2017
CrĂtica cinematogrĂĄfica Movie review www.fidebrasil.com www.facebook.com/fidebr
Crítica cinematográfica | FIDÉ Brasil 2017 O Fidé Brasil chegou a sua 4ª edição em 2017 mantendo a proposta de valorizar o cinema documentário feito em ambiente estudantil. Tal valorização nos parece que não deva envolver premiações, que têm caráter de distinção e não necessariamente agregam para o meio cinematográfico como um todo. Porém, em uma nova ação, decidimos neste ano solicitar que três críticos produzissem um texto sobre um dos 27 curtas exibidos, à sua escolha. É uma proposta de valorização do cinema, do debate, da crítica e do estudo. Hanna Esperança Graduada em Cinema e Audiovisual pela Universidade Estadual do Paraná (Unespar). Atuou como bolsista no projeto de extensão Hatari! Revista de Cinema participando de cinco edições. Dedica-se a estudos feministas no cinema, com foco na produção brasileira dos anos 80.
Letícia Weber Jarek Formada em Cinema e Audiovisual pela Universidade do Estado do Paraná (Unespar), coordena o Cineclube do Coletivo Atalante em parceria com a Cinemateca de Curitiba. É também editora do blog de cinema Vestido sem costura e colaborou nas seguintes publicações: Cinema(s) de horror, Hatari! Revista de Cinema e na revista do Núcleo de Crítica Cinematográfica. Matheus Kerniski Escreveu para as revistas brasileiras Foco – Revista de Cinema, Filmologia, Hatari!, e para a espanhola Lumière. Participou da coletânea Cinema(s) de horror, da Editora Estronho, com artigo dedicado à obra de Dario Argento. É parte do comitê de programação do Cineclube da Faculdade de Artes do Paraná desde 2013. Atualmente, finaliza os estudos em Cinema pela Universidade Estadual do Paraná (Unespar).
FIDÉ Brazil 2017 | Movie review Now in its 4th year, Fidé Brazil 2017 continues to value documentary filmmaking at the student level. We believe that awards aren’t a good means of valuing the medium; instead, they serve to distinguish individuals and don’t necessarily contribute to documentary cinema as a whole. However, this year we decided to try something new: we asked three film critics to select and review one of the festival’s 27 short films. The aim is to value cinema, debate, criticism and film studies. Hanna Esperança Hanna Esperança holds a degree in cinema and audiovisual studies from the Universidade Estadual do Paraná (Unespar). She received a scholarship to work on the project Hatari Film Magazine and was involved in the production of five issues. Hanna specializes in feminist film studies with a focus on Brazilian cinema from the 1980s.
Letícia Weber Jarek Letícia Weber Jarek holds a degree in film and audiovisual studies from the Universidade Estadual do Paraná (Unespar) and coordinates the Atalante Collective Cineclub in partnership with the Cinematheque of Curitiba. She is also the editor of the film blog Vestido sem costura and has contributed to the following publications: Cinema(s) of Horror, Hatari Film Magazine and the Núcleo de Crítica Cinematográfica’s (Film Critic Center) magazine. Matheus Kerniski Matheus Kerniski has written for the Brazilian magazines Foco - Revista de Cinema, Filmologia, Hatari!, and for the Spanish magazine Lumière. His article on the work of Dario Argento appeared in the anthology Cinema(s) of Horror, published by Editora Estronho. Since 2013, he has been part of the programming committee for the Faculdade de Artes do Paraná’s Cineclub. Currently, he is completing film studies at Unespar.
