Ricardo L. Hoffmann
O ser que nos surpreende The being that surprises us
Imagem de capa: © Jayro Schmidt
Revisão: João Júlio Freitas de Oliveira
Tradução: Guilherme A. Leite
Capa, projeto gráfico e diagramação: Paula Albuquerque
Organização e produção: Juliana Hoffmann
Ilustração: Jayro Schmidt
Fotografia: Philippe Arruda
Fotografia Ricardo L. Hoffmann: acervo pessoal
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Hoffmann, Ricardo L.
O ser que nos surpreende = The being that surprises us / Ricardo L. Hoffmann ; ilustração Jayro Schmidt ; tradução Guilherme A. Leite. -- 1. ed. -- Florianópolis, SC : Ed. do Autor, 2022.
Edição bilíngue: português/inglês. ISBN 978-65-00-55344-4
1. Prosa poética I. Schmidt, Jayro. II. Título. III. Título: The being that surprises us.
22-133659
Índices para catálogo sistemático:
1. Prosa poética : Literatura brasileira B869.1
Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB-1/3129
CDD-B869.1
Ricardo L. Hoffmann
bilíngue
1a edição
Florianópolis Edição do autor 2022
Dedico à minha filha Leatrice
O ser que nos surpreende
The being that surprises us
Obra inédita de Ricardo L. Hoffmann, provavelmente escrita na década de 1970 (uma vez que o escritor não costuma datar seus textos), com ilustrações inéditas de Jayro Schmidt, criadas no mesmo período.
Hoffmann e as introvisões | Jayro Schmidt
Hoffmann and the insights
1. O ser que nos surpreende
The being that surprises us
2. O mistério está sempre em outro lugar
The mystery is always elsewhere
3. Não consigo saltar a montanha do meu nascimento
I can’t jump the mountain of my birth
4. O nome que se transforma continuamente
The name that transforms continually
5. A metade esquecida
The forgotten half
6. O número inacessível
The unreachable number
7. Como Robinson, edificarás então uma ilha
Like Robinson, you will then build an island
8. O animal debaixo da planta dos pés
The animal under the soles of the feet
9. Sentimos crescer o mundo que existe
We feel the world that exists growing
10. A descendência da memória
The descent of memory
11. A reunião das coisas impossíveis
The gathering of impossible things
12. Deixo o vale da umidade
I leave the valley of humidity
13. As memórias da enchente
The flood memories
14. De meu pouso imemorial
From my immemorial landing
15. Quem não se fizer outro Ulisses
Who doesn’t became another Ulysses
16. A construção que nos ocupa sem sabermos
The construction that occupies us without knowing it
37 39 41 43 45 47 49 51 53 55 57 59 61 63 65 67 25 15
17. A dança que podia ter perpetuado a floresta
The dance that could have perpetuated the forest
18. O interior do pássaro
The inside of the bird
19. A mancha de sol sobre a montanha
The sunspot over the mountain
20. A presença do morto
The presence of the dead
21. A casa de sombra é a nossa origem
The shadow house is our origin
22. A vitória que se esconde debaixo da língua
The victory that hides under the tongue
23. As paredes que contêm nosso silêncio
The walls that contain our silence
24. Daremos outro passo na direção do oceano
We will take another step towards the ocean
25. A casa da memória
The house of memory
26. As janelas
The windows
27. A mitologia do pouso
The mythology of landing
28. O exercício de compreender
The exercise of understanding
29. O impulso viajor
The travel impulse
30. Quem armou o jogo das casas previu apenas os inimigos
Whoever set up the house game foresaw only the enemies
31. O rebanho lavado dos suores
The herd washed from the sweat
32. Não voltarei do mergulho com a mesma pele
I won’t come back from the dive with the same skin
33. O ritual do lugar secreto
The secret place ritual
34. Aperfeiçoando o caminho que não nos pertence
Perfecting the path that doesn’t belong to us
69 71 74 77 79 81 83 85 87 89 91 93 95 97 99 101 103 105
35. A esperança homicida
The homicidal hope
36. Meditando a queda da semente
Meditating on the fall of the seed
37. A sabedoria que conserva o ser num círculo
The wisdom that keeps the being in a circle
38. Morrendo nas ondas até o fim dos tempos
Dying in the waves till the end of time
39. O silêncio risca melhor seu caminho na areia
Silence best scratches its path in the sand
40. As várias possibilidades de morrer
The many possibilities of dying
41. Recuperamos nosso grito primitivo
We regain our primal scream
42. Quando tivermos terminado de cantar como os cegos
When we’ll have finished singing like the blind
43. O que não se detém em si mesmo
What doesn’t stop in oneself
44. A paisagem que oculta a nossa morte
The landscape that hides our death
45. O herói pertence à distância do voo
The hero belongs to the flight distance
46. O cabo de sangue
The rope of blood
47. As formas de rolar mais rápido sobre a terra
The fastest ways to roll on earth
48. A sombra do pássaro
The bird shadow
49. Gostaria de descobrir o país onde se vive da música
I would like to discover the country where one live off music
50. Meu corpo feito de água como um pêndulo
My body made of water like a pendulum
51. O meu gesto final
My final gesture
52. O vazio espera o momento de ser preenchido por um grito
The void awaits the moment to be filled by a scream
107 109 111 113 115 117 119 121 123 125 127 129 131 133 135 137 157 159
53. Tudo que é escrito é escrito com sangue
All that is written is written with blood
54. A náusea da impossibilidade
The nausea of impossibility
55. O salto que nunca damos no abismo
The leap we never made into the abyss
56. O subterrâneo longe dos pássaros
The underground far away from the birds
57. A procissão invisível
The invisible procession
58. O verme no interior da semente
The worm inside the seed
59. Todo corpo se avoluma nessa espera
Every body swells in this waiting
60. O pensamento do mapa extinto
The extinct map thought
61. O que nos coloca no lugar certo
What puts us in the right place
62. O ser que devora a presença
The being that devours the presence
63. A casa perece cercada de caminhos de fuga
The house perishes surrounded by escape routes
64. O instante das separações que não encontro nunca
The instant of separations that I never find
65. A semente veloz
The fast seed
66. A água da metade do jarro
The water from half the pitcher
67. A máscara de tudo
The mask of everything
68. A canção que se erguer sobre minha partida
The song that rises upon my departure
69. A morte ladrando como um cão
Death barking like a dog
70. A saída para o mar existe num lugar inesperado
The way out to the sea exists in an unexpected place
161 163 165 167 169 171 173 175 177 179 181 183 185 187 189 191 193 195
71. O crepúsculo da planta
The twilight of the plant
72. O silêncio da pele
The silence of the skin
73. A casa da matéria
The house of matter
74. O sonho da adolescência feroz
The ferocious adolescence dream
75. Todo jardim e todo silêncio
Every garden and every silence
76. A água sobre a qual me movo em círculos
The water on which I move in circles
77. Perseguir a esterilidade na via que cativa
Pursuing sterility in the way that captivates
78. A corrida ao lado de todos os seres
The race alongside all beings
79. O mundo continua o terror do paraíso
The world continues the terror of paradise
80. O interior da espera
The interior of waiting
81. Separados no instante da luta
Separated in the fight instant
82. O som é o som da música que existe
The sound is the sound of the music that exists
83. O movimento sombrio de nossa musculatura
The dark movement of our musculature
84. Antes do movimento da luta
Before the movement of the fight
85. Os demônios da urgência
The demons of urgency
86. No momento em que o animal se retira de nossos ombros
The moment the animal withdraws from our shoulders
87. Dialogando com ossos de aninais e plantas
caminho
the
path 197 199 201 203 205 207 209 211 213 215 217 219 221 223 225 227 229 231
Dialoguing with bones of animals and plants 88. No
intermediário In
middle
89. Voltar com as asas mais abrangentes
Return with wider wings
90. O movimento que modifica a visão de cada instante
The movement that changes the vision of each moment
91. A trajetória inventada pelo meu espírito
The trajectory invented by my spirit
92. O medo de não me reconhecer mais
The fear of not recognizing me anymore
93. Vemos a morte e compomos a poesia
We see death and compose the poetry
94. O que foi o nosso silêncio se completa em nossa morte
What was our silence completes itself in our death
95. O florescimento da música nos ossos
The flowering of music in the bones
96. Os animais esperam em silêncio a nossa morte
The animals silently await our death
97. O reconhecimento da inutilidade do mundo
The recognition of the uselessness of the world
98. A cidade nos pertence pelo medo
The city belongs to us by fear
99. Um presente na mão dos mortos
A gift in the hand of the dead
100. As águas do nascimento e da morte The
of
and
233 235 237 239 241 243 245 247 249 251 253 255
waters
birth
death
Hoffmann e as introvisões
O homem só é homem na superfície. Levante a pele, disseque: aí começa o maquinismo. Depois, nos perdemos numa substância insondável, alheia a tudo o que conhecemos e, todavia, crucial.
Paul Valéry
Muitas são as obras do acaso, termo adequado para se nomear o que ainda não se conhece, e sendo conhecido mostra camadas de reconhecimentos como no encontro de Juliana Neves Hoffmann de algo que havia sido guardado, as páginas datilografadas de O ser que nos surpreende, inédito de Ricardo L. Hoffmann, autor de A superfície e A crônica do medo, obras ficcionais que marcaram época no contexto da literatura em língua portuguesa, permanecendo atuais por causa da universalidade que aponta a crise humana, não a crise da linguagem que, no caso de ambas as obras, revitalizou-a tal como se apresenta na época da histórita catastrófica que o autor, em artigos recentes, pensa com fundamentações filosóficas para argumentar a possível regeneração da sociedade com os aparatos digitais.
Aproximações do acaso
Assim que Juliana descobriu o inédito do ser surpreendente, tive a boa sorte de ser escolhido para dar minha impressão sobre o achado, então adentrando o inédito de Hoffmann, que me arrebatou pela força do título e dos textos que são mentalizações com sabor narrativo, e narração incomum por condicionar a plenitude de sua idade, visionária quando entrou dantesco no meio do caminho da vida que o levou ao encontro definitivo
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consigo mesmo. Então o autor maturado pela linguagem de seu silêncio de rumores ao escrever, cabendo aos leitores a percepção de que são fulgurações do ser, esse ser que é facetado, multiforme no livro de Hoffmann.
No mesmo período da recuperação desta obra, outro vislumbre teve Juliana, doze desenhos a traço de minha autoria em uma pasta vermelha, reconhecidos por ela porque foram assinados, com apenas um datado, 1972, tempo de meu estar atormentado com a fatalidade do nascer e ser. Pois foi isso que fez Hoffmann e Juliana constarem que entre a poética de O ser que nos surpreende e os desenhos há um parentesco, o que de fato tem, mesmo porque foram feitos para ilustrar alguma edição que não sabemos qual daquela década.
Curvatura terrestre
Quem ler os relatos de O ser que nos surpreende logo vai saber que são regidos por monólogos, e o primeiro referencia a “floresta escura” de quem está no meio da vida com a herança que surpreende porque é casa e túmulo.
Essa imagem é poderosa, pois ser é estar sentado, o esperar viver ciclos, corpo em curvatura assim que nasceu com o tempo outro, antes dele para ir adiante com a sombra, ser da sombra que espanta e metaforiza o autor que vai nascer enquanto escreve – nasce ao escrever:
As várias histórias que terei de viver já começam a se manifestar dentro de mim. A partir deste momento sei que será impossível não nascer. E sei, por outro lado, que estou tão perto de minha extinção que jamais voltarei à mesma sabedoria.
O desvio de si, astro do ser que deixa um rastro de luz que o afasta da sabedoria, a única e que não se repete enquanto, quem a provou, jamais esquecerá o sabor e assim a sina de
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voltar sempre ao começo da história para se surpreender com o ser do outro, o estranho familiar que visita quem ousou se cobrir com cinzas no transepto de si mesmo para não acreditar e ser outra vez.
Essa é a história do retorno, a obstinação de quem escreve ou cavalga nas trevas até a próxima aldeia. O arcano diria que é inútil o prospectivo, tudo está no começo, nada foi dito ainda e poderá ser na leitura do livro para trás, na leitura da memória episódica.
Do primeiro monólogo e dos outros que seguem de Hoffmann, a arcada das palavras não cessa a narrativa de quem continuará “sentado” e percorrerá “o mundo” avistando cidades, sendo visto com receio, podendo fundar uma religião se a sua vulnerabilidade fosse reconhecida. E desconhecido poderá continuar sagrado, salvo mesmo depois dos sacrifícios:
Continuarei sentado para envelhecer minha pequena sabedoria.
Saber que surpreende o ser da escrita de Hoffmann na mesma figura da arcada terrestre, do mundo menor que parodia o mundo maior, daí a escrita de analogias que tem profundidade poética com introvisões que fazem escoar o passado do agora. O sentido poético reúne todos os tempos como se fosse a única idade do poeta.
Sentido trágico
Com a leitura vertiginosa dos relatos nucleares de Hoffmann, nos confins de si mesmo ele esteve e voltou suprassensível graças ao sentimento trágico da vida, sem o qual não há literatura de imaginação tal como nas grandes poéticas desde Rimbaud, Lautréamont, Eliot, Rilke e Jorge de Lima, que de circunstâncias humanas se elevam com a imagem que atinge um ponto do qual não se pode mais voltar.
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Essa é a imagem para as evocações que beiram o símbolo esotérico, o corpo místico de O ser que nos surpreende, que reboa como um grande sino remoto e por isso mesmo atual, sino da tempestade que é a hora predileta da palavra anímica, quando se sobe a montanha onde está o cristal côncavo e convexo, mas a primeira pessoa deste ser não pode ultrapassar a montanha do nascer, mas se inscreve filtrado pelo trágico que somente tem uma idade, a da mente em constante ebulição, o pêndulo hoffmanniano o qual prossegue com o instante que se imobiliza para que se perceba as suas vibrações.
Sem o trágico nada poderia revelar a complexidade do ser que no fundo de seus nomes exulta, fulgura, vibra contra a “prisão da vontade” ao reconhecer a duração das perdas, mas não há perda na memória episódica. Mesmo assim desejar anima a vontade que poderá ter outro nome com reverberações da capacidade de ser e ir além do ser como, em prenúncio, se lê nos títulos dos poemas em prosa de O ser que nos surpreende , estranhos precursores do autor que abriga no tempo da escrita os tempos do que está se formando – escrita unidimensional que conduz o autor ao quadrimensional, onde sempre esteve.
Se fazer Ulisses
O poeta estava no começo da viagem a qual pode ser a de quem precisa deixar Ítaca, que se passará por louco ao jogar sal na terra arada. A ele está destinado o sal das palavras por mares e terras distantes.
E o poeta é quem aceita o destino e dele tenta escapar:
Nunca o que está atrás permite o passo adiante. A liberdade continua a semente do animal debaixo da planta dos pés. E o completar de nós mesmos esconde todos os riscos.
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Esse é o ponto de mutação da poética evocativa de Hoffmann, um convite a viajar, exilar-se, sair de si para voltar com o ser que se surpreendeu e se tornou arguto para poder afrontar os deuses, os mitos. Ao afrontar soube ler o que diziam as legendas, os sinais do caminho, o símbolo de si mesmo que as armadilhas tentavam apagar:
Quem não se fizer outro Ulisses acabará por esquecer a forma de seu próprio corpo.
O corpo que deixou a casa, a matéria de seu portal, terá que voltar para ter o complemento do estar perto do tão longe.
Sombra de sombras
Quem não esquece, ou é a lembrança do ser que não deixa de se espantar com o tremor de existir. A cabeça estaria levando o homem, ou é o cérebro que tudo comanda e, antes de se curvar em parabólica ou espiral, deixa-se levar pela sombra, na sombra:
E a história incompleta da fuga esconde a verdade do encontro imortal da sombra e do corpo além da luta fictícia.
A ficção poética, a palavra que se diz do estranhamento, é que se deixou acontecer no livro de Hoffmann. Isso é tudo para quem foi guiado pela linguagem que inundou seu hipocampo, quem sabe o tom mesmo das sombras que retornam na imortalidade da sombra, o pensar, o começar outra vez a curva da história que não apela para os anjos, no máximo para as aves migratórias, as fiéis nos poemas elegíacos nos quais o que é humano é superável, o que não deixa de estar nas sequências de O ser que nos surpreende. E o ser se surpreende diante de si mesmo na tese da história como pesadelo. Tempo histórico do abutre que não se sacia, ave hegeliana com a envergadura do
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fim no começo, do escritor que exorciza as cinzas do sentido e redime a história das asas:
Olha nos olhos do pássaro e vê a asa primeiro. O interior do pássaro é asa pura. O voo é o complemento do que existe e o interior do pássaro é o interior da natureza.
A ave que paira sobre destroços no abismo e se move, gira, sonha a época seguinte assim como quem escreve:
Tu és o escritor e o poeta e eu, o teu espírito, o colhedor de lixo.
Essa é a inevitável lógica do mundo, e o poeta se revira com o oximoro para existir além do limite de si mesmo como a noite estrelada de van Gogh, cujos astros em turbilhão se afastam do peso do terreno.
Retorno da curvatura
A curvatura é o olhar multifacetado do poeta. A curvatura na linguagem tem a figura da imaginação que se afasta do ponto de partida e volta com sentidos não conhecidos ainda.
Curvatura de linguagem, como se a mente de Hoffmann fosse um caderno de esboços que se complementam de uma frase para outra e de um fragmento para outro, pois a matéria poética é una para que os sentidos sejam múltiplos, reflexibilidades de nomes que formam cúpulas de imagens que libertam sentidos ocultos, porém não obscuros porque têm luz própria. Imagens de claridade, de discernimento que somente a poética revela a fonte.
Qual seria essa fonte na poética de Hoffmann? A do círculo que o título prenuncia, o ser que no surgir resplandece e gostaria de voltar, estar no lugar quieto do elegíaco:
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Tudo que é real se extingue atrás da casca do ovo. Tudo que espera continua na bolsa, os braços cruzados, a testa apoiada no umbigo. Nenhuma imagem pode contradizer a sabedoria que conserva o ser num círculo.
E ser do círculo que ninguém poderá dizer que se trata de evasão, e sim de recepção do que independe do espírito poético que, todavia, ousa dizer a palavra destinada em meio aos demais que empobrecem as imagens.
Quem, no tempo de homens-moscas, reconhecerá o ser hamletiano, o ser e o ser ainda?
No mundo digital outra não poderia ser a consequência com o excesso de comunicação com vazios, mitos vazios. A terra continua girando, o universo se expande no tempo astronômico, enquanto a terra envelhece prematuramente. A vida dos homens e de moscas é de frações. Não a poética do mundo, a visão da unidade no todo das introvisões superam o prometeico com o órfico.
O roubo do fogo foi a técnica, o poder, o explorar tanta energia armazenada quando foi vista da colina e os canteiros de obra arrasaram a terra. E edificou-se a torre de controle no lugar da casa ancestral incendiada, mas o ímpeto órfico sobreviveu, alguém na calada da noite transmitiu a mensagem, que se propagou em profundidade habitada. Com esse resquício órfico ergueu-se a poemática do ser que surpreende com o libelo já escrito, o de “A orla da floresta”, quando Hoffmann pensou que a ficção poderia transformar a “exasperação” pessoal:
Não sou mais um cronista do absurdo do racionalismo decadente europeu, sou o poeta de linguagem que se recusa a dizer o que é imposto. Portanto, no âmbito da elaboração volta a força do irracional.
Às forças prometeicas sobrevivem as órficas que dizem o mesmo nas mudanças históricas: não interrompam a respiração dos grandes vales, das colinas semeadas de animais, deixem o
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vento nos prelúdios, as aves imitam os crepúsculos da manhã e da tarde, o tapir leva à água:
Vela pelo ser escondido atrás da pedra. Tenta extrair dele a frase que é preciso antes que sua tênue respiração se extinga.
Apocatástase
A história pensada como cíclica, ou a história pode ser redimida com as abjurações humanas, promessas da apocatástase como símbolo de redenção:
O despertar que não for resistência contra a queda acrescenta outra pedra ao enterro da memória.
Na leitura diagonal de O ser que nos surpreende insinuava-se a presença do autor contornando as ausências, tarefa de si mesmo na inevitabilidade temporal. Na memória estavam as providências do passado, mas a redenção foge das cidades, embora o despertar possa estar na persona , sobretudo no poeta que não deixa de também ver o terrível, os olhos já sem fundo, o ser que sem tréguas se espanta com a multiplicação tecnológica dos homens imbecis. Mesmo que não haja redenção, o revelar não abandona a palavra que será dita, despertar possível do dizer, e quem se levantar em meio aos homens-bonecos plastificados e proferir o nome órfico será visto como louco e será banido da comunidade. Pouco importa que assim seja porque ele é o portador, o precursor, o liame, o escrito com sangue, mesmo que sejam as frustrações humanas:
O vácuo continuará reinando entre o som e a queda do corpo. Habitamos nossa paralisia de estátuas fingidas pela consciência que depositamos no chão a cada instante.
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O chão está coberto de detritos, na consciência a luz que vem é fraca, mas ilumina a página de quem se lê ao ler o tempo até tarde da noite. Não que o ceticismo nas linhas de O ser que nos surpreende seja moderado, mas a probabilidade vai do provável ao improvável: o ser desaparece e transparece. Há, por um lado, “desejo mortal”, por outro o mar é saída “num lugar inesperado”. O começo e o fim podem ser ignorados provisoriamente com a perpetuação de reminiscências e pressentimentos para que permaneçam as introvisões do estar “enroscado em torno da árvore”.
Mesmo assim, o momento da morte não deve ser esquecido nem adiado como tentativa de ser de outro modo, ser substância que prescinde de filosofia, porém matéria filosófica do ser no que tudo seja.
Jayro Schmidt, ensaísta de arte visual e de literatura
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1. The being that surprises us
The world’s appetite is terrible when we are its size. I established a long conversation with myself, and I feel the body that covers me evolved in a dark forest. Twisted legs among the trees, breasts sucked in by the clouds. The being that surprises us is our home and our grave. Here I burn as a seed, waiting for the time to imitate the exteriority of the future. I am like the bottom of a sea without fish. The air around my underground shelter resounds surrounded by invisible threads that vibrate with noises unimportant to my waiting. Everything resonates with me like the sea over the rock at its center. This swing is from another childhood, before mine. My lullaby makes the forest branches crack, the roots squeezing my heart. It will one day be torn away by the weight of the world. I’m not a clod of earth but I am close to it. This web of voices that make my cells vibrate at the beginning of recognition belongs to a time that I’ll drag with me on the waters of my birth. My position rotates in all directions at once, slowly. I open my mouth with a snap, but nothing enters it, not even the humidity of the walls. The various stories that I will have to live already begin to manifest within me. From this moment on I know it will be impossible not to be born. And I know, on the other hand, that I’m so close to my extinction that I will never go back to the same wisdom. This tent of light that waits for me outside will only exist to never belong to me. He who robbed me of the distance that separates me from the goal – and not the one who will put me in the world – is the true God.
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1. O ser que nos surpreende
É terrível o apetite do mundo quando somos do tamanho dele. Estabeleci um longo colóquio comigo mesmo e sinto o corpo que me reveste evolvido numa floresta escura. Pernas torcidas entre as árvores, seios sugados pelas nuvens. O ser que nos surpreende é a nossa casa e o nosso túmulo. Aqui ardo em semente, esperando a hora de imitar a exterioridade do futuro. Estou como no fundo de um mar sem peixes. O ar em torno do meu abrigo subterrâneo ressoa cercado de fios invisíveis que vibram com ruídos sem importância para a minha espera. Tudo repercute em mim como o mar sobre a rocha em seu centro. Esse balanço é de outra infância, anterior à minha. Minha canção de ninar faz estalar os galhos da floresta, e as raízes apertam meu coração. Ele será arrancado um dia pelo peso do mundo. Não sou um torrão de terra mas estou próximo disso. Essa teia de vozes que fazem vibrar minhas células no início do reconhecimento pertence a uma era que arrastarei comigo sobre as águas de meu nascimento. A minha posição gira em todas as direções ao mesmo tempo, lentamente. Abro a boca com um estalo, mas coisa alguma entra por ela, nem mesmo a umidade das paredes. As várias histórias que terei de viver já começam a se manifestar dentro de mim. A partir deste momento sei que será impossível não nascer. E sei, por outro lado, que estou tão perto de minha extinção que jamais voltarei à mesma sabedoria. Essa barraca de luz que me aguarda do lado de fora só existirá para não me pertencer nunca. Quem me roubou a distância que me separa da meta é que é o verdadeiro Deus, não quem irá me pôr no mundo.
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2. The mystery is always elsewhere
Off the page, everything is a repetition of what I haven’t read yet. The mystery is always elsewhere. Sitting on my heels I will travel the world, reaching the speed of the greatest inventions, to fall one day into a hole unnoticed. As I pass through the tops of the hills, I will see five or six similar cities. From within them I will draw milk and draw bread as from an oven. The men around me will be afraid to touch me with an outstretched hand. As long as I am unknown, I will be sacred and I will be saved. Later I will be too because I will be the victim of sacrifices. Betrayals and faith will alternate for the same reasons. Those who have joined the rows will watch me pass, expecting me to sit on a throne opposite them. But I will continue to watch them from above my mud mound. No one will be interested in acknowledging my vulnerability. With my hand always resting on the same tree, I will ward off all dangers with my eyes. Until being attacked from behind by the newcomer, I will lie on my back, and everyone will parade by my side mourning the death of their own hopes.
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2. O mistério está sempre em outro lugar
Fora da página tudo é repetição do que não li ainda. O mistério está sempre em outro lugar. Sentado sobre os calcanhares percorrerei o mundo, atingindo a velocidade das maiores invenções, para cair um dia num buraco despercebido. De passagem pelo alto das colinas, avistarei cinco ou seis cidades iguais. De dentro delas mungirei leite e retirarei pão como de um forno. Os homens à minha volta recearão me tocar com a mão estendida. Enquanto for desconhecido, serei sagrado e estarei salvo. Depois estarei também porque serei a vítima dos sacrifícios. As traições e a fé irão se alternar pelos mesmos motivos. Aqueles que tiverem ingressado nas fileiras me olharão passar, esperando que eu vá me sentar num trono à sua frente. Mas continuarei a olhá-los de cima de meu montículo de barro. Ninguém se interessará por reconhecer a minha vulnerabilidade. Com a mão apoiada sempre à mesma árvore, afastarei com o olhar todos os perigos. Até que, sendo atacado por trás pelo recém-chegado, deitarei de costas, e todos desfilarão curiosos a meu lado lamentando a morte das próprias esperanças.
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Obras do autor
Literatura:
A Superfície (GRD, 1967)
A Crônica do Medo (Livros do Mundo Inteiro, 1972)
O Trenzinho Fora da Linha (Tchê!, 1987) infantil
O Hotel dos Bichos Desamparados (FTD, 1988) infantil
O Circo das Plantas (Editora do Brasil S/A, 1988) infantil
Pequeno Coração (FTD, 1990) infantil
Obra e Morte de Gaudí (Edições de Percurso, 2015)
Casa da Matéria (Edição do autor, 2018)
O Ser que Nos Surpreende (Edição do autor, 2022)
Ensaios, Sociologia do desenvolvimento:
Abertura Operacional da Universidade (UDESC Editora, 1957)
Alienação na Universidade – Crise dos anos 80 (Editora da UFSC, 1985)
Pacto Social para o Crescimento com Distribuição e Desinflação
Modernização da Livre Iniciativa (Editora Fundação Universitária de Blumenau)
Conhecimento e Ação (Letras Contemporâneas, 2016)
Obras presentes nas seguintes antologias:
Panorama do Conto Catarinense Organizada por Iaponan Soares (Editora Movimento/UDESC, 1971)
Círculo 17 (Editora do Escritor, 1975)
Assim Escrevem os Catarinenses — Organizada por Emanuel Medeiros Vieira (Alfa-Omega, 1976)
Antologia do I Concurso de Poesia de Florianópolis (Edição da Prefeitura
Municipal de Florianópolis, 1977)
Este Mar Catarina — Organizada por Flávio José Cardoso, Salim
Miguel e Silveira de Souza (Editora da UFSC, 1983)
Antologia de Autores Catarinenses Organizada por Celestino Sachet (Editora Laudes)
Contos da Ilha (Editora Insular, 1996)
Este Amor Catarina — Organizada por Flávio José Cardoso, Salim Miguel e Silveira de Souza (Editora da UFSC, 1996)
Obras citadas nas seguintes publicações:
História Crítica da Literatura Brasileira, de Assis Brasil (Companhia Editora Americana, 1973)
A Literatura de Santa Catarina – Síntese Informativa, de Lauro Junkes (Edição do Autor, 1992)
16 Ensaios, de Jayro Schmidt (Bernúncia Editora, 2007)
Diálogos com a Literatura Brasileira, de Marco Vasques (Editora Movimento, 2010)
Esta obra foi composta em Crimson Text e impressa pela Gráfica Rocha em papel pólen bold FSC 70 g/m2, no verão de 2022/2023.
RICARDO L. HOFFMANN nasceu em Criciúma (SC), em 1937, em uma família de artistas — a mãe era poetisa e pintora, e o pai, músico e pintor. Formado em direito e mestre em administração universitária, foi colaborador dos jornais Diário Catarinense, O Estado (SC), O Estado de São Paulo e Correio Brasiliense (DF). Publicou os livros A Superfície, ficção revelação do ano no Brasil, em 1967, romance finalista do Prêmio Walmap, e A Crônica do Medo, também ficção. Publicou ainda Pequeno Coração, O Circo das Plantas, O Trenzinho Fora da Linha e O Hotel dos Bichos Desamparados, de literatura infantil. Na área de Sociologia do Desenvolvimento e Educação, publicou Pacto Social, Alienação na Universidade, Abertura Operacional da Universidade para o Desenvolvimento e Conhecimento & Ação.
“Tudo repercute em mim como o mar sobre a rocha em seu centro. Esse balanço é de outra infância, anterior à minha. Minha canção de ninar faz estalar os galhos da floresta, e as raízes apertam meu coração. Ele será arrancado um dia pelo peso do mundo.
O ser que nos surpreende é a nossa casa e o nosso túmulo. Aqui ardo em semente, esperando a hora de imitar a exterioridade do futuro.”