A América portuguesa e a circulação de plantas SÉCULOS XVI – XVIII
Heloisa Meireles Gesteira
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Heloisa Meireles Gesteira1 E que aí não houvesse mais que ter aqui esta pousada para esta navegação de Calicute, bastaria.
1 Pesquisadora titular do Museu de Astronomia e Ciências Afins (Mast/MCTI); professora do PPGHIS Unirio/Mast e professora adjunta da PUC-Rio. 2 Thomaz, Luís Felipe. 1998. De Ceuta a Timor. Lisboa: Difel. Ver especialmente o capítulo 4, p. 170. 3 Boxer, Charles. 1969. O império marítimo português. Lisboa: Edições 70.
Com a sentença em epígrafe, Pero Vaz de Caminha chegava ao final de sua carta informando ao rei D. Manuel sobre o descobrimento das terras situadas no Novo Mundo, em abril de 1500. Da região hoje conhecida como Porto Seguro, parte dos navios seguiu em direção às Índias Orientais, objetivo igualmente importante da missão capitaneada por Pedro Álvares Cabral naquele ano: estabelecer relações mercantis e diplomáticas em Calicute. Dois anos antes, Vasco da Gama, navegando pelo caminho aberto por Bartolomeu Dias, realizou a viagem de circum-navegação do continente africano, atingindo o Oceano Índico. A chegada às Índias trazia consigo o sonho do comércio, “onde se respirava a fragrância das especiarias, drogas e aromas do longínquo Oriente”.2 Desde meados do século XV, por ordem dos reis de Portugal, embarcações singraram o Atlântico, em direção ao Sul, costeando a África em busca de riquezas: especiarias, ouro e povos cristãos possivelmente espalhados por todo o ecúmeno. A expansão marítima portuguesa, que marcou uma inflexão na fisionomia do mundo e nas estruturas do comércio de longa distância controlado pelos europeus, foi seguida de perto pelos espanhóis e mais tarde pelos países europeus voltados para o Atlântico: a República das Províncias Unidas (conhecida pelo nome de sua região mais próspera, a província da Holanda), a França e a Inglaterra. O impulso inicial da aventura marítima portuguesa explica-se por múltiplos veios que ao nosso modo de entender são complementares e, como observou Charles Boxer, podem ser encontrados nas bulas papais contemporâneas ao infante D. Henrique, entre elas a Romanus pontifex, de 8 de janeiro de 1452, e a Inter caetera, de 13 de março de 1456. Os documentos, além de trazerem em si um pequeno histórico das conquistas desde a tomada de Ceuta em 1415, reconhecem como decorrência dos descobrimentos que os portugueses tinham o direito e o dever de atacar e converter os povos ao cristianismo ou escravizá-los, além de saquear as riquezas e se apropriarem dos territórios em nome do rei de Portugal. Portanto, comércio, evangelização e interesses políticos convergem e direcionam os descobrimentos.3 O comércio e as trocas culturais, somados a outras iniciativas que contribuíram para a intensa circulação de produtos agrícolas para as várias direções do mundo português, em pouco tempo atraíram o interesse dos concorrentes europeus, seja estabelecendo política de alianças com Portugal, como no caso da Inglaterra e dos Países Baixos ao longo do século XVI; seja por meio da guerra, como no caso da França e dos próprios Países Baixos, que de aliados tornaram-se uma das principais ameaças ao mundo colonial português durante o período da União Ibérica, entre 1580 e 1640.
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Carta de Pero Vaz de Caminha ao rei D. Manuel informando sobre as terras descobertas no Novo Mundo.
