Corpo-cidade: temporalidades do ser urbano e do fazer cotidiano

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO Instituto de arquitetura e urbanismo

CIDADE-CORPO:

temporalidades do ser urbano e do fazer cotidiano Este artigo propõe dispor uma repertório de pensamento que foram estimulados e desenvolvidos ao longo do semestre, de forma que eles não estão totalmente fechados e algumas vezes até mesmo precipitado. Entretanto a minha intenção é trazer uma introdução minha ao debate desses temas que vou descrever ao longo do artigo, de forma mais livre e que represente a minha perspectiva frente a essas temáticas

PAUL NEWMAN DOS SANTOS Novembro de 2016


1.INTRODUÇÃO:

cidade vivida vs. cidade planejada A cidade sempre foi um campo de debate multidisciplinar que contempla incontáveis pontos de vistas e perspectivas. O enfoque do crescimento urbano tem hoje uma relação intrínseca com questionamentos não apenas de planejamento, mas de vivências ou de modos de viver a cidade. Assim, a relação e o eventual conflito entre cidade planejada e cidade vivida é resultado da relação do homem – e sua subjetividade – frente a cidade, ou ainda de um inevitável conflito entre projeto e cotidiano. Isto pois é notável perceber que, desde a constituição da metrópole moderna, a cidade se desenvolve e, qualquer que seja o modelo urbano adotado para seu planejamento, ela irá enfrentar uma inevitável variante que atua em seu crescimento e funcionamento: o homem. Um corpo que é tão subjetivo adentra a lógica de planejamento da transformação urbana e irá, inevitavelmente, conflitar-se com o programa estabelecido para a manutenção do raciocínio da produção da cidade. Isto porque, frente a necessidade de ser um mecanismo técnico social para responder a demandas da vida urbana, o sujeito irá responder, em certos momentos, com relutância pois a subjetividade não é passível de total controle. Independente do nível de controle e organização das funções e rotinas sociais, o indivíduo tende a querer manter a sua autonomia frente a grande massa social. Anexo a isso, à esta necessidade de autonomia da sua subjetividade, vem uma atuação no espaço urbano que não diz respeito de uma prática contínua, mas sim esporádica e espontânea, que é relacionada a experiência da corporeidade dentro do campo da cidade. Mesmo que esse nível de experimentação não seja programado, é de se observar a potencialidade que possuem as ditas corpografias, deriva ou mapas afetivos em questionar a relação do corpo e do território, bem como estabelecer um grau de resistência a transformação imagética do espaço urbano. Até esse ponto se estabelecem algumas questões que são interessantes de serem desdobradas para que se possa estabelecer novas relações mais concretamente. Tentei introduzir alguns comentários que de

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alguma forma tateiam o debate que circunda as ideias de domesticação, corpo e cidade, temporalidade e acaso.

2.COMENTÁRIOS URBANOS:

questionamentos sobre a insanidade urbana ou indagações de uma mente citadina A cidade, enquanto território humano deve responder não somente às necessidades funcionais do viver urbano, mas também às necessidades e desejos subjetivos das sociabilidades de diferentes sujeitos. Mesmo que, na essência, para o ser humano sobreviver seja necessário apenas comida, calor e abrigo, é de se relevar que como seres interpessoais nos estabelecemos a partir de um conjunto de relações sociais, portanto o espaço que habitamos deve ser capaz de sustentar essas relações. Dentre as diferentes cargas teóricas que propõe ler cidade, entender o espaço urbano a partir do dever de sustentar a relações sociais é entender, a princípio, a cidade como um campo de relações que se apoiam em vínculos emocionais. Não no sentido de emoções subjetivas concretamente, mas de afetividades urbanas que se estabelecem entre as tribos urbanas1 ou entre o indivíduo - que é ​um elemento social - e o espaço da cidade.

Frente à esta perspectiva é de se questionar se nossa cidade, em

especial as cidade brasileiras pelo seu processo de construção, de fato corresponde à sustentação dessa relações sociais. Ou seja: se o espaço da cidade, para além de ser um elemento funcional que responde a necessidades básicas do ser humano, oferece artifícios suficientes para esta camada subjetiva das afetividades urbanas. Proponho, nesse ponto, uma reflexão sobre estas questões trazendo como um princípio

de discussão o termo insanidades urbanas. Não

caminhando no sentido de sanidade urbana enquanto salubridade, saneamento ou saúde pública, mas estabelecendo uma analogia com o termo

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O termo ​tribos urbanas é referente a definições de Michel Maffesoli, onde se estabelecem sub

sociedades ​constituídas de microgrupos ​que têm como objetivo principal estabelecer ​redes com base em interesses comuns, conformidade de pensamentos, hábitos e maneiras.

