar perceber o que ele está a pensar, qual é a linguagem dele, tentar perceber porque é que aquelas geometrias saíram daquela maneira, e isso é também uma coisa muito enriquecedora para mim culturalmente. Portanto não sou um mero profissional, que estou aqui a fazer projectos e mais nada, estou permanentemente a entrar no mundo de outras pessoas, o que é interessante, a tentar perceber os raciocínios dos outros, e isso obriga-me a estudar, manter-me actualizado, no sentido de saber o que se esta a fazer, perceber o que é que os alunos nadam a ver, e também para o meu próprio percurso profissional. O conhecimento é praticamente infinito e os alunos hoje em dia estão muito atentos ao que acontece, e nós temos que os acompanhar, ou ficamos obsoletos a beira deles. E assim se forma este circuito, digamos assim, a profissão, o escritório, a obra, a aula de projecto, há um circuito que acaba por acontecer, não necessariamente visível, mas existe. A geração anterior a 1980 é muito marcada por um “projecto de futuro”, e toda a actividade era desenvolvida na busca coerente deste projecto, possuíam referências sólidas e acreditavam nessas referências. Acha que a vossa geração teve/tem um “projecto de futuro”? Eu acho que a nossa geração ainda tem esse sentido social, mas mais num sentido do interior da própria disciplina, ou seja, nós fomos formados numa época em que a disciplina se estava a afirmar como autónoma, por essa geração de professores muito ligados a prática. Mas por outro lado, tudo o que nós fazemos e as obras que nós construímos, têm todas que servir a sociedade, porque são para as pessoas usarem e habitarem. Nós concretizamos o espaço que as pessoas pretendem e, portanto, temos que dar uma resposta social no sentido em que aquilo tem que funcionar do ponto de vista social e humano. Acho que é o Souto de Moura que diz que a ‘arquitectura é uma arte social’, no sentido em que tem uma autonomia, lida com as questões do espaço, da forma e da construção, mas tudo isso tem de ser feito em função de um certo humanismo, do uso das pessoas. Portanto não se anulou por completo esse sentido sociológico das coisas, mas a minha geração assumiu a arquitectura como uma arte que tem uma autonomia muito própria, que tem um saber muito próprio e que tem uma forma de fazer as coisas muito própria porque tem a ver com questões que só ela é que lida, porque só a arquitectura é que é a arte do espaço pela construção. Como caracteriza a arquitectura portuense contemporânea? Eu acho que hoje em dia, até por essa questão que colocou antes da imagem, há uma maior fragmentação da informação, dos cursos e das influências. Quando eu era aluno, aquela geração de professores que falamos era muito reconhecível, por isso é que se falava na Escola do Porto, era muito reconhecível a arquitectura dos arquitectos do Porto, e era fácil perceber de quem é que aquilo era, quem fez aquilo, havia uma certa unidade. Hoje em dia, como é tudo mais fragmentado, é difícil definir o que é a arquitectura do Porto, acho que já não tem muita definição. De qualquer maneira, se nos restringirmos àquilo que é reconhecido como boa arquitectura, o que tem um lado subjectivo mas é fácil perceber, acho que ainda assim há uma especificidade, e eu já não diria só do Porto, mas portuguesa, de fazer as coisas. Se nós pegarmos nos bons arquitectos portugueses, começando pelos mais velhos e até os mais novos, são todos diferentes, mas vemos em todos uma especificidade que tem que ver sobretudo com a cultura das boas escolas de arquitectura portuguesas e com essa passagem de testemunho de gerações, do Távora, Siza, Souto de Moura, e podemos ir mais atrás, o Carlos Ramos e o Viana de Lima, o [Arménio] Losa, também em Lisboa, aqueles modernistas que havia na altura, o Hestnes Ferreira, o Nuno Teotónio Pereira, passa pelo [Gonçalo] Byrne, o Carrilho da Graça, os [Aires] Mateus, portanto há estas continuidades que vão dando uma certa especificidade e qualidade a uma certa arquitectura, e isso é reconhecível, isso mantém-se. Finalmente, como definiria a sua arquitectura hoje? Não sei. Eu acho que aquilo que eu faço não é descontínuo em relação àqueles que foram meus professores e àqueles personagens todos, e também não é indiferente à influência, que foi muito forte na altura, da passagem pela Suíça. Portanto não é independente nem das pessoas com quem eu trabalhei fora, nos gabinetes, nem é independente das pessoas com quem eu aprendi na escola a fazer arquitectura porque a informação que nós tínhamos daqueles arquitectos era directa, eles estavam ali, nós falávamos com eles, é evidente que a influência tem que ser enorme. Porque uma coisa é ver na revista


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e ficar interessado, outra coisa é estar ali na escola todos os dias, poder falar com elas, é evidente que as ideias têm de ficar, e só seria estupidez da minha parte querer ser imune a isso e desperdiçar um momento fantástico da escola, onde estavam o João Álvaro Rocha, o Souto de Moura, o [Alcino] Soutinho, o [José] Gigante, o Carlos Prata, o Adalberto Dias e ainda estava o Siza, o Távora, o Alexandre Alves Costa o Sérgio Fernandez. Anteriormente, usei o termo “influência buscada” para identificar a busca pessoal de referências conceptuais, mas também para o desenvolvimento da prática arquitectónica. Qual seria a sua influência hoje? Quais arquitectos/arquitecturas o influenciam/despertam interesse hoje? A questão é que somos muito influenciados pelo momento da formação, que depois praticamente mantemos as influências. Mas depois depende de cada um, eu se calhar sou um bocado conservador. Realmente os arquitectos para quem eu olho mais hoje em dia e que continuo a achar mais interessantes, continuam a ser os arquitectos que me influenciaram na altura. Portanto eu continuo a olhar muito para o Távora, para o Siza, para o Souto de Moura, mas também havia um arquitecto que eu tinha uma atracção muito grande e continuo a ter que é o Aldo Rossi. O Herzog, como é evidente, desde a formação até por ele continuar a ser um ponto de ordem na arquitectura, ele continua a ser, para mim, provavelmente o arquitecto contemporâneo mais enérgico que existe no momento, e que inclusive mais influencia todos os arquitectos no mundo. Depois de formado comecei a ganhar outros interesses que continuo agora a estudar. Uma foi a arquitectura brasileira que descobri já no fim do curso, com uma vinda do Paulo Mendes da Rocha cá no Porto. Estou a falar o Paulo Mendes da Rocha, mas refiro-me também ao Artigas, o Niemeyer, o Reidy, mas o Paulo Mendes da Rocha, evidentemente, eu acho que é o mais puro e o que tem o trabalho mais invulgar. Comecei-me a apaixonar e a seguir muito o trabalho dos brasileiros, mas também a arquitectura inglesa e irlandesa. Estudando, comecei a descobrir aos poucos, que os ingleses têm, desde os tempos do vitoriano quase, uma consistência enorme, uma unidade de linguagem muito forte e que tem a ver com a maneira como eles constroem, com o uso do tijolo, desde os mais antigos, como o [James] Stirling e passando depois pelo [Richard] Rogers, o [Norman] Foster menos, e depois os Caruso e Saint John, os Boyd Cody, enfim, o próprio [David] Chipperfield. E ultimamente descobri também, com muito agrado, pelas minhas viagens e nas escolas que fui visitando, e talvez vocês brasileiros se calhar já conheciam, que são esses novos autores chilenos como o Smiljan Radic, o [Alejandro] Aravena e há uma arquitecta que se chama [Cecília] Puga, mas vêm todos de uma faculdade, que é a Universidade Católica de Santiago do Chile, e essa é uma descoberta muito recente, de um ano para cá ou dois, que fiz na Universidade de Navarra, porque eles foram lá. Digamos que é isso que neste momento me anda a ocupar o tempo, porque eu ando também sempre a estudar, como os alunos!


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Conversa com Filipa Guerreiro Arquitecta pela FAUP (2000). (Realizada em 27-04- 2010)

Os professores que compunham o corpo docente e leccionavam em 1980-1990 foram formados numa época em que a linguagem da arquitectura esteve muito associada a uma espécie de militância, à ideia de que a sociedade se devia construir. Quando ingressou na FAUP, esta postura era ainda muito marcante entre os professores? Penso que não. Parece-me que quando entrámos, em 1994, a escola estava de “ressaca” após um período de grande discussão em torno do pós-moderno. A escola passava por um período, que vejo hoje como de reflexão, reposicionamento individual. O ciclo Discursos(Re)visitados (Reposição das Conferências “Discursos sobre Arquitectura”, FAUP, 1990), que está a decorrer, sob organização da OASRN e da FAUP, permite-nos, parece-me, perceber o quanto as conferências de 1990 constituíram um momento importante neste percurso, de charneira talvez, tanto do ponto de vista da escola como de percursos individuais. Não senti que nos tenha sido transmitido conhecimento sob uma visão de “tendência”, como as gerações anteriores descrevem. Nós vivemos na escola um período relativamente calmo e sereno em que não se expunham ou impingiam fortes convicções ou tendências, mas se transmitiam conhecimentos como factos. Esta minha visão pode parecer ingénua, é certamente redutora, porque, inevitavelmente, nenhum ensino é neutro, mas a percepção que tenho é que foi possível construirmo-nos de forma relativamente livre de preconceitos recebidos, foi-nos mostrado um panorama, sem ser direccionado, e cada um escolheu como vê-lo e o modo como queria “construir” a história. Foram-nos contados factos, as coisas existiam, e de facto as tendências existiam, mas não nos eram incutidas como uma coisa fundamental, não sentíamos, da parte dos professores, direcções ou tendências muito claras, as coisas pairavam, havendo liberdade, disponibilidade da maioria dos professores, para podermos discutir o que estávamos a fazer, e “usavam-nos” (no bom sentido) para repensar por onde seguiam. Nesta perspectiva parece-me que foi um período um pouco diferente, uma ressaca positiva do anterior período conturbado. Já os seus anos académicos fazem parte de um outro momento, posterior, de maior desligamento das questões ideológicas, de uma diversidade muito grande de caminhos e até de certa aleatoriedade. Qual era o “espírito de época” entre os estudantes? Quando se está nos primeiros anos da Faculdade, como na maior parte da vida, imagino, não se tem uma noção objectiva do que se está a fazer, de como nos colocamos na História. Agora que já passou algum tempo, eu acho que nós tínhamos, alguma nostalgia. Quando entrei na FAUP não conhecia nada da escola, não conhecia nenhum arquitecto, e todas as actividades, que ficaram registadas, de docentes ou dos alunos na década de 80 foram-me bastante úteis para perceber o que era a escola, ou seja, revistas como a rA, a Unidade, ou as Páginas Brancas, foram por nós devoradas e havia alguma nostalgia da nossa parte em querer, em estar, a continuar aquele processo. Que não era verdade, não estávamos a continuar nada, acho que não podemos falar de um processo de continuidade no sentido em que os ideais, os pressupostos ou os objectivos não eram os mesmos. No período em que estávamos, não tínhamos objectivamente questões fundamentais às quais reagir, estávamos numa paz relativamente calma. De qualquer forma, achávamos que tínhamos um exemplo do que seria uma postura dos alunos dentro da escola e uma “obrigação” dos alunos participarem na construção da escola, interagirem e forçarem a escola a repensar-se continuamente. Por isso fizemos uma série de actividades como as Jornadas Pedagógicas em 1995; um ciclo de conferências sobre a “Escola de Barcelona”, em que trouxemos os, na altura, jovens assistentes da ETSAB [Escola Técnica Superior D’Arquitectura de Barcelona], um ciclo sobre a “Escola de Coimbra”, com os Assistentes, recém formados na FAUP na década de 80, e um ciclo com um conjunto de arquitectos mais experientes, como o Vítor Figueiredo, o Hestnes Ferreira, o Eduardo Souto de Moura, e registámos tudo numa pequena brochura “96 Conversas”. Queríamos criar um mapa de tudo o que existia, desde os mais novos aos mais velhos. Tínhamos uma postura de certa forma passiva, no sentido de não termos uma ideologia ou escolhermos à partida aquilo que queríamos seguir, queríamos conhecer tudo de uma forma livre para depois construir-


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mos sem preconceitos o nosso caminho. As Jornadas Pedagógicas foram o momento mais significativo para nós, apesar de não se ter sentido na escola alguma consequência visível, conseguimos compilar uma quantidade enorme de textos, na maioria de professores, sobre o que pensavam, desejavam da escola, ou sobre aquele período da escola. Apesar do evento terminar, em termos mediáticos, de forma silenciosa dentro da escola, cada um pôde, depois, ler o que os outros pensavam. Acho que vivíamos numa altura de repensar as coisas de um modo bastante silencioso, introspectivo. Depois ao longo do curso voltamos a repegar na Unidade, fiz parte do conselho editorial da U6. O objectivo desse número era mostrar o que era a escola, um catálogo, do que estava a acontecer, de forma neutra, sem exprimir uma postura crítica. Um registo para que cada um se documentasse e pudesse criar uma leitura própria. A vossa geração académica parece ter assumido um sentido crítico e arquitectónico de maior comprometimento com o seu tempo e com a escola. Estar engajado num projecto académico passa a ser meio e termo para a discussão da condição académica e disciplinar da arquitectura? Seria esta uma mostra de maior consciência e responsabilidade com o seu tempo? Aquilo que na altura via em nós como um modo de querer estar neutro, e relativamente acrítico, relativamente às gerações anteriores, mais prepositivos e “agressivos”, vejo hoje como uma postura perante a realidade muito clara e nada passiva, no sentido em que sistematicamente começávamos por ouvir, querer conhecer, antes de opinar. Parece-me ser, perante a realidade, uma postura crítica em si mesma, que defendo e considero assumidamente pertinente. Os arquitectos formados na FAUP em meados da década de 1980-1990 possuem afinidades muito particulares. Estariam estas conformidades evidenciadas por um percurso académico semelhante e talvez marcadas pela relação aluno/professor com os mestres da escola? O ano de Erasmus foi o ano em que se tornou para mim mais claro aquilo que aprendi na escola (só quando nos distanciamos é que conseguimos perceber, parece-me), em que percebi, mas talvez seja apenas uma visão relativa a uma geração específica, que entendimento sobre o projecto nos une na escola. E que hoje consigo identificar que momentos fundamentais durante a nossa aprendizagem concorreram para construí-lo o 1º ano com o arquitecto Álvaro Siza e a arquitecta Beatriz Madureira a TGOE [Teoria Geral da Organização do Espaço], e Projecto com o arquitecto Alfredo Matos Ferreira e o arquitecto Sérgio Fernandez como regente da cadeira; o 2º ano com a arquitecta Madalena [Pinto Silva] a Projecto e o arquitecto Manuel Mendes a MLAC [Métodos e Linguagens da Arquitectura Contemporânea]; o 3º ano com o arquitecto Nuno Portas a Urbanística, e o 4º ano com o arquitecto Alexandre Alves Costa e a arquitecta Marta Oliveira em História da Arquitectura Portuguesa [HAP] e com o arquitecto João Álvaro Rocha a Projecto, foram os momentos mais marcantes, sem menosprezar de qualquer forma todos os outros. E o momento em que começámos a tomar consciência de um entendimento que nos unia foi, sem dúvidas, no 4º ano, em HAP com os arquitectos Alexandre Alves Costa e Marta Oliveira e em projecto com o arquitecto João Álvaro Rocha O que me parece que mais nos une, na escola, acima do que o que nos separa, porque o que nos separa são sempre coisas pequeninas que são fáceis de apontar, prende-se com três aspectos: a leitura do contexto como momento indispensável ao projecto, a postura crítica perante o programa e a utilização da história como matéria de projecto, a história da arquitectura como biblioteca de referências. Estes 3 aspectos foram apreendidos por nós na esfera das questões de processo e de construção do projecto. Enquanto modelo de escola, parece-me muito interessante e é o modelo que eu gosto de defender, porque permite resultados muito diferentes, muito pessoais, partindo de uma matriz comum, mas é uma matriz no âmbito do processo de trabalho, dos aspectos que concorrem para a construção de uma ideia, e não uma matriz de linguagem ou de formalismos. Outra característica marcante da vossa geração académica é o contacto e a experiência que desenvolveram em gabinetes de ex-professores e conceituados arquitectos portugueses ou estrangeiros logo após a formação. Que influências subsistem resultantes dessa colaboração? Eu fiz Erasmus em Veneza, e depois estagiei primeiro com o arquitecto Álvaro Siza e depois com o arquitecto José Paulo dos Santos, infelizmente com o José Paulo dos Santos foi um período muito curtinho, não chegou sequer a três meses… Nós em Veneza fizemos Projecto com o arquitecto Felippo Messina, que infelizmente faleceu a meio do ano lectivo, e os


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assistentes tinham trabalhado com o Gonçalo Byrne, também fizemos História da Arquitectura Contemporânea com o Francesco Dal Co e Urbanística com o Professor Bernardo Secchi. O que nos marcou nesse anos foi exactamente o professor Bernardo Secchi, que apesar de ligado ao urbanismo, tem uma postura muito arquitectónica defendendo o quanto as ferramentas de desenho do arquitecto são válidas a qualquer escala. Nesse contexto, foi com ele que o projecto em Urbanística nos permitiu ter consciência e consolidar o que era o nosso método de projecto, e os aspectos que referi antes. O professor Bernardo Secchi acabou por ser, enquanto fecho de um processo de académico, aquele que nos clarificou aquilo que já sabíamos e nos mostrou a operatividade do nosso processo, de forma indirecta, naturalmente. Depois com o Estágio com o arquitecto Álvaro Siza foi um estágio fantástico. Não era, à partida, a minha intenção ou desejo fazer o estágio com o arquitecto Álvaro Siza, nós tínhamos tido ao longo do curso uma falha de aprendizagem ao nível da Construção e queríamos que o estágio a colmatasse. Nessa lógica, e como nunca tinha sido aluna do arquitecto António Madureira, era com ele que eu queria estagiar. Mas, por mero acaso, tive a oportunidade de falar com o arquitecto Siza e ele me aceitar para estagiar… O estágio foi um momento de aprendizagem muito importante, não só do ponto de vista do projecto, mas também do ponto de vista da gestão do escritório, aspecto que me parece hoje importantíssimo e que normalmente não pesa nas nossas escolhas, nesse momento. Apesar de poder haver a leitura que os colaboradores do arquitecto Siza trabalham apenas como desenhadores, pela forma como ele controla todo o processo de projecto, não conheço ninguém que lá tenha trabalhado que tenha essa leitura, pelo contrário. A experiência de acompanhar, perceber o seu processo de trabalho, de perceber que somos como que ferramentas de trabalho dele, não só em termos manuais mas também em termos de pensamento, raciocínio, discussão. Impressiona também perceber como é capaz de dominar cada obra, cada uma, num conjunto de inúmeras obras em simultâneo, e a forma como organiza o escritório de forma a ter essa capacidade, de como exige que a informação seja tratada, registada, facilmente transmitida ou consultada e apropriada, possibilitando que os projectos com os seus avanços e períodos de pausa, espera, não percam o fio de continuidade, apesar de serem trabalhados em momentos diferentes por pessoas diferentes. Qual a diferença entre conviver na universidade com um arquitecto cuja obra se admira e o convívio com ele no desenvolvimento de projectos profissionais? Pode-se afirmar que esta relação seria uma espécie de “influência buscada”? Trabalhar com o Siza foi muito importante no sentido de, ver em directo, num contexto real e não apenas académico, que aquilo que nós começávamos a ter consciência de que seria o nosso processo, era pertinente e operativo, e passível de ter bons frutos. Os momentos que mais gostei no escritório não correspondem aos momentos em que passei a ter mais responsabilidades, por ter projectos sob a minha coordenação, mas o primeiro mês, em que a maioria dos colaboradores estavam de férias (Agosto) e que trabalhei de forma mais directa com ele, em processos intensos de materializar em maquetes os seus desenhos tridimensionais, um processo fantástico em que ele fazia três ou quatro perspectivas e eu tinha que, medindo os seus desenhos (ele esquissava a 1/500!) materializar num volume, ao qual ele reagia e sucessivamente redesenhava. Foi um período muito importante para acreditar nas coisas, para não por em causa, para perceber que a prática pode não ser tão diferente quanto aquilo que nos tinham transmitido ao longo da escola. E depois todo o trabalho de projecto de execução, de rigor, de coerência, de tornar os processos completamente claros, o modo como se desenha, como se sistematiza todo o projecto foi uma aprendizagem brutal, para mim fundamental. Como se deu o trabalho independente? Quais factores, económicos, sociais e culturais, influenciaram a organização profissional através de um gabinete de trabalho colectivo, em oposição à produção arquitectónica de autor? O começar colectivo foi uma coisa não planeada. Estavamos no 4º ano e apareceu um concurso para estudantes, o concurso Pladur, anteriormente apenas entre escolas Espanholas, mas que naquele ano se assumia como concurso Ibérico e por isso as Escolas Portuguesas passavam a poder participar. Por mero acaso, numa conversa sobre o concurso começamos simular uma proposta, e de forma inesperada resolvemos desenvolver e entregar o concurso, éramos quatro, eu, o Tiago [Correia], o Bruno Figueiredo e a Susana Mota Freitas. Ganhámos o concurso, quer ao nível da FAUP, quer na final Ibérica, e sentimos que podíamos ser uma equipa interessante, se em 4 dias conseguimos montar o projecto, fazer a entrega e até nos portámos bem num concurso com todas as escolas Ibéricas, devíamos experimentar. Entretanto ainda estávamos no 4º ano, fomos de Erasmus, começámos a estagiar, eu com o arquitecto Siza, o Tiago com o arquitecto João Álvaro Rocha e


