O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê. É preciso transver o mundo.
_Manoel de Barros
Em 2018, a partir de uma pesquisa de fotografias antigas nos arquivos do Museu Histórico Assis Chateaubriand e em álbuns de famílias do município de São Joaquim, na Serra Catarinense, a artista visual Lela Martorano realizou a exposição intitulada Antes Tempo Com entrada franca, a mostra ficou em cartaz entre os dias 23 de junho e 29 de julho, e foi visitada por mais de 1.000 pessoas que, além de percorrer a exposição, tiveram a oportunidade de participar de ações culturais e socioeducativas, como visitas mediadas para grupos, conversas e encontros sobre arte contemporânea e espetáculos musicais.
Contemplado no Prêmio Elisabete Anderle de estímulo à cultura 2017/2018 da Fundação Catarinense de Cultura, o projeto artístico abordou a fotografia vernacular a partir de diferentes pontos de vista. Com o propósito de revelar toda a riqueza e complexidade desses registros pessoais encontrados e revisitados pela artista, a exposição envolveu a participação da comunidade e promoveu um exercício de autorreconhecimento, de identidade e de memória da cidade. Assim, Antes Tempo evocou um passado esquecido e estabeleceu uma relação entre memória e fotografia, público e privado, espaço e tempo, passado e futuro, reivindicando um tempo interior, de contemplação e resistência ao fluxo cada vez mais exagerado de produção e consumo de imagens.
A exposição foi composta de uma série de obras impressas em papel tipo lambe-lambe e tecido, “ fotos-vídeo” e selos postais criados pela artista, além de uma instalação com retratos originais recolhidos em casas de famílias joaquinenses, feitos com a técnica ancestral da fotopintura. Imagens antigas com cenas cotidianas, fotos de viagens, paisagens, ambientes familiares, retratos de casais, costumes e festejos que fazem parte de uma herança cultural e histórica adquiriram novas configurações estéticas e novos significados nesta exposição. Coladas
diretamente nas paredes, as imagens de Antes Tempo revelaram, ainda, a fragilidade do suporte e da própria fotografia.
Nas imagens impressas em papel, Lela trabalhou com sobreposições e diferentes texturas, cujo resultado remete ao papel de seda que protege as fotografias em antigos álbuns. “Todas as camadas da memória estão impressas na superfície do papel. O valor estético e sentimental destas imagens permitiu criar um cruzamento de histórias e lembranças, propondo novas leituras e olhares em relação a situações, espaços ou personagens que fazem parte do lugar”, afirma a criadora. A intenção da artista era que esse conjunto de imagens se tornasse um grande álbum imaginário de fotografias, originando assim uma memória coletiva fictícia.
“Os retratos em fotopintura e os álbuns de fotografia –que são hoje obsoletos e relegados ao esquecimento – estão atrelados à história privada de cada família. Ao deslocar as imagens de seu contexto comum para o campo da arte, estabeleço uma relação íntima com o espectador que, por sua vez, se vê remetido às próprias lembranças, sonhos ou reminiscências e pode, então, ‘criar’ sua própria memória.”
É nas relações com o seu entorno que o objeto ou instalação artística alcança a sua potencialidade. Por isso, a escolha do local que abrigou a mostra também evocou as memórias coletivas da comunidade e provocou o público a refletir sobre a própria história da cidade e o patrimônio local: o casarão de oitões de cornijas rendilhadas, janelas envidraçadas, tipo guilhotina e cumeeiras pontiagudas, construído no início do século XX (entre os anos de 1925 e 1926) e pertencente à família de Gregório Cruz (antigo líder da comunidade e prefeito do município entre 1936 e
1941), é considerado patrimônio arquitetônico da cidade, embora à época da realização da exposição estivesse desabitado e em estado de abandono. Hoje, após ter passado por uma pequena reforma para a exposição, a casa transformou-se na primeira escola de música de São Joaquim e segue sendo restaurada e preservada.
A reapropriação de imagens é hoje uma das correntes mais inventivas e contundentes da arte contemporânea e procedimento comum na obra de Lela Martorano. Os slides e filmes super-8 produzidos pelo seu pai – fotógrafo amador na década de 1970 – constituiu a base para o desenvolvimento de sua poética e seu processo de trabalho, que transita entre a fotografia e a videoinstalação.
Resgatar o valor da fotografia e os processos analógicos, discutir seu papel como registro, explorar seus limites materiais e expor sua fragilidade sempre foram temas caros dentro do processo de investigação de Lela Martorano, que parte do propósito de que a fotografia é tão maleável e tão falível quanto a memória:
“Utilizo a fotografia como linguagem para refletir sobre a passagem do tempo e questionar a capacidade da memória em guardar as lembranças e recordações de forma objetiva. O desafio que isso implica para a noção comum de realidade provoca uma reflexão sobre a ‘verdade’, destacado pelo próprio meio fotográfico, suporte onde coexistem distintas camadas de tempo que compõem uma memória que se move entre a invenção e a reconstrução.”