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(in)sanidade mental. Literalmente, este termo diz respeito a uma condição de equilíbrio mental. Dizer que alguém está são, é dizer que está em estado de equilíbrio físico, psicológico e mental. Ou o contrário, dizer que uma pessoa está insana, é dizer que a memória, o pensamento e a atenção estão em algum nível subvertidos a ponto de criar uma fragilidade na consciência do indivíduo. De modo que a pessoa não consiga permanecer em seu meio social, de tal forma que não se reconheça no seu próprio espaço de relações. Ou seja a ​pessoa insana não possui os atributos básicos para se manter vivendo e convivendo em uma sociedade.

Agora o que é pensar, partindo dessa analogia, em insanidades urbanas. Dizer que a cidade possui insanidades é dizer que, em certos episódios, a cidade enquanto corpo e sujeito não possui os atributos básicos para se manter vivendo e convivendo em uma sociedade. Ou seja, a cidade não se reconhece no seu próprio espaço de relações, de fala e de forma. O espaço urbano não possui equilíbrio para estar são em todos episódios que permeiam as relações cotidianas. É de se notar aqui que não se trata necessariamente de encarar a cidade como sujeito ou organismo que possui uma existência consciente ou até certo ponto orgânica. A produção do espaço da cidade responde a fatores externos ao campo disciplinar da arquitetura e do urbanismo e até mesmo externos à lógica de relações sociais e afetividades urbanas. Entretanto, é pertinente fazer esse recorte e entender a maneira como a cidade, enquanto espaço ou campo de relações, estrutura os episódios cotidianos de cada indivíduo e das suas respectivas tribos urbanas. Da mesma forma, é pertinente entender o que contribui para que a cidade, em alguns momentos, não dê suporte ou não estimule as relações cotidianas tão próprias do ser urbano. Portanto, falar de insanidades urbanas é expor que existem, no espaço da cidade, pontos que não se articulam com a informalidade do cotidiano e com o dever de sustentar a relações sociais. Assim sendo, é pertinente estabelecer alguns comentários e explicitar certos entendimentos antes de afunilar essa discussão, para que se tenha com clareza os termos e questões que sustentam este raciocínio. Tentarei traçar um panorama de questionamento e posicionamento frente a essas

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questões de fundo, tais como relação entre corpo, território e cotidiano; informalidade e processos de produção da cidade.

COMENTÁRIO#1 domesticação do ser Segundo a perspectiva de Michel Foucault, a sociedade, dentro de uma relação de poder e submissão,

se pauta na produção de corpos

transformados para a socialização.

Desde que o sujeito nasce ele está

expostos aos padrões e condições que são impostos para que esse sujeito possa viver para a sustentação da sociedade. Tal sustentação implica na criação de corpos dóceis e úteis que sigam as regras modeladas, isto porque a domesticação (ou “adestramento”) dos corpos está relacionada à disputa de poder e lugar. Foucault propõe entender que não existe um só poder que organiza as outras partes, mas múltiplos micropoderes que se estabelecem nas relações que permeiam toda sociedade. Cada indivíduo possui um poder capaz de consolidar uma soberania política, entretanto, a ideia de controle e submissão dos corpos perante a outros advém de um jogo de forças entre indivíduos. O controle de um corpo sobre o outro se estabelece a partir de um exercício do poder disciplinar da domesticação. O processo de tornar os corpos úteis implica em manipular comportamentos para fazer com que os corpos submissos, frente ao poder de controle, sejam úteis para a sociedade. É interessante colocar a possível similaridade entres a domesticação dos corpos do pensamento de Foucault e a produção do espaço da cidade a partir da modernidade. O que podemos notar é um alinhamento com uma mentalidade maquínica de ver e entender a cidade a partir de uma lógica fordista, onde dentro de uma lógica de produção do espaço e de sociabilidades existem funções específicas, não apenas para grupos sociais como também para espaços urbanos. Houve um esforço em estabelecer uma domesticação do espaço da cidade para que ela corresponda ao processo de transformação que a modernidade defendia. As sociabilidades, as relações e papéis sociais estão expostos a padrões e condições de um modelo, de modo que resulta em um agrupamento de construções sociais que contribuem para a sustentação da sociedade.