Página de abertura e acima: Antônio Sanchez, 1623. Portulano Planisferio. Desde o início do século XVI os planisférios portugueses registravam a dilatação do império pelos quatro continentes. Além da costa assinalada e a centralidade do Oceano Atlântico, percebe-se que a diversidade cultural registrada nos detalhes que ornamentam o interior dos continentes contrasta com a presença da cruz em vários pontos do ecúmeno. Acervo British Library, Londres
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Destacaremos três momentos da expansão portuguesa e sua projeção geográfica, enfatizando como o controle do Atlântico foi estratégico e, de certa forma, assegurado pelo Tratado de Tordesilhas, assinado em 1494, e deu aos portugueses a soberania nos mares do Sul. Como nosso intuito é pensar a partir da América portuguesa, é importante lembrar que, nos primeiros anos da expansão, essa região não era central na política imperial lusa, situação que mudou completamente a partir de 1640, quando o Brasil tornou-se o centro da política ultramarina portuguesa conectada com os entrepostos africanos, justamente após as baixas que o império teve no Índico em função da presença beligerante da Companhia Holandesa das Índias Orientais desde 1609, ano de sua criação. Ao longo do século XV, o domínio sobre pontos da costa ocidental africana, iniciado com a conquista de Ceuta, trouxe consigo o acesso ao comércio de produtos locais como a pimenta-malagueta, a pimenta-de-rabo (costa do Benim), o ouro e os escravos da região da alta Guiné. O périplo garantiu aos portugueses a descoberta e o controle sobre as ilhas da Madeira (1419), dos Açores (1439) e de Cabo Verde (1456-1460). Desabitadas, essas ilhas foram colonizadas com auxílio da cultura da cana-de-açúcar e com utilização da mão de obra escrava. No continente, por ordem de D. João II, foi erguido o Castelo de São Jorge da Mina no ano de 1482. Embora os principais produtos fossem ouro e escravos, especiarias também eram levadas para Portugal e dali para Flandres. Não se sabe ao certo quando se delineou o plano de alcançar o Índico pela navegação atlântica, mas a experiência no trânsito de áreas ao Sul do Equador deu aos portugueses um conhecimento sobre o sistema de ventos e correntes da região e, no final da década de 1480, com as viagens de Bartolomeu Dias, já se conhecia a passagem para o Oceano Índico. Contudo, a rota do Cabo ficou consagrada com a viagem para Calicute realizada por Vasco da Gama em 1498, que se mostrou um fracasso do ponto de vista diplomático e mercantil, mas, por outro lado, suscitou em Lisboa um reforço dos interesses portugueses ao acesso direto às especiarias do Oriente pela navegação atlântica, embora tal perspectiva tenha se consolidado após o retorno de Pedro Álvares Cabral de sua viagem a Calicute em 1501, quando ele regressou a Portugal com uma carga repleta de especiarias, assegurado não por Calicute, onde os conflitos espantaram os portugueses, mas abrindo o circuito Cochim–Lisboa.4 Em 1502, foi erguida a primeira fortaleza europeia nas Índias, em Cochim, inaugurando o que viria a ser o sistema de feitorias que caracterizou o Estado da Índia e dava o controle do comércio local e também de grande distância.
4 Boxer, Charles. Op. cit. Ver especialmente o capítulo 1; e Thomaz, Luís Felipe. Op. cit., capítulos 2 e 3.
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Autor desconhecido. Carta del Cantino, 1502-1505. Primeiro registro cartográfico onde aparecem as possessões portuguesas na América. Além das informações geográficas de trecho da costa, destacamos o Meridiano de Tordesilhas. O planisfério de Cantino esconde uma história de “espionagem”. Um
cartógrafo português, até hoje desconhecido, teria recolhido informações em carta-padrão por ele consultada no Armazém da Guiné e desenhado o planisfério, vendido a Alberto Cantino, que o adquiriu em Lisboa quando lá esteve a serviço do Duque de Ferrara, Hercule d’Este. Acervo Biblioteca Estense Universitaria, Modena
