Ricardo L. Hoffmann
Casa da MatĂŠria
Imagem de capa: © Julia Hoffmann Buratto, 2017 Revisão: Dagoberto Bordin Design gráfico: Paula Albuquerque Fotografia Ricardo L. Hoffmann: Mariana Boro Organização: Juliana Hoffmann
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) H711 Hoffmann, Ricardo L. Casa da matéria / Ricardo L. Hoffmann. Florianópolis: Edição do autor, 2018. 68p. ISBN: 978-85-923845-0-0 1. Literatura Brasileira. 2. Poesia I. Título. Ficha Catalográfica elaborada por Esni Soares da Silva - CRB 14/704.
CDD: B869.1
Ricardo L. Hoffmann 1a edição
Florianópolis Edição do autor 2018
Dedico este livro, homenagem pรณstuma, a minha esposa Marilza e a nossas filhas Leatrice, Juliana, Isabela e Samantha. Por um futuro de muita harmonia, o presente, para os humanos, sendo sempre o conflito. Ricardo L. Hoffmann
I do not doubt interiors have their interiors, and exteriors have their exteriors, and that the eyesight has another eyesight, and the hearing another hearing, and the voice another voice. Walt Whitman
Maison humide Maison ardente Saison rapide Saison qui chante. Autour de la maison il y a cet ocĂŠan que tu connais. E qui ne repose jamais. Apollinaire
What is that noise? The wind under the door. What is that noise now? What is the wind doing? Nothing again nothing. Do you know nothing? Do you see nothing? Do you remember Nothing? T. S. Eliot
elegias pela
Casa da MatĂŠria
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Apresentação — Juliana Hoffmann Péricles Prade Glaucia Olinger C. Ronald
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O pensamento do mapa extinto — pelas florestas e pela origem O diálogo em círculo na mão — pelo não nascido A oposição permanente — pelo pai A casa da matéria — pela casa e cidade labirintos O vale inexplicado — pelos rios e vales Não se volta do mergulho com a mesma pele — pelo corpo O braço emprestado em janeiro — pelo amor As possibilidades de um exercício lento — pelas metamorfoses Quem não se fizer outro Ulisses — pelas partidas Levantamos nosso medo como um dado — pela angústia O cabo de sangue — pelas conquistas A semente veloz — pelo poder criador A reunião das coisas impossíveis — pelo tempo O silêncio risca melhor seu caminho — pela morte
65 Obras do autor
Casa da Matéria: uma celebração
Os 80 anos de vida do escritor Ricardo L. Hoffmann — dedicados à família, à literatura e à sociologia do desenvolvimento —, merecem uma comemoração à altura. Publicar Casa da Matéria, obra em poesia escrita na década de 1970 e selecionada para o I Concurso de Poesia de Florianópolis, em 1977, nos pareceu uma maneira de celebrar sua arte literária, seu ofício como escritor e, ao mesmo tempo, presentear seus leitores com uma obra inédita. Escritor catarinense, Ricardo L. Hoffmann teve a maioria de seus livros publicados entre as décadas de 1960 e 1980, sendo A Superfície considerada pela crítica literária nacional o livro de ficção revelação do Brasil em 1967. Com Casa da Matéria, damos início a uma série de publicações de materiais inéditos e reedições de obras fora de catálogo, entre poemas, contos, livros infantis e peças de teatro. Juliana Hoffmann Florianópolis, 2018
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Devido à origem alemã de Ricardo Hoffmann, permito-me considerá-lo um Dichter, criador, mais especificamente poeta, aqui e agora, justificando-o também porque ele é aplaudido ficcionista, alcançado pelo espectro conceitual do termo. Daí que, fazedor desta obra, é impulsionado pela atividade poética (Dichtung), mediante energia verbal que esvurma as raízes (matéria) fundadoras do mundo (casa). Dicção elegíaca, ainda que não guarde relação direta com as elegias típicas (como as tradicionais ou rilkeanas), valendo-se de eleitos temas universais, compostos de engrenagens de tensões internas, construções discursivas, opulentas e polifônicas, resvalando, às vezes, para a seara dos poemas semânticos, expressados por uma fala poética imantada pela experiência detonadora de linguagem de significados múltiplos, frutos de enlaçadas palavras-símbolos cambiantes, no exercício da virtualidade conotativa (função), mas amarradas com os fios controlados pelo pensamento analógico e sensível do autor. Com tal modelo de sensibilidade, revelador de competência poética, com lastro na constatável organização imagética e de ideias, está-se diante de um repertório ambicioso e rico de possibilidades de leitura empática, universo poliédrico de signos propícios ao conhecimento de sua harmônica estrutura rítmica, ou seja, do fluxo sonoro do texto, compatível com o aparato formal. Péricles Prade
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A Casa da Matéria compõe-se de 14 elegias e uma delas dá título ao livro. A eficácia do poeta ou prosador depende da precisão e da densidade circunstancial de seu alvo. Como todo bom poeta, Ricardo Hoffmann é sensível à noção que possui de si mesmo e permanece vulnerável às múltiplas e estranhas presenças — fantasmas ou viventes, durante todo o percurso das comoventes elegias da Casa da Matéria. Sofremos as nossas perdas: de entes queridos, de prestígio, da fé, da esperança e, se não as sublimamos, tornamo-nos amargos. Impossível deixar de perceber que em cada elegia o poeta cede ao impulso da identificação. De caráter reservado e espartano, às vezes volátil e evasivo, outras, caprichoso, leitor atento e voraz, da mais contundente literatura universal, Hoffmann tornou-se avesso à publicação de suas obras. É alentador que Juliana Hoffmann, sua filha, tenha projetado reeditar não apenas duas, mas todas as obras do Ricardo, para alegria dos seus fãs. Poemas são espasmo e espuma. Compreender um poema é, a cada espasmo, apoiar a matéria no regaço e deixar que o som das palavras, das frases, como sinetes hindus, reverberem no improvável esforço de desvendar a espuma. Glaucia Olinger
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Um escritor para escritores
Há muitos anos, acompanho o escritor Ricardo L. Hoffmann, assistindo a suas criações literárias, sendo que, de muitas, duas novelas pontificam, sobressaindo no meio da generalizada mediocridade brasileira. São elas: A Superfície e A Crônica do Medo. A primeira foi premiada e obteve o maior sucesso na crítica dos melhores jornais do Brasil. Já a segunda, da qual esperava maior sucesso, por conter uma narrativa de surpresas, não teve a repercussão da primeira, fato que levou o autor, por uns tempos, a se dedicar à literatura infantojuvenil, sob o patrocínio da FTD Editora.��������������������������������� Posteriormente, na sua inquietude intelectual, visou a outros caminhos que não os da ficção, mas sobre assuntos diversos, como em o Conhecimento & Ação, plantado em cima de um assunto desesperador, a cibernética, nos termos atuais. Quanto ao Casa da Matéria, sinto-me constrangido em dizer algo por se tratar de arte à qual me dedico até hoje, quando de antemão sei do impedimento natural de poeta tecer crítica de poema alheio, pois jamais estará acompanhada da isenção que a justificaria. Os leitores de Ricardo L. Hoffmann poderão desincumbir-se perfeitamente da tarefa, pois poesia é matéria oriunda da sensibilidade e tanto pode agradar como desagradar, consoante o estado de espírito de quem a lê. Espero o sucesso do livro. C. Ronald
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O pensamento do mapa extinto — pelas florestas e pela origem
O movimento e a dança que podiam perpetuar a floresta tocam a pequena distância dos sentidos a música que vem. Quantas cidades saindo dos troncos das árvores e procurando o seu suicídio no horizonte! O mar retém todos os resíduos da origem enquanto o passado volta ao chão consagrado pela vegetação da guerra que amadurece frutos erguendo voo para só chegar com a descendência aquém da perfeição prevista no princípio. Onde cantamos o círculo temeroso da cidade perdura o exercício de retorno à pele antiga, pois o equilíbrio que espera substituir o mundo não venceu a escada do remorso ainda. A respiração em nosso flanco, como um relógio de sol, avisa sobre os momentos de desenterrar o Leste outra vez. Qual pássaro pousado sobre a casa, ignorando onde gerou seus filhos na enchente de renúncia do ninho, recuamos em metamorfoses rotineiras a vara de condão que ativa os rumos no perigoso lençol do esquecimento. Depois dessa arca particular qualquer lodo começa uma dinastia na permanência da crosta da terra, que extingue os testemunhos da destruição 21
na sensação de perigo que perdura na vida. Erguendo as mãos com o sangue voltamos à montanha pelo medo, procurando devolver a nosso lado o que falta no momento decisivo, mas não se recompõe a figura prevista pelo paraíso. Aquilo que a memória traz do fundo do oceano ao encontro do coração definido na floresta, talvez revele em um outro dia quais os roteiros percorridos pelo pensamento do mapa extinto. Conciliados no ponto de partida, andamos sobre pressentimentos meditando na queda da semente o compromisso da continuidade que persiste com o teor das consequências retido em palavras desenterradas da areia. Opõe-se a flor ao crepúsculo da planta, arrasta-se o inseto contra a vegetação, estende-se o inferno das asas no ar, e tudo ensina ao ser escondido o caminho que é precioso demais para a simples companhia. Descendo das algas e das árvores ao encontro da selva de arames que rola facilmente na planície, o subterrâneo do mundo se divide nos gritos da passagem de nosso cortejo indeciso. Cultivando respeito pelo insubstituível procuramos emitir a frase que é preciso antes que a turva respiração se extinga. A água que nos acompanha 22
voltarĂĄ muitas vezes, pela boca na extremidade do pulmĂŁo verde, rastejando entre as cobras coloridas!
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O diálogo em círculo na mão — pelo não nascido As várias histórias que poderíamos viver começam a se manifestar dentro de nós desprendidas dos frutos de ontem apenas para nos desfraldar nas exterioridades do futuro. O ser que nos surpreende em nossa casa e nosso túmulo esconde o seu mistério no tempo que conjuga o prazer e a fonte dos sonhos de um mar sem remos. Vivos no fio perene do anseio, rejeitamos a era dos prêmios pelo giro da nave sem caminhos. As raízes da ascensão projetam os galhos da floresta que recobre somente os passos sem importância para a espera fecunda daqueles a quem a barraca de luz não pertencerá nunca. Amadurecidas as armas do musgo no interior do nosso rochedo, amanhecemos com o rosto mais próximo da respiração, dentro da bolsa que se contém e não derrama seu conteúdo. Desvendamos a capacidade de nadar nas águas furtivas sem todos os instantes vorazes que nos assaltariam como dias. 24
As memórias roubadas da origem pelas cores emprestadas da terra, que são o verde e o marrom, só nos serão devolvidas quando não nos confundirmos mais sobre a torre dos olhos fechados, de onde, solitários, nos avistamos envolvidos na queda do horizonte, sentindo nossas pernas se moverem sem saltar a montanha do nascimento. O exercício dentro da bolsa, — teorema para seguir o ouro das entranhas que não precisa identificar as ausências — não necessita se dedicar à invenção do ser inteiro girando em torno da cidade e lhe pertencendo pelo medo. Renunciando à frágil herança que flutua sobre o lago de raízes no vago mundo do lado de fora prisioneiro das reminiscências, permanecemos enroscados na árvore, continuamos apodrecendo na areia, e arrastamos a corrente de ossos para o silêncio da saída no outro lado do silêncio. Enquanto as lâminas dos pés cortam o impreciso futuro da corrida que só devolve o nosso corpo ao enigma, a memória cai seu mastro com todas as bandeiras.
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Oh, sombra que o rio transporta com os dois céus sobre a cabeça, não prossigas trocando a origem por memórias de nova enchente! A casa da árvore sendo ferida para recuperar a semente do morto, flutua no subterrâneo do pássaro e abre nossos olhos na nascente atrás da máscara disfarçando o momento de não ser cumprido o diálogo em círculo na mão. O sono afasta a mão em curva. Com palavras rangendo fibras no saco derramando trigo na bifurcação da medida, sentimos arder na língua o mundo vibrando em chamas que contradizem a melodia perdida do leite dos vivos, enquanto o sol coberto de sal rola do alto da montanha. O que nos paralisa, pela distância que nos separa de qualquer meta na natureza de todo o compromisso, é o verdadeiro Deus escondido... E não o que irá nos pôr no mundo.
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A oposição permanente — pelo pai Vejo o pai vagar no labirinto que gerou o meu sonho e interrogo meu rumo por ele. Morto sobre miríades de pés e estacionado no caminho, seu impulso interior armou a cilada do mundo. Aberta pela vara dos milagres A fonte do rochedo, a tarefa parou a pequena distância do princípio concedendo salvados de naufrágio impossível de se contornar. Ninguém põe o fim onde ele existe. Respondemos com a descendência derivando do vivo para o morto, enquanto no volume do corpo se completam nossas metas superando as memórias da infância sempre que é preciso sobreviver domesticando os demônios da urgência que perduram na vertente da montanha de onde não acabamos de rolar nunca. Nenhum tempo de esquecer traz de volta ao esqueleto algum poder de compreender a vida dos ressentimentos que deixamos para trás. Completamos nossa síntese no princípio do destino, 27
mas continuamos a recolher o antepassado ao interior da construção sem plano definido para que a indagação da culpa não nos detenha de novo depois de feito o homem. A responsabilidade nos olhos, como se afastam os cabelos, lê a notícia do assassinato apunhalada por grãos de areia da corrida atrás da descendência. E é o tesouro das portas se abrindo o que engana o que foi sentido no início do amor. Se a corrupção engana a terra e fere a veia vingará tempo menor para a espera primitiva enquanto a vida — ao tentar se recuperar entre as origens do corpo e do sonho que se contradizem — se identifica com a morte de todos. Vestida a roupa do antagonista, a pele presente nas casas diferentes, despimos nossa imagem interior devolvendo a oposição permanente, e nos damos as costas para compreender melhor que o outro lado da medalha é igual ao primeiro. Levantando nosso corpo desse espelho sentimos inoperância em articulações que nos compuseram para a fuga na hora do leão e do cordeiro, que devora o que gerou o filho. 28
As razões normais oferecidas imitarão cópias ilegíveis de virtudes e vícios conferidos um pouco acima dessa terra, onde tudo é sombra contínua, exceto a sombra mais profunda. Os gestos que nos defendem de intenções erguem a vela de adular com a liberdade e acionam o motor de manter no ar sem a conquista do equilíbrio. Chegando a descrer da convivência, a inimizade já foi estabelecida pelos olhares que se encontram crescendo no temor das diferenças. Na oscilação de dois mundos recuados para pélvis vazias, a inocência do pai e da mãe, como irmãos que coabitam, sol que deixa de contribuir devorado pela própria cinza, cruza um deserto de amor curvado de violetas.
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Obras do autor Literatura: A Superfície (GRD, 1967) A Crônica do Medo (Livros do Mundo Inteiro, 1972) O Trenzinho Fora da Linha (Tchê!, 1987) — infantil O Hotel dos Bichos Desamparados (FTD, 1988) — infantil O Circo das Plantas (Editora do Brasil S/A, 1988) — infantil Pequeno Coração (FTD, 1990) — infantil Obra e Morte de Gaudí (Edições de Percurso, 2015) Casa da Matéria (Edição do autor, 2017) Ensaios, Sociologia do desenvolvimento: Abertura Operacional da Universidade (UDESC Editora, 1957) Alienação na Universidade – Crise dos anos 80 (Editora da UFSC, 1985) Pacto Social para o Crescimento com Distribuição e Desinflação — Modernização da Livre Iniciativa (Editora Fundação Universitária de Blumenau) Conhecimento e Ação (Letras Contemporâneas, 2016) Obras presentes nas seguintes antologias: Panorama do Conto Catarinense — Organizada por Iaponan Soares (Editora Movimento/UDESC, 1971) Círculo 17 (Editora do Escritor, 1975) Assim Escrevem Os Catarinenses — Organizada por Emanuel Medeiros Vieira (Alfa-Omega, 1976) Antologia do I Concurso de Poesia de Florianópolis (Edição da Prefeitura Municipal de Florianópolis, 1977) Este Mar Catarina — Organizada por Flávio José Cardoso, Salim Miguel e Silveira de Souza (Editora da UFSC, 1983) Antologia de Autores Catarinenses — Organizada por Celestino Sachet (Editora Laudes) Contos Da Ilha (Editora Insular, 1996) 67
Este Amor Catarina — Organizada por Flávio José Cardoso, Salim Miguel e Silveira de Souza (Editora da UFSC, 1996) Obras citadas nas seguintes publicações: História Crítica da Literatura Brasileira, de Assis Brasil (Companhia Editora Americana, 1973) A Literatura de Santa Catarina – Síntese Informativa, de Lauro Junkes (Edição do Autor, 1992) 16 Ensaios, de Jayro Schmidt (Bernúncia Editora, 2007) Diálogos com a Literatura Brasileira, de Marco Vasques (Editora Movimento, 2010)
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Esta obra foi composta em Crimson Text e impressa pela Grรกfica Tipotil em papel pรณlen bold FSC 90 g/m2, no outono de 2018.
Mariana Boro
nasceu em Criciúma (SC), em 1937, em uma família de artistas — a mãe era poetisa e pintora, e o pai, músico e pintor. Formado em direito e mestre em administração universitária, foi colaborador dos jornais Diário Catarinense, O Estado (SC), O Estado de São Paulo e Correio Brasiliense (DF). Publicou os livros A Superfície, ficção revelação do ano no Brasil, em 1967, romance finalista do Prêmio Walmap, e A Crônica do Medo, também ficção. Publicou ainda Pequeno Coração, O Circo das Plantas, O Trenzinho Fora da Linha e O Hotel dos Bichos Desamparados, de literatura infantil. Na área de Sociologia do Desenvolvimento e Educação, publicou Pacto Social, Alienação na Universidade, Abertura Operacional da Universidade para o Desenvolvimento e Conhecimento & Ação. RICARDO L. HOFFMANN
“Estacamos com medo à saída da casa que habitamos com indiferença. Saudamos o estranho ao corpo passando diante da porta em procissão invisível. Aberta a instrução do pó que se estende da soleira, qualquer gesto só ofende a limpidez da sala do convívio. Enquanto a nossa felicidade não multiplicar suas paredes, nossa casa não nos guardará contra as visitas repentinas.”