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o Bruno e a Susana, em Barcelona, com o arquitecto Manuel de Solà-Morales, quando voltaram para o Porto, continuámos a fazer concursos. Antes de entregarmos a prova final fizemos o concurso para uma escola em Paredes de Coura. Entretanto entregámos a prova final, eu terminei o estágio com o arquitecto Siza e mal comecei a trabalhar como o arquitecto José Paulo dos Santos saiu o resultado do concurso e tínhamos ganho. Na mesma altura começava o Programa Polis1 em Matosinhos. Todos os projectos eram entregues por adjudicação directa, mas organizaram um concurso por convite, aos seis melhores alunos da FAUP, licenciados no ano anterior e eu era um deles. Na altura convidei para fazer o concurso comigo o Tiago e o Bruno, com quem partilhava atelier, e o Pedro Alves. Também ganhámos esse concurso, e de repente tínhamos dois projectos de obras públicas em mãos, o Centro de monitorização e interpretação ambiental da Polis Matosinhos com 300 m2, e o da Escola básica de Paredes de Coura com 5000m2. O processo com a Polis foi complicado pois obrigou-nos a montar o escritório, empresa, de forma muito rigorosa e muito profissional, e com prazos curtíssimos, quase impossíveis, nós concorremos em Maio, os resultados saíram em Junho, entregámos o processo de execução em Setembro e a obra começou em Janeiro. Apesar de complicado, foi óptimo, funcionou como um laboratório, a nossa empresa, nessa altura, chamava-se mesmo Laboratório de Arquitectura. Foi com essas obras que começámos, tinham uma dimensão brutal, o que parecia até inconsciente estar nas mãos de 3 jovens de 23 anos, mas foi um processo muito engraçado, muito pedagógico, muito responsabilizador. Obrigou-nos, num curto período de tempo, a ter noção quer das questões arquitectónicas, quer construtivas, quer de gestão do escritório, de gestão do dinheiro, de gestão de todo o processo burocrático em volta de uma empresa, um processo bastante denso. Com este percurso acabámos por não ter trabalhado muito como colaboradores com outros arquitectos, como gostaríamos de ter feito. Acho necessário um recém-licenciado trabalhar com outro arquitecto durante três a quatro anos, para se ter tempo de aprender, ainda com outra pessoa a responsabilizar-se, para ter liberdade de aprender descomprometidamente. O nosso processo foi um bastante difícil, duro em tão pouco tempo. O projecto carrega muitos dos pensamentos, ideologias, e personalidade de seu autor. Como lidam com as diferentes características individuais em oposição à vossa imagem colectiva construída? O colectivo alterou-se ao longo do tempo. Nós éramos quatro, depois ficamos três, eu, o Tiago e o Bruno. Acho fundamental trabalhar em equipa, hoje parece-me muito difícil fazer um projecto sozinha. A gestão de um projecto é sempre em equipa, arquitectos, colaboradores, engenheiros, outros especialistas, etc. Mas a questão da autoria numa equipa é uma gestão de diplomacia entre pessoas, o que é complicado, estabelecem-se naturalmente hierarquias e empatias ao longo do tempo. No nosso caso, de uma maneira muito saudável, fomos compreendendo como funcionávamos melhor, o Bruno começou a ter obras só dele, eu e o Tiago continuámos juntos, mas partilhávamos os 3 o espaço do atelier (ainda hoje o fazemos, não com o Bruno, mas com outros amigos). Ao longo do tempo a equipa estabilizou-se, a autoria é hoje partilhada entre mim e o Tiago. O nome, “Atelier da Bouça” transmite uma noção de colectivo, mas não deixa de ser apenas o Atelier da Filipa e do Tiago. Nós não queríamos que o nome Atelier fosse os nossos nomes, a “brincadeira” de chamar-se “Atelier da Bouça” decorre do sítio naturalmente, por estarmos no bairro da Bouça [Cooperativa das Águas Férreas, Álvaro Siza, 1973-2003], mas com uma certa noção de espaço e das nossas referências pessoais de uma infância muito ligada ao campo, eu sou de Paredes de Coura e a “bouça” é um espaço ainda delimitado de mediação entre o espaço da horta e o espaço da montanha, no fundo é o espaço onde as crianças podem brincar. O sentido de colectivo que nos agrada que o nome transmita, decorre daquilo que entendemos como importante e com o que nós queremos construir quando fazemos um projecto, a nossa visão dos projectos de arquitectura que, apesar de termos a nossa autoria clara e queremos ter essa coerência da autoria, não temos a preocupação ou o objectivo de construir um percurso de obra de autor. O modo de nos relacionarmos com os projectos está mais próxima da compreensão de que os projectos não são os projectos da nossa vida, mas são certamente, na maioria dos casos, os projectos da vida dos nossos clientes e por isso nós percebemos que o nosso colectivo é mais entre nós e os clientes, porque entendemos as obras como processos em que, para além da equipa de projecto, há alguém que vai viver lá e que está a fazer o projecto da sua vida. 1 O principal objectivo do Programa POLIS consiste em melhorar a qualidade de vida nas cidades, através de intervenções nas vertentes urbanística e ambiental, melhorando a atractividade e competitividade de pólos urbanos que têm um papel relevante na estruturação do sistema urbano em Portugal.


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A FAUP sempre possuiu uma tradição muito pragmática, onde os professores, na sua maioria arquitectosprofissionais, conciliavam actividade profissional, pedagógica e crítica (como Távora). Acredita no necessário equilíbrio entre ensino, actividade profissional e actividade crítica? Como estas três vertentes se relacionam na sua actividade profissional? Não posso falar de uma minha vertente crítica, porque tenho um certo pudor de exprimir de forma “publicada” a minha opinião, por me sentir ainda demasiado em construção. A relação entre a actividade profissional e a escola para mim é muito importante, mas, se há alguns anos atrás, quando me perguntavam o que escolheria se tivesse que optar entre o atelier ou a escola, eu tinha dúvidas, hoje sei que escolhia a escola, porque é aqui que me sinto mais realizada. Acho importante a escola ter professores que acumulam actividade profissional de atelier, aliás é um aspecto que sempre marcou alguma especificidade na escola, mas não me parece que tenha que ser obrigatório. O corpo docente deve ser equilibrado com pessoas que se dedicam exclusivamente à escola e à investigação e outras que se dedicam à investigação no atelier. Para mim, como docente, foi importante ter o escritório (e eu quero continuar a ter). Parece-me que é necessário passar pela experiência de escritório para se poder ensinar, no limite eu diria que o curso na FAUP de académico tem pouco, porque quase tudo o que se experimenta desde o primeiro dia, se vai repetir a vida toda, para o bem e para o mal… A geração anterior a 1980 é muito marcada por um “projecto de futuro”, e toda a actividade era desenvolvida na busca coerente deste projecto, possuíam referências sólidas e acreditavam nessas referências. Acha que a vossa geração teve/tem um “projecto de futuro”? Eu tenho dificuldades de falar de uma geração em que me incluo. Aquilo que eu quero fazer é dar aulas e manter o escritório com a escala que ele tem hoje, e ter ainda tempo, disponibilidade para me envolver noutros projectos, como neste momento acontece estando no Conselho Directivo da Secção Regional Norte da Ordem dos Arquitectos. Não queremos transformar o escritório numa grande empresa, queremos ter o escritório quase como um laboratório de experiências e manter a possibilidade de ter prazer no projecto, podendo, tendo disponibilidade para desenhar, para projectar, porque é aí que temos prazer, não a gerir o escritório. Em relação a escola, espero poder contribuir para consolidar um sentido, um espírito de escola que me parece estar a perder-se, com todos os processos burocráticos que estamos a atravessar, como a passagem da UP a Fundação ou o Processo de adequação a Bolonha. Todos temos que contribuir para requalificar a escola, que me parece estar a passar por um momento de crise, mas uma crise muito silenciosa e pacífica e se calhar é preciso uns vasos que se partam para que se possa refundar a escola, sem que isso signifique rupturas com o passado, porque eu acho que não são necessárias, acho que o projecto de escola que temos é perfeitamente passível de continuar ao longo do tempo, que é um projecto intemporal. O problema, parece-me é a falta de comunicação, enquanto instituição que tem um património, quer em termos de pessoas, quer em termos de conhecimento, quer do ponto de vista do prestigio, que corre o risco de se perder rapidamente, de não conseguir ser registado, documentado e passível de ser transmitido. Finalmente, como definiria a vossa arquitectura hoje? É complicado definirmo-nos a nós próprios, pela falta de distância. Vou responder a essa pergunta com um texto que já escrevemos: “Entendemos que o projecto deverá constituir uma oportunidade de estabelecer mais-valias para o ambiente urbano e território, para que mais do que meros edifícios ou arranjos urbanos, sejam dispositivos de urbanidade ou de introdução de racionalidade nas relações urbanas ou paisagísticas, traduzindo, apontando ou tornando legível uma lógica latente. Com o cliente interessa-nos discutir tipologias, manipular os programas, dando resposta às suas necessidades específicas, tentando não formatar o espaço, mas atribuir-lhe mecanismos de flexibilidade. Daqui decorre o nosso processo de trabalho: rejeitámos imagens e formas apriorísticas ou intuitivas, incompatíveis com o projectar a dois e com a “complexidade” do espaço contemporâneo. Esta tornou-se, hoje em dia, álibi para renunciar a uma observação e compreensão atentas daquilo que realmente existe, “mas também eliminar qualquer problema de legitimação, para construir um universo moralmente neutro dominado duma inexaurível ideia de infinito” (Secchi). Entendemos que esta multiplicidade, termo que preferimos, constitui um campo de trabalho rico, passível de ser descrito e conceptualizado, a partir do qual iniciamos a nossa discussão sobre as premissas que deverão estruturar e hierarquizar o


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projecto, construindo o argumento em torno do qual este se desenvolve. Estas premissas tanto podem ser considerações físicas como sensoriais, traduzidas em esquemas gráficos ou tópicos. A nossa disciplina não é recente pelo que procedemos a uma constante citação e releitura da história da arquitectura, sendo esta matéria de trabalho que forçosamente temos de conhecer. A arquitectura tem uma grande responsabilidade na construção da cultura, da paisagem e da identidade de uma sociedade pelo que, no nosso entender, deve “cultivar” o intemporal, sem medo de não negar o óbvio.”2 Anteriormente, usei o termo “influência buscada” para identificar a busca pessoal de referências conceptuais, mas também para o desenvolvimento da prática arquitectónica. Qual seria a vossa influência hoje? Quais arquitectos/arquitecturas vos influenciam/despertam interesse hoje? São bastantes e dentro daqueles que chamamos “clássicos do século XX”3, que nos perseguem, escolhemos como “fetiches” o Loos pelo sentido de materialidade, construção física, e pelo discurso de postura ética; o Alvar Aalto pelo ponto de vista quase oficinal da arquitectura, uma perspectiva que nós gostamos e partilhamos ambos, de experimentar com as nossas próprias mãos como se constrói, nesse sentido a Casa Muuratsalo [Alvar Aalto, 1952] é a nossa casa “fetiche”, entre outros aspectos como o sentido de conforto, por ser o seu laboratório de experiencias; os Eames e os Smithson’s [Alison e Peter], como equipas de projecto, casais de arquitectos, que nos perseguem e que perseguimos. Os Eames por um sentido de coerência entre as suas propostas e o próprio projecto de vida, e também pelo lado oficinal e de relação com os objectos. Os Smithsons, apesar de ainda de forma bastante inconsciente entre nós, pela importância que damos mais aos processos do que à formalização. Depois, as referências mais contemporâneas são imensas e mais ou menos assimiladas, mais ou menos conscientes, quer do ponto de vista das obras em si, quer dos processos… Os livros que estão quase sempre presentes, e os percursos que tentamos acompanhar, observar são variados: [Peter] Zumthor, [Kazuyo] Sejima, [David] Chipperfield e os seus discípulos, Sergison Bates, Caruso St John, Mansilla + Tuñon… Estes talvez mais pelo modo como montam todo o processo de trabalho e como permitem que o processo de trabalho seja uma coisa racional e passível de ser mostrada, haverá sempre mais de 50% que fica oculto no inconsciente, mas tentar que a outra parte do processo seja passível de ser explicada é um aspecto que nos agrada.

2 Revista Arquitectura Plus, A+, 44 Young International Architects, Grupo Via, Barcelona: 2007. Respondendo à pergunta: “Cuál es el punto de apoyo, tu mecanismo intelectual, tu desencadenante, tu método para discutir ideas de arquitectura, tu búsqueda, tus hallazgos, cuando abordas un proyecto?”. 3 Adolf Loos, Alvar Aalto, Álvaro Siza, Carlo Scarpa, Charles e Ray Eames, Erik Gunnar Asplund, Fernando Távora, Frank Lloyd Wright, Giorgio Grassi, Jacques Herzog e Pierre Meuron, Jørn Utzon, Josep Antoni Coderch, Le Corbusier, Louis Kahn, Luís Barragan, Mies vander Rohe, Peter e Alison Smithson, Peter Zumthor, Rem Koolhaas, Richard Neutra, Robert Venturi, Rudolf Schindler, Umberto Riva…


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GERAÇÃO 90: UMA LEITURA DO PERCURSO ACADÉMICO PORTO | SÃO PAULO

Conversa com André Tavares Arquitecto pela FAUP (2000). (Realizada em 03-05- 2010)

Os professores que compunham o corpo docente e leccionavam em 1980-1990 foram formados numa época em que a linguagem da arquitectura esteve muito associada a uma espécie de militância, à ideia de que a sociedade se devia construir. Quando ingressou na FAUP, esta postura era ainda muito marcante entre os professores? Não sei se a militância ou convicção política desses arquitectos que fizeram a dita “Escola do Porto” era tão real ou efectiva do ponto de vista do ensino e da prática da arquitectura. A noção que eu tenho é que esse engajamento era devido essencialmente a questões pessoais, eles viram-se envolvidos num contexto político bastante intenso e nem por isso deixaram de praticar a arquitectura como um serviço, ou seja, como uma resposta disciplinar relativamente independente a serviço de uma determinada política. A noção que tive, de alguns professores que para mim foram marcantes e estruturais no curso, foi o entendimento da arquitectura como um serviço e do arquitecto como alguém capaz de manusear um conjunto de instrumentos que podem ser utilizados em diferentes contextos. O mais importante seria manusear esses instrumentos, para lhes poder dar o melhor destino consoante a convicção, orientação ou circunstância política de um determinado momento. Se houve alguma coisa que tenha compreendido foi o sentido operativo do projecto e não tanto a necessidade do envolvimento político. As questões sociais e o comportamento social do arquitecto eram peças importantes no contexto do ensino, mas eram relativamente independentes das questões disciplinares e instrumentais do projecto que, essas sim, eram decisivas. Pelo menos foi isso que eu senti, não sei se era isso que eles queriam fazer, ou dizer. Já os seus anos académicos fazem parte de um outro momento, posterior, de maior desligamento das questões ideológicas, de uma diversidade muito grande de caminhos e até de certa aleatoriedade. Qual era o “espírito de época” entre os estudantes? Da parte dos alunos, não me parece que houvesse uma grande excitação política. Havia algumas intervenções em questões urbanas, mais ligadas a alguns projectos que se estavam a construir na cidade. E havia uma pressão muito grande da política partidária portuguesa que as faculdades e os estudantes funcionassem como armas de arremesso político. Eu estive na Associação de Estudantes numa altura onde não houve grandes conflitos políticos, mas sentia-se a pressão para que a Federação Académica do Porto [FAP] tivesse um papel político activo. Isso não tinha rigorosamente nada a ver com a disciplina de projecto, com o que estávamos a fazer na faculdade e com o que discutíamos em arquitectura. Aliás, um dos nossos esforços dentro da Associação de Estudantes (no ano em que, com a Filipa Guerreiro, estivemos na direcção) era o de nos afastarmos desse jogo dos partidos, porque sentíamos que não interessava à maioria dos alunos e não tinha nenhum vínculo com aquilo que estávamos a fazer ou a pensar em projecto. A vossa geração académica parece ter assumido um sentido crítico e arquitectónico de maior comprometimento com o seu tempo e com a escola. Estar engajado num projecto académico passa a ser meio e termo para a discussão da condição académica e disciplinar da arquitectura? Seria esta uma mostra de maior consciência e responsabilidade com o seu tempo? Sim, definitivamente, ou pelo menos queríamos fazer isso, mas não sei se fomos mais ou menos capazes e comprometidos do que outros, antes ou depois. Sentíamos que havia um certo acomodar, um orgulho absolutamente excessivo da parte do corpo docente e também de alguns alunos. Havia quem defendesse que a escola era o melhor que havia e também havia uma certa contestação, alguns conflitos entre os alunos que diziam: “esta escola está-nos a manietar, não nos deixa ser criativos, não somos livres, temos de fazer tudo o que os professores mandam”. E tudo aquilo parecia um bocado tolo, quer os que diziam que era o máximo, quer os outros a dizer que aquilo era um disparate. Tentámos, com as Jornadas Pedagógicas em 95 e com as conferências e debates que íamos fazendo [96 Conversas], agitar um pouco as águas e discutir se de facto aqueles seriam os melhores modelos de ensino e o que eventualmente se poderia transformar para os melhorar. Éramos um grupo relativamente coeso, mas não me parece que fosse extensível a toda a escola. Havia participação e tivemos alguns


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conflitos divertidíssimos, mas estávamos muito empenhados a tentar perceber o que estávamos a aprender. Chegávamos as questões da disciplina muito através da crítica que nos obrigava a entender aquilo que estávamos a fazer para podermos criticar. Não era uma crítica a dizer que estava tudo mal, que era preciso partir tudo e fazer tudo outra vez. Às vezes era, só para criar reacção! Mas geralmente era uma crítica de descoberta e transformação. No fundo, foi apenas nos primeiros anos do curso que essa tenção foi mais forte e que esse empenho e envolvimento foi maior. E portanto era natural uma certa confusão de ideias, de coisas que estávamos a conversar e a discutir que nos empenhávamos a criticar, sem fazer grandes sínteses. Mas a crítica era também, sobretudo, uma forma de aprendizagem. A crítica era a maneira que nós tínhamos para aprendermos melhor o que estávamos a fazer, já que muitas das disciplinas não tinham grande interesse. Como era a relação aluno/professor com os mestres da escola? O que perdura deste convívio? Era óptima. Acho que era uma boa relação, mas isso funciona muito por grupos, entre os professores de projecto obviamente havia uma relação muito próxima por ser uma relação longa, e haviam algumas pessoas a quem nós não ligávamos nada. Houve alguns conflitos, tivemos algumas zangas com professores, mas nada de muito dramático. A relação era tranquila, muito simpática. Pode dizer-se que não se limitava à faculdade. Foram uns anos muito animados que acabaram em 2001 com uma grande actividade cultural na cidade [Porto 2001 - Capital Europeia da Cultura] e nós estávamos muito envolvidos, íamos sistematicamente ao teatro, ao Rivoli e ao São João, e encontrávamos os professores . Havia uma grande simpatia nesse encontro, mas também não diria que era uma relação excessivamente próxima. E também não havia aquela coisa de ir trabalhar para o atelier do professor, isso começou a haver só a partir do 4.º e 5.º ano. Outra característica marcante da vossa geração académica é o contacto e a experiência que desenvolveram em gabinetes de ex-professores e conceituados arquitectos portugueses ou estrangeiros logo após a formação. Que influências subsistem resultantes dessa colaboração? Creio que isso foi uma coisa importante para mim e para a rapaziada mais próxima. No 3.º ano já estávamos fartos da Faculdade e já não havia muita paciência para o que lá se passava, no 4.º ano estávamos literalmente no limite. E a saída foi radical, foi cada um para o seu lado, houve quem tenha ido para São Paulo, Veneza, Paris, Roma... Enfim as pessoas foramse distribuindo e eu fui para Lausanne, na Suíça. Nessa viagem fomos tomando consciência de outras coisas e de outros contextos. Havia alguma consciência da capacitação disciplinar, daquilo que eu estava dizer no início, de sermos capazes de prestar um serviço e desse serviço ser útil. Creio que em geral houve uma consciência dessa apetência e de termos algumas ferramentas disciplinares para responder em diferentes contextos. Sobretudo aquilo que eu senti, e outros colegas meus também, é que estávamos perante outros mecanismos e lógicas de pensar o projecto que nós não praticávamos. No meu caso particular, em Lausanne, isso gerou alguns conflitos tensos. Talvez porque eu tinha algum domínio do projecto e da capacidade de responder ao que era pedido, mas não tinha vontade de fazer exactamente o que me pediam: fazia o que me apetecia fazer. Esse desfasamento correspondia quer a alguma autonomia na produção de projecto que tínhamos conquistado, quer a algum desinteresse por outras maneiras de pensar o projecto. Mas eu creio que não era um excesso de confiança no próprio trabalho, era sobretudo um certo reconhecimento da diferença do contexto de lugar para lugar. Depois tínhamos que voltar e, nessa altura, optei por não praticar projecto. Já tinha alguma experiência de projecto com o meu pai e fiz uma opção de estágio sem ser em atelier. Fui para o Centro de Documentação da Faculdade, que na altura começava a ganhar alguma expressão. O Manuel Mendes estava a empenhar-se em fazer o arquivo progredir e tinham sido incorporados alguns arquivos importantes. Comecei no recenseamento do espólio do Januário Godinho, essa experiência foi relativamente estranha mas ao mesmo tempo entusiasmante porque me permitiu uma aproximação à documentação e à história e, sobretudo, à arquitectura moderna portuguesa a partir das fontes originais e não a partir do que diziam os livros de história. Comecei a perceber que a história era bem mais divertida e bem mais complicada do que aquela que nos contavam, o que me deu algum prazer. E foi também a descoberta de uma metodologia de investigação e uma hipótese de contacto com outra crítica de arquitectura. A construção da Prova Final [Modernidade e construção : duas obras de Januário Godinho em Ovar sob a orientação de Manuel Mendes] foi realmente uma maneira de reconhecer a investigação que me levou para outro universo bastante afastado do que estava em discussão na faculdade. Nessa altura compreendi a utilidade de várias coisas que tinha aprendido em Lausanne, particularmente com o Jacques Gubler – com quem mantive sempre um contacto muito próximo e que me foi muito útil para imaginar e conceber essa aproximação aos documentos que cá no Porto não tinha. E compreendi também


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a utilidade de outras fontes como a literatura e a crítica, particularmente através de fontes francesas que cá não eram muito consideradas: andávamos todos a analisar tipologias e não propriamente a fazer esse género de trabalho. O seu trabalho profissional é muito individual e independente, mas também o arquitecto possui uma ligação muito forte a outras actividades. Como se deu o trabalho profissional? Houve uma sequência relativamente rápida de acontecimentos. Eu fui monitor de projecto quando estava a fazer a Prova Final na faculdade e no fim do ano não me renovaram o contrato. Na altura fiquei um pouco triste e, por sorte, fui trabalhar para o Serviço Educativo do Museu de Serralves. Ao fazer essas visitas às exposições entrei no universo da arte contemporânea, universo que tinha uma prática de crítica e de discurso sobre a arte – e também sobre a arquitectura – que mais uma vez se afastava completamente dos modelos que tinha andado a aprender na escola. Isso foi uma espécie de lufada de ar fresco. Depois tive algumas propostas a que eu não consegui dizer que não. Uma foi o trabalho para a Fundação Calouste Gulbenkian com o Nuno Portas sobre política e gestão urbana. Lembro-me perfeitamente da primeira conversa que tive com o Nuno Portas e com o Álvaro Domingues, em que eles me explicaram o que estavam a fazer e eu fiquei a pensar no que estava a acontecer: porque não entendi rigorosamente nada do que eles me disseram e fiquei bastante apreensivo. Fui lentamente percebendo que era um assunto que, dentro do meu percurso académico, me tinha passado completamente ao lado e, portanto, foi mais uma descoberta da cultura da nossa disciplina. Ao mesmo tempo, ou relativamente pouco tempo depois, entre 2000 e 2003, participei numa direcção da Ordem dos Arquitectos e com isso entrei na componente mais corporativa e profissional da disciplina. Mais uma vez, era um universo de problemas, debates e questões que estavam muito distantes do que tinha aprendido na faculdade. Portanto, o meu percurso profissional (por várias circunstâncias) foi-me afastando da prática e do discurso corrente do projecto, sempre através de coisas que não tinham sido assuntos muito relevantes na minha aprendizagem universitária, que andava muito em cima da questão do projecto e do desenho. É nessa sequência de processos que se inclui uma iniciativa mais editorial e crítica? Como surgiu a Editora Dafne? Logo em 1994/95 envolvemo-nos muito com a Unidade e com a Associação de Estudantes. O Luís Calau, o Nuno Almeida, o Joaquim Moreno, o Pedro Bandeira e outros, andavam muito empenhados em várias lógicas de publicação e a Unidade foi um momento bastante importante para nós. Acreditávamos que publicar vale a pena e fomo-nos aproximando do universo dos livros, das edições, das gráficas, das tipografias, do que era construir uma revista. Eu diria que foi um acontecimento normal enquanto estudante. Entretanto o Moreno, o Bandeira e a Paula Pinto começaram a fazer a Insisto, em 1999 e durou alguns números. Nessa altura também comei a ter algum envolvimento profissional cá no Porto e comecei a ficar muito próximo de pessoas ligadas ao design e à edição, nomeadamente a Susana Lourenço Marques, o Manuel Granja e o Mário Moura. Comecei a aproximarme dessa dinâmica de edição muito através da Insisto, à qual não estava directamente ligado mas que era feita por vários amigos. Quando se estava a fazer o tal trabalho para a Gulbenkian houve um momento crítico em que era preciso dar forma ao caos do momento. E eu fui pedir ajuda à Susana e ao Granja. Montámos o livrinho das Políticas Urbanas e o meu papel foi literalmente coordenação de edição e comecei a ganhar algum ritmo e alguma pratica de edição. A Dafne é uma história completamente diferente, mas afim. A Dafne aconteceu com o meu pai [Domingos Tavares] a querer publicar a sequência dos livros dele. Depois, quando voltei do Brasil (estive 6 meses em São Paulo) cheguei ao escritório havia uma certa confusão, mais ou menos parecida com o que está agora! Uma pilha de livros, caixotes, facturas, papeladas e o meu pai pediu-me uma ajuda para resolver algumas coisas. Nesse contexto começámos a dar um outro ritmo e dinâmica à Dafne. Comecei a empenhar-me e a envolver-me mais. Havia umas hipóteses de livros que se queriam publicar, como a tese do António Olaio. O Pedro Bandeira tinha material para fazer um livro, tínhamos feito a exposição em São Paulo [Arquitectura em Portugal : um roteiro fotográfico] da qual era preciso publicar um catálogo em português. Essas coisas foram gerando uma segunda colecção e as coisas começam a ser ficar mais pesadas do ponto de vista da gestão e do trabalho implicado. Por isso tivémos que inventar a editora, que basicamente é esta pequena confusão que está aqui a ver, não é mais do que isto. Finalmente, como definiria a sua actividade crítica na arquitectura hoje?


ANEXO | CONVERSAS COM ARQUITECTOS

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Eu acho que é apenas uma questão de circunstância. Eu tenho uma tristeza constante de não projectar mais do que uns móveis de cozinha, ou algumas tentativas de concursos que, em geral, como não tenho uma estrutura montada, não consigo cumprir. Desisto porque tenho outras coisas para fazer. Acabei há pouco tempo uma obra com o meu pai e creio que continuo a saber projectar. Posso não saber os regulamentos todos de cor, mas não vejo que seja a minha prática seja uma coisa muito afastada e separada do projecto, estanque como às vezes se quer fazer parecer. Hoje há uma guerra aberta no contexto da elaboração de projectos, sente-se que é difícil arranjar trabalho e há uma exigência cada vez maior do ponto de vista da resposta burocrática ou tecnocrática, para além da resposta da arquitectura. Para isso é difícil montar máquinas, caras de manter e que exigem um grande investimento, arriscado quando há muita concorrência. Ao mesmo tempo pedemme coisas e dão-me trabalho noutros cenários e contextos (não tanto de edição, a Dafne do ponto de vista comercial não é rentável). De vez em quando encomendam-me textos ou pedem-me para fazer um livro e isso vai ocupando o tempo, de tal modo que eu não consigo ter tempo disponível para inventar uma prática de projecto. É por isso que me parece tratar-se mais de uma questão de circunstância do que propriamente de um afastamento disciplinar. É preciso ritmo, quer para escrever, fazer livros, projectos ou dar aulas, e é difícil ter todos os ritmos ao mesmo tempo. Há quem consiga mas eu não consigo, perco muitas horas à volta das coisas. O arquitecto comentou que as questões de projecto e de crítica estão muito próximas, e a FAUP sempre possuiu uma tradição muito pragmática, onde os professores, na sua maioria arquitectos-profissionais, conciliavam actividade profissional, pedagógica e crítica (como Távora). Como o arquitecto vê essa relação? Eu entendo tudo como a mesma coisa. Eu olho para o mundo com olhos de arquitecto e, para mim, a disciplina é este olhar que serve para conhecer o mundo. Tenho um edifício para fazer e faço-o com esse conhecimento e com essa forma de olhar para as coisas. Se tenho um texto para escrever escrevo-o com o mesmo conhecimento, é por isso que a arquitectura continua a ter um peso autoral muito significativo, porque corresponde à aplicação desse olhar. É óbvio que, quando estou a fazer um texto, tenho um determinado objectivo, um objecto e um contexto e aplico este conhecimento para lhe dar uma forma escrita. Provavelmente nesse caso a relação entre aquilo que eu estou a fazer e aquilo que eu estou a pensar é mais directa do que no projecto de arquitectura. Mas creio que não é muito diferente fazer um projecto de arquitectura, em que tenho um problema para resolver e o projecto é uma solução para esse problema. Quando preciso fazer um projecto abro o AutoCAD e começo a desenhar ou pego na caneta e risco, há uma dimensão não verbal muito forte. Quando tenho de escrever um texto uso outros instrumentos, mas a noção que tenho é que a disciplina é a mesma e que a maneira como penso é muito próxima. A geração anterior a 1980 é muito marcada por um “projecto de futuro”, e toda a actividade era desenvolvida na busca coerente deste projecto, possuíam referências sólidas e acreditavam nessas referências. Qual seria o seu “projecto de futuro”, em que esta a trabalhar actualmente e quais as expectativas? Este é um momento dramático do meu ponto de vista, espero que seja um momento sem futuro. Do ponto de vista da disciplina e da cultura arquitectónica vejo com algum entusiasmo aquilo que a malta mais nova anda a fazer, empenhada que está em mudar, em transformar e em criar coisas novas. Vejo também um certo embate institucional cada vez mais pesado e cada vez mais difícil de superar, porque, as instituições ligadas à arquitectura são, na minha perspectiva, relativamente desastrosas e não correspondem à energia e à capacidade demonstrada por muitos arquitectos novos. Há um certo conservadorismo absolutamente aflitivo na Universidade, na Ordem dos Arquitectos, nas Trienais, nas Casas da Arquitectura, nos prémios. Aquilo que se vê a ser promovido e a ser valorizado aflige-me, porque não vejo saídas que dêem resposta a este conflito relativamente grave entre a tecnocracia e a sociedade. Relação que é cada vez mais complicada de gerir e de digerir por parte de indivíduos que querem participar activamente na construção da sociedade.


ANEXO | CONVERSAS COM ARQUITECTOS


ANEXO | CONVERSAS COM ARQUITECTOS

S達o Paulo Milton Braga | MMBB Angelo Bucci | SPBR Alvaro Puntoni | GRUPOSP Vinicius Andrade | ANDRADE MORETTIN Arquitetos Fernanda Barbara | UNA Arquitetos Martin Corullon | METRO Arquitetos Associados

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GERAÇÃO 90: UMA LEITURA DO PERCURSO ACADÉMICO PORTO | SÃO PAULO

Conversa com Milton Braga Arquiteto (1986), um dos responsáveis pelo atelier MMBB. (Realizada em 11-12- 2009)

Os professores que compunham o corpo docente e leccionavam em 1980-1990 foram formados numa época em que a linguagem da arquitectura esteve muito associada a uma espécie de militância, à ideia de que a sociedade se devia construir. Quando ingressou na FAU-USP, esta postura era ainda muito marcante entre os professores? Eu entrei na FAU em 1982, três anos depois da volta do [Vilanova] Artigas, do Paulo [Mendes da Rocha] e do [Jon] Maitrejean. O Artigas, de todos os professores, foi aquele que mais consistentemente associou a reflexão sobre arquitetura, a sociedade e a militância política, então quando ele retorna a faculdade essa preocupação ganha grande força. Eu, particularmente, fui sempre de um grupo, sem ser talvez dos mais radicais desse grupo, que acreditava nessa preocupação, mais do que talvez no discurso, porque até hoje, 20 anos depois, e naquele momento talvez com muito apelo, a situação social brasileira era um problema. Era a abertura política, votamos pela primeira vez em eleição direta e majoritária para um cargo executivo, o governo do Estado de São Paulo, em 1982. Então eu sempre achei que essa preocupação desses arquitetos fazia muito sentido, e que a arquitetura no Brasil, se quisesse ser intelectualmente consistente, deveria ter esse compromisso de melhorar a cidade, diminuir a divida social e assim por diante. Já os seus anos académicos fazem parte de um outro momento, posterior, de maior desligamento das questões ideológicas, de uma diversidade muito grande de caminhos e até de certa aleatoriedade. Qual era o “espírito de época” entre os estudantes? Bom, eu talvez não lembre tão bem. Mas o meu ano talvez tenha sido o primeiro ano que se preocupou mais em estudar e discutir a arquitetura do que estudar e discutir política. O que não quer dizer que a nossa preocupação fosse apenas com a disciplina, sem atenção aos problemas do país, que vão além da arquitetura. Se éramos mais passivos, num sentido político, éramos muito ativos no sentido de promover essa discussão da arquitetura. Entre os estudantes haviam duas possibilidades que se apresentavam com mais força, de um lado, o que eu estava, seguir discutindo aqueles problemas que os professores vinham discutindo, atualizando esses problemas para os tempos de então, e que viriam, portanto, mudando um pouco o foco, não mais pensando o país inteiro, mas pensando as nossas cidades que começaram a aparecer como muito problemáticas, muito grandes, precisando que tudo fosse refeito, ou feito. E a outra possibilidade, seria pensar uma arquitetura feita no Brasil, mas afinada com a arquitetura que se fazia no resto do mundo, muito preocupada com a história e com a cultura popular, o pós-modernismo historicista, mais europeu, ou mais ligado a arte pop, cultura de massas, norte americana, do Venturi, por exemplo. Alguns achavam que eram coisas antagônicas, eu nunca achei que uma preocupação eliminasse a outra, sempre achei que as duas coisas poderiam ser consideradas, não eram necessariamente antagônicas. Mas como associado a essa preocupação dos professores existe um estilo, ou a chamada “Escola Paulista”, um know-how, como eu prefiro dizer, de como fazer arquitetura, seguir falando dessas coisas seria também, na opinião de alguns, seguir fazendo essa mesma arquitetura, o que talvez até seja um tanto verdade, porque o know-how é bom, mas é um pouco uma camisa de força, um pré conceito. Então aqueles que achavam um antagonismo ou uma contradição, atacavam muito porque não queriam fazer esse tipo de arquitetura, queriam fazer arquitetura pós-moderna. Mas essa arquitetura, para mim, nunca fez sentido numa cidade como São Paulo, que é toda moderna, construída no século XX, não temos exatamente um contexto histórico a ser preservado ou ser continuado. A vossa geração académica parece ter assumido um sentido crítico e arquitectónico de maior comprometimento com o seu tempo e com a escola. Estar engajado num projecto académico passa a ser meio e termo para a discussão da condição académica e disciplinar da arquitectura? Seria esta uma mostra de maior consciência e responsabilidade com o seu tempo? Não sei se consciência, acho que mais uma intuição. Quando eu entrei na escola, e por alguns anos ainda, a arquitetura feita no Brasil era muito ruim, com exceção de alguns grandes arquitetos de uma geração muito anterior a nossa (formada no


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modernismo dos anos 50), e a geração intermediária não existia. Então, apesar desses, a arquitetura em São Paulo, no Brasil inteiro de um modo geral, estava muito precária. Acho que no mundo inteiro, os anos 80, é um momento complicado. Assim, intuía-se, mais do que se considerava, que era um momento de recuperar a arquitetura. Agora não sei se era uma consciência, a gente nem falava claramente assim “temos que mudar o programa, agora vamos deixar de falar de política e vamos falar de arquitetura”, isso era intuitivo. Os arquitectos formados na FAU-USP em meados da década de 1980-1990 possuem afinidades muito particulares. Estariam estas conformidades evidenciadas por um percurso académico semelhante e talvez marcadas pela relação aluno/professor com os mestres da escola? O que perdura deste convívio? Acho que esse é o ponto mais difícil de ser esclarecido, eu mesmo não tenho muita clareza. Mas acho que, no nosso caso, especificamente, aquilo que nos aproxima mais na “Escola Paulista”, dessa tradição arquitetônica paulista, desse know-how de como fazer arquitetura, foi devido à colaboração com o Paulo Mendes, na época da FAU e inclusive depois. Todos estávamos bastante abertos e atentos a produção internacional, o Fernando [de Mello Franco] passou dois anos na Europa, eu passei um ano, a Marta [Moreira] passou um tempo lá também, o Vinicius Gorgati que foi o sócio no comecinho, não só foi para a Europa como também para os Estados Unidos e nunca mais voltou. Tínhamos muita sensibilidade e atenção, gostávamos muito da arquitetura do Paulo Mendes, do Eduardo de Almeida, do Abraão Sanovicz, arquitetos paulistas, mas também da arquitetura do Norman Foster, Jean Nouvel, sobretudo talvez o Renzo Piano, arquitetos contemporâneos mais ligados a uma raiz de arquitetura moderna, ou racionalista, mais ligada à construção, a disciplina da arquitetura. Sempre estivemos mais ligados a esse tipo de arquitetura, mas, nesse momento, muito mais abertos, não que estejamos fechados agora, mais atentos com o que estava acontecendo fora. Então nós começamos a colaborar com o Paulo. É uma cooperação em que a gente conversa muito com ele, trabalha desde o início, não é simplesmente um trabalho técnico, é um trabalho de interação intelectual, por mais que ele seja o autor e o arquiteto que seguramente dirige as discussões dos projetos dele, pensamos junto. E quando fazemos os próprios projetos não dá para pensar de modo dissociado do que estamos pensando nos trabalhos que fazemos com ele. Ambas as frentes de trabalho – a colaboração com ele e os projetos próprios – acabam constituindo um raciocínio só. Não poderia ser de outra maneira. O pensamento é o mesmo. A gente não faz o que ele faria, procura até evitar fazer o que ele esta fazendo, mas, ao mesmo tempo, está pensando nas mesmas coisas. E acho que, no nosso caso particular, essa proximidade com o Paulo é mais importante do que o tempo de escola. As coisas se somam, no trabalho de conclusão de curso eu fui orientando dele, a Marta também, e foi aí que a gente se aproximou um pouco, mas isso é muito menos do que operar, trabalhar em vários projetos como a gente vem cooperando desde 1995. Uma outra razão para esse grupo fazer uma arquitetura muito próxima da arquitetura tradicional moderna paulistana, e entre si, e isso é uma hipótese minha, talvez primeiro precisássemos fazer uma boa arquitetura, que não existia, para depois pensar talvez em criticar essa arquitetura. Acho mais fácil fazer boa arquitetura a partir de uma tradição, do que a partir do nada. E isso se faz por acumulação de experiências, não só próprias, mas dos outros também. E eu sinto que agora talvez seja o momento em que nós, esse grupo de arquitetos da geração de 1980/90 tem condições para arriscar mais, as pessoas vão confiar mais que a gente arrisque. Talvez seja o momento mais perigoso. Em 1991vencem o concurso para o Pavilhão do Brasil na Expo 92 - Sevilha. Na altura participou como integrante da equipe do Via Arquitetura… É o nome inicial, que eu não gosto, ainda bem que mudamos! [No Via Arquitetura participavam os arquitetos Fernando de Mello Franco, Marta Moreira, Milton Braga e Vinicius Gorgati] O vencedor foi um grupo de novíssimos arquitectos com um projecto aparentemente “sossegado”, face às discussões da época. No entanto a reacção ao resultado do concurso foi bastante agressiva. Como a vossa proposta de projecto se inseria no contexto da época? Eu obviamente sou suspeito para falar, porque eu fiz um projeto que não foi o escolhido, mas que tem alguma afinidade com o projeto escolhido. Naquele momento as pessoas diriam até bastante afinidade, porque ou era racionalista ou era pós-moderno, decostrutivista ou historicista. O nosso era um projeto, muito parecido inclusive com o pavilhão que foi construído pela Finlândia, temos um bloco de


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serviço e um bloco servido, uma área nobre e uma área de apoio, bem marcados no projeto. Acho que o nosso era menos amarrado por essa tradição, o projeto que ganhou o concurso de Sevilha acho que era muito parecido com o projeto de Osaka [Pavilhão Brasileiro da Feira Internacional de Osaka, Japão, 1969], por exemplo, não é parecido, mas é muito próximo em termos de soluções, em termos de problemas e de questões, o chão contínuo, e eles naquele momento estavam apostando nessa tradição mais do que nós. Então o nosso projeto nesse sentido me parece mais interessante. Por outro lado, o projeto deles era o mais consistente, era mais um pavilhão, o nosso era quase um prédio, não tinha talvez o caráter de um pavilhão. Éramos recém-formados, pouco experientes e talvez, nesse momento, tenha faltado um pouquinho de experiência para projetar algo mais enfático, diferente de um simples prédio. Quantos as críticas, eu achei sempre que aquela discussão foi muito mais ideológica do que intelectual, querendo muito talvez atingir o Paulo Mendes, que presidiu o júri, porque o projeto era muito parecido com a arquitetura que ele vinha fazendo e hoje são reconhecidas no mundo inteiro como obras dos anos 80 e 90, e não dos anos 50 como a critica queria fazer com que se acreditasse e ultrapassadas. Então, eu acho que a gente perdeu a oportunidade justamente de andar para a frente, porque ficou uma briga de partidos, mais do que de ideias. Como se deu o trabalho independente? Quais factores, económicos, sociais e culturais, influenciaram a organização profissional através de um gabinete de trabalho colectivo, em oposição à produção arquitectónica de autor? Sempre tivemos muita ligação com o Alvaro [Puntoni] e com o Angelo [Bucci] (que venceram o concurso), chagamos a fazer uma ou duas coisas, quando dávamos aulas juntos, como dois escritórios que se juntaram. Num certo momento, o Angelo foi nosso sócio, acabávamos de começar a trabalhar com o Paulo Mendes e tínhamos muita coisa para fazer. Depois voltou a trabalhar com o Alvaro. Então tem esse grupo ampliado, mas eu diria que quem trabalha mesmo afinado, por isso nos mantemos juntos até hoje, somos eu, o Fernando e a Marta. Lógico que as vezes tem algum conflito mas, de um modo geral, a gente realmente se completa, no sentido de um ajudar o outro a pensar, quando pensamos juntos, pensa-se melhor do que separados. De um modo geral, desde o princípio ate hoje, os trabalhos são feitos com a coordenação de um de nós três, inclusive é muito difícil quando tem uma conversa entre vários, saber distinguir de quem foi a ideia, porque ela é construída coletivamente, um conjunto realmente, cada um fala uma coisa, que suscita uma outra… Com esse coletivo ampliado acho que é muito mais uma empatia pela mesma tradição, uma preocupação com os mesmos problemas, ou seja algo para ser considerado, e acho que é isso que mantém essa arquitetura parecida entre os vários grupos. O projecto carrega muitos dos pensamentos, ideologias, e personalidade de seu autor. Como lidam com as diferentes características individuais em oposição à vossa imagem colectiva construída? Eu acho que muitos escritórios da nossa geração já não existem mais e existem os arquitetos que formavam esses escritórios, e acho que até individualmente talvez seja mais fácil você destilar e cristalizar uma preocupação, uma forma de fazer arquitetura, do que num grupo de arquitetos, talvez demore mais para esse coletivo ter uma linha mais marcada. Dentro do MMBB, certas características do trabalho tem a ver com a minha individualidade ou personalidade e outras com as dos outros, mas nós fomos nos transformando mutuamente, então é engraçado. Apesar disso eu acho que a nossa linha é muito marcada, temos uma arquitetura que muita gente considera muito rigorosa, no bom sentido, outros consideram um pouco chata, sem imaginação. Acho que é a nossa forma de ver a arquitetura, e de ser coletivamente e individualmente. Qual a diferença entre conviver na universidade com um arquitecto cuja obra se admira e o convívio com ele no desenvolvimento de projectos profissionais? Pode-se afirmar que esta relação seria uma espécie de “influência buscada”? Eu acho que a nossa ligação com o Paulo Mendes que foi, e ainda é muito intensa, foi meio por acaso. É lógico que foi desejada quando aconteceu, mas não foi perseguida, eu diria. Em 1995, quando conseguimos um encargo importante para projetar um corredor de ônibus em São Paulo. Já tinham alguns implantados, mas o município não tinha isso organizado ainda (até hoje não organizou direito, mas era menos organizado ainda) o transporte público que, aqui, é basicamente feito por ônibus. Com a experiência de Curitiba pensava-se em fazer um corredor mais importante, que passaria pelo centro da cidade: começaria na praça da República, subiria a Consolação, desceria a Rebouças em direção ao Campo Limpo,