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Marco Polo, século XIII. Récolte du poivre, do Livre des merveilles. O livro tornou-se uma referência para as narrativas de viagens na Europa durante os descobrimentos. Além das experiências que relata, o texto é rico em informações sobre os produtos e costumes do Oriente, e inclui elementos lendários, como a existência do paraíso terreal. Com a chegada de Cristóvão Colombo ao Novo Mundo o paraíso migrou para Oeste e habitou o imaginário dos navegantes e daqueles que viajavam para o interior da América. Na gravura, destaque para a colheita da pimenta do reino, artigo de luxo consumido pelos nobres e mercadores e que se tornou símbolo de status. Acervo Bibliothèque Nationale de France, Paris Página à esquerda: Giovanni Battista Ramusio, 1550-1559. Carta del Golfo di Guinea do livro Navigazioni e Viaggi. O mapa traz cenas de troca entre os nativos e comerciantes, e imagens dos costumes locais, animais e plantas enfeitam o continente. Destaque para a Costa da Malagueta, onde eram comercializadas pimentas que também recebiam o nome de pimenta-da-guiné ou grão-do-paraíso. Neste caso, o nome era dado pela geografia e não corresponde a uma espécie precisa. O livro do cartógrafo italiano foi publicado entre 1550 e 1559, e reúne informações variadas sobre as navegações. Acervo Museo di Storia Naturale/Centro di Studi Archeologia Africana, Milão
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Aos poucos e ao longo do século XVI, os portugueses se estabeleceram em pontos estratégicos por meio de um mecanismo complexo de contratos locais que se alteravam constantemente e “Portugal figura regularmente neles como potência marítima e anti-islâmica; essa é a única constante que apresentam, pois os jogos de alianças mudavam na Índia com a rapidez de uma carta meteorológica”.5 Desfeito o sonho de encontrar povos cristãos, os portugueses acabaram embrenhando-se nas disputas locais entre hindus e muçulmanos e penetraram nas redes mercantis formadas por um conjunto de enclaves portugueses situados nas região do Malabar (Calicute, Cochim, Goa) e daí se espraiando para a China, incluindo Pegu, Málaca e atingindo o Japão.6 As embarcações que rumavam para Europa carregavam, além da pimenta, porcelana, seda, madeiras, ópio, cravo, noz-moscada, cravo, maçã, canela e gengibre, entre outras tantas especiarias e ervas medicinais e aromáticas.
António Bocarro, 1635. Cidade de Macao, do Códice das plantas de todas as fortalezas, cidades e povoaçoens do Estado da Índia Oriental [...], tomo II. O relato e as plantas de fortalezas foram feitos por Bocarro, nomeado cronista da Índia, para informar Filipe II – então rei de Portugal – sobre a situação no Estado da Índia, que abrangia as terras banhadas pelo Oceano Índico. Nessa época, os portugueses já haviam perdido posições importantes tanto para os holandeses quanto para os ingleses. Colônia de mercadores portugueses fundada em 1557, mesmo após as perdas sofridas, Macau manteve-se como um empório importante controlado pela comunidade mercantil ligada a Portugal. Acervo Biblioteca Nacional de España, Madri
5 Thomaz, Luís Felipe. Op. cit., p. 179. 6 Boxer, Charles. Op. cit.
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Escola Kano, século XVII. Biombo em seis folhas intitulado Nambon Byobu e conhecido como “Os portugueses”, representando a chegada destes ao Japão no século XVI. Os portugueses foram os primeiros europeus a desembarcarem na ilha “Cipango”, como o Japão foi referido no Livro das maravilhas de Marco Polo. Além de levarem as especiarias e artigos manufaturados para a Europa, os portugueses foram intermediários nas trocas entre a China e o Japão: da primeira seguiam para o segundo a seda, o ouro, a pólvora; no sentido inverso, a prata. As trocas culturais podem ser percebidas no vocabulário português, como a incorporação da palavra “biombo” ao nosso idioma. Acervo Musée Guimet-Musée National des Arts Asiatiques, Paris / Other Images
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Manuel Godinho de Erédia, 1574. Frontispício e Jambeyro, do livro Summa de arvores e plantas da India intra Gágez. O autor, malaio-português, era filho de um fidalgo que casou com uma dama da nobreza macaçar. A obra, que permaneceu manuscrita, foi oferecida por Erédia ao vice-rei Ruy Lourenço de Távora. O livro é rico em ilustrações e pode ser considerado uma síntese cultural, pois reúne plantas que circulavam pela região, inclusive algumas da América. Além disso, apresenta várias espécies com a nomenclatura em concaim, idioma de Goa.
O fruto do jambeiro é conhecido no Brasil como jambo-vermelho. Acredita-se que a espécie seja oriunda do Arquipélago Malaio, seu nome científico é Syzygium malaccense. Provavelmente chegou à Índia via Málaca. Não se sabe quando foi introduzida no Brasil, mas hoje a árvore, que pode atingir 15 metros de altura, está presente na paisagem brasileira, sobretudo no Norte e Nordeste. Acervo Archief Abdij Tongerlo, Sectie V, n.o 133, Tongerlo
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Manuel Godinho de Erédia, 1574. Cajueyro, do livro Suma de árvores e plantas da India intra Gágez. Nas palavras de Erédia, o cajueiro “He arvore de mean altura e de natureza calorosa e estitica e presta pera comidas e medicinas. Porque a fructa comida presta pera deitar ventosidades, e pera cortar fleimas e fazer boa digestão”. De origem americana, cajueiro era muito utilizado pelos índios no litoral da América portuguesa. Acervo Archief Abdij Tongerlo, Sectie V, n.o 133, Tongerlo
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Manuel Godinho de Erédia, 1574. Papaya, do livro Suma de árvores e plantas da India intra Gágez. Segundo Erédia, “He planta domestica e presta a fructa pera comida, e sua natureza he fria e leytosa”. Originária da América do Sul. Acervo Archief Abdij Tongerlo, Sectie V, n.o 133, Tongerlo
Manuel Godinho de Erédia, 1574. Goyava, do livro Suma de árvores e plantas da Índia intra Gágez. “He arvore de menor altura, e a fructa gostosa semelhante a peras [...] e sabor menos doçura (sic) estitica.” Acervo Archief Abdij Tongerlo, Sectie V, n.o 133, Tongerlo
Manuel Godinho de Erédia, 1574. Ananaz, do livro Suma de árvores e plantas da India intra Gágez. “He planta domestica, e tem fructa muyto gostosa e doce agoado, e por ser de natureza calorosa e seca presta pera conservar, e dirigir, e fazer bom estômago. E he danoso no excesso da comyda porque causa fevres, e desconcerta o estomago”. Originário da América do Sul, este fruto desde o início do século XVI já era encontrado em outros lugares, provavelmente incorporado à dieta ultramarina devido às suas virtudes terapêuticas. Acervo Archief Abdij Tongerlo, Sectie V, n.o 133, Tongerlo
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Manuel Godinho de Erédia, 1615. Frontispício e Batalha em Málaca, do livro História de serviços com martírio. A saga portuguesa na Índia foi narrada incorporando várias cenas dos sacrifícios e das guerras daqueles que tentaram se estabelecer na região e enfrentaram situações conflituosas. Málaca, conquistada em 1511 por Afonso de Albuquerque, ao longo do século XVI, se transformou num dos principais empórios da região controlados pelos portugueses. Ali muitas especiarias eram comercializadas, entre elas a noz-moscada e o cravo. Acervo Biblioteca Nacional de Portugal, Lisboa
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Voltando à passagem em epígrafe, explica-se por que, no ano de 1500, o descobrimento de terras situadas no Novo Mundo aparecia aos olhos de um português como uma promessa futura, quando Pero Vaz de Caminha considerou a riqueza de Vera Cruz relacionada à evangelização e como um ponto de apoio e segurança necessário ao abastecimento das naus para as jornadas rumo às Índias. Entretanto, viagens como as de Américo Vespúcio e Pero Lopes de Souza costeando as terras recém-descobertas em nome do Rei de Portugal foram realizadas visando à identificação de produtos comercializáveis e ao reconhecimento da costa para saber sua extensão. Logo de início a extração do pau-brasil permitiu o estabelecimento de relações com os povos indígenas do litoral que coletavam a madeira e a carregavam até os pontos de troca, feitorias erguidas em alguns locais da costa. Em pouco tempo, os portugueses já reivindicavam a área desde a entrada do Rio Amazonas até o estuário do Prata, tomando como parâmetro o Tratado de Tordesilhas. Essa estratégia territorial era facilitada pelas dificuldades técnicas da época que não permitiam localizar com precisão o meridiano.
João Teixeira Albernaz, 1629. Folha 16 do Atlas Universal. No planisfério de Albernaz chamam a atenção os traços que indicam as viagens de ida e volta às Índias. Acervo Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro
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O sistema de feitorias não se mostrou eficaz e nem garantia o monopólio português sobre a região, pois as incursões de corsários com as bandeiras de outros Estados deixavam claras as disputas pela posse de colônias no Novo Mundo, em particular pela França, Inglaterra e Países Baixos. A situação contribuiu para o delineamento de uma estratégia de ocupação territorial por meio da doação de terras a particulares. A divisão em capitanias donatárias e a introdução da cultura da cana-de-açúcar iniciada por Duarte Coelho, na capitania de Pernambuco, e por Martim Afonso de Souza, em São Vicente, em 1535, atraiu colonos e deu início à conquista das terras em nome do rei de Portugal a partir do estabelecimento de uma agricultura mercantil inicialmente sustentada pelo trabalho escravo indígena, posteriormente substituído pelo escravo africano. Formou-se um circuito entre os dois lados do Atlântico que, num espaço de 100 anos, se tornaria o centro dinâmico do império português e padrão para ocupação a partir de núcleos de povoamentos espalhados pelo litoral do continente, sobretudo após as perdas portuguesas no Índico por conta das investidas holandesas e inglesas na região, que acabaram por tomar pontos estratégico dos portugueses na região.7
Diogo Homem, 1558. Detalhe do mapa América Meridional. Podemos observar o Rio Amazonas, veio responsável pela comunicação com o interior da floresta e que dava acesso a vários produtos tropicais, nativos da região ou não. Com destaque o comércio de baunilha que, embora originária da América Central, foi introduzida e cultivada no Maranhão. Outro aspecto que se destaca são as cores fortes utilizadas e feitas com ouro e prata, além de pigmentos vindos das Índias que compunham as aguadas, como eram chamadas as tintas. Acervo Mapoteca do Ministério das Relações Exteriores, Rio de Janeiro
7 Boxer, Charles. Op. cit.; Cabral de Mello, Evaldo. 1998. O negócio do Brasil: Portugal, os Países Baixos e o Nordeste, 1641-1669. Rio de Janeiro: Topbooks; Alencastro, Luiz Felipe de. 2000. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, sobretudo o capítulo 1.
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A circulação de plantas, o comércio e as conexões imperiais
8 Schwartz, Stuart. 1995. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial. São Paulo: Companhia das Letras; e Cabral de Mello, Evaldo. 2012. O bagaço da cana. São Paulo: Penguin ClassicsCompanhia das Letras. 9 Sobre o crescimento do mercado mundial do café, ver especialmente Marquese, Rafael & Tomich, Dale. 2009. O Vale do Paraíba escravista e a formação do mercado mundial do café no século XIX. In: Grinberg, Keila &
Na primeira metade do século XVI, o espaço imperial português já havia colocado em contato, em maior ou menor escala, culturas diversas e espalhadas pelos quatro continentes. O contato das diferentes culturas será tratado a partir do registro de cultivo, uso, consumo e comercialização de algumas plantas que circulavam pelo Império, mas que também ultrapassavam suas fronteiras. Partiremos da América portuguesa para falar da troca e do transplante de vegetais de um lado para outro do Império. Como veremos, com as plantas viajavam saberes, costumes e práticas culturais. A ocupação da América pelos portugueses, diferentemente da experiência na Índia, trouxe o desafio da conquista territorial e do controle sobre o trabalho dos nativos por meio da introdução da cana-de-açúcar no litoral, a princípio em Pernambuco e São Vicente, em seguida na Bahia e no Rio de Janeiro. Por volta de 1570, as plantações já caracterizavam as paisagens litorâneas de Pernambuco, principal área produtora até o momento da ocupação holandesa, quando o Brasil deixará de ser a única região da América a fornecer açúcar para o mercado europeu. De Pernambuco, os holandeses levarão com as mudas de cana as técnicas de fabrico do açúcar.8 O açúcar se manteve como um dos principais produtos de exportação da América portuguesa para Europa durante todo o período colonial, sendo suplantado apenas pelo café no início do século XIX, outro produto exótico que se adaptou ao solo brasileiro, neste caso a região do Vale do Paraíba, em áreas que formam hoje os Estados do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. Consumido no Oriente, o café se tornou um hábito de luxo na Europa durante o século XVII. As primeiras sementes foram trazidas para o Brasil, de Caiena, pelo sargento-mor Francisco de Melo Palheta. Incialmente cultivada em jardins sem fins mercantis, essa planta acabou sendo, já no século XIX, cultivada em grande escala, fazendo do Brasil o principal exportador mundial de café, quando esse produto passou a ser consumido pelos trabalhadores da nascente indústria na Inglaterra e também nos Estados Unidos.9 A organização espacial e social do cultivo da cana, juntamente com a etapa de fabrico do açúcar, em maior ou menor escala, funcionou como um padrão para o estabelecimento de colonos na América. Seja em áreas litorâneas ou nos sertões, a agricultura mercantil foi na maior parte das vezes acompanhada pelo acesso à terra e à mão de obra escrava. Nesse caso, tanto as técnicas quanto as primeiras mudas de cana vieram com os colonos portugueses e aqui foram ganhando contornos próprios e ainda compõem a paisagem da zona da mata nordestina.
Salles, Ricardo. 2009. O Brasil Imperial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, volume II (1831- 1870).
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Levni, ca. 1720. Jovem guarda da corte servindo café [na Turquia]. O costume turco de tomar café foi adotado como hábito de luxo entre os europeus até o século XVIII, antes da bebida se tornar popular. Acervo Topkapi Sarayi Muzesi Kutuphanesi, Istambul, com permissão da British Library, Londres
Autor desconhecido, século XVI. Dama portuguesa na Índia sendo carregada em um palanquim e Nobre português na Índia acompanhado de seu séquito. A cena registra uma dama portuguesa e um nobre, personagens que se destacavam na sociedade portuguesa nas Índias. Acervo Biblioteca Casanatense, manuscritos 1889 c. 96 e 97, Roma
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Interessante notar que, ao lado do cultivo de produtos para o comércio europeu, os colonos portugueses trouxeram consigo hábitos alimentares e desde muito cedo havia o cultivo de legumes, verduras e frutas não apenas originários da Europa, mas também já aclimatados no continente, entre eles a romãzeira, o trigo, espécies de laranjas, couves, limão, salsaparrilha, abóbora, couve-flor, lentilha, e bananas. Por outo lado, os colonos passaram a adotar produtos americanos que tradicionalmente eram consumidos pelos indígenas, em sua alimentação, entre eles a mandioca, a batata doce e o milho da terra, este último mais comum em São Paulo.10 Nativos da América, o tabaco e o cacau ganharam o mercado de luxo europeu ainda nos séculos XVI e XVII. Consumidos pelas populações indígenas, passaram a fazer parte dos hábitos de luxo no Velho Mundo. O tabaco, utilizado como planta medicinal e consumido em cachimbos pelos índios da América portuguesa, transformou-se num produto importante exportado para a África, onde era trocado por escravos. Seu uso também foi disseminado entre os europeus, africanos e asiáticos. A circulação dava-se ainda no interior do próprio continente americano. Uma beberagem feita do cacau, originário da floresta amazônica, era consumida pelos chefes astecas e o produto era trocado entre as populações indígenas. Curiosamente, foi adotado como bebida de luxo entre a nobreza espanhola e daí seguiu para outras cortes europeias, sendo importante também no comércio ultramarino. Segundo relato do jesuíta João Felipe Bettendorf, que administrou missões no Pará, sementes dessa planta foram levadas pelos seus confrades para São Luís e, posteriormente, para a Bahia. A partir de um processamento desenvolvido pelo químico holandês Coenraad Johannes van Houten, no início do século XIX, que deu um sabor adocicado à beberagem naturalmente amarga, e que permitiu preparar o chocolate em barra, o consumo deixou de ser um hábito apenas das elites na Europa e cresceu em escala.11 A farinha de mandioca, elemento da dieta indígena, logo se difundiu entre os colonos portugueses substituindo muitas vezes o trigo. Acabou por atravessar o Atlântico em direção à África. Tornou-se conhecida como “farinha de guerra”, pois era levada para as viagens no sertão devido à sua resistência ao calor, sendo ainda utilizada para pagamento de parte do soldo das tropas nos dois lados do Atlântico. O preparo da farinha a partir da raiz de mandioca já integrava a cultura indígena antes da chegada dos europeus, que rapidamente adotaram o costume e utilizaram a mão de obra indígena para o seu cultivo e preparo, uma vez que a raiz in natura era extremamente venenosa. O produto foi introduzido na região de Angola, onde é cultivado até os dias atuais. Para a África também foram levados da América o milho, a batata-doce e o amendoim. Todos faziam parