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A escrita do fim do mundo
1.
Outro dia passou por aqui um furacão. Literalmente. Tornou-se o grande assunto na mídia alemã, um furacão que, vindo do Norte, atravessaria o país, e Colônia estava prevista como uma das principais cidades em seu caminho. As escolas fecharam, compromissos foram adiados, muita gente não foi trabalhar, toda a cidade em alerta. No final, o furação foi bem menos impressionante do que as chuvas no Rio de Janeiro ou o dia que se fez noite em São Paulo, mas ficou a lembrança do momento em que fui até a varanda salvar umas plantas esquecidas e me deparei com o cheiro de mar, a umidade; o furacão nem havia aparecido ainda, mas já trazia com seus primeiros ventos um pouco do mar do norte. Quando ele finalmente chegou em Colônia, já era de madrugada e eu dormia sonhos intranquilos que se esvaíram logo ao despertar.
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2.
Aqui perto fica o Museu do homem de Neandertal (Neanderthal Museum). Uma dessas improváveis coincidências. Há tempos o Homo sapiens neanderthalensis faz parte dos meus interesses aleatórios – costumo pensar em sua extinção, especialmente no fato de ele ter habitado a Terra por mais de 300 mil anos antes do sapiens sapiens surgir. Sabe-se que, após meros 40 mil anos de sapiens (coexistência após o sapiens se espalhar para fora da África), o homem de Neandertal acabou. Essa sombria coincidência. Sabe-se que tinha domínio do fogo, da linguagem, cuidava dos velhos e doentes, criava artefatos, cumpria rituais funerários. Sempre me pareceu no mínimo curioso alguns cientistas afirmarem que o fim do homem de Neandertal se deve, entre outras possibilidades, ao fato de ele não ter sido capaz de criar ficção. Mas será possível ser capaz de falar sem, automaticamente, criar ficção? Rememorar o passado ou simplesmente contar como foi a última caçada? Será possível enterrar seus mortos sem criar ficção? Afinal, o que é a morte além de uma grande ficção? Talvez a maior de todas. Penso no último remanescente, o último homem de Neandertal olhando para um mundo que se acabava.
3.
Sabe-se que as baleias têm linguagem (inclusive dialetos) e que os elefantes choram seus mortos. Nada é natural na natureza.
4.
A primeira vez que li a palavra Antropoceno foi num artigo do jornal The Guardian, que apresentava o filósofo Timothy Morton como uma das principais vozes desse novo período geológico: o profeta do Antropoceno. Fiquei sabendo que Timothy Morton trocava cartas com Björk. É possível acessar on-line essa correspondência. Numa delas Björk diz (em caixa-baixa, tenho especial simpatia por quem escreve em caixa-baixa): “sinto que, de muitas formas, nós, os islandeses, somos um pouco diferentes dos eua e da inglaterra. de certo modo, nós perdemos a revolução industrial, o modernismo e o pós-modernismo e agora estamos vindo direto do colonialismo (...).” Me pareceu que fazia sentido esse intercâmbio.
5.
O Antropoceno é o nome que alguns dão à (nova) era geológica que estamos vivendo e que caracteriza-se pela atual e incontestável capacidade humana de destruir o planeta e tudo o que há nele (incluindo a nós mesmos). Alguns datam o fim do Holoceno (era geológica anterior, que durou quase 12 mil anos) no início da Revolução Industrial, outros preferem a tese da grande aceleração, que põe o fim do Holoceno na explosão da primeira bomba atômica, no deserto do Novo México. Quem viu o último Twin Peaks vai se lembrar do impressionante episódio oito, quando essa mesma explosão atômica libera o espírito maligno que dará todas as dores de cabeça ao agente Cooper e a quase todo o resto do elenco. De certa forma, o que fizeram foi nada mais nada menos do que dar um nome científico (ou vários) para o que antigamente chamávamos de fim do mundo. É claro que a palavra Antropoceno provoca uma série de críticas: dá uma roupagem “científica” a saberes que sempre existiram nas culturas não ocidentalizadas e que até então eram vistos como simples ideias exóticas e, além disso, mais uma vez coloca o ser humano como medida de todas as coisas. Surge então uma longa lista de conceitos e discursos, como o Capitaloceno (o capitalismo como eixo central desse ocaso) ou Chthuluceno (termo proposto por Donna
Haraway, que considera as relações entre os diversos seres que compõem a vida na e da Terra). Enfim, seja como for, o mundo vai acabar, ao menos como o conhecíamos: há fatos concretos muito claros, como o aquecimento global, a pandemia, a destruição acelerada da natureza. E, junto com esse ocaso, entra em crise também a mentalidade vigente: a razão cartesiana ocidental colonialista binária (poderia acrescentar mais alguns adjetivos…), e nada mais será como imaginávamos antes. Mas, ao contrário do que possa parecer, há sempre luz no fim do túnel (ao menos luz ao sul da tempestade!). Essa crise nos traz a valiosa oportunidade de lançar um novo olhar sobre o que sempre esteve ali, mas não queríamos enxergar: as visões de mundo indígenas, afro-brasileiras, amefricanas, aborígenes, entre outras. Diante da difícil tarefa de repensar conceitos como humanidade, natureza, cultura, subjetividade, são justamente as culturas e cosmogonias marginalizadas que podem nos oferecer soluções, insights e apontar caminhos a seguir. Ao menos luz ao sul da tempestade.
6.
Em Frankfurt, esteve em cartaz uma exposição chamada Trees of life, com o subtítulo: narrativas para um planeta deteriorado. O objetivo era criar um diálogo entre ciência e arte, o que inclui diversos saberes: física, biologia, ecologia, artes visuais, literatura, e a pergunta principal era: quem somos ? E especialmente: que relação é essa entre natureza e civilização? Quem ou que discursos definem o que é natureza ou o que é humano? Afinal, o que é o ser humano? Um animal como outro qualquer? Um ciborgue? Um sonho? Um cérebro? Um corpo humano? Esse corpo que, segundo os cientistas, abriga apenas 43% de células humanas. Porque, sim, nem mesmo o corpo humano é tão humano como pensávamos.
7.
Algumas frases que sempre me acompanham: O inconsciente é estruturado como uma linguagem (Lacan); A literatura é o sonho acordado das civilizações (Antonio Candido); Os grandes escritores são aqueles que inventam os seus leitores (Ricardo Piglia).
8.
Durante a sua longa passagem neste planeta (500 mil em comparação aos nossos 200 mil anos), o Homo neanderthalensis aprendeu a fabricar artefatos (caça e pesca) e deixou nas cavernas no sul da Espanha, além de conchas perfuradas que um dia foram parte de um colar, rastros de imagens, desenhos, essas coisas que costumamos chamar de arte. Depois os cientistas descobriram que nossa porcentagem de DNA neandertal pode chegar a até 4% em alguns casos. Ou seja, essa herança continua em nossos genes, lembrando-nos que, apesar de nossas vaidades, sim, somos nós, mas também somos um outro.
No Mundo Desdobr Vel
nossos passos rítmicos cíclicos murmuram ao longe folhas mortas outonais no mundo desdobrável a casa não é uma casa a rua não é uma rua a espera não é uma pausa no mundo desdobrável corre subterrâneo teu nome em silêncio no mundo desdobrável a frase é também outra frase e outra frase e outra frase e outra e outra e outra frase até cansar no mundo desdobrável nada vai a lugar nenhum nada vai nada volta os seres já estavam todos prontos num único ponto no mundo desdobrável o poeta é expulso pelo poema mola pássaro serpentina de carnaval