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Taboão da Serra. Como era o corredor que passava pelo lugar mais importante, achamos que não tínhamos experiência suficiente, e era um grande projeto, e achamos que caberia convidar um arquiteto mais experiente e tínhamos já, a muito tempo, vontade de trabalhar com o Paulo. Sabíamos que ele poderia aceitar o onvite, porque ele não tinha tanto trabalho naquele momento. Convidamos, ele aceitou. Se não fosse esse contrato acho que jamais teríamos chamado o Paulo, e acho que talvez se ele não tivesse aceitado não voltaríamos a insistir. E foi muito bom. As vezes também acho que foi um pouco ruim, porque o nosso escritório ficou muito identificado com ele, o que eu não acho bom. A FAU-USP sempre possuiu uma tradição muito pragmática, onde os professores, na sua maioria arquitectos-profissionais, conciliavam actividade profissional, pedagógica e crítica (como Artigas). Acredita no necessário equilíbrio entre ensino, actividade profissional e actividade crítica? Como estas três vertentes se relacionam na sua actividade profissional? O ensino, no Brasil e no mundo, está ligado à pesquisa, obrigatória para poder dar aulas. Então tem um problema claro que é a falta de tempo, mas por outro lado eu tenho a convicção de que é preciso no quadro de professores de uma faculdade de arquitetura, inclusive para a pesquisa e para a crítica, não só para a transmissão de conhecimento, arquitetos que façam projetos profissionais. Portanto, eu acho que nós temos a obrigação de dar aulas e continuar trabalhando, conciliar isso é bom para os dois, porque acho que a melhor forma de você se atualizar, continuar pensando, ampliar a sua cultura específica e geral é dar aulas, você aprende muito, inclusive a quantidade de projetos que a agente faz dando aulas é impressionante, porque se orienta os alunos fazendo junto, e cada invenção de um aluno faz com que você, em paralelo, invente uma coisa sua também. Então esse repertório que vai se construindo no ensino, na atividade docente, ajuda na atuação profissional. Você faz projetos com muito mais agilidade, você traz da escola soluções para o escritório, que são suas, elaboradas a partir dos estímulos que os alunos acabam trazendo. Há também a parte mais formal do conhecimento, produzido daquilo que você aprende dando aulas, tanto a pesquisa individual (feita na forma de mestrados e doutorados por exemplo) como a pesquisa feita através de discussões com outros professores, sobre trabalhos de alunos, sobretudo os trabalhos de conclusão de curso. Toda essa pesquisa produz conhecimentos que também aparecem na produção profissional, e essa é fundamental para levar informações atualizados para a academia. Então eu acho que há, claramente, uma sinergia, que apesar da falta de tempo, é muito necessária. A geração anterior a 1980 é muito marcada por um “projecto de futuro”, e toda a actividade era desenvolvida na busca coerente deste projecto, possuíam referências sólidas e acreditavam nessas referências. Acha que a vossa geração teve/tem um “projecto de futuro”? Bom, acho que a nossa geração continua pensando problemas muito parecidos, ou aqueles problemas que eles pensaram continuam aí para serem pensados e, sugiram outros – hoje, por exemplo, uma cidade precisa de atrações, arquitetônicas inclusive, para fazer parte de uma economia global, em competição entre as cidades, isso naquele momento não existia e agora existe, e a agente tem que saber como enfrentar isso. O que eu acho que mudou muito é a consciência que temos sobre as dificuldades, a complexidade, a quase impossibilidade de resolvermos definitivamente, com a arquitetura, certos problemas. O que não quer dizer que a arquitetura não contribua para a solução, ou para a transformação das situações que ensejam esses problemas. Então, cada vez mais, deveríamos fazer uma espécie de obra aberta. Que é você dar uma contribuição o mais marcante possível mas que, eventualmente, será transformada no futuro, e se for suficientemente marcante estará ali, presente, sempre sendo atualizada, porque as coisas inclusive vão mudando (sobretudo nos projetos de maior escala). A cidade, no Brasil e no mundo, se transforma, é um processo, muito mais do que um objeto ou um produto. Então, nesse sentido, pensarmos como resolver as nossas cidades, ou mais do que resolver, construir algo que seja bom para todo o sempre, o que não quer dizer que vai resolver muita coisa mas, sendo bom para todo o sempre, obviamente resolveu alguma coisa. Quase como se a gente fizesse o hardware para os usuários aplicarem o software. E o que a gente procura é fazer um hardware que não se descaracterize, que continue significativo e não perca sentido, isso é muito importante. Então isso é uma grande diferença em relação ao que pensavam esses arquitetos dos anos 50, 60, 70, porque não tinham tido a mesma experiência que a gente tem, fizeram coisas que a gente viu, testou e sabe onde deu certo e onde não deu. Continuamos com muito compromisso social, mas com uma pretensão mais ajustada, pela própria experiência dessa história recente da arquitetura e do urbanismo e da cultura em geral.


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Como caracteriza a arquitectura paulista contemporânea? Eu acho que a arquitetura paulista contemporânea parece bastante com a arquitetura paulista dos anos 70, mas se parece muito também com a arquitetura suíça, espanhola, portuguesa, chilena. Cada vez mais eu acho que a arquitetura contemporânea paulista na verdade são várias, porque São Paulo é uma cidade feita de gente do mundo inteiro, quase todos os arquitetos dos anos 60/70 vieram de fora, Lina Bo Bardi, Rino Levi, Franz Heep, eram estrangeiros e fizeram arquitetura em São Paulo, depois o Artigas e o Paulo, que vieram de outros Estados. No sentido do desdobramento dessa arquitetura tradicional de SP nos tempos atuais acho que também são várias. Apesar de as soluções serem parecidas, os problemas são distintos, justamente porque essas soluções estão aproveitando esse know-how, mas também estão sendo atualizados para a situação contemporânea. Então acho que eu não saberia responder, acho que cada escritório, apesar da semelhança, tem uma direção. Eu acho que você tem razão, tem coisas que são pontos em comum. Eu acho que esse compromisso com a arquitetura socialmente consistente, que procure multiplicar o seu custo em termos de benefício público, é uma coisa que aqui todos estão pensando e que, como eu disse, faz sentido no panorama brasileiro. Outra coisa que eu acho comum é a preocupação com as cidades, que são muito problemáticas e, portanto, alguns escritórios estão o tempo todo tentando fazer projetos urbanos, mais do que projetos arquitetônicos. É o caso do UNA, é o nosso caso também. Agora a problematização é mais particular de cada escritório. Finalmente, como definiria a vossa arquitectura hoje? Diria que a gente procura do meu ponto de vista, fazer a tal obra aberta. Em que a gente faz um risco, depois outra pessoa vem e faz um risco ao lado ou mesmo em cima, e o desafio é como fazer um risco que continue significativo depois de todos esses outros desdobramentos que não controlamos, e não controlamos mesmo. Mas juntamente para não ser um dilema, sem solução, que procuramos fazer uma parte e deixar em aberto o restante, para as outras partes, e o desafio é como manter essa parte íntegra mesmo depois de transformada, ou completada. Eu acho isso super bonito, é o que tem me interessado. Mas não é a única coisa, tem projetos em que isso não cabe com tanta clareza. Anteriormente, usei o termo “influência buscada” para identificar a busca pessoal de referências conceptuais, mas também para o desenvolvimento da prática arquitectónica. Qual seria a vossa influência hoje? Quais arquitectos/arquitecturas vos influenciam/despertam interesse hoje? Não tem assim uma dominante, mas talvez o Renzo Piano, que acho muito interessante sobretudo pela arquitetura plástica e espacialmente coerente com as técnicas construtivas e materiais que ele escolhe para construir, é um arquiteto que eu presto atenção. Em termos de um conjunto de soluções poéticas, um imaginário, tem vários também, mas a Sejima acho muito interessante, porque ela tem uma constante nos seus projetos que muitas vezes se perde quando os escritórios vão ficando maiores. Também Lacaton e Vassal, o Christian Kerez, na Suiça, Herzog & de Meuron são muito interessantes, mas destes eu gosto muito mais dos primeiros projetos do que dos últimos, por mais que eles declarem em textos e entrevistas que eles estão evitando a repetição, que eles estão abertos, que eles queiram testar coisas, acho um pouco uma pena, porque eu gostava muito da acumulação poética, que eles desenvolveram no início da carreira, fazendo obras que eram uma a continuação da outra. Não gosto muito desses arquitetos que estão o tempo todo mudando, porque eu acho que o projeto no fundo é um projeto só, que você vai destilando, vai melhorando, vai testando… Tem os portugueses, que a gente olha bastante e tem muita proximidade. Gosto muito do Carrilho da Graça, também o Eduardo Souto de Moura é obviamente um arquiteto que gostamos, ele é o mais brasileiro dos portugueses. Inclusive em Portugal da nossa geração tem vários, os Aires Mateus o Ricardo Back Gordon, é que também não conhecemos tantos, eu pelo menos conheço pouco. Já o Siza é um arquiteto que começamos a compreender melhor. Acho que muitas vezes procuramos fazer uma arquitetura que aguente muitas transformações, rápidas e impactantes e, portanto uma coisa muito subtil acaba não funcionando. Acho um belíssimo exemplo o prédio da FAU-USP, que tem apelos que são um pouco distintos, muito voltados para o espaço e as relações entre pessoas e suas ações que esse espaço acaba permitindo ou mesmo provocando.


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Conversa com Angelo Bucci Arquiteto (1987), responsável pelo atelier SPBR. (Realizada por e-mail em 18-09-2009 e pessoalmente em 02-12- 2009)

A tese pretende estabelecer um paralelo entre o percurso académico do grupo de arquitectos formados entre meados da década de 1980 e meados de 1990, abordando factos académicos e arquitectónicos da década de 1970/80, a relação com os mestres, e a actividade desenvolvida durante o vosso período académico no Porto e em SãoPaulo. Acho interessante notar que há um período, muito bonito inclusive, de um acordo estabelecido entre os arquitetos, desde os anos 30 ao começo dos anos 60, sobre aquilo que deveria ser feito, que tipo de país deveria ser construído, como a arquitetura deveria enfrentar as suas tarefas, qual era o acervo técnico com que se poderia elaborar a proposição dos projetos e até como era, de certa maneira, a linguagem da arquitetura. talvez seja esse período que a gente reconheça como arquitetura moderna. É incrível como a arquitetura, no final dos anos 50, chega a um ápice que faz com que a produção da arquitetura, no mundo todo, nesse período, seja de tão boa qualidade. No Brasil estruturava-se um primeiro momento de construção de um certo grupo que fala com alguma autonomia de formação da arquitetura, e isso tem importância é um ponto de partida para a geração que veio depois. É claro que, na nossa atividade, você pensar em continuidade com essa década de 50 seria impossível, você não é um arquiteto para fazer o que se fazia, você é um arquiteto para ter um olho crítico sobre o que se fazia e como podemos proceder depois. Talvez isso dê uma das razoes para o aparecimento da crítica do moderno no plano internacional. Inclusive o surgimento do pós-moderno. Agora o que se enfrentou no Brasil no período que correspondeu ao movimento pós moderno na Eurpoa e Estados Unidos, na arquitetura, é uma das manifestações do desmantelamento cultural por que passamos. Eu não conheço bem o caso em Portugal, mas ali a ditadura teve um período muito mais longo, aqui isso ocorreu de outro modo, sempre muito vinculado aos mesmos acontecimentos em toda América Latina, onde, ao mesmo tempo, financiado por dinheiro externo, tivemos um período de ditadura militar muito curto e muito forte. No plano cultural, a ditadura militar no Brasil não tinha um descaso com a educação e a cultura do país, havia, isso sim, um projeto de destruição cultural. Hoje é muito nítido o produto desse plano tão bem sucedido no desmantelamento da cultura e educação do nosso país. Os professores que compunham o corpo docente e leccionavam em 1980-1990 foram formados numa época em que a linguagem da arquitectura esteve muito associada a uma espécie de militância, à ideia de que a sociedade se devia construir. Quando ingressou na FAU-USP, esta postura era ainda muito marcante entre os professores? Não. A geração dos anos 80 não encontrou o quadro daquela arquitetura, que teve mais brilho nos anos 50 até início dos anos 60, como vigente, já encontrou isso a uma distância de mais de uma década, encontrou uma arquitetura “dita moderna”, mas muito esvaziada de significado, como uma arquitetura que se reproduzia sem crítica e sem as razões originais, como uma obrigação, e que não nos dizia muita coisa. Quando ingressei na escola, em 1983, o que encontrei era um cenário triste, uma espécie de pós guerra, um período de coisas desfeitas. A minha geração na universidade é pós anistia. Mas a anistia não garantiu nenhuma espécie de retorno, pois toda a estrutura de poder na universidade havia se cristalizado de outro modo e estava sob o comando de pessoas que se estabeleceram na posição durante o governo militar. Note que os ilustres professores, [Vilanova] Artigas (a quem eu nunca conheci) e Paulo Mendes da Rocha (com quem tive a oportunidade de trabalhar muitos anos depois entre 1996 e 2002), retornaram no nível mais baixo da carreira acadêmica e permaneceram nesta posição (sem direito a cargos de representação ou diretivo) até as vésperas das respectivas aposentadorias. A minha geração veio depois da anistia e veio depois da geração dos anos 70, que se afastou da atividade de projetos de arquitetura, creio por uma justa orientação do movimento estudantil. A geração dos anos 70 foi uma geração heróica, inclusive pelo fato de que, em muitos aspectos, foi uma geração sacrificada. Uma geração que julgou, com toda legitimamente, que deveria dedicar sua vida e juventude a combater um regime que não lhes deixava alternativas para o futuro. Ela lucidamente colocou esse propósito de luta acima de qualquer coisa. E isso teve um custo concreto e muito fácil de medir, uma cota


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de sacrifício. Veja como é difícil citar arquitetos formados durante a década de 70. Só na FAU formaram-se 1.500 durante este período. Os nomes que se destacaram entre aqueles arquitetos talvez some uma dezena, a maior parte deles esteve, no período, vinculados a Lina Bo Bardi. A atuação da Lina naquele período teve o valor de uma espécie de asilo político àqueles que viam na atividade de projetos de arquitetura uma forma de ação possível. O SESC Pompéia [1977] é o caso mais emblemático, foi um espaço muito importante para uma geração, exceções muito importantes desse período, que são os escritórios Brasil Arquitetura [Francisco Fanucci e Marcelo Ferraz], o Guilherme Paolielo e o André Vainer, e também o Marcelo Suzuki. Claro que há outros, mas são pouquíssimos. Então, a minha geração veio após uma ruptura séria. A qual se poderia dizer teve duas consequências: por um lado, não tínhamos referências de partida prontas, a arquitetura moderna era considerada pela crítica uma coisa ultrapassada, a maior parte dos arquitetos inclusive na FAU reviam suas posições anteriormente marcadas por aquele vínculo nítido reviam-na a partir do movimento pós-moderno. Por outro lado, a minha geração tinha uma relativa liberdade privilegiada, pois não devia satisfação como se não tivéssemos precedências, uma vez que não vínhamos na sequência de nada, tampouco estávamos submetidos ao patrulhamento ideológico formatado e formalista que marcou a geração da década de 70. De certo modo, se poderia dizer, o que a minha geração herdou foi por escolha própria, como uma precedência eleita. Já os seus anos académicos fazem parte de um outro momento, posterior. Qual era o “espírito de época” entre os estudantes? Os estudantes procuravam estabelecer uma base de onde se lançar, constituir as referências que não existiam, um consenso que então era muito distante. O grupo de alunos ao qual eu me liguei acabou estabelecendo esse ponto de partida (ou base de lançamento) a partir dos arquitetos modernos: Artigas, Paulo Mendes da Rocha, [Carlos] Millan etc. Então é obvio que a volta dos professores foi muito importante. Um era o fundador da escola e autor do edifício, Vilanova Artigas, o outro o Paulo Mendes da Rocha, talvez o mais brilhante arquiteto paulista, mas ainda, naquele período, praticamente desconhecido fora do Brasil, e o [Jon] Maitrejean. Mas eu vejo até como uma grandeza desses que voltaram, porque eles sabiam que teriam quase nula capacidade de transformação daquela estrutura, redesenhada durante o governo militar, de poder que dirigia a Universidade de São Paulo. E, ainda assim, voltaram. Grandeza por reconhecer o valor da instituição acima e independente de circunstâncias tão desfavoráveis. Não voltavam porque acreditassem no corpo diretivo da universidade, mas porque acreditavam na instituição, digo, na Faculdade de Arquitetura, nos arquitetos, no ensino, tinham claro que as instituições eram mais importante que as contingências. Então, submeteram-se e a enfrentaram. A vossa geração académica parece ter assumido um sentido crítico e arquitectónico de maior comprometimento com o seu tempo e com a escola. Estar engajado num projecto académico passa a ser meio e termo para a discussão da condição académica e disciplinar da arquitectura? Seria esta uma mostra de maior consciência e responsabilidade com o seu tempo? A minha geração não teve nenhuma missão heróica. Não sacrificou-se na luta contra o regime. Tampouco tínhamos a fé da geração precedente, anos 60 ou 50, que confiavam completamente nas suas referências arquitetônicas. Minha geração, não fez esforço para livrar-se de nada, ao contrário, era necessário esforço para encontrar um sentido no que poderíamos fazer. Eu diria que o que a questão era encontrar maior sentido na atividade de projetos de arquitetura. Tudo o que poderia ser frio como instituição (saberes, referências, escolas) para mim ganhou, no convívio com os amigos, o necessário sopro de vida. Mas acho que já estava começando ali uma coisa que hoje eu acho muito interessante como problema, um problema muito atual: o excesso de recursos contra a escassez de sentidos. Os arquitectos formados na FAU-USP em meados da década de 1980-1990 possuem afinidades muito particulares. Estariam estas conformidades evidenciadas por um percurso académico semelhante e talvez marcadas pela relação aluno/professor com os mestres da escola? O que perdura deste convívio? Creio que em 90 essas afinidades são maiores, havia ali um consenso mais estabelecido. A Universidade é um conjunto e é evidente que os professores (penso nos professores de projeto, aqueles que se consagraram como arquitetos e cuja produção arquitetônica também compõem a personalidade do professor para os olhos dos estudantes) têm papel destacado, no caso da FAU-USP creio que mais como referência do que pelo convívio que é muito limitado pela desproporção aluno/


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professor, que chega a 50/1. As minhas referências naquela época eram pela obra de alguns professores, talvez mais do que hoje. Além do Paulo [Mendes da Rocha], Artigas, Maitrejean, também o Abraão Sanovicz, foi um professor notável, o Eduardo de Almeida, Arnaldo Martins, Marcelo Fragelli, arquitetos cuja obra sempre podia ser olhada, sempre ensinava muita coisa. Encontrávamos respostas em algumas obras, que foram ganhando importância e constituindo um quadro de referências, e essas referências foram escolhidas. Você escolher a sua precedência é uma coisa extremamente moderna. E a distância que havia da minha geração para a precedente, deu certa isenção para os nossos critérios de escolha, não era uma escolha ideológica ou formal em primeiro lugar, ela era informada por muitas coisas, inclusive pelos nossos problemas quotidianos de quem se dedica à prática do projeto de arquitetura. Então, é natural que as obras de arquitetura brasileira tenham tido importância muito grande, não porque sejam mais ou menos, apenas porque elas refletem sobre um mesmo, nosso,contexto compartilhado. Os níveis de identificação são, de certa maneira, privilegiados. Mas é necessário redescobrir, as vezes por caminhos não tão ligados especificamente às obras e as construções. Para mim, pessoalmente, foi uma revelação ler os textos do Vilanova Artigas, naquela época, e eu, a partir dali, comecei a apreciar muito mais as obras, e compreender de outro jeito, por novos sentidos as obras de arquitetura. A escola é sobretudo o ambiente do convívio entre estudantes. E algumas pessoas foram muito importantes para mim, essas pessoas são os amigos, porque depois você faz esses grupos que te acompanham a vida inteira, como Alvaro Puntoni, Alvaro Razuk, Milton Braga e outros colegas. Para mim é interessante o fato de que, embora os estudantes estejam ali na universidade por um curto período, de passagem por assim dizer, são eles como categoria que garantem a perene atualidade da escola. Eles, os estudantes, são mais sensíveis e ligados ao contexto imediato. Uma escola tem isso que é maravilhoso, colocar num mesmo lugar, um grupo de pessoas com toda a energia, todos jovens, e com um interesse comum de dedicar a vida a uma mesma coisa, ou causa. Colocar essas pessoas todas juntas é talvez o mais importante, e sem dúvida nenhuma o mais vivo, que uma escola pode fazer. Outra característica marcante da vossa geração académica é o contacto e a experiência que desenvolveram em gabinetes de ex-professores e conceituados arquitectos portugueses ou estrangeiros logo após a formação. Que influências subsistem resultantes dessa colaboração? Sim, mas destaco que isso é exceção e não regra. Se na escola a relação tem aquela desproporção numérica anual, imagine como isso se agrava se você pensa na possibilidade dos estudantes colaborar nos escritórios de seus ex-professores. Isso pode ter valor, sem dúvida tem na história individual de cada estudante ou arquiteto. Mas não creio que isso possa ser pensado como possibilidade para um sistema de formação, pois a conta fica muito longe de fechar. Em 1991vencem o concurso para o Pavilhão do Brasil na Expo 92 - Sevilha. Um grupo de novíssimos arquitectos com um projecto aparentemente “sossegado”, face às discussões da época. No entanto a reacção ao resultado do concurso foi bastante agressiva. Como a vossa proposta de projecto se inseria no contexto da época? Sevilha foi o projeto de um grupo. Alvaro Puntoni, José Osvaldo Vilela e eu, como autores, e outros cinco colaboradores [Vespasiano Puntoni, Edgar Dente, Clóvis Cunha, Fernanda Barbara e Pedro Puntoni]. Eu gosto muito de pensar em Sevilha, pelo fato de sermos um grupo, você tomar a atividade não mais como uma coisa de uma pessoa, mas que coloca um pouco como se o engajamento fosse mais do que a autoria, como se o manifesto fosse mais do que a invenção. Nós tínhamos nos formado recentemente naquele ambiente culturalmente devastado. Muitos arquitetos daqui buscavam se encontrar numa versão brasileira da arquitetura pós-moderna e havia um certo consenso da crítica que a arquitetura moderna já não interessava. Nós, muito jovens, fizemos daquele projeto quase um manifesto de onde queríamos partir: arquitetura moderna nos dizia coisas importantes. E posso lhe dizer, importantes para a rotina da nossa atividade em projetos de arquitetura, ou seja, havia um conhecimento ali que nos ajudava a compreender, lidar e responder com as questões que tratávamos cotidianamente. Não era, em primeiro lugar, uma questão ideológica, muito menos formal. Tampouco, fazíamos um manifesto porque devêssemos satisfações a qualquer grupo. Mais uma vez, nossa precedência era também matéria de escolha. Tinha um aspecto no projeto de que eu gostava muito: o modo como a estrutura estava desenhada, que só seria possível se inteira. Ou seja, o prédio não era possível estruturalmente sem ser construído todo. Mas era um projeto extremamente


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simples, a ideia da sombra de Sevilha, o restaurante que se vê ali na cobertura. Sevilha foi uma grande felicidade. Eu tinha 27 anos, o Alvaro 26, o José Osvaldo pouco mais de trina; nós ali já víamos que as coisas que você propõe tem consequências, se desdobram. Afinal, o projeto não foi construído, mas colocou para nós uma responsabilidade interessante vinculada à nossa atividade: você cuidar com muita atenção daquilo que diz e como diz. Sim, você tem razão, a acrítica negativa àquele projeto foi praticamente consenso. Creio que a reação dos críticos nas publicações foi a resposta de um grupo surpreendido em ver que a arquitetura que representaria o Brasil em Sevilha seria uma arquitetura vinculada com a arquitetura moderna brasileira. Então, a primeira reação da crítica foi de recusa, como que temerária de um retrocesso. É evidente que a participação do Paulo Mendes da Rocha, cuja personalidade sem dúvida tem muita presença num corpo de jurados e que tem a qualidade de se manifestar com muita clareza sobre suas posições, no júri daquele concurso deve ter pesado muito na decisão. É notável que pouco depois foi inaugurado o Museu Brasileiro da Escultura [MuBE, 1995], e talvez tenha sido a obra que marcou maior visibilidade fora do Brasil. Então, essa arquitetura moderna brasileira, através do seu representante mais ilustre de São Paulo, Paulo Mendes da Rocha, passou a ganhar uma enorme notoriedade internacional, e com um interesse que mesmo aquela critica não suspeitaria que tivesse. Não o digo porque eu imagine que Sevilha tenha relação com o reconhecimento que ele teria, ao contrário, digo-o para dizer que mais uma vez ele acertava quanto à validade do seu próprio discurso. Não creio que aquela polêmica que envolveu o momento do concurso, aquela recusa da crítica, tivesse fôlego para muito. Neste sentido, acho que toda a critica brasileira durante a década de 90 acabou sendo convidada a redefinir, a reconsiderar, muitas das suas posições, e acho que esse foi um processo de amadurecimento muito interessante que, em geral, a critica amadureceu junto, num sentido de construir um certo consenso. E esse diálogo, que agora ganha novas fronteiras internacionais, vai colocar a prova valores de uma arquitetura, um modo de fazer e a sua validade num contexto mais amplo, e a outra é que o diálogo vai transformar, e essa transformação é extremamente desejada, mas os critérios como isso se transforma é que vão ser a prova seguinte. Como se deu o trabalho independente? Quais factores, económicos, sociais e culturais, influenciaram a organização profissional através de um gabinete de trabalho colectivo, em oposição à produção arquitectónica de autor? Era a única possibilidade que tínhamos, estabelecer-nos autonomamente. Foi muito devido ao entusiasmo do Alvaro Puntoni que eu, ele e Alvaro Razuk começamos nosso escritório. Depois desfizemos, refizemos, nos organizamos em outra e depois outras composições de escritórios.Sempre levados pelas condições do nosso contexto de trabalho. Eu acho muito bom trabalhar num grupo de gente, porque quando você se debruça sobre um problema para fazer um projeto, quanto mais olhos tiver, melhor você responde, se eu posso olhar e renovar os meus olhos com os olhos dos outros, ora isso para mim é um grande privilégio. Creio que, cada vez mais, será assim, pois isso é característico da nossa forma de atuação, particularmente no contexto de São Paulo nesse momento. O processo de desenvolvimento de um projeto tem uma dinâmica típica própria, há etapas, ou seja, atmosferas diferentes que correspondem a diferentes momentos nesse processo. É preciso fazer mudanças na abordagem que correspondam a cada um desses distinos momentos, também nesse aspecto, trabalhar em grupo enriquece muito, por isso, vejo com o maior entusiasmo esses escritórios mais novos, como o UNA, já algum tempo, ou mais recentemente os Cooperantes e outros tantos formados por um grande time de jovens colegas profissionais. O projecto carrega muitos dos pensamentos, ideologias, e personalidade de seu autor. Como lidam com as diferentes características individuais em oposição à vossa imagem colectiva construída? A busca dessa personalidade, sinceramente, é algo que nunca me preocupou. Pois creio que hoje é mais manifesto que autoria, mais engajamento que invenção; ou seja mais grupo do que indivíduo. Não creio que essa arquitetura autoral esteja conforme o nosso tempo, além disso, essa personalidade se existe não deve ser uma meta, como se fosse uma marca que se deseja imprimir a uma produção; é o contrário, se há, ela deve vir naturalmente de um modo de trabalhar. Digo isso e sei que desde 2003, dirijo um escritório que é muito concentrado em mim, o SPBR. Mas isso não veio de um plano, ao contrário, fui impelido a essa condição. Talvez hoje o espaço para a autoria e a personalidade esteja mais ligado à produção acadêmica, autoral, do que à produção de edifícios.


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A FAU-USP sempre possuiu uma tradição muito pragmática, onde os professores, na sua maioria arquitectos-profissionais, conciliavam actividade profissional, pedagógica e crítica (como Artigas). Acredita no necessário equilíbrio entre ensino, actividade profissional e actividade crítica? Como estas três vertentes se relacionam na sua actividade profissional? O exemplo que você toma, Vilanova Artigas, não representa de modo nenhum a maioria dos professores da FAUUSP. Atualmente, entre os professores da FAUUSP, que são cerca de 150, creio que, se muito, 20% estariam regularmente dedicados à prática de desenvolvimento de projetos de arquitetura. Creio que uma escola de arquitetura precisa de professores em dedicação exclusiva, mas precisa também dos arquitetos que se destacam na prática da atividade. Os critérios que pautam a produção acadêmica na universidade brasileira impõem dificuldades insuperáveis para que arquitetos atuantes possam participar regularmente dos cursos. Há figuras que existem no estatuto da universidade como a do professor visitante, por exemplo, que seria uma forma interessante de permitir a participação eventual de ilustres arquitetos, porém essa figura não é utilizada. Não é somente o curso de arquitetura que sofre com isso, outros casos dramáticos são, por exemplo, artes plásticas, músicas, teatro, cinema etc. Acredito que uma dedicação equilibrada e paralela nestas duas frentes de atuação profissional, universidade e escritório de arquitetura, pode ser complementar e desejável na atividade de um arquiteto. Esse equilíbrio pode eventualmente exisitir na figura de uma pessoa, mas também pode existir no corpo de professores de uma escola com uma proporção adequada de gente exclusivamente dedicado à academia e grupos reconhecidamente dedicados à prática profissional. Mas é preciso encontrar uma forma possível e mais simples para alcançar tal equilíbrio. Um trabalho imenso, mas necessário, a fazer. O Arquitecto já leccionou como professor visitante em diversas Universidades nos EUA, América Latina e Europa, além da FAU-USP, e também possui artigos críticos relevantes. Como estas três vertentes se relacionam na sua actividade profissional? Segui na pós-graduação porque queria compreender melhor algumas coisas, sem um plano muito nítido. Comecei a dar aulas com muito entusiasmo, mas creio que só pude começar porque as escolas de arquitetura se multiplicaram demais no período que coincidiu com a minha atividade profissional. Dividi a minha atividade entre escritório e universidade porque tive a oportunidade e porque creio que sempre encontrei um sentido nessa atuação solidária e complementar. Procuro encarar as duas coisas como dois campos de uma mesma atividade. Claro que há diferenças importantes entre esses dois campos, principalmente no que diz respeito às responsabilidades, refiro-me às responsabilidades civis mesmo, também há diferenças claras no que diz respeito à autoria, mas creio que o modo como conversamos sobre um projeto num campo ou noutro, tende a ser muito similar. esse contacto continuo com as universidades é muito rico e, para mim, muito agradável também. O desafio, mais uma vez, é encontrar um equilíbrio possível entre as atividades profissional e acadêmica. Nesse sentido, o convite para lecionar em universidades estrangeiras exige mais para manter esse equilíbrio desejado., . Mas é um problema recorrente e muitas universidades prevêm isso institucionalmente. Por exemplo, quando fui lecionar um estúdio na GSD Harvard em 2008, o convite para um professor visitante em projeto naquela escola prevê uma dedicação de 50% do tempo, , então é possível estar lá e aqui ao mesmo tempo, isso justamente porque eles querem professores que estejam envolvidos com a prática, arquitetos, e também porque querem arquitetos engajados em distintos contextos, por isso visitante.. Considero que dar aulas é um privilégio enorme, mas também considero um grande privilégio ser arquiteto. Pois são atividades muito ligadas com a vida, aprende-se conversando com as pessoas, e há um prazer difícil de ser igualado: o gosto de ver as coisas serem construídas. Então eu não vejo conflitos eu só acho que é sempre importante uma atenção contínua para não deixar que uma coisa prejudique a outra, para mim são duas atividades complementares, uma coisa colabora com a outra. A geração anterior a 1980 é muito marcada por um “projecto de futuro”, e toda a actividade era desenvolvida na busca coerente deste projecto, possuíam referências sólidas e acreditavam nessas referências. Acha que a vossa geração teve/tem um “projecto de futuro”? Claro que sim. Creio que minha geração vislumbrou que os arquitetos se dividem em dois grupos: aqueles que acreditam no futuro e os que trabalham no cenário antecipado do desastre. Quero pertencer ao primeiro grupo.


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Opondo os ideais que culminaram nos anos 50 e 60 àqueles que orientam a minha geração, vou tentar resumir as diferenças que me parecem importantes: Antes se acreditava nas formas fechadas, hoje tomamos as formas abertas; Antes cidade, hoje ambiente Antes, desenho; hoje, imagem; Antes, invenção; hoje engajamento; Antes, autoria; hoje manifesto; Antes, partido político; hoje, postura Como caracteriza a arquitectura paulista contemporânea? Não a individualizo, arquitetura paulista, entre a produção contemporânea. Acho que São Paulo, a cidade, ensina aos arquitetos lições importantes, às vezes acho que é possível vislumbrar tais lições na obra de alguns arquitetos independentemente de onde atuem. Creio que esse é um jogo mais interessante. Por exemplo, fazer um prédio na cidade de São Paulo hoje é uma ação sem nenhuma autonomia, pois é mais um entre um conjunto que dissolve completamente o sentido de unidade autônoma. Muita gente interpretaria essa dissolução como perda de importância, como se um edifício feito em São Paulo fosse apenas mais em 50.000, o que de fato é. Mas então não interessaria mais fazer um edifício? É isso que eu acho interessante! Sim, interessa agora mais ainda. Porque quando você diz que um prédio não se basta, que ele se dissolve, de certa maneira você também esta dizendo que ele está nos outros. Você faz uma intervenção pequena e ela transforma tudo aquilo que existia antes, quer dizer, não é que o edifício em si tenha perdido o seu valor, ao contrário, ele tem seu valor multiplicado porque você faz um nada e transforma um mundo. Você constrói um pequeno e reconstrói tudo aquilo que já estava antes. Você atua no presente e transforma o passado e o futuro, o tempo e o espaço. É a possibilidade de irradiar transformações, com intervenções que se sabe limitadas, que se sabe pontuais, mas que modificam a dinâmica de funcionamento desse corpo pré-existente. Então eu acho que são diferenças de paradigmas muito interessantes. Finalmente, como definiria a vossa arquitectura hoje? Não penso nisso. Numa época em que o grande problema me parece ser o excesso de recursos e a escassez de sentidos; procuro trabalhar buscando sentido para as coisas que faço e critérios para os recursos que utilizo. Anteriormente, usei o termo “influência buscada” para identificar a busca pessoal de referências conceptuais, mas também para o desenvolvimento da prática arquitectónica. Qual seria a sua influência hoje? Quais arquitectos/arquitecturas o influenciam/despertam interesse hoje? Talvez eu não saiba responder. Creio que se o foco de meu interesse, referências, não aparece suficientemente nos projetos que eu estou fazendo é porque eles não interessam. Mas está lá, talvez apenas não seja eu que deva me preocupar em responder a essa pergunta. Eu me dedico muito ao escritório, a universidade, acho muito importante estabelecer canais de diálogos com outros arquitetos mas é natural que eu tenha uma limitação imensa para fazer isso porque a vida é tão pequena que… cada dia é tão curto, mas o que eu posso tento fazer bastante porque acho que enriquece muito a minha prática, aprende muito, me agrada conversar. Os arquitetos que mais me influenciam são aqueles com quem convivo, com quem divido a prática. Alguns desses convívios foram notáveis para mim, os colegas que encontrei na escola e aqueles com quem trabalhei e trabalho; são afinidades também construídas de colegas com quem pude me relacionar num outro contexto como nos países latino americanos por exemplo.


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Conversa com Alvaro Puntoni Arquitecto pela FAU-USP (1987), responsável pelo atelier GRUPOSP. (Realizada por e-mail em 15-10-2009 e pessoalmente em 17-12- 2009)

Os professores que compunham o corpo docente e leccionavam em 1980-1990 foram formados numa época em que a linguagem da arquitectura esteve muito associada a uma espécie de militância, à ideia de que a sociedade se devia construir. Quando ingressou na FAU-USP, esta postura era ainda muito marcante entre os professores? É interessante notar que a Arquitetura Moderna Brasileira, aquela fundada na década de quarenta a partir dos esforços de uma geração notável de arquitetos como Lucio Costa, Affonso Eduardo Reidy, Oscar Niemeyer, no Rio de Janeiro, fomentada por uma ação governamental, e depois, a estabelecida em São Paulo, mais relacionada às ações particulares e a fundação das faculdades com arquitetos como Vilanova Artigas, Abelardo de Sousa, Eduardo Corona, Rino Levi, entre outros, é o momento mais impressionante e vigoroso da nossa arquitetura. Da primeira, a Escola Carioca, pouco restou, além de um patrimônio de obras representativas e significativas, mas únicas. Não encontraram ressonância e aprofundamento em um processo de formação e ensino, da mesma forma que ocorreu em São Paulo, a Escola Paulista, duas vezes escola, portanto. Em São Paulo segue uma segunda geração tão importante quanto a pioneira: Carlos Milan, Joaquim Guedes, Lina Bo, Sergio Ferro, com destaque para Paulo Mendes da Rocha. Desta profícua convivência pode-se afirmar que se formaram outros arquitetos e arquiteturas. Apenas 15 anos após a fundação das faculdades de arquitetura em São Paulo, quando se discutiam e aplicavam seus novos programas de ensino, instalou-se a Ditadura Militar (1964) e iniciou-se um processo de destruição cultural sem precedentes. Durante vinte anos “os arquitetos velaram”, como disse Artigas. Enfraquecidos era difícil afirmar as posições, era mais fácil assimilar os influxos externos. Vivemos a escola neste momento de transição, de final do periodo militar e inicio da abertura politica, portanto toda esta discussão fazia parte da agenda dos professores. Neste momento de reconstrução do país, vinculado ao processo de democratização consolidado nos últimos anos, nota-se o revigoramento da Arquitetura Brasileira como expressão do fortalecimento da nossa cultura. Hoje se pode acenar novamente no cenário da arquitetura internacional com frases mais elaboradas, com construções mais precisas. Já os seus anos académicos fazem parte de um outro momento, posterior, de maior desligamento das questões ideológicas, de uma diversidade muito grande de caminhos e até de certa aleatoriedade. Qual era o “espírito de época” entre os estudantes? Meu processo de formação na FAU vai de 1983 a 1987. Era um momento de abertura política, mas na Universidade colhíamos os frutos de 20 anos de destruição cultural imposta pelos governos militares. Havia um aparente desprezo, por exemplo, pelo projeto, uma supervalorização do planejamento, um número excessivo de disciplinas, além do exacerbamento da burocracia. Neste quadro me comportava de forma intuitiva, mas com uma opção clara pelo Projeto de Edificações e, obviamente, pela História que sempre me encantou. Recordo-me que o excesso de críticas ao professor Artigas e ao edifício da FAU feita por diversos professores. Os problemas da FAU eram o tema predileto das aulas: o prédio não funciona, como é que um arquiteto pode fazer um edifício sem janelas, etc. Existe aquele provérbio chinês, “o medíocre aponta para o dedo que aponta para a Lua”, quer dizer, estávamos debaixo de 960 janelas [aberturas zenitais] e não se conseguia ver nenhuma? Então essas críticas me conduziram ao caminho contrário: ir estudar o que o Artigas havia feito e escrito na biblioteca. Isto me colocou em contato com uma produção mais ampla da arquitetura moderna em São Paulo e no Rio de Janeiro e finalmente me levaram a estudar a obra do Le Corbusier. Soma-se a este interesse e encantamento o aquecimento do debate sobre o Pós-Moderno que geraram inclusive uma série de conversas na FAU-USP as quartas-feiras organizadas pelo Departamento de Historia quando tivemos a oportunidade de ouvir a professora Otilia Arantes, Sophia Silva Telles, Flavio Motta, entre outros. Já desde então, diferentemente de vários


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colegas, me colocava em uma postura de distanciamento, defendia que parecia tudo uma discussão fútil posto que o que interessava era a qualidade das obras, seus aspectos espaciais, construtivos e simbólicos. Talvez não estivesse de acordo com certo maniqueísmo com que era tratada a questão. Porque diziam que o projeto da FAU era datado, antigo, superado, sendo que o projeto que foi construído era de 1969, e o livro do Aldo Rossi de 1966 era atual? Porque um projeto pode ser datado e um livro não? As ideias perpassam tanto nas palavras como na construção. Apesar de manter minha postura crítica, não posso deixar de afirmar que atuava talvez da mesma forma virulenta que aqueles de detratavam a arquitetura moderna. A vossa geração académica parece ter assumido um sentido crítico e arquitectónico de maior comprometimento com o seu tempo e com a escola. Estar engajado num projecto académico passa a ser meio e termo para a discussão da condição académica e disciplinar da arquitectura? Seria esta uma mostra de maior consciência e responsabilidade com o seu tempo? A nossa geração é muito complicada. Existe uma geração anterior a nossa, brilhante, que foi massacrada. Imagine você se formar, depois de ter estudado com o Artigas, naquele prédio, naquela escola, naquele espaço, e saindo você tem um deserto, que era a ditadura militar. A ditadura não era um plano maquiavélico, em toda a América, todo o 3º mundo periférico, o capitalismo estava moldando o mundo que a gente conhece hoje, então é muito mais uma questão econômica, uma urdidura política do mundo que conecemos do que qualquer outra coisa. Talvez hoje quem simbolize essa geração seja o Marcos Acayaba, que conseguiu superar de forma representativa essas questões. A nossa geração entra na escola pouco tempo depois, mas sofreu muito com essas questões. Os arquitectos formados na FAU-USP em meados da década de 1980-1990 possuem afinidades muito particulares. Estariam estas conformidades evidenciadas por um percurso académico semelhante e talvez marcadas pela relação aluno/professor com os mestres da escola? O que perdura deste convívio? Os professores de projeto foram muito importantes para minha formação, sobretudo no 5º ano quando tive a oportunidade de conviver com o Paulo Mendes. da Rocha como orientador do trabalho de graduação. O Paulo tem uma visão de mundo incrivel e absolutamente cativante. Mais que professor e arquiteto é um pensador magnífico. Sempre senti-me privilegiado por ter tido a possibilidade de compartilhar algumas tardes com ele. Esta relação com os professores tem o sentido de não abdicar da inteligência construída. Eu sei que os portugueses têm essa questão da continuidade também muito forte, acho que tem uma expressão do Eduardo Souto de Moura numa entrevista, em que ele fala que seria uma estupidez negar a inteligência do Távora, do Siza. Mondrian define que o artista é, essencialmente, a continuidade de um anterior a ele e que, sendo dessa forma, ele então completa ou complemente a obra do anterior. E você rompe entendendo o que foi feito, não negando o que foi feito. Acho esta definição precisa e importante. À partir do que foi feito você constrói, e na arquitetura equivocadamente estamos sempre a negar o que foi feito, o que é um absurdo. A FAU é uma das raras escolas de São Paulo que possibilita a formação de núcleos de pensamentos que posteriormente podem se converter em escritórios de arquitetura. Seja em razão do ambiente propício (como urdiu Artigas), seja pelas idéias acalentadas pelo mesmo espaço que é escola duas vezes (física e ideal). Outra característica marcante da vossa geração académica é o contacto e a experiência que desenvolveram em gabinetes de ex-professores e conceituados arquitectos portugueses ou estrangeiros logo após a formação. Que influências subsistem resultantes dessa colaboração? Penso que sejam influências naturais. Pessoalmente tive apenas uma experiência rápida com o Paulo Mendes da Rocha (Concurso de Alexandria e Concurso para Sede do Instituto de Engenharia em São Paulo). Aliás, foi neste momento que decidi que deveríamos seguir nosso caminho próprio. Em 1991vencem o concurso para o Pavilhão do Brasil na Expo 92 - Sevilha. Um grupo de novíssimos arquitectos com um projecto aparentemente “sossegado”, face às discussões da época. No entanto a reacção ao resultado do concurso foi bastante agressiva. Como a vossa proposta de projecto se inseria no contexto da época?


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Cremos na importância do Concurso como forma de debate arquitetônico e possibilidade de inserção profissional, além da perspectiva de realização de projeto sem tantas restrições ou interferências, tão comuns nos trabalhos cotidianos. Vale a pena destacar que o momento coincidia com a abertura política e, portanto o Concurso de Arquitetura também se caracteriza como instrumento fundamental de discussão e participação. Foi uma experiência interessante, pois desde o início firmamos uma posição contrária a hegemonia daquele momento, afinal insistíamos em fazer uma arquitetura que tinha antepassados e incomodava alguns colegas mais animados com o pós-moderno. Uma coisa engraçada, eu lembro que o terreno tinha 60m, era ao lado de Portugal, o Vaticano estava atrás, e achávamos muito importante marcar esses 60m, portanto, que tivesse dois apoios, era fácil porque tinha a altura estrutural da sala de exposições que vencia o vão, não tinha nenhum mistério, um projeto super simples. Mas persistia uma idéia do Artigas, como é que desenha o apoio? Eu pensei, não, não vamos desenhar o apoio, não pode ter nenhum desenho, tem que ser absolutamente o apoio, só o apoio. Não podíamos fazer essa referência tão evidente, pegar uma frase de outra arquitetura e usá-la, poderia ser o enredo de outra arquitetura, mas as frases seriam outras. Para nós foi uma grande surpresa a classificação do projeto em 1º lugar. Foi algo inesperado, pois encarávamos o projeto como um manifesto, inserido no contexto de concurso que entendíamos como debate. Para arquitetos recém-formados, com apenas três anos de experiência, ganhar um concurso ara algo maravilhoso, e, ao mesmo tempo, aterrorizador. A reação contra o projeto foi imediata: palestras e exposições para contrapor o nosso projeto ao que seria a arquitetura mais conveniente do momento. Apenas acreditamos em uma arquitetura que julgávamos ser mais pertinente, que não representasse uma renúncia, mas a insistência em uma construção crítica. Eu, particularmente, fiquei mais aflito que jubilado, sofri mais do que tive prazer, posso dizer com todas as letras, nós fomos massacrados e tínhamos apenas 25 anos: foi dificil, mas sobrevivemos! O transcorrer do processo foi de certa forma pré-anunciada. Já sabíamos desde o inicio (por meio de informação obtida junto a uma empreiteira interessada na construção) que o pavilhão não seria construído pelo Governo, que já havia inclusive concluído negociações (antes mesmo do IAB finalizar o concurso) para alugar um espaço no Pavilhão das Américas pelo mesmo valor da obra a ser realizada, ao contrário do que se afirma comumente que o projeto selecionado inviabilizava sua construção. Hoje posso dizer que se ganhar este concurso nos trouxe inicialmente mais problemas que benefícios, foi uma experiência fundamental para todos nós. Crescemos profissionalmente e pessoalmente. Acho interessante crer que o fato de um projeto como o nosso ter sido premiado neste concurso foi significativo no seio do debate em que encontrávamos. Talvez ele tenha cristalizado um processo pessoal que havia iniciado na graduação de envolvimento com um pensamento arquitetônico que defino como uma inteligência construída e que seria falta de bom senso renunciá-la em prol de um discurso cuja formulação parecia ser no mínimo distante e vaga de nossa realidade e história. Como se deu o trabalho independente? Quais factores, económicos, sociais e culturais, influenciaram a organização profissional através de um gabinete de trabalho colectivo, em oposição à produção arquitectónica de autor? No ano seguinte ao concurso de Sevilha e após o cansativo processo de debate, inclusive junto ao IAB [Instituto dos Arquitetos do Brasil], para cumprimento do edital, que estabelecia a premiação com a contratação do projeto executivo do projeto vencedor, resolvemos dar um a passo mais resoluto. Eu e o Ângelo Bucci alugamos uma sala, onde trabalharíamos associados informalmente até 1996. Durante a crise econômica dos anos 90 (inflação alta, mercado desaquecido, e pouco trabalho no escritório), tanto eu como o Angelo Bucci dividíamos nosso tempo com as escolas e trabalhando em escritórios de outros arquitetos. Após mantermos quase dois anos nossa sala praticamente sem uso e emprestada a colegas, resolvemos devolver o imóvel e desfazer o escritório. O Ângelo foi convidado a se associar definitivamente com nossos colegas da FAU e formar o MMBB Arquitetos. No período de 1996 a 2002, mantive o hábito de me associar livremente com outros colegas (inclusive com o Angelo) para o desenvolvimento de trabalhos e concursos, além de manter projetos próprios que desenvolvia individualmente. Neste período me dediquei a finalização do Mestrado e realizei alguns trabalhos junto a Fundação Vilanova Artigas como o livro editado em conjunto com o Intituo Lina Bo e exposições da obra do arquiteto. Em 2000, finalizado o Mestrado, resolvi recomeçar o escritório. Neste período se destaca a premiação em um concurso, em associação com Ângelo Bucci, que mo-


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tivaram a retomada da nossa parceria em 2003, quando estabelecemos o SPBR. Infelizmente essa nova associação resumiuse ao ano de 2003: o Angelo entendia ser necessario um percurso mais individual e isolado que fosse possível esclarecer o sujeito do processo. Eu sempre acreditei no contrário, no processo coletivo que é a essencia do projeto de arquitetura. Mas, apesar de pouco tempo, foi um ano profícuo este 2003: varios projetos e concursos, algumas obras. Em 2004, envolvido com a finalização do Doutorado, resolvemos nos dissociar novamente e retomei novamente o escritório individual, mas mantendo e sublinhando a disposição para a participação de outros arquitetos e ex-alunos. A participação de concursos neste ano, com resultados significativos e relacionados diretamente ao tema em desenvolvimento do Doutorado, motivaram o estabelecimento do escritório gruposp, que mantenho até hoje. Eu acho que hoje não existe mais escritório de arquitetura, com todo respeito. Há arquitetos. Um escritório clássico de arquitetura, é uma estrutura que se você não sabe administrar você vira refém dessa estrutura. Eu quero fazer o que interessa, não quero fazer qualquer trabalho. Isso tem um custo e uma das formas de encontrei de isso ser viabilizado, e também por uma questão conjectural, acabei sempre me permitindo associações. Não é sócio, é parceiro de trabalho, e isso dá uma mobilidade muito grande, permite você ter um escritório como esse, de 24m2. O projecto carrega muitos dos pensamentos, ideologias, e personalidade de seu autor. Como lidam com as diferentes características individuais em oposição à vossa imagem colectiva construída? Infelizmente não se percebe que o projeto é algo necessariamente coletivo, uma idéia anterior e acumulada, que não tem necessariamente um autor ou origem, mas que pertence a todos nós. Como o oxigenio que envolve o mundo é de todos, assim penso que a arquitetura é algo que esta no ar, pois é um gesto humano e civilizatorio e tem a ver com a nossa existencia. Um projeto, uma arquitetura, revela experiencias concretas e historicas viabilizadas pela técnica, ou seja, sempre existiram mas não haviam sido feitas. Se cremos nisto não há dilema nem questão, mas hoje invariavelmente se busca o oposto, nos processos excessivamente individualistas e autorais, pois no fim se trata de mercado e busca de hegemonia. Deveriamos navegar neste mar em busca dos portos seguros. Qual a diferença entre conviver na universidade com um arquitecto cuja obra se admira e o convívio com ele no desenvolvimento de projectos profissionais? Pode-se afirmar que esta relação seria uma espécie de “influência buscada”? Bonita esta expressão (e idéia), mas pode se tornar uma decepção. A FAU-USP sempre possuiu uma tradição muito pragmática, onde os professores, na sua maioria arquitectos-profissionais, conciliavam actividade profissional, pedagógica e crítica (como Artigas). Acredita no necessário equilíbrio entre ensino, actividade profissional e actividade crítica? Como estas três vertentes se relacionam na sua actividade profissional? É muito difícil. Outro dia não acreditava a quantidade de coisas que eu fazia esse fim de ano, mas é uma questão de como conciliar tudo isso… Creio fortemente que não seria arquiteto se não fosse professor e, conseguintemente, não poderia ser professor se não fosse arquiteto. Talvez fosse professor, mas de História, quem sabe. Talvez fosse arquiteto, mas completamente diferente do que sou. A hipótese é que não concebo o exercício da profissão sem a perspectiva de sua discussão e publicação (no sentido mais preciso da palavra) que só vejo possível no ambiente acadêmico. É no ambiente da Escola que podemos de forma criteriosa e organizada verificar hipóteses de trabalho que muitas vezes são dificilmente articuladas na vida quotidiana de um escritório de arquitetura. Além disto, é somente no âmbito acadêmico que podemos articular dimensões temporais que extrapolam as contingências das demandas concretas e objetivas e realizar ensaios e especulações que, sem dúvida, contribuirão na construção de espaços mais dignos da sociedade. A geração anterior a 1980 é muito marcada por um “projecto de futuro”, e toda a actividade era desenvolvida na busca coerente deste projecto, possuíam referências sólidas e acreditavam nessas referências. Acha que a vossa geração teve/tem um “projecto de futuro”? Todos nós deveríamos ter, não somente uma geração ou a “nossa geração”. Não existe presente sem futuro, assim como não existe um futuro sem o presente. Quem acredita que importa somente o presente esta destruindo as possibilidades reais de um futuro. O futuro é algo que se desenha agora. Sempre foi assim e será.


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Como caracteriza a arquitectura paulista contemporânea? Considerando a diversidade da produção, as diferenças regionais, os “países dentro do país”, as inúmeras faculdades de arquitetura, é uma tarefa árdua definir uma Escola Brasileira. Talvez existam diversas escolas, não uma única. As novas gerações formadas em parte pelos professores, seus alunos, os alunos dos alunos, não abdicaram da inteligência construída. Não é uma arquitetura unívoca, mas feita de distintas matizes ou múltiplas vertentes. Creio que uma idéia que nos aproxima é a construção do vazio. Considerar a cidade que moramos e vivemos, marcada por sua densa ocupação que neblina a percepção seja de sua topografia original, seja dos seus poucos espaços não ocupados, sobretudo aqueles definidos e configurados pelo sítio original, pelos fenômenos geográficos, o assoalho primitivo. Um dos desafios para os arquitetos paulistas neste século talvez seja insistir a construção do vazio como quem abre clareiras e possibilita novas dimensões e espaços para o convívio em nossa cidade. Finalmente, como definiria a sua arquitectura hoje? Difícil pergunta, difícil resposta… É uma arquitetura do possível, de onde estamos e como podemos crente que seu fazer é uma ação que se vincula na construção cultural de nosso país, nossa língua, nossa forma de vida, única como manifestação, universal por sua inserção na nossa casa, nosso único e querido planeta que nos acolhe desde sempre e não sabemos retribuir de forma inteligente. Ser arquiteto é ser construtor da cultura e do mundo que conhecemos e ainda não conhecemos. O gruposp é um espaço aberto à participação de arquitetos e outros profissionais interessados na discussão sobre a produção dos espaços de vivencia e os espaços da cidade. Não pretende ser um escritório tradicional: um núcleo rígido e fechado, mas uma organização flexível que admite colaborações e parcerias conforme o trabalho a ser desenvolvido. Nos últimos anos temos nos dedicado a elaboração de concursos de arquitetura, projetos para ONGs e instituições públicas, alem de incorporar no quotidiano de nossas atividades a participação em pesquisas e docência de seus participantes. O que caracteriza, portanto, minha atuação profissional é a disponibilidade contínua de me associar com diferentes arquitetos, com diferentes formas de atuação e pensamento, abrindo desta maneira novas perspectivas e possibilidades de trabalho. Sublinha a convicção que a construção dos espaços para todos pode (e deve) ser engendrado por ações coletivas, essenciais para ampliação do nosso saber específico. Poderia arriscar que, também nesse sentido, o prédio da FAU-USP seja uma grande referência para a vossa geração? Talvez a mais clara, directa e visível? Sim. Mas sabe o que é lamentável? Dois edifícios simbólicos de arquitetura em São Paulo estão em ruínas. O IAB [Instituto de Arquitetos do Brasil, 1947] e a FAU, e eu iria além, não é só uma ruína física, é mais profundo, tem a ver com as ideias também. Quem sabe este possa ser um momento de reconstrução, de novos ares também. O caso da FAU, nesse aspecto, é mais profundo. Esse âmago, a super-estrutura, a burocracia, e que não depende só de nós, é insuperável. Eu, o Milton [Braga] e o Angelo, que estudamos na escola e agora somos professores, a gente se sente um pouco co-responsável pelo estado das coisas... Estamos lá desde 2002, o Angelo um pouco mais tempo... Penso até que ponto não fomos absorvidos pela estrutura… Sair da inércia é difícil, tudo demora pelo menos dois anos, só que o edifício não espera, está num estado de conservação lamentável. Temos o apoio dos alunos, não todos, tem muita resistência, mas temos agora que tentar assumir algumas coisas. Vamos ver como fazemos este nosso futuro.


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Conversa com Vinícius Andrade Arquitecto (1992), um dos responsáveis pelo atelier ANDRADE MORETTIN Arquitetos. (Realizada por e-mail em 25-09-2009 e pessoalmente em 07-01- 2010) Os professores que compunham o corpo docente e leccionavam em 1980-1990 foram formados numa época em que a linguagem da arquitectura esteve muito associada a uma espécie de militância, à ideia de que a sociedade se devia construir. Quando ingressou na FAU-USP, esta postura era ainda muito marcante entre os professores? Notava-se certa desilusão com relação ao ideal de construir uma nova sociedade e o corpo de professores parecia dividido: uma parte parecia procurar de maneira quase aleatória por novas referências ou até novas razões para projetar, e que, desencantados, e influenciados pelo [Robert] Venturi, achavam que a arquitetura tinha que se libertar dos dogmas, enquanto um grupo menor sustentava uma postura de resistência, persistindo no discurso militante, um resgate de um momento heróico do modernismo. Os alunos também tomavam partido, também era claro e também era dividido. Inclusive na época da faculdade, o pessoal que fazia arquitetura mais dogmática eram chamados de “a turma da laje plana” (porque essa arquitetura vem com o repertório de sempre fazer a laje plana, do moderno, no Artigas, do Paulo Mendes), e chegava a ter, vamos dizer assim, uma “rixa” entre uma tribo e a outra. E o arquitecto estava em qual tribo? Eu transitava entre as duas tribos, tinha amigos e parceiros de trabalho dos dois lados. E é uma coisa que acontece com a gente até hoje, temos uma coisa de não querer assumir uma tendência, não querer assumir o dogma, não aceitar essa posição. Já os seus anos académicos fazem parte de um outro momento, posterior, de maior desligamento das questões ideológicas, de uma diversidade muito grande de caminhos e até de certa aleatoriedade. Qual era o “espírito de época” entre os estudantes? Acho que o espírito da época era de retomada. Queríamos reconquistar a importância da arquitetura no cenário nacional. Esta tentativa nos levava a caminhos múltiplos e muitas vezes desencontrados, mas havia em comum o sentimento de que a atividade de projetação deveria ocupar o centro das atenções na universidade. A idéia de que a arquitetura deveria sempre observar sua função social, defendida principalmente pelo Artigas, era também um conceito amplamente aceito entre os estudantes. Também acho que a nossa geração pegou a retomada do desenho como solução, digamos assim. Acho que se tentava incorporar a questão social no processo de desenho. A vossa geração académica parece ter assumido um sentido crítico e arquitectónico de maior comprometimento com o seu tempo e com a escola. Estar engajado num projecto académico passa a ser meio e termo para a discussão da condição académica e disciplinar da arquitectura? Seria esta uma mostra de maior consciência e responsabilidade com o seu tempo? Não necessariamente, acho que tinha uma vontade grande de fazer projeto. Depois da intervenção do regime militar, passou-se um tempo sem fazer projeto, havia uma identificação entre quem desenhava e os que estavam a serviço da ditadura. A nossa geração se desprendeu disso, e também dessa ideologia tão rígida. Era como se a energia estivesse canalizada na ideia de fazer projeto. Era o engajamento do projeto. Neste sentido, qual a importância das actividades e publicações académicas, particularmente a revista Caramelo, como suporte para o ensino de Arquitectura dentro da FAU-USP neste período? A Caramelo era a “turma da laje plana”! São todos meus amigos, e eu de certa forma também sou da “turma da laje plana”. Era a defesa de uma corrente, de uma maneira de pensar, sem dúvidas. Alguns alunos idolatravam, já os da outra turma tinham muitas reservas. Eu cheguei a colaborar com a revista, fiz ilustrações e meu projeto de formatura foi publicado, mas


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nunca participei da elaboração. Mas a publicação da revista Caramelo tinha para nós um papel simbólico: mostrava que os alunos estavam interessados em discutir as questões de projeto e tinham a motivação para fazê-lo. Ajudava a posicionar no centro do debate as questões de projeto de arquitetura ao mesmo tempo em que colocava em contato grupos distintos que haviam se formado dentro e fora da FAU. Acredito que a publicação da Caramelo contribuiu para a coesão da nossa geração como estudantes e logo como arquitetos. Os arquitectos formados na FAU-USP em meados da década de 1980-1990 possuem afinidades muito particulares. Estariam estas conformidades evidenciadas por um percurso académico semelhante e talvez marcadas pela relação aluno/professor com os mestres da escola? O que perdura deste convívio? O sentimento de que talvez estejamos juntos retomando um projeto muito bonito de se fazer uma arquitetura que contribui para a construção da nossa cultura e que foi drasticamente interrompido pelas circunstâncias políticas é, certamente, uma coisa que nos une. É uma retomada e ao mesmo tempo uma renovação, portanto temos em comum um objetivo comum de fundo mas com a liberdade e até o compromisso de buscar novos caminhos. Saindo do mundo acadêmico para o profissional, acho que essas relações de alguma forma se aproximaram. Eu tenho contacto com alguns professores até hoje. O Paulo Mendes da Rocha e o Eduardo de Almeida, que para as nossas gerações foram uma espécie de patronos ideológicos, ídolos, estes continuam sempre presentes, em uma relação de amigos. Outra característica marcante da vossa geração académica é o contacto e a experiência que desenvolveram em gabinetes de ex-professores e conceituados arquitectos portugueses ou estrangeiros logo após a formação. Que influências subsistem resultantes dessa colaboração? Marcelo e eu trabalhamos com grandes arquitetos paulistas que haviam sido nossos professores na FAUSP. Esta influência é para nós uma referência permanente. Independentemente dos caminhos ou soluções que encontrarmos em nosso trabalho a maneira de pensar a arquitetura estará sempre impregnada desta formação. Da minha experiência em Barcelona ficaram duas coisas interessantes. O Emilio Donato, embora a arquitetura dele não pareça nada com a nossa, ele conhecia a FAU, e tinha uma admiração pela faculdade, para mim isso foi marcante. E a outra foi a dinâmica de trabalho, a forma como o escritório se organiza. Não sei se no Porto é assim, mas na FAU-USP existe uma lacuna grande sobre a questão concreta da profissão, como que é um arquiteto que trabalha num escritório, como são as relações com os clientes, fornecedores, não há essa abordagem, o foco é quase que puramente técnico. Você sai capaz de fazer um atelier (artístico), mas não um escritório. E no escritório do Donato era muito bem organizado, estruturado, tinha uma produtividade, tinha metas, mas era um escritório pequeno, do tamanho desse aqui. Eu já tinha experiência de alguns escritórios aqui, são todos uma bagunça, como o nosso, até hoje é uma bagunça! Desde que a gente chegou de lá a agente tenta fazer mais ou menos o que eles fazem, melhoramos mas não chegamos lá ainda! Em 1991 decorre o concurso para o Pavilhão do Brasil na Expo 92 - Sevilha. Na altura participou como colaborador da equipe do Via Arquitetura, que teve o projecto premiado, mas não ganhou. Como vê o projecto vencedor e a polémica gerada? E como a vossa proposta de projecto se inseria no contexto da época? Eu diria que o projeto vencedor tinha duas facetas. O significado, o resgate do desenho moderno da Escola Paulista, que estava deixado de lado até por conta da repressão. Por outro lado era um projeto que, pela própria natureza construtiva, não atendia bem os requisitos do edital (existia a necessidade de se construir em 3 meses) e isso abriu espaço para muita discussão. Parte dessa discussão tinha fundamento , mas claro que no bojo desta abertura havia muita gente com ressentimento ideológico, que era contra a Arquitetura Paulista, então acho que se criou uma grande confusão, inclusive porque no júri estava o Paulo Mendes da Rocha. E no fundo, o projeto do MMBB ( que na época se chamava Via Arquitetura), respeitava mais o edital, era uma estrutura metálica, porque o edital exigia uma construção muito rápida e que pudesse eventualmente ser desmontada, então eu acho que nesse sentido, aquele projeto era mais coerente com o pedido. Que me lembre, quase todos trabalharam com elementos estruturais desmontáveis, o do [Marcos] Acayaba por exemplo foi premiado e era uma estrutura de madeira e aço.


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Como se deu o trabalho independente? Quais factores, económicos, sociais e culturais, influenciaram a organização profissional através de um gabinete de trabalho colectivo, em oposição à produção arquitectónica de autor? Seguindo os passos de nosso mestres montamos nosso próprio escritório de arquitetura. Estávamos ainda estudando quando decidimos montar nossa primeira associação e, na FAU-USP, desenvolvíamos os trabalhos acadêmicos em equipes, discutíamos o trabalho um do outro. Era portanto natural para nós na ocasião, que se trabalhasse em equipes, este era o modelo de trabalho que conhecíamos. Além disso descobrimos, ainda na faculdade, que em equipe teríamos melhores condições de enfrentar as condições adversas pela qual passava a arquitetura no cenário nacional. Era uma situação difícil, adversa, era uma retomada, tinha que se repensar os processos, as linguagens, e é um fardo pesado para fazer sozinho. De certa forma, para mim é um pouco sintomático que o Angelo Bucci, que projeta sozinho, por exemplo, seja tão facilmente identificável com o projeto moderno e um escritório como o UNA ou o nosso, não seja tão claro isso, tem a herança mas tem uma outra complexidade. O projecto carrega muitos dos pensamentos, ideologias, e personalidade de seu autor. Como lidam com as diferentes características individuais em oposição à vossa imagem colectiva construída? Não vou dizer o que é melhor ou o que é pior, mas acho que o trabalhar sozinho abre a possibilidade para uma manifestação autoral, um trabalho mais emotivo, mais expressivo do ponto de vista pessoal, isso beira mais ao artístico eu diria, como o Niemeyer. Quando você trabalha coletivamente você explora mais profundamente as questões estratégicas, estruturais, um processo que trás uma arquitetura mais elaborada e mais completa, nesse sentido, e o projeto tende a ser uma resposta mais racional aos problemas que ele veio resolver. Acredito que a nossa obra carrega justamente os pensamentos, as ideologias e as personalidades de ambos os arquitetos que participaram de sua concepção: por vezes através de uma superposição e as vezes por meio da sinergia. Qual a diferença entre conviver na universidade com um arquitecto cuja obra se admira e o convívio com ele no desenvolvimento de projectos profissionais? Pode-se afirmar que esta relação seria uma espécie de “influência buscada”? Acredito que a principal diferença está no fato de que a referência acadêmica observa o resultado de sua obra e a relação profissional observa seu processo de trabalho. Sem dúvida poderíamos considerar esta relação uma “influência buscada”, uma vez que o que se busca ao trabalhar com um grande arquiteto é apreender sua maneira de pensar e de fazer. A FAU-USP sempre possuiu uma tradição muito pragmática, onde os professores, na sua maioria arquitectos-profissionais, conciliavam actividade profissional, pedagógica e crítica (como Artigas). Acredita no necessário equilíbrio entre ensino, actividade profissional e actividade crítica? Como estas três vertentes se relacionam na sua actividade profissional? Acho que essas partes são inter-dependentes. Não posso crer que um arquiteto que não desenvolve a atividade de projeto profissionalmente possa ser um bom professor para a disciplina de projeto. O ato de projetar, na nossa maneira de ver, é em si um exercício permanente de crítica e pesquisa pois envolve, por exemplo, a análise crítica de projetos anteriores e ou similares, a pesquisa de novas tecnologias e materiais e etc. Particularmente acredito que a participação dos arquitetos atuantes na educação é fundamental, acredito que a associação do ensino e da prática fortalece o coletivo dos arquitetos, envolvendo tanto críticos e pesquisadores como arquitetos-profissionais. A Escola da Cidade tem um pouco já essa tendência, tanto que todos os professores, de projeto da escola, são 24 professores, todos são arquitetos atuantes com seus escritórios e gabinetes. Na prática é corrido, porque concretamente não há uma integração prática entre as atividades. Por exemplo, esse ano eu orientei uma aluna de TFG [Trabalho Final de Graduação] e fiz os atendimentos todos dela aqui no escritório, ela veio, viu como o escritório funciona, conversou comigo, com o Marcelo [Morettin], com os arquitetos aqui do escritório também, então, de uma maneira informal, a gente promoveu um passo no sentido de uma interação maior e mais completa entre o ensino e o trabalho, e acho que esse é um caminho muito importante, que deve ser estudado e viabilizado. Quanto as aulas, é uma questão de agenda, achar brechas na agenda para não deixar o escritório parar. Do ponto de vista do conteúdo já existe uma integração, esse escritório faz arquitetura aqui em São Paulo e as questões que são discutidas na


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universidade também são sobre a cidade. É uma retro-alimentação mútua e constante, as coisas vão daqui para lá e vêm de lá para cá, e acho que essa integração é fundamental. A geração anterior a 1980 é muito marcada por um “projecto de futuro”, e toda a actividade era desenvolvida na busca coerente deste projecto, possuíam referências sólidas e acreditavam nessas referências. Acha que a vossa geração teve/tem um “projecto de futuro”? Eu acredito que não se pode pensar arquitetura se não se tiver um “projeto de futuro” ou alguma motivação semelhante. Isto vale tanto para a produção projetual quanto para a pesquisa como para a crítica arquitetônica. Mesmo que seja para projetar contra um futuro específico, como diria Argan. Existia um moderno e um não-moderno que se fazia, mas se existe um ponto de convergência era contra esse destino pós-moderno do Venturi. Continuamos, até hoje, projetando contra isso. Finalmente, como definiria a vossa arquitectura hoje? Acredito que nossa produção é parte do cenário que compõe a Arquitetura Paulista Contemporânea e considero extremamente difícil, para nós, definirmos a arquitetura que fazemos. Não me sentiria confortável me arriscando a realizar tal tarefa. Mas posso dizer que temos uma certa paixão pela razão. Acho que a beleza que buscamos na nossa arquitetura (e temos que procurar muito ainda), é de revelar a razão por trás das coisas, a lógica, a intenção, tentar discorrer através da construção, da arquitetura, qual é a função da arquitetura, social, econômica, etc. E essa busca, que as vezes tentamos fazer até de uma forma radical, é que eu acho que norteia os nossos projetos, e vamos desenvolvendo algum repertório nesse sentido. O uso de componentes prontos, industrializados, num discurso de evolução da sociedade a partir de um processo industrializado, isso só falando do sistema construtivo. Espacialmente também buscamos essa mesma maneira de comunicar, como a clareza ou a disposição do espaço se apresenta como uma proposta de solução para uma sociedade que se organiza, que se respeita, que é inclusiva, então acho que essa é a nossa ambição como arquitetura. Anteriormente, usei o termo “influência buscada” para identificar a busca pessoal de referências conceptuais, mas também para o desenvolvimento da prática arquitectónica. Qual seria a vossa influência hoje? Quais arquitectos/arquitecturas vos influenciam/despertam interesse hoje? Eu acho que isso já esta bastante misturado, mas poderia identificar duas coisas que servem como exemplo: por um lado, uma coisa que é permanente, desde a formação na FAU, que é a admiração e o respeito por essa arquitetura paulista moderna, como um exemplo de boa postura e até de heroísmo. Essa é a nossa base, todas as outras referências agem como interferência nessa referência matriz de formação. A medida que conhecemos a arquitetura mundial vamos sofrendo muitas interferências. Poderia citar alguns exemplos como o Paulo Mendes da Rocha e, certamente, alguns colegas contemporâneos aqui de São Paulo, a dupla francesa Lacaton & Vassal, com certeza, o Glenn Murcutt na Austrália, que procura trabalhar a arquitetura racional com o mínimo esforço para conseguir o máximo de resultado (essa frase é dele, “less material and plus labor”, que acho que já é uma releitura do Mies Van der Rohe), acho que tem muito a ver com a nossa arquitetura também. Outro que eu acho que tem feito bastante interferência na nossa formação paulista moderna, é o Koolhaas, particularmente pela lógica dele de projeto, pelo menos a lógica declarada que passa pela manipulação do programa. As vezes eu acho que nem tudo é assim tão real nessa história, mas não deixa de ter apresentado um raciocínio muito interessante a ser incorporado. E cabe a nós fazer essa distinção.


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Conversa com Fernanda Barbara Arquiteta (1994), uma das responsáveis pelo atelier UNA Arquitetos. (Realizada em 10-01- 2010) Os professores que compunham o corpo docente e leccionavam em 1980-1990 foram formados numa época em que a linguagem da arquitectura esteve muito associada a uma espécie de militância, à ideia de que a sociedade se devia construir. Quando ingressou na FAU-USP, esta postura era ainda muito marcante entre os professores? Na FAU sempre existiu uma diversidade grande de professores. A FAU aparece ter uma unidade maior do que de fato ela tem. Acho que a questão política sempre esteve ali presente porque, das faculdades da USP, talvez ela tenha guardado de uma forma mais marcantes traços do que foi o período da ditadura, especialmente da reforma acadêmica e as implicações disso na carreira acadêmica. Porque? Primeiro porque acho que a FAU, antes da ditadura, não tinha uma carreira acadêmica tal como as outras faculdades, com mestrado, doutorado, livre docência, etc. Na verdade, durante a ditadura, a FAU foi obrigada a aderir a uma determinada carreira, diretamente vinculada com a estrutura burocrática e administrativa da escola e implementada justamente no momento em que professores importantes da FAU estavam exilados e/ou cassados. Os professores que lá estavam se titularam rapidamente, quase do dia para a noite, e quando aqueles professores voltaram não foram recebidos prontamente, com o mérito que deveriam. Enfim, a história mais conhecida é a do [Vilanova] Artigas (que além de ter feito o edifício da FAU é um dos responsáveis pela concepção do currículo acadêmico, junto com outros professores) que volta como auxiliar de ensino e passa por um processo muito longo e penoso para que ele pudesse incorporar a titulação que, sem nenhuma dúvida, seria merecida. Quando nós lá estávamos, a FAU ainda estava marcada por uma discussão pessimamente importada sobre o pós-moderno, felizmente ninguém levava muito a sério, porque essa discussão não estava de fato muito bem colocada, mas ela existia não como uma questão colocada para os alunos dentro da FAU, ela existia porque estava no entorno, nas revistas de arquitetura. Já os seus anos académicos fazem parte de um outro momento, posterior, de maior desligamento das questões ideológicas, de uma diversidade muito grande de caminhos e até de certa aleatoriedade. Qual era o “espírito de época” entre os estudantes? Como disse, quando entrei na FAU havia uma diversidade grande entre os professores (como acho q sempre houve), e entre os alunos também. Acho que tive muita sorte com a minha turma, muitos colegas desde que ingressaram na escola já tinham alguma consciência de onde estavam, da história da FAU e de como a escola funcionava naquele momento, tendo consciência assim de algumas questões e já com algumas questões específicas em mente. Quando digo isso estou falando de um grupo, também os alunos da FAU são muito heterogêneos, então diante do meu grupo de colegas por exemplo, o pai do Fernando Viégas é arquiteto, o Fábio [Rago Valentim] tinha trabalhado na Fundação [Vilanova] Artigas, quer dizer, muitas pessoas que já tinham outro contacto com a arquitetura, antes de entrar para a FAU. A vossa geração académica parece ter assumido um sentido crítico e arquitectónico de maior comprometimento com o seu tempo e com a escola. Estar engajado num projecto académico passa a ser meio e termo para a discussão da condição académica e disciplinar da arquitectura? Seria esta uma mostra de maior consciência e responsabilidade com o seu tempo? Acho que se trata da consciência do processo de inserção da arquitetura na política e na cultura e, ao mesmo tempo, da eleição (que se desenvolve com o tempo) de questões, da eleição da arquitetura que tínhamos interesse em estudar. Frequentando diariamente aquele edifício era difícil aceitar a crítica que tratava aquela arquitetura como velha e ultrapassada e ver o que as revistas brasileiras elegiam como a boa arquitetura naquele momento. Neste sentido, qual a importância das actividades e publicações académicas, particularmente a revista Caramelo, como suporte para o ensino de Arquitectura dentro da FAU-USP neste período? Para o meu grupo foi de grande importância fazer a revista Caramelo, como uma possibilidade de discutir a escola, tanto as questões que vivenciávamos naquele momento, como sua história, desde sua formação, até as determinações da ditadura


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militar. Possibilidade de discutir também a produção da arquitetura contemporânea, resgatar questões e obras que nos interessavam da arquitetura moderna brasileira e os projetos que os alunos estavam fazendo dentro da escola. Publicamos TFGs, trabalhos das disciplinas de projeto, sempre com textos dos alunos (do próprio autor dos projetos ou colegas que desejassem comentá-los). Procurávamos trazer artigos de outras áreas da cultura, que nos interessavam e compunham um cenário relevante para nós: publicamos artigos sobre cinema (com a colaboração assídua do meu amigo Tales Ab’Saber), artes plásticas e gráficas (incluindo a própria Expofau), fotografia e poesia. Certamente com propostas bem sucedidas e outras nem tanto. O importante é que a Caramelo foi uma oportunidade de discutirmos as publicações de arquitetura e seu papel na condução (política, poderíamos dizer) dos debates sobre as obras e os arquitetos brasileiros. Uma questão que nos interessa até hoje. Qual foi o ponto de partida para a definição e estruturação da revista Caramelo? O que moveu a revista, e seus primeiros editores? É claro que os objetivos de se fazer uma revista, em grande parte, são reflexos das mesmas questões que interessam a todo estudante de arquitetura. Mas me parece que existiu uma intenção direta de refletir e nos posicionarmos sobre a FAU-USP e arquitetura brasileira, que de forma evidente, guardava (e ainda guarda) as marcas da ditadura. Começamos a fazer a revista com um objetivo principal, o de organizar um número especial da revista dedicado ao histórico da FAU, que seria a continuidade do histórico publicado na revista Desenho. Conseguimos fazer esse histórico na Caramelo nº 6, a última revista que esse grupo original editou. Tínhamos o compromisso com nós mesmos de fazer essa edição e a gente acha, até hoje, que é a revista mais importante que fizemos, é um histórico muito singelo mas que resgata essas questões importantes de formação, ou de determinações ao longe de sua história, que marcaram de forma decisiva a escola. Apesar das mazelas burocráticas, tivemos a oportunidade de estudar em uma escola com uma estrutura de grande valor: uma biblioteca maravilhosa, um ótimo laboratório de programação gráfica (LPG) e uma gráfica que, é importante dizer, nos deram um apoio irrestrito para a execução da Caramelo. Precisamos reforçar nosso agradecimento aos funcionários da FAU, que viabilizaram a Caramelo. Mas é claro que além dessa estrutura, tivemos o privilégio de ter aulas com grandes professores: Paulo Mendes da Rocha, Abraão Sanowicz, Edgar Dente, Eduardo de Almeida, [Antônio Carlos] Barossi, Regina Meyer, Ana Beluzo, entre outros. Como a revista foi recebida entre professores e alunos da época? A revista era aberta para quem quisesse entrar. Se não me engano, no corpo editorial da Caramelo nº 1 tinham 6 ou 7 pessoas, lá pelas tantas tinham 40! Então, pelo que a gente consegue perceber, teve uma boa aceitação, os alunos se entusiasmavam e, para sair uma Caramelo a cada 6 meses, as reuniões eram diárias, na hora do almoço. Muitos alunos não estavam no corpo editorial mas colaboravam escrevendo sobre projetos, mandando poesia, era simpático. Penso que foi interessante para um debate de maneira geral. Os arquitectos formados na FAU-USP em meados da década de 1980-1990 possuem afinidades muito particulares. Estariam estas conformidades evidenciadas por um percurso académico semelhante e talvez marcadas pela relação aluno/professor com os mestres da escola? O que perdura deste convívio? Eu acho que você pode dizer mais do que a gente. Eu não diria que não. Fizemos essa exposição, Coletivo, e conversamos muito entre nós justamente sobre essa questão que se fala. No princípio eu diria que sim, mas qual é o limite disso, é melhor que alguém de fora diga. Porque ao longo da experiência de fazer um projeto, você não pensa nisso, faz o que acha que tem que fazer. Projeta com uma lógica, e talvez essa lógica tenha sido construída observando aqueles que nós elegemos como mestres. O que nós somos como arquitetos, é fruto dessas possibilidades que nós tivemos, do contacto, da maneira de compreender a arquitetura, das histórias que nós ouvíamos, enfim, dos professores que estavam na FAU, que foram nossos orientadores, que tem uma história enquanto arquitetos muito relevante, e os estágios que nós fizemos depois. Nós entendemos que o Brasil produziu muito boa arquitetura e temos um vínculo forte com isso, sem deixar em nenhum momento, desde o primeiro ano, de ver muito a produção internacional. Todo mundo quer ver boa arquitetura, prestar atenção, aprender com tudo o que se faz, isso é óbvio. E acho que essa sua pergunta é muito pertinente nesse sentido, porque essa história forte faz parte da nossa vida, ter estudado na FAU, ter contacto com os professores, e não acho que seja uma exclusividade da FAU, de maneira nenhuma. Mas vejo com muita tranquilidade, muita felicidade, estar inserido no


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contexto da produção brasileira. Outra característica marcante da vossa geração académica é o contacto e a experiência que desenvolveram em gabinetes de ex-professores e conceituados arquitectos portugueses ou estrangeiros logo após a formação. Que influências subsistem resultantes dessa colaboração? Mais do que influência é um aprendizado precioso. A oportunidade que tivemos de trabalhar com esses arquitetos foi um privilégio. Em arquitetura, trabalhar talvez seja a maneira mais eficiente de aprender! Fiz um estágio no escritório do arquiteto Fernando Távora, e foi uma experiência muito feliz, uma sorte. Quem me auxiliou foi a Regina Meyer e o [João Walter] Toscano. Enfim, o arquiteto Távora era de uma generosidade imensa, me recebeu com muito carinho no escritório dele, tenho as melhores lembranças e foi muito interessante, em diversos aspectos. O Távora era um arquiteto que tinha uma participação grande na vida acadêmica e um vínculo muito forte com a cidade do Porto. Então ali eu pude ver uma relação distinta que os arquitetos tinham efetivamente com o desenvolvimento da cidade, o respeito com que ele era tratado e como era solicitado, inclusive pelas instâncias públicas, e a maneira como se desenvolvia o projeto. Trabalhei no estudo de Viana do Castelo, quando o projeto estava no início, a mão, no momento ainda era um plano urbano, não edifício especificamente. Foi em 1994, eu fiquei pouco tempo, mas nesse momento conheci o Alexandre Alves Costa e o Sérgio Fernandez que são até hoje amigos muito queridos. Eu não sei se foi dessa experiência, mas eu tenho uma admiração profunda pela obra do Siza. Quando nós falamos que temos uma lógica de projetar, o Siza tem uma outra lógica e é sempre surpreendente. Ali começou um contacto que hoje mantemos com os arquitetos portugueses, de apreciar uma maneira distinta de projetar, uma maneira em que se trabalhava muito com as maquetes, e o Távora falava muito também do tempo que se faz um projeto, isso também é uma coisa muito marcante. Em 1991vencem o concurso para o Pavilhão do Brasil na Expo 92 - Sevilha. Um grupo de novíssimos arquitectos com um projecto aparentemente “sossegado”, face às discussões da época. No entanto a reacção ao resultado do concurso foi bastante agressiva. Como a vossa proposta de projecto se inseria no contexto da época? De fato, “sossegado” não é um adjetivo que se possa aplicar ao projeto para o Pavilhão de Sevilha. O grupo tinha plena consciência do que significava fazer um projeto como aquele em 1992 para Sevilha. Era uma atitude afirmativa diante do se estava fazendo no início dos anos 90 no Brasil. Imaginava-se que aquilo seria uma exceção, de um conjunto de uma produção que se faria naquele momento e ele era, bobagem dizer radical, ele era o que se achava que deveria ser, e eu acho o projeto extremamente oportuno para aquela situação. Quando saiu o resultado do concurso sabíamos muito bem a polêmica que daria (eu inclusive, que era ainda uma aluna de segundo ano!). Imaginava-se que não seria fácil, como não foi, para muita gente admitir aquele projeto como vencedor. É muito interessante rever hoje o que aconteceu no concurso de Sevilha, como os discursos mudaram de lá para cá. E se olharmos o conjunto dos projetos de Sevilha, a gente vê que, tinha um imbróglio mesmo, faltava mais do que um debate conceitual bem colocado. Um momento de crise é sempre um momento importante na história de qualquer cultura, mas ali eu não sabia se era mais crise ou euforia. Como diria o Roberto Schwarz, “as ideias estavam fora de lugar”! Então, acho que havia uma confusão, tanto na discussão, no debate intelectual, quanto na produção, salvo alguns projetos muito interessantes, claro, projetos de valor. Como se deu o trabalho independente? Quais factores, económicos, sociais e culturais, influenciaram a organização profissional através de um gabinete de trabalho colectivo, em oposição à produção arquitectónica de autor? Eu acho que o nosso escritório se formou, sem dúvidas, a partir de um outro trabalho coletivo: a Caramelo. Certamente nossa aproximação profissional se deveu através da revista. Mas também o nosso contacto pessoal, começamos a trabalhar e as vezes nos juntávamos no mesmo escritório. Também fizemos o trabalho de final de curso juntos, a partir disso começamos a trabalhar como um grupo, e assim as coisas foram se encaminhando. O projecto carrega muitos dos pensamentos, ideologias, e personalidade de seu autor. Como lidam com


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as diferentes características individuais em oposição à vossa imagem colectiva construída? Existem concessões que precisam ser feitas, mas as divergências sobre os projetos normalmente se dão em relação a detalhes e não a maneira de enfrentar o problema ou ao partido do projeto. Não me lembro de alguém achar que o enfrentamento do problema deveria se dar de outro modo. Lógico que as vezes se inicia um processo de projeto e aparecem caminhos distintos, mas as decisões tomadas não são contra o gosto de ninguém. Eu acho que para nós isso não é um problema. A FAU-USP sempre possuiu uma tradição muito pragmática, onde os professores, na sua maioria arquitectos-profissionais, conciliavam actividade profissional, pedagógica e crítica (como Artigas). Acredita no necessário equilíbrio entre ensino, actividade profissional e actividade crítica? Como estas três vertentes se relacionam na sua actividade profissional? Eu acho fundamental, não dá para fazer uma escola de arquitetura que não tenham arquitetos atuantes, trabalhando. Eu dou aulas na FAAP [Fundação Armando Álvares Penteado] e na Escola da Cidade. Na verdade todos nós damos aula na Escola da Cidade, os quatro sócios do UNA [Critiane Muniz, Fábio Rago Valentim, Fernanda Barbara e Fernando Viégas]. Particularmente, a Escola da Cidade tem um corpo de professores arquitetos atuantes muito grande, eu diria que os professores de projeto todos. E não sei como poderia ser diferente. Atualmente estou coordenando uma disciplina na Escola da Cidade que se chama estúdio vertical, uma disciplina interessante. É um projeto desenvolvido em grupo, em que se juntam alunos dos vários anos (2º, 3º, 4º e 5º) e formam grupos, para desenvolver um projeto. , Em geral são projetos de escala urbana, e nós aprendemos muito com os temas, com a maneira de os alunos trabalharem, com as discussões que são levadas e trazidas. Com certeza há esta complementaridade. A geração anterior a 1980 é muito marcada por um “projecto de futuro”, e toda a actividade era desenvolvida na busca coerente deste projecto, possuíam referências sólidas e acreditavam nessas referências. Acha que a vossa geração teve/tem um “projecto de futuro”? É uma pergunta muito difícil. A nossa geração tem se dedicado a uma grande questão: as cidades brasileiras, e especialmente a cidade de São Paulo, que é uma das maiores cidades do mundo e passou por transformações imensas nas últimas décadas, forjando um conjunto de problemas em grande escala. Na verdade, historicamente, o trabalho do arquiteto tem um vínculo natural com a questão urbana, o lugar em que se insere. Diria que há uma dedicação no sentido de enfrentar diretamente questões emergenciais de São Paulo, um campo de atuação muito limitado. Mas isso não resume o nosso trabalho. Enfim, nós temos que ter algo a dizer sobre isso e temos trabalhado muito sobre isso. Temos feito alguns projetos na escala da cidade, de inserção urbana, de enfrentamento de problemas específicos (fizemos muitos trabalhos na área de transporte) ou espaços culturais diretamente ligados a espaços públicos e, do ponto de vista acadêmico, vários trabalhos se desenvolvem na cidade de São Paulo. Finalmente, como definiria a vossa arquitectura hoje? O trabalho do UNA é parte de tudo isso. Inseridos, mas não intencionalmente, em parte dessa arquitetura brasileira, desse modo de enfrentar as questões e as soluções espaciais. E a condição de estarmos aqui, no centro, de frente para o Copan [Edifício Copan, construído por Niemeyer em 1951], inseridos numa questão complexa do ponto de vista da locomoção das pessoas, da carência habitacional, das condições dramáticas e equivocadas que hoje a cidade apresenta. E esta é uma intenção nossa, as questões que nos interessam na verdade, passam pelas questões públicas, invariavelmente, e de fato não é fácil. É muito difícil construir no Brasil, fazer um projeto executivo [de execução] e conseguir implementá-lo.


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Conversa com Martin Corullon Arquitecto pela FAU-USP (2000), co-responsável pelo atelier METRO Arquitetos Associados. (Realizada por e-mail em 26-10-2009 e pessoalmente em 13-12- 2009)

Os professores que compunham o corpo docente e leccionavam em 1980-1990 foram formados numa época em que a linguagem da arquitectura esteve muito associada a uma espécie de militância, à ideia de que a sociedade se devia construir. Quando ingressou na FAU-USP, esta postura era ainda muito marcante entre os professores? Uma primeira observação: eu ingressei na FAU em 1991 e estive por lá na década de 90. E sou o mais jovem das pessoas a quem você enviou a entrevista. No entanto os professores a que você provavelmente se refere estavam todos lá ainda, como Paulo Mendes da Rocha, que foi meu professor no terceiro ano e orientador do TFG [Trabalho Final de Graduação], Eduardo de Almeida, Joaquim Guedes, Marcos Acayaba etc. Mas quanto à pergunta, sim essa postura era marcante e ainda é, ainda que de forma diluída. No entanto não considero que minha geração, ao contrário da atual, tenha sido especialmente engajada. Um certo pragmatismo era muito comum entre os alunos, talvez porque o próprio discurso dos professores fosse mais retórico que efetivo. Eu acho que aquele legado todo ficara um pouco abafado, isso é o que eu sentia lá, tanto é que a nossa relação com essa geração começou de fato quando o Paulo apareceu. O meu 3º ano foi o primeiro ano que o Paulo voltou a dar aulas para os primeiros anos (ele orientava os trabalhos de fim de curso), e foi um contraste enorme com o que eu tinha visto até então, nos dois primeiros anos e de alguma maneira contaminou um pouco, o discurso principalmente, a forma dele dar aulas era muito diferente de qualquer outro professor e é muito própria dele, muito particular, acho que não estava nem dentro nem sequer de um projeto pedagógico ou didático ou de um estilo, é forma dele de ser. Há um certo tom de confronto hoje na FAU e acredito que as causas disso sejam justamente a inadequação de um discurso desgastado a respeito da ação social do arquiteto aos dispositivos efetivamente ao alcance do exercício da profissão no campo contemporâneo de atuação. No entanto esse discurso é parte fundamental do ethos dessa escola, a postura de engajamento social muito forte, isso estava sempre latente, acho que poderia estar meio adormecido, mas com o processo de redemocratização do Brasil, as eleições, [Fernando] Collor, tudo isso veio com muita força. Já os seus anos académicos fazem parte de um outro momento, posterior, de maior desligamento das questões ideológicas, de uma diversidade muito grande de caminhos e até de certa aleatoriedade. Qual era o “espírito de época” entre os estudantes? Considero que a escola de [Vilanova] Artigas e Paulo Mendes da Rocha foi uma grande influência para nossa geração. Sinto que no período em que estive na FAU começou a se gestar uma espécie de ressurgimento do cânone da escola paulista, que, na geração imediatamente anterior funcionava mais em sentido negativo e justificava a aleatoriedade a que você provavelmente se refere. Fora do âmbito da arquitetura era também um momento de transição importante para o Brasil e de fato não penso que houvesse o sentido de pertencer a um ‘projeto’, seja de pais, de nação, arquitetônico... Hoje consolidou-se um paradigma, com aspectos mais pragmáticos que os dos anos 60 ou 70 e menos superficiais que o dos anos 80 e ainda que carregue os problemas de um cânone formado de forma pouco atenta ao debate no resto do mundo e em um mercado de arquitetura quase inexistente, mantém a alta qualidade dessa pequena produção. Isso pressentia-se nos meus anos de FAU. A vossa geração académica parece ter assumido um sentido crítico e arquitectónico de maior comprometimento com o seu tempo e com a escola. Estar engajado num projecto académico passa a ser meio e termo para a discussão da condição académica e disciplinar da arquitectura? Seria esta uma mostra de maior consciência e responsabilidade com o seu tempo? Acho que não, eu pelo menos não tinha consciência disso como um momento de marco, era mais ou menos coberto, eu encarava mais como uma descoberta minha de um universo que estava lá e eu associei. Minha impressão sobre a questão que você levanta é que é há uma relação com esse mesmo cânone a que me referi acima, no sentido de incorporar modelos


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de ação e debate das gerações anteriores. E também por que não há canais de atividade fora da prática cotidiana constituídos com a densidade necessária para amparar debates efetivamente interessantes, como publicações, exposições, bienais, concursos, e sim uma posição da disciplina no debate cultural geral muito diminuído. E a atuação profissional era muito abatida, a sensação que dava era que se tinha pouco campo para exercer a arquitetura de fato, independente da ideologia que tivesse por trás, então isso também dificultava esse engajamento. Os arquitectos formados na FAU-USP em meados da década de 1980-1990 possuem afinidades muito particulares. Estariam estas conformidades evidenciadas por um percurso académico semelhante e talvez marcadas pela relação aluno/professor com os mestres da escola? O que perdura deste convívio? Considero que as afinidades mais importantes são de ordem muito geral, de visão de mundo e pelo impacto que essas figuras tiveram em nossa formação, de forma muito particular para mim Paulo Mendes da Rocha. Eu acho que o Paulo é uma figura muito forte, porque ele desfaz todas essas fronteiras. Então, no meu caso particular, era uma identificação com a postura dele, não só nos aspectos docentes mas profissionais também, acho que é afinidade que se coloca a vários planos e isso que faz tão sedutora a presença dele. Em termos arquitetônicos são fundamentalmente afinidades de processo. Um método projetual ou dispositivos de projeto comuns e repertórios de soluções compartilhadas perduram desse convívio. No entanto, considero redutoras as afinidades formais que sem dúvida podem ser identificadas entre a nossa geração. São expressão dos aspectos negativos do cânone a que me referi anteriormente. Meu convívio com os ‘mestres’ da escola continua intenso, na figura de Paulo Mendes da Rocha com quem tenho colaborado frequentemente nos últimos anos e em quem vejo, no atual panorama da arquitetura brasileira, a atitude mais livre e ‘jovem’ no que se refere aos aspectos formais, apesar de ser quarenta anos mais velho que nós. Outra característica marcante da vossa geração académica é o contacto e a experiência que desenvolveram em gabinetes de ex-professores e conceituados arquitectos portugueses ou estrangeiros logo após a formação. Que influências subsistem resultantes dessa colaboração? Tive experiências profissionais radicalmente diversas. A base de minha formação profissional foi o trabalho desde 1993 no escritório do Paulo Mendes da Rocha. Estive lá como estagiário e arquiteto até 1996. Depois desenvolvi trabalhos esporádicos com ele até o ano 2000 quando fundei, com Guilherme Wisnik e Rodrigo Cervino Lopez, a METRO Arquitetos Associados [hoje composto por Anna Ferrari, Gustavo Cedroni e Martin Corullon]. Desde então colaborei também em diversos projetos do Paulo e tive um percurso de aprendizado constante da prática de projeto em todas as suas etapas e em diversas escalas. Entre meados de 2008 e meados deste ano de 2009, trabalhei em Londres no escritório de Norman Foster. Lá, além de uma riquíssima experiência de projeto em contexto diverso do nosso e em escalas muito maiores, tive contato com a alteridade máxima quanto à relação com o mercado e com novas formas de atuação, mais pragmáticas e que sem dúvida são úteis também no Brasil. Portanto os resultados dessas recentes influências ainda se farão sentir. De qualquer modo considero que o movimento de expansão para ambientes pouco familiares como os dessa experiência se ancora numa vontade de superação de algumas limitações dos paradigmas da nossa atuação profissional no Brasil. O projecto carrega muitos dos pensamentos, ideologias, e personalidade de seu autor. Como lidam com as diferentes características individuais em oposição à vossa imagem colectiva construída? Considero a disciplina de arquitetura e o trabalho de arquiteto essencialmente colaborativos e que sua principal capacidade seja a de articular saberes e interesses diversos em uma determinada organização material. Portanto uma profissão pautada na negociação permanente. Então acho que a forma de organização dos escritórios, ou a forma que a escola se organiza, na verdade é decorrência da própria profissão. Os aspectos expressivos, comumente associados à ideia de autoria, se houver, podem ser apenas uma parte desse processo, embora não creio que essa seja uma característica marcante da arquitetura paulista, ao contrário da arquitetura portuguesa contemporânea. Mas é claro que isso não ocorre sem conflitos. Dito isto creio que o agrupamento inicial dos escritórios em coletivos tem a ver com afinidade, em primeiro lugar, e como uma forma de enfrentar e compartilhar as demandas práticas da constituição de uma nova empresa em um mercado difícil. Não participei de forma direta e não compartilho dessa imagem coletiva construída. Acho que dentro de um modo coletivo de se produzir, forçou-se a criação de uma coisa que efetivamente é um processo, uma opção, uma escolha, um processo


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colaborativo e, portanto, é mais rico. Mas vejo isso, primeiro como uma questão de afinidade entre as pessoas que estão ali, e segundo é uma questão pragmática de como levar adiante uma empreitada que não é fácil, e acho que é o modo como aconteceu, é natural. O trabalho do arquiteto é sempre colaborativo, independente do nome do escritório, ou de quem é. Mesmo o Paulo, sempre teve escritório com o nome dele mas ele é altamente colaborativo no processo de fazer um projeto e isso não quer dizer que não tenha uma marca autoral fortíssima. Qual a diferença entre conviver na universidade com um arquitecto cuja obra se admira e o convívio com ele no desenvolvimento de projectos profissionais? Pode-se afirmar que esta relação seria uma espécie de “influência buscada”? Sim, no sentido que toda a influência é buscada ou se pauta antes de mais nada pela ideia de afinidade, e que a própria obra, ao ser associada a outra, anterior, a redefine. Mas isso pode-se dar tendo ou não contato direto com o ‘arquiteto’, no caso. Acredito que diferença seja que com a obra lida através de referências acadêmicas ou pelo estudo dos próprios edifícios, tem-se relação com uma construção historiográfica, em maior ou menor medida. Que sempre será mediada por uma construção intelectual externa à produção da obra, ainda que elaborada pelo próprio observador. Em uma relação de colaboração, em minha experiência ao menos, o processo de construção de um projeto é muito dinâmico e se dá em diversos níveis simultaneamente: cultural, afetivo, do cotidiano, de afinidade, e até de desenho, eventualmente. Em um jogo que pode ser aberto ou velado, de confronto ou não. O Paulo diria dialético.... A FAU-USP sempre possuiu uma tradição muito pragmática, onde os professores, na sua maioria arquitectos-profissionais, conciliavam actividade profissional, pedagógica e crítica (como Artigas). Acredita no necessário equilíbrio entre ensino, actividade profissional e actividade crítica? Como estas três vertentes se relacionam na sua actividade profissional? Realmente eu me coloco um pouco fora dessa questão pelo fato de nunca ter dado muita ênfase à atividade acadêmica, especialmente no sentido de participar ativamente de uma escola, apesar de já ter dado aulas. Acredito que o ensino seja um lugar para a reflexão, assim como a atividade de pesquisa ou crítica e também o projeto. Acho também que é fundamental que a prática de projeto seja alimentada pela reflexão e vice-versa. O modelo ideal para mim de atuação profissional seria que tivesse um único âmbito, onde eu pudesse juntar a produção do escritório prática, com a pesquisa e o pensamento e a crítica, que elas fossem um produto só. Ser complementar seria o ideal. Porém não creio que seja necessário estabelecer prescrições ou equilíbrios ideais. Cada prática encontra seu equilíbrio. Em minha atividade, venho conduzindo uma pesquisa mais ampla, sobre a relação entre arquitetura e infra-estrutura (que é meu projeto de pesquisa para o Mestrado da FAU), mas cada projeto acaba por se tornar um micro campo de pesquisa e experimentação, em que os temas acabam se concatenando, ainda que não tenha ainda uma reflexão que articule isso em um conjunto coerente. Mas a atividade docente não esta em meu foco imediato. A geração anterior a 1980 é muito marcada por um “projecto de futuro”, e toda a actividade era desenvolvida na busca coerente deste projecto, possuíam referências sólidas e acreditavam nessas referências. Acha que a vossa geração teve/tem um “projecto de futuro”? Não posso falar em termos genéricos, em nome de minha geração. Como parte dela posso apenas falar de minha experiência individual. Mas de todo modo eu não penso que seja possível hoje conceber a ideia de um projeto de futuro nesse sentido. Não somos mais modernos ou talvez, como diz Bruno Latour, jamais tenhamos sido. Um ideal de progresso e futuro, positivista, não cabe mais. Considero que as alternativas para produzir uma arquitetura relevante existem e estão na negociação com o conjunto de atores que compõe a sociedade, humanos e não-humanos: governos, ONGs, mercado imobiliário, financeiro, mídia e comunicação, política, meio-ambiente e ambientalismo, indivíduos, animais, etc. Nesse conjunto, a arquitetura, especialmente em sua condição material, mas também de imagem, pode ser agente de transformação. E esse papel terá que ser negociado em cada situação. Como caracteriza a arquitectura paulista contemporânea? É uma cena muito ativa, com muitos arquitetos novos de grande qualidade e que está em processo de consolidação, graças


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uma relativa efervescência do mercado e da economia de modo geral no Brasil, mesmo com a fraquíssima representação de classe e do lugar problemático no cenário cultural de modo amplo. Ainda demasiadamente auto-referente mas com sinais de abertura interessantes, as questões se colocam de uma maneira mais objetiva, começa a ter massa crítica. Eu sinto isso, agora não sei quanto tempo isso pode levar. Finalmente, como definiria a vossa arquitectura hoje? Uma arquitetura que busca, através da organização material com acento infra-estrutural, dar ênfase aos aspectos coletivos da experiência dos espaços. Não retórica ou representacional, mas sem recusar ou evitar a experimentação formal. Inclusive este é o objeto da minha pesquisa de mestrado. Procuramos transformar a infra-estrutura numa questão arquitetônica, portanto de desenho e reconhecer o papel estruturador da infra-estrutura no espaço, como usar procedimentos típicos de sistema infra-estruturais dentro da arquitetura e vice-versa. Isso tudo é um conjunto de questões e de desejos e o que a gente tenta formalizar. E isso é uma preocupação que circula, entre o Milton [Braga], o Fernando [de Mello Franco], o UNA, são questões que estão em pauta na produção desses escritórios todos, fortemente influenciadas pela visão do Paulo [Mendes da Rocha] sobre estas questões e que, portanto, fazem parte do processo da nossa prática profissional. Anteriormente, usei o termo “influência buscada” para identificar a busca pessoal de referências conceptuais, mas também para o desenvolvimento da prática arquitectónica. Qual seria a vossa influência hoje? Quais arquitectos/arquitecturas vos influenciam/despertam interesse hoje? Mais do que essa questão infra-estrutural e disposição espacial que eu acho que é muito americana mesmo, acho que tem trabalhos interessantes que são feitos fora do Brasil, numa referência mundial, que são mais interessantes devido as pesquisas formais e da relação que têm entre o objeto e a forma desse objeto, a materialidade do objeto em relação a cidade, as questões políticas e culturais. Atualmente estamos desenvolvendo um projeto para uma fábrica de chocolates da Nestlé. Uma fábrica dos anos 70, na beira da Dutra (rodovia que faz a ligação de São Paulo com o Rio de Janeiro) onde há um fluxo muito grande de pessoas e eles têm uma visitação muito mal organizada. Faremos a visitação pública dessa fábrica, juntando essas duas coisas: infraestrutura e a pesquisa formal. Queremos Resolver os fluxos, que hoje apresentam um conflito enorme entre carga e público, criar um percurso usando os recursos da transposição, passarelas, pontes, que é tipicamente infra-estrutural e, ao mesmo tempo, queremos que seja uma marca na paisagem, que ali é muito homogênea, genérica, e criar um marco também, onde entra a pesquisa puramente formal, de transformar essa infra-estrutura numa peça de arquitetura que seja um elemento de identificação, um caráter marcado e que ele expresse esse caráter. Acho que os projetos que temos feito, têm tentado essa aproximação.


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