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Não se trata de constituir uma crítica a este processo de domesticação, mas de considerar que as articulações sociais foram domesticadas a tal ponto que a subjetividade dos atores urbanos, seja o espaço construído ou o indivíduo, se esvaziaram de significados de modo que tudo o que era vivido dentro do campo da cidade tornou-se puramente representação. Uma imagem que responde a um método de controle e anestesiamento. Logo, o processo de transformação da cidade incorpora a lógica de domesticação dos corpos e do espaço, bem como de se instaurar enquanto um conjunto puramente imagético. O que é válido notar, é que a produção do espaço urbano e das relações que nele se estabelecem sempre responderam uma lógica externa às suas necessidades.

A forma como a cidade de

estabelece frente a seus habitante em grande parte respondeu ao interesse econômico e moral, de modo que a formação das relações sociais, já incluídas na lógica de produção capitalista e de domesticação, transformou-se em um produto imagético que é produzido e vendido. E as imagem dessas relações sociais, totalmente esvaziada de significados, constituem no campo da cidade, uma imensa acumulação de espetáculos que irá estruturar um espaço urbano. A dimensão desse espetáculo domesticado vai caracterizar o que Guy Debord apresenta como anestesiamento das experiência urbana. A falta de significados do cenários e episódios urbanos somada às condições de domesticação e controle resulta em um grande empobrecimento do viver e experimentar a cidade a partir da sua própria subjetividade.

COMENTÁRIO#2 corporeidades e lentidão Frente à domesticação imagética do espaço urbano, onde a cidade é vista como um conjunto de espetáculo e representação, existe uma certa resistência da parte do homem contemporâneo, do mesmo jeito que existia uma resistência do homem moderno, em ser incorporado a um sistema. A questão apontada por Simmel2 de que os problemas da vida urbana moderna advém do conflito da subjetividade do sujeito frente ao projeto, é algo que “O mais profundo problema da vida moderna emana da pretensão do indivíduo de conservar a autonomia e a peculiaridade de sua existência frente à prepotência da sociedade", (SIMMEL, 2011, p. 247) 2

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tem seus desdobramentos na discussão contemporânea. Mesmo que exista um esforço para a manutenção do sistema imagético e domesticado, o sujeito-indivíduo, dentro do seu campo de subjetividade, tenta se opor à lógica vigente – no caso da modernidade, a mecanização, e do contemporâneo, o sistema imagético. Isto porque o sujeito urbano, mesmo que siga sua função social e entre no estado anestésico da sociedade do espetáculo, nutre uma inevitável vontade de conservar a autonomia e a peculiaridade individuais. Assim, irão existir na cidade inelutáveis situações que proporcionarão ao sujeito uma experiência urbana totalmente desvinculada do processo de domesticação e de imagem. Situações que advém não necessariamente de uma consciência pré-estabelecida do indivíduo de sair desse sistema, mas sim de momentos onde o acaso quebra a rotina e a cidade se mostra de uma maneira diferente, de tal forma que a experiência da cidade não se vincula a maneira que é proposta pelo programa urbano do sistema. Desde os anos 1960, com as discussões de Jane Jacobs sobre a utilização da Rua ou a ideia de Pertencimento do casal Smithson, vai se potencializar o discurso em cima deste conjunto de indivíduos que experimentam a cidade de uma maneira que não é aquela proposta pela lógica da cidade. Zygmunt Bauman (2003), ao traçar tipologias de usuários da cidade moderna e pós-moderna, do Peregrino ao Turista irá chegar ao Vagabundo, que é uma figura negativa, sem controle, sem governo e totalmente imprevisível e propensa a quebrar o esquema de apropriação urbana da modernidade. Usa a cidade com liberdade de movimento e escapa de rede de controle. Tal figura desenhada por Bauman (2003), é um sujeito urbano similar ao que os situacionistas já mencionam na década 1960 e que Certeau (2012) nomeia como os praticantes ordinários da cidade, os que experimentam a cidade fora da realidade recorrente, ou seja, são os caminhantes errantes, os praticantes da deriva e psicografia ou ainda os vagabundos, que incorporam no simples ato de andar na cidade, uma crítica ao urbanismo que compõe o espaço da cidade. Os sujeitos mencionados por diferentes autores não necessariamente são os mesmos. Há características intrínsecas ao que cada autor quer

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categorizar dentro dos usuários da cidade. Entretanto, a questão de fundo é que junto a este homem que experimenta o espaço, tem-se a memória urbana inscrita em seu corpo ao utilizar o espaço da cidade. Tal inscrição Paola Jacques irá nomear como corpografias – um tipo de cartografia realizada pelo corpo do sujeito, onde o registro de sua experiência da cidade fica inscrita e configura o corpo de quem a experimenta. É curioso notar como, dentro deste registro de sua experiência da cidade, o caminhar enquanto exploração do território é, como apontado por Francesco Careri (2002), o primeiro gesto de conquista e modificação da espaço feito pelo homem. O transitar é meio de conquista e de exploração e, de certa forma, é a primeira tentativa - desde o homem primitivo - de registrar e perceber a paisagem e, logo, é o início do pensar a cidade e a conquista de território. Não só o andar, mas habitar o espaço é crucial para o entendimento do meio, por isso Paola Jacques (2012) irá dispor que os praticantes da cidade – retomando a ideia de Certeau (2012) – como os errantes, experimentam os espaços e dão “corpo” pela simples ação de percorrê-los. Dessa forma, o inverso, a neutralização desse uso do espaço urbano, não só evidencia o anestesiamento da experiência corporal, como também se faz como uma “micro-resistência a esse processo de espetacularização das cidades contemporâneas” (JACQUES, 2008). Por fim, é Interessante notar que este reconhecimento das corpografias do sujeito que vai contra a conduta urbana é um referencial no discurso atual. Pois o que se coloca é que a cidade ainda comporta este sujeito que deseja experimentar os espaços e transcrever dentro do próprio corpo as memórias da cidade, e é de alguma forma, representante da necessidade humana de estar dentro do espaço urbano, de habitar a cidade. Afinal, são os homens lentos de Milton Santos (2013), ou os errantes de Paola Jacques (2012), ou os Vagabundos de Zygmunt Bauman (2003), que podem perceber o mundo indo além de suas fabulações puramente imagéticas; ou ainda, são eles que atestam os espaços da cidade, pois “são as apropriações e improvisações dos espaços que legitimam aquilo que foi projetado, ou seja, são essas experiências do espaço pelos habitantes, passantes ou errantes que reinventam esses espaços no seu cotidiano” (JACQUES, 2008). E como sujeitos revelam e denunciam o que o projeto urbano exclui, pois “mostram

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tudo o que escapa ao projeto espetacular; explicitando as micro práticas cotidianas do espaço vivido” (JACQUES, 2008).

COMENTÁRIO#3 o acaso está em trânsito Algo que é de praxe quando se fala em urbanismo ou espaços da cidade é entender a rua como espaço público por excelência. Isso talvez se deva a construção histórica que se tem, desde o inícios da lógicas urbanas, de enxergar e compreender o espaço da rua a partir da sua dimensão pública. Não somente por ser o lugar onde a vida urbana acontece mas, primeiro, por abrigar uma carga política; e segundo, por imcumbir a idéia de polis, da origem das cidades, de compreender o espaço partindo do princípio da igualdade de diferentes. Esta abordagem não se limita apenas a ideia de rua como aquele espaço entre quarteirões, mas sim todo espaço livre da cidade que se atribua na dimensão pública. É de se observar que existe nessa noção teórica voltada para o espaço da rua e do espaço livres uma inevitável transformação de significâncias. Do mesmo modo que a cidade e o sujeito passam por um processo de domesticação, o espaço público passa por um espécie de especialização. Nota-se que após o urbanismo moderno atribuir à cidade as funções de lazer, de morar, de trabalho e de circulação, os espaços públicos da cidade trilham, cada vez mais, um caminho de especialização. Da quatro funções, três ficaram retidas em inevitáveis espaços privados que cada vez mais se fecham e se limitam, cabendo, então à dimensão pública a função da circulação. De tal forma que: “[...] a perda da multifuncionalidade da cidade contribuiu o urbanismo modernista que desagregou as funções da cidade, definindo para cada uma delas um lugar e uma missão separada e específica, provocando a diminuição das possibilidades e da quantidade de contatos e misturas de uso que

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caracterizavam a cidade multifuncional e mais pública.” (ROLNIK, R. 2000) Tal perda do caráter multifuncional do espaço público advém, em partes, também, da transformação das antigas ruas de pedestres em grandes vias de circulação para automóveis. Tal gesto contribui não apenas para a manutenção dessa especialidade da rua como espaço de circulação, mas também para um empobrecimento da experiência do espaço, visto que a partir do momento que a dimensão do público se limita a circulação, é cabível entender que o espaço público passa de espaço coletivo de convivência para um mero mecanismo de suporte entre espaços privados. Assim: “[...] esvazia-se a dimensão coletiva e o uso multifuncional do espaço público, da rua, do lugar de ficar, de encontro, de prazer, de lazer, de festa, de circo, de espetáculo, de venda. Assim, funções que recheavam o espaço público e lhe davam vida migraram

para

dentro

de

áreas

privadas,

tornando-se, em grande parte, um espaço de circulação.” (ROLNIK, R. 2000) O público é, então, o caminho entre dois privados e “permanece na rua apenas aquele grupo ao qual só resta o espaço público como moradia, como trabalho, como refúgio de sobrevivência” (ROLNIK, R. 2000). A especialização do espaço público é de tal forma que não se faz possível conceber o lazer e o convívio enquanto uma vivência simples. O desfrutar o espaço da cidade é reduzido ao consumo de mercadorias de prazer, mercadorias culturais, mercadorias turísticas. É de se notar a forma como essa especialização do espaço público se alinha ao discurso de anestesiamento das experiências da cidade e das relações sociais, mesmo que em escalada diferentes, existe um certo sincronismo em pensar que o empobrecimento do uso espaço da cidade está de alguma forma conectado ao empobrecimento da experiência urbana. A rua

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agora como elemento de circulação não mais constitui, na mentalidade do usuário, um espaço de potencial convivência e sensibilidades. O espaço público por excelência, que se constitui pela convivência de pessoas diferentes, não dá conta de atribuir elementos e episódios suficientes para que as sociabilidade se estabeleçam. Entretanto, é se notar que diante dessa especificidade do utilizar o espaço público, existe um inevitável escape que encontra nos "praticante ordinário da cidade" um reconhecimento nato. Pois mesmo que exista um projeto para atribuir à rua a função de circulação, o acaso irá se incumbir de quebrar a tal rotina domesticada do sujeito e ceder espaço ao improvável e ao subjetivo. Então, é no espaço público que a “corporeidade dos homens lentos” ou as errâncias urbanas irão se estabelecer. Pois é nesse espaço conflitante que, mesmo diantes de um controle de especificidade de usos, a potencialidade do ser e viver os acasos da cidade se consolida. O espaço da rua, que é especificado como circulação, abriga por instantes o trânsito de acasos resultantes de errâncias, tranurbancias e pequenos momentos de subversão da lógica imagética, onde a cidade não se mostra mais apenas como cenário, imagem ou usos, mas sim como relações e sociabilidades.

COMENTÁRIO#4 temporalidades do ser urbano “Não vivemos em apenas um mundo, mas entre dois mundos pelo menos. O primeiro está inundado de luz, o segundo atravessado por lampejos” (DIDI-HUBERMAn, 2011, p. 155). Esta citação coloca o início de um panorama que propõe explorar o debate sobre gestos urbanos e memórias do território. Caminhando para a ideia de sobrevivência (nachleben3 ) de gestos de Aby Warburg, a questão é Nachleben é um conceito utilizado por ​Aby Warburg ​que se com clareza no seu projeto nomeado como ​Atlas ​Mnemosyne: uma espécie de “História de Arte sem palavras” que conta com 66 painéis, totalizando cerca de 900 reproduções de imagens (principalmente fotografias de obras artísticas, de pinturas, de esculturas, de edifícios, etc.), a serem organizadas sobre painéis de madeira recobertos de tecido preto que, finalizados, dispunham não necessariamente numa ordem linear de leitura de modo que a “história da arte tradicional transfigurava-se em uma antropologia do visual” (SAMAIN, 2011) 3

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pensar a existência do sujeito na cidade não apenas em um tempo linear, mas em tempos com ressonâncias sobrepostas ou coexistentes de outras épocas. Indo ao encontro com a perspectiva que surge no pós-modernismo de entender a cidade como colagem, fragmentos ou palimpsesto, se trata de pensar que ​vivemos em uma mundo que nos aparece por fragmentos: um mundo feito de mundos (ZAERA, 1998). A

questão da sobrevivências de gestos urbanos fala sobre

reminiscências no espaço da cidade, onde uma sucessão de instantes quaisquer incumbe em um complexo jogo de temporalidades que se ligam à memória coletiva como em um processo de transmissão, de narração, de transformação e de recepção da experiência urbana. E assim, frente à essa ideia de temporalidade, somos expostos a uma coexistência de tempos distintos no espaço urbano e a um certo anacronismo pautado na questão da memória social, cultural, e na memória involuntária. Trata-se, então, de falar de gestos singulares que oferecem um breve momentos de reminiscência ou de memória. Gestos que respondem o usar o espaço através do não programado, da informalidade, que de alguma forma subvertem a lógica do presente e buscam na memória do território ressignificações. De tal forma que, mesmo que ressignificados diantes da domesticação dos corpos, representam o mais puro uso da cidade e do seu espaço urbano. Diante disso é de se notar que a cidade advinda de um projeto moderno, tende a esquecer suas camadas, mas o jogo de temporalidades resulta em um possível viver fragmentado. Mesmo que a rotina urbana se paute em uma domesticação do sujeito, é inevitável que sejamos expostos, em graus distintos à influência dessas temporalidades. Isto porque, a memória do território, enquanto subjetividade coletiva, trata de manter recorrente certos gestos. Se trata de estruturar a ideia de que, na vida urbana dentro da nossa rotina, estamos expostos continuamente a uma sucessão de instantes quaisquer que nos aparecem como lampejos de existências efêmeras Tal aproximação permite recorrer às ​situações sem futuro dos

Situacionistas, onde existe uma dimensão do encontro dentro desses episódios que tem como fio condutor gerar proximidades urbanas. De forma que​ a lembrança do passado desperta no presente o eco de um futuro perdido.

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COMENTÁRIO#5 corpo-cidade-território O corpo não é apenas uma máquina que carrega uma alma humana (PINTO E SILVA, 2015) e definitivamente não é um utensílio em prol de uma domesticação ou anestesiamento que auxilia na manutenção da cidade. Corpo é mais que que isso. Ele é receptor de todos os gestos urbanos que o sujeito entra em contato no seu cotidiano, é intermédio direto das escolhas de modos de vida, alimentação, rotina, exercícios, relações interpessoais. É nele que ficam inscritos os registros de todas as relações que o sujeito exerce no espaço da cidade: escolhas, vestígios, cicatrizes, lembranças. De modo que a ele se inculbe um condição irrefutável. Se o meio a ele marca, ao meio ele pode marcar, pois do mesma forma que o meio interage em mim, eu também ajo sobre o espaço com o qual convivo, alterando-o e ressignificando-o profundamente (PINTO E SILVA, 2015). Mas agora, pensando em um condição mais expandida, é pertinente pensar o corpo, enquanto conceito, como parte essencial ou principal de uma estrutura material ou abstrata. O corpo do ser humano é apenas um dos corpos que concretamente atuam no campo da cidade, pois: Os corpos são vários. Há o corpo da cidade, os corpos na cidade e a relação – ela mesma, um corpo – cidade-corpo. O corpo da cidade é movente. Ele não é feito apenas do sítio onde a cidade é erguida, mas da vida dos que fazem o mundo que experimentamos na cidade. (HISSA e NOGUEIRA, 2013) O corpo experimenta a cidade. A cidade vive por meio do corpo dos sujeitos. A cidade é cidade-corpo. As relações entre a cidade e sujeitos, no plural, a princípio conflitantes, estabelecem um dimensão possível de experiências de corporeidades e de ressignificações. Visto que:

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Na cidade, misturamo-nos sempre – mesmo quando não há desejo de mistura – desenhando, com nossa heterogeneidade,

uma

configuração

plural

e

cambiante. Híbrida e contraditória. Antagonismos diversos se inscrevem no corpo da cidade, justamente onde o conflito se pronuncia de maneira mais ou menos ruidosa. (HISSA e NOGUEIRA, 2013) Nessa mistura entre corpo-cidade e sujeito é claro uma criação de fronteiras, entretanto é válido lembrar que fronteiras não são limites: são espaço entre dois (CERTEAU, 2008). Elas operam como territórios potenciais de encontro, interfaces: elas “se entrecortam, evidenciando vários mundos e poderes” (HISSA, 2002, p. 43) É nestas fronteiras que os praticantes ordinários da cidade circulam. Por debaixo da cidade, entre fissuras do visível, do planejado, do domesticado. Os corpos errantes vivenciam territórios potenciais e reescrevem o texto urbano. Reinventam, se subvertem, pois vivenciar as fronteiras do cotidiano é não responder a nenhum dos corpos que estabelecem essa fronteira, e é também enxergar, por estar fora, as potencialidades do espaço.

3. REFLEXÕES FINAIS

como potencializar as relações cotidianas? Existem, na cidade, lógicas que correspondem a demandas que são externas a relação entre indivíduo e cidade. O espaço citadino sempre foi um campo de debate multidisciplinar que contempla incontáveis pontos de vistas e perspectivas. Entretanto, há de se notar que existe o atravessamento da domesticação dos corpos. Questão que atribui à produção do espaço da cidade e à manutenção das relações sociais um caráter de certa forma condicionante e de especialidade de usos, como é o caso do espaço da rua Nesse ponto, não se trata de estabelecer uma crítica à esta postura que existe na sociedade, mas de entender a forma como esta articulação entre

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domesticação e especialização de usos influenciam no fazer cotidiano do indivíduo habitante da urbes. A questão é que a cidade, justamente por ser um campo de relações multidisciplinares, não é puramente um corpo que sustenta apenas interesses e necessidades objetivas. Ela tem, enquanto mecanismo social, questões que permeiam outras esferas, como é o caso da esfera do cotidiano urbano e sua relações. A cidade pressiona essa esfera de modo a normatizar-la, entretanto é nela onde a experiência das errâncias e das corporeidades acontece. De modo que é justamente pela presença do cotidiano que a total domesticação do espaço de uso púbico é tão difícil. Afinal a presença do sujeito ordinário, errante ou praticante da cidade encontra um inevitável conflito por terem, na suas ações informais, resistência. A experiência da corporeidade na cidade, ao propor a lentidão como ferramenta de experiência estética, diverge da lógica imagética do capital e da domesticação. Esta divergência combate a especialização dos espaço urbanos, de modo a apoiar-se no acaso cotidiano, ou seja, nas relações informais e não programadas que geram, em certos momento da vida urbana, lampejos de existências, de relações e afetividades. De modo que a dimensão do espaço público, hoje mono funcionalizada, se vincula, em breves momentos, à sua característica de pluralidade por excelência seja por um caminhar errante, um encontro de diferentes ou por episódios de informalidades. Por estes breves momentos, a ressignificação dos gestos urbanos encontra uma dimensão de temporalidade e de memória que atua no corpo da cidade e no corpo do sujeito. Ou seja, a relação que se estabelece a partir destes eventos ordinários na cidade é um troca de ações e interações, onde o sujeito e a cidade, de alguma forma, não permanecem os mesmos. Ambos se reconfiguram e se modificam. Existe, então, uma ambivalência entre a cidade vivida (ou com um anseio de conviver) e a cidade planejada (ou com anseios de se regrar). E a partir desta oposição é que os tensionamento da vida cotidiana, e mais ainda da produção do espaço da cidade, vão ser sempre conflituosos. A lógica de domesticação e anestesiamento ataca o acaso cotidiano, e os acasos cotidianos pervertem a intensificação imagética e funcionalista da cidade. A questão que se coloca no campo da leitura da cidade, ou da arquitetura e do

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urbanismo mais especificamente, não é somente como lidar com esse conflito, mas como impedir que haja uma apagamento destes processos de experimentação do espaço da cidade, bem como de que modo é possível potencializar as relações cotidianas urbanas em meio à esta tendência de empobrecimento do espaço público.

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