→ Apnoe (Apneia), Nicola Sangs (Bélgica-Belgium/9’/2015) Por/By Hanna Esperança O contexto de produção de documentário estudantil me parece bem particular, até mesmo se comparado aos filmes universitários de ficção. Antes de iniciar a sessão de seu filme 327 Cuadernos (2015) no FIDÉ Brasil 2017, Andrés di Tella apontou uma honestidade em admitir erros, em permitir-se errar e experimentar no documentário estudantil que devia ser valorizada. Talvez venham daí filmes que esbarrem o tempo todo em qualquer noção pré-existente e pré-formulada sobre cinema, filmes que não te respondem absolutamente nada e muito menos te
deixam confortável com suas expectativas, mas que ao invés disso criam tantas perguntas que é impossível, uma semana depois, ainda não pensar sobre eles de uma forma tão intensa que começa a ser incômodo. Quase como uma obsessão... Apnoe (2016), de Nicola Sangs, não é exatamente um desses filmes. Mas há uma honestidade brutal em sua construção simples que faz com que eu não me esqueça dele e me inquiete tanto e até mais que filmes mais complexos. Uma vontade de falar sobre si
e ao mesmo tempo de comunicar com o outro que considero extremamente significativa. Vontade essa que parece existir com certa frequência no documentário estudantil – quando não se estende para além dele – como se em algum momento precisássemos nos conhecer antes de conhecer qualquer outra coisa, de saber se pertencemos aqui ou em lugar nenhum. Acho que acaba sendo um caminho de experimentação também. Não da linguagem em si, mas de nós. O documentário como receptáculo de nossas memórias, de quem nós somos ou fomos algum dia. Ou, ainda, o documentário como meio de cura. Muito foi discutido no FIDÉ Brasil 2017 sobre a memória no documentário e, para mim, sempre me pareceu natural amar tanto algo ou alguém que a única coisa a ser feita é um registro, um filme, transformar em memória física, frequentemente esquecendo de encontrar maneiras de lidar com o oposto disso. O que fazer com o trauma? A dor? Apnoe não nos dá uma resposta para isso, mas abre um caminho. O filme pode ser dividido em duas partes: a primeira construída por planos fixos de um banheiro, que são acompanhados por sons que montam as ações de alguém se preparando para um banho. A segunda parte são planos de dentro da banheira, iluminados somente por uma luz, um espaço que remete ao útero materno. Dentro da banheira, vemos a diretora imersa. A história nos é contada através do tex-
to, da narração em voz over que percorre todo o filme: a agressão física que a mãe sofre pelo namorado. A grande potência de Apnoe está na sua construção progressiva, tanto textual, quanto sonora e imagética. A memória que Nicola nos conta é extremamente específica, uma memória que não se esconde e não se abre para diversas interpretações, mas ainda assim é expressada de tal forma que nos toca, nos inquieta. A mudança de planos fixos de um banheiro perfeitamente limpo e neutro para os planos escuros e frenéticos de dentro da banheira, a narração que é extremamente controlada mas que escorrega nos pontos certos, potentes e o som que intercala entre batimentos cardíacos e o silêncio. E tudo culmina no penúltimo plano, em que apneia se desdobra em seu sentido literal: a suspensão momentânea da respiração. Em voz over, Nicola procura por ar e chama sua mãe. “Mama, você não deveria nos ajudar a respirar?”. É catártico, é um processo de renascimento. Depois de uma tela preta silenciosa angustiante, o ralo. Não existe metáfora tão satisfatória e completa quanto essa. Na verdade, Apnoe é muito direto nos seus objetivos, mas os seus subtextos, recheados de pequenas metáforas, é que nos tocam e não percebemos de imediato. Há algo que todos nós identificamos no ritual purificador que é o banho e que alguns irão reconhecer no ritual purificador fílmico. Apnoe utiliza dos
dois, talvez temeroso de que apenas um não fosse o suficiente. Se a memória de Nicola realmente ressurgiu pela imersão na água, pela lembrança dos primeiros dias, ainda assim foi preciso o documentário não para uma criação externa da memória, mas pela necessidade de compartilhar, de colocar uma memória que parece não se sustentar mais em si para fora, seja
The context of student documentary production seems rather particular to me, even when compared to student fiction films. Before starting the session of his movie 327 Cuadernos (2015) at FIDÉ Brasil 2017, Andrés di Tella pointed an honesty in admitting mistakes, in allowing oneself to make mistakes and experiment in a student documentary, an honesty that should be valued. Maybe that is where movies that bump into any pre-existing and preconceived notion of cinema all the time come from, movies which don’t answer anything at all nor make the viewer comfortable with their expectations, but instead ask so many questions that it’s impossible to, a week later, not think about them still, so intensely that it bothers. Almost like an obsession. Apnoe (2016), by Nicola Sangs, isn’t exactly one of those movies. But there’s a brutal honesty in its simple construction that makes me not forget it,
para o mundo, seja para o ralo. Afinal, me parece natural que, ao falarmos de nós mesmos de forma tão expositiva, acreditamos que possa atingir alguém. E se não, pelo menos tivemos a oportunidade de passar pelo processo doloroso e necessário que é filmar a si. Se essa não é a máxima poética do documentário estudantil, eu não sei qual é.
makes me uneasy, even more than with more complex movies. A desire to talk about oneself and, at the same time, communicate with others, which I consider extremely meaningful. A desire that seems to exist rather frequently in student documentaries - when it doesn’t extend itself beyond it -, like if at some point we needed to know ourselves before knowing any other thing, before knowing if we belong here or nowhere. I feel like it ends up being a way of experimentation as well. Not in terms of language, but in terms of ourselves. Documentary as a receptacle of our memories, of who we are or were someday. Or, yet, documentary as a mean of cure. A lot has been discussed at FIDÉ Brazil 2017 about memory in documentaries and, to me, it has always seemed natural to love something or someone so much that the only thing to be done is a record, a movie, transforming it in a physical memory, frequently forget-
ting ways of dealing with the opposite of that. What to do with trauma? And pain? Apnoe doesn’t give us an answer to that, but opens up a path. The movie can be divided into two parts: the first being constructed through steady shots of a bathroom, accompanied by sounds that compose the actions of someone getting ready for bath. The second part are shots from inside the bathtub, with only one source of light, resembling the mother’s womb. Inside the bathtub, we see the director, immersed. The story is told through text, the voice over narration that is present throughout the movie: the physical aggression the mother suffers from her boyfriend. The great power of Apnoe lies within its progressive construction, both textual and audiovisual. The memory Nicola tells us is extremely specific, a memory that doesn’t hide and isn’t open to many interpretations, but still is expressed in such a way that touch us, makes us uneasy. The shift from steady shots of a perfectly clean and neutral bathroom to the dark and frantic shots from inside the bathtub, the narration which is extremely controlled, but slips at the right times, the sound that takes turns between heartbeats and silence. And everything culminates on the second to last shot, in which Apnoe unfolds itself in its literal meaning: the momentary suspension of breath. In voice over, Nicola grasps for air and calls for her mother. “Mom, shouldn’t you help us breath?”. It’s cathartic, it’s
a process of rebirth. After a distressingly silent black screen, the drain. There’s no metaphor as satisfactory and complete as this one. Actually, Apnoe is very direct in its goals, but its subtexts are filled with small metaphors that touch us but we don’t immediately realize. There’s something we all can recognize in the purifying ritual that is the bath and that some people will recognize in the film process. Apnoe uses them both, maybe fearing that one wasn’t enough. If Nicola’s memory really resurfaced through the immersion in water, through the recollection of the first days, it still needed a documentary. Not to create an external memory, but for the need to share, to put a memory that doesn’t seem to sustain itself anymore out there, be it for the world, be it down the drain. After all, it seems natural to me that, by speaking about ourselves in such an exposed way, we believe it can reach someone. And if not, at least we had the opportunity of going through the painful and necessary process that is filming yourself. If that’s not the poetic maxim of student documentary, I don’t know what is. (Translated by Gabriela Quadros)
→ Urban Cowboys, Pawet Ziemilski (Polônia-Poland/30’/2016) Por/By Letícia Weber Jarek Os primeiros filmes são sempre muito importantes. À maneira dos primeiros acontecimentos que nos impactam e nos marcam para sempre, que pedem uma ação como resposta, os filmes debutantes são um desafio, um registro definitivo dessa resposta do homem frente às coisas – daquele que responde, que atua ao fazer um filme. Antes de tudo, há a curiosidade: a necessidade de ver e mostrar, ao mesmo tempo, uma pessoa, um objeto, um espaço e que pode não se saber muito bem como chegar lá, como fazer isso, mas parte-se sempre da certeza de que é
preciso mostrá-los. Esses filmes que, frequentemente, estão situados num âmbito mais informal, dos amadores ou dos estudantes, gozam de certa liberdade: uma espécie de independência das pequenas obras que podem se arriscar mais facilmente. Observamos, no festival, que alguns filmes se perdem nesse caminho: para alguns, a maneira de mostrar se interpõe àquilo que era primeiramente visado, parecemos não caminhar muito além; ou então, filmes que não sabem muito bem o que mostrar e que permanecem no meio desse caminho.
Evidentemente que as trajetórias dos filmes não são sempre lineares, por vezes visamos um destino e chegamos a outro. E nessas deambulações, nesses acompanhamentos despreocupados, nos deparamos muitas vezes com crianças que também vagam pelos cenários mais distintos, um pouco como Edmund em Alemanha, ano zero, que não estão à procura de alguma coisa, mas parecem estar à espera de que algo as encontre. Como Fares1 que, no filme que leva o seu nome, se equilibra em torno de um espelho d’água, em Túnis, distraindo-se com as coisas mais comuns como qualquer criança, nos contagiando um pouco com a sua imaginação. Ou Angelika2 que profere palavras tão duras para uma criança e que, por meio dessa carapaça, dá a ver um pouco da sua fragilidade, da distância que há entre ela e os seus pais. Luiza3 também representa esse enigma, demasiado menina mas também mulher, que brinca de dizer verdades. Essas crianças acabam encarnando exemplarmente esse objeto misterioso ao qual direcionamos o nosso olhar: espelhos opacos que terminam por revelar, aos espectadores e àquele que filma, pequenas evidências que insurgem em breves momentos e que nos capturam até o fim dessa jornada. Ou um pouco mais. É o caso de Dylan. Menino que vive em um subúrbio de Dublin e que só
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deseja recuperar o seu cavalo. Se não fosse pelos planos iniciais de Urban Cowboys, quase acreditaríamos que ele está a brincar de caçar cavalos selvagens com seus amigos, porém, à medida que os planos se seguem, seus familiares se reúnem em torno desse cerco e o questionam sobre o seu plano, percebemos que algo subjaz essa ação, a fomenta: depois da captura, um dos seus amigos diz quase à surdina que a mãe de Dylan faleceu, que ela se chamava Michelle e que esse cavalo recapturado foi, outrora, nomeado por Dylan de Shelly. Se chegamos, ao fim do filme, a encarar mais de perto essa projeção primitiva que Dylan realiza, uma tentativa de cicatrização da perda da mãe, é porque antes de tudo partimos de um olhar interessado, que quer que acompanhemos realmente esse drama. Nesse sentido, alguns desafios são lançados ao diretor justamente por esse universo que nos é apresentado: torna-se imperativo filmar homens e cavalos, meninos e animais dentro dos mesmos planos, visto que, inicialmente, a separação entre eles já é um problema. Ora, se o plano geral comporta com mais justeza a potência desses cavaleiros no espaço urbano, as vibrações desses espaços naturais e desses animais em contraposição aos elementos da cidade, os grandes planos também jogam com uma série de riscos
Fares, Angelika e Luiza são, respectivamente, os protagonistas dos filmes Fares (Thora Lorentzen, 2016), Luiza (Caio Baú, 2017) e Angelika (Léopold Legrand, 2016), exibidos no Fidé Brasil 2017.
que ameaçam um programa do autor, o fragilizam. Em outras palavras, o artista é testado pelas intempéries das coisas que deseja filmar. Em Urban Cowboys, esse desafio é aceito. Falávamos no início de que, por vezes, caminhamos em direção a um destino e chegamos a outro, é um pouco do que acontece aqui: começamos a assistir a busca de Dylan por Shelly e no fim descobrimos, nós e ele, que essa conquista, o fato de possuí-la
First movies are always very important. Just as first happenings impact us and mark us forever, asking for an action as an answer, debut movies are a challenge, a definitive record of a man’s answer before things - of the one who answers, who acts by making a movie. Prior to all, there’s curiosity: the need to see and show, at the same time, a person, an object, a space that you may not know how to reach, how to achieve, but it always starts from the certainty that it is needed to show them. These movies that are, frequently, located in a more informal scope, of amateurs or students, enjoy a certain freedom: a kind of independence little works have that allows them to take risks more easily. We observed, at the festival, that some movies get lost in this path: to some, the way of showing interferes with what was first wanted, we seem to not get beyond that; or,
realmente, vai muito além de deixá-la presa no quintal. Para que haja esse pertencimento mútuo, entre cavalo e cavaleiro, é preciso primeiramente que ele dome os seus medos, os seus traumas. Shelly lhe oferece essa possibilidade de um amadurecimento, a partir do reconhecimento de que há coisas que o ultrapassam. Que ultrapassam também a imagem, mas que não deixam de estar lá, presentes. Poderíamos dizer então que valeu a pena correr tantos riscos.
then, movies which don’t know very well what to show and remain halfway in this path. It is evident the trajectories of the movies aren’t always linear, sometimes we aim for a destination and arrive at another. And in these wanderings, these unconcerned followings, we often find ourselves facing children who also roam around the most distinct sceneries, a little like Edmund in Germany, Year Zero, who aren’t looking for something, but rather seem to be waiting for something to find them. Like Fares1 that, in the movie that has his name, balances himself over a pond, in Tunis, distracting himself with the most common things like any child, infecting us a little with his imagination. Or Angelika2, who says such harsh words for a kid and that, through this carapace, lets some of her frailties and the
distance between her and her parents show. Luiza3 also represents this enigma, she’s a girl, but also a woman, who plays of telling truths. These children end up exemplarily embodying this mysterious object to which we direct our gaze: opaque mirrors that end up revealing, to the spectator and to the one who films, little evidences that appear in brief moments and that capture us to the end of this journey. Or a little more. That’s the case of Dylan. A boy who lives in a Dublin suburb and only wants to recover his horse. If it wasn’t for the first shots of Urban Cowboys, we would almost believe he was playing of hunting down wild horses with his friends, however, as the movie progresses, his relatives gather around and question him about his plan, and we realize that something subjugates this action, promoting it: after the capture, one of his friends says almost inaudibly that Dylan’s mother has passed away, that she was called Michelle and that this recaptured horse was once named Shelly by Dylan. If we get, at the end of the movie, to face more closely this primitive projection that Dylan realizes, an attempt of healing the loss of his mother, it is because before everything we depart from an interested gaze, that wants us to really follow this drama. In this sense, some challenges are thrown to
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the director precisely by this universe that is presented to us: it becomes imperative to film men and horses, boys and animals in the same shot, once their separation is already a problem. Well, if the wide shot carries more fairly the potency of these riders in the urban space, the vibrations of these natural spaces and these animals in contraposition to the city elements, the wide shot also plays with a series of risks that threaten an auteur program, fragilizing it. In other words, the artist is tested by the difficulties of what he wishes to film. In Urban Cowboys, this challenge is accepted. We talked in the beginning about how, sometimes, we walk towards a destination and arrive at another. That’s a little of what happens here: we start to watch Dylan’s pursuit of Shelly and at the end we find out, us and him, that this achievement of having her goes way beyond leaving her a prisoner in the garden. So there’s this mutual belonging, between horse and rider, it is firstly needed that he tames his fears, his traumas. Shelly offers him this possibility of growth, by recognizing that there are things that are beyond him. That are also beyond image, but it is still there present. We could then say it was worth it taking so many risks. (Translated by Gabriela Quadros)
Fares, Angelika and Luiza are, respectively, the protagonists of the movies Fares (Thora Lorentzen, 2016), Luiza (Caio Baú, 2017) and Angelika (Léopold Legrand, 2016), shown at Fidé Brasil 2017.
→ Para lá do Marão/Beyond Marão, José Fernandes (Portugal/7’/2015)
Por/By Matheus Kerniski Em apenas três dias, o FIDÉ Brasil 2017 é um mutirão de filmes. Em sua intensa jornada, o recorte documental estudantil nos especifica muita coisa sobre a vontade de fazer filmes e, sobretudo, o estado de se fazer seus primeiros filmes. De um lado, a âncora de algumas realizações em cima dos seus personagens: quando aquele em cena vence e torna-se maior que o filme. A grandeza vem apenas daquele em cena, sem um compromisso e retorno do próprio filme para aquele que ali lhe deu tudo.
Do outro lado, realizadores que buscam quase o contrário: os próprios acabam por se sobrepor ao personagem, ao tema, ao espectador. É o caso dos filmes que mais parecem brutos de seu material, desnorteados por sua ambição, alquebrados em imagens das quais não conseguem se desprender. Os filmes se arriscam em suas procuras, mas perdem em suas medidas. Enquanto isso, onde fica a vocação de suas imagens? Dito isto, os dois casos denotam escassez de imaginação e arrojo condi-
zentes com os primeiros passos no cinema. É bem sabido que filmar não é nada fácil. Suas precariedades, que fique claro, não reportam aos meios de suas produções, mas defrontam uma confusão em seus fios internos, nas construções, vontades e essências que imprimem em tela. Todavia, podemos também afirmar que existe no amador uma potência que o lado profissional mais racional é capaz de engessar. Quando uma câmera de primeiros filmes se lança em confronto ao mundo, com qualquer coisa de imperfeita e primitiva, ela nos ensina uma nova precisão através de sua violência e paixão. Nos mostra que ainda não se sabe muito e que, no fundo, saber tudo é se dar por convencido. Mais lúcido seguir com humildade e generosidade do que em cima de certezas que não possuímos. É um tanto esta lição que percebemos em Para Lá do Marão, a pequena pérola de José Fernandes, o filme do festival que mais se destacou aos meus olhos. Há vários assombros que saem de seus poucos minutos. O primeiro deles nasce no comparativo aos outros filmes presentes no festival: Para Lá do Marão está em busca da síntese e sua existência depende dela. Isto se dá imediatamente por suas composições, uma soma de quadros austeros, assaz contemplativos, como muito visto naqueles dias de FIDÉ. Diferente destas outras propostas, por aqui não há gesso entre
estes planos, muito pelo contrário. O diretor encontra a duração justa de seus planos e o filme então flui por ter descoberto sua respiração. Nele não se trabalha com a ideia dos planos isolados em si mesmos, mas com a constante conjugação deles, como se faria com um verbo. Sem temer em momento algum que seu filme dependa da montagem para este fim. Qual é este verbo? O Norte do seu país. Suas conjugações? As planícies, casas, árvores e animais. Em suma, suas superfícies e segredos sublinhados. Pouco se é dito, o necessário é visto. Chega-se então ao mistério de um Portugal profundo, com uma névoa por cima do fabular, graças a uma montagem que se assemelha a um mapa cartográfico. Vale lembrar que a principal função da cartografia é delimitar, por assim dizer, para salvar em um mapa a imagem de um lugar por completo. Um mapa é eficiente, algo que se lança aos olhos com objetividade. Para Lá do Marão cria sua aura não muito distante desta ideia. O caso dele é muito similar à função do mapa: está diante de nós para nos guiar, nunca para nos perdemos. Por isso sua concisão, fruto do expediente de atenção do realizador, de sua busca in loco. Este é o seu ofício. Como intermediário ele nos apresenta, em sete minutos, a experiência de ter estado por ali muito tempo. Encontramos horas em minutos, o passar dos dias em planos.
Tudo isto, muito importante ressaltar, sem nenhuma sedução de José Fernandes por suas próprias imagens, outro comum vício de primeiras obras. Há o rigor do elemento pictórico, ampliado sobremaneira pelo digital, se ajustando ao jogo de sombras, aos vestígios da vida que ali resiste. Naquilo que apenas entrevemos de modo turvo: o pastoril no campo, uma carroça cheia de galhos, a amamentação de um filhote, e a própria ação da natureza no espaço (chuva, vento, neve, neblina, erosão). Há uma dosagem entre a dilatação da cor, que nos remete aos primeiros experimentos em vídeo, com a sobriedade climática local, de tom roxo-azulado. O verde digital da grama torna-se tão pluviométrico quanto o nublado ar local. Trabalho de esmero artesanal, de pintor e etnógrafo, entre os extremos da câmera digital e os da tela aberta que é o Norte ao cineasta. Na conclusão desta mistura, o filme acaba por respirar afinal apenas uma cor: aquela da melancolia local, recôndita no bucolismo campesino. Seu assombro final é o de propor uma experiência tão imersiva sem perder em nenhum momento o enigma daquela
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região, o mistério que habita os movimentos locais. Nunca um estrangeiro poderá os compreender plenamente. É por isto que o filme abre com um vulto em um plano aberto e termina com um close de um rosto humano, o único em toda sua duração, que logo se perde nas sombras. Se pensávamos estar a conhecer algo daquele ambiente, terminamos com uma certeza: quanto mais se vê, menos se percebe. Há muito mais que não sabemos. O que não foi possível dar a ver continuará seu decurso e estas imagens moram no escuro do final. O recuo de seu diretor já nos permitiu o suficiente A sinopse do filme fala sobre extinção, sobre um mundo que está para desaparecer. Termino o filme com uma sensação até mais distinta: de que não tem como tudo aquilo desaparecer, pois tudo ali nunca existiu para nós. Sempre pertenceu a um outro tempo, um outro plano. Lugar de fato mítico, sem passado ou futuro, pouco alterado ao longo dos séculos. De uma outra vida perdida sempre em seu presente, de tempos em tempos desmistificada e aberta ao nosso mundo. Nem que seja por sete minutos.1
P.S.: Apesar da evidente conexão ao melhor cinema português que se lançou no interior de Portugal (penso especificamente no Veredas (1978) de João César Monteiro, no Movimento das Coisas (1985) de Manuela Serra, no casal Antònio Reis e Margarida Cordeiro e seus filmes na mesma região do Norte, mais especificamente em Trás-os-Montes), existe uma filiação de outro país que penso capaz de agradar muito os que viram e gostaram deste filme: o cinema de Michelangelo Frammartino, mais especificamente As Quatro Voltas (Le Quattro Volte, 2010). Para Lá do Marão é um ótimo prólogo para uma sessão dupla com este filme. Comprovem quando possível.
In only three days, FIDÉ Brasil 2017 was a wide ensemble of movies. In its intense journey, the cross section of student documentary specify a lot to us about the will to make movies and, above all, the conditions for making your first movies. On one hand, there’s the anchor of some realizations over its characters: when the one in the movie wins and becomes bigger than the movie itself. The greatness comes only from the one inside the movie, without any commitment and pay off from the movie to the one who gave it everything. On the other hand, there are filmmakers who look for almost the opposite: they themselves end up overlapping the character, the theme, the spectator. It’s the case of movies that seem to be rawer from its material, bewildered by its ambition, weakened by images from which it can’t detach itself. Movies take risks in their searches, but lose in their measures. Meanwhile, where is the calling of its images? That said, both cases denote a scarcity of imagination and audacity that are suitable to the first steps of cinema. It is well known that filming is not easy at all. Its precariousness, to make it clear, do not report to the means of its productions, but face a confusion in its inner wirings, constructions, wills and essences that are printed onscreen. Nonetheless, we can also affirm that there is in the amateur a power that
a more rational professional can plaster. When a camera of first movies is thrown facing the world, with anything that’s imperfect and primitive, it teaches us a new precision through its violence and passion. It shows us that not much is known yet and, deep down, knowing everything is being conceited. It’s more lucid to go on with humility and generosity than upon certainties we don’t have. That’s somewhat the lesson we take from Beyond Marão, the little pearl by José Fernandes, the movie which standed out the most in my eyes. There are many hauntings that come from its few minutes. The first of them comes from comparing it to the other films in the festival: Beyond Marão is searching for synthesis and its life depends on it. This happens through its compositions, an addition of severe shots, considerably contemplative, like many seen in the FIDÉ days. Different from these other propositions, here there’s no plaster between these shots, on the contrary. The director finds the fair time span of his shots and once the movie has discovered its breath, it flows. It doesn’t work with the idea of shots isolated in themselves, but with the constant conjugation of them, like you would with a verb. Without fearing, at any moment, that your movie depends on editing to its end. What verb is that? The North of its country. Its conjugation? The planes, houses, trees and
animals. To put it shortly, its surfaces and underlined secrets. Little is said, enough is seen. We arrive then at the mystery of a deep Portugal, with a fog over the fabulating, thanks to the editing that resembles a cartographic map. It’s worth noting that the main function of cartography is to delimit, so to speak, to save in a map a complete image of a place. A map is efficient, something that throws itself to the eyes objectively. Beyond Marão creates an aura not too far from this idea. Its case is very similar to the function of the map: it’s in front of us to guide us, never to get us lost. That’s the point of its concision, fruit of the director’s search in loco. This is his job. As an intermediate, he shows us, in seven minutes, the experience of having been there for so long. We find hours in minutes, the passing of the days in shots. All of this, very important to note, is without any seduction of José Fernandes by his own images, another common vice of first movies. There’s the rigor of the pictoric element, made extremely big by digital image, adjusting itself to the shadowplay, to the traces of the life that is there. In what we are only allowed a glimpse of: the pastures, a wagon full of branches, a baby animal being breastfed, and the action of nature itself in the space (rain, wind, snow, fog, erosion) There’s a dosage between the dilatation of color, that refers to the first
video experiments, and the sobriety of the local climate, of a blue-purple tone. The digital green of grass becomes so rainy as the local cloudy air. A work of artisanal dedication, of a painter, an ethnographer, between the extremes of the digital camera and of the open screen that is the North of the filmmaker. In the conclusion of this blend, the movie ends up breathing only one color, at last: the local melancholy, hidden in the bucolic country. Its final amazement is that of proposing such an immersive experience without losing the enigma of that region at any point, the mystery that lies within the local movements. Never will a foreigner understand them completely. That’s why the movies starts with a vulture in a wide shot and ends with a close of the human face, the only one in its entire duration, and that soon loses itself in the shadows. If we thought we were getting to know something about that ambient, we end up with a certainty: the more we see, the less we realize. There’s a lot more we don’t know. What wasn’t possible to be shown will continue its course and these images lie at the dark at the end. The staying back of the director has allowed us to see enough. The synopsis of the film talks about extinction, about a world that’s about to disappear. I finish the movie with an even more distinct sensation: that there’s no way that of all that is disap-
pearing, because all of that has never existed for us. It has always belonged to a different time, a different realm. A place that’s indeed mythical, without a past or a future, that has been little altered throughout the centuries. Of another life forever lost in its present, demystified and open to our world from time to time. Even if it’s only for seven minutes.1 (Translated by Gabriela Quadros)
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P.S.: Despite the evident connection to the best portuguese cinema in the Portugal countryside (I think specifically of Veredas (1978) by João César Monteiro, of Movimento das Coisas (1985) by Manuela Serra, of the couple Antònio Reis and Margarida Cordeiro and their movies in the same northern region, more specificaly in Trás-os-Montes), there is a filiation of another country that I think is able to please the ones who have seen this movie: the cinema of Michelangelo Frammartino, more specifically Le Quattro Volte (2010). Para Lá do Marão is a great prologue to a double session with this movie. Prove it when possible.
Realização:
Incentivo:
PROJETO REALIZADO COM O APOIO DO PROGRAMA DE APOIO E INCENTIVO À CULTURA FUNDAÇÃO CULTURAL DE CURITIBA E DA PREFEITURA MUNICIPAL DE CURITIBA.
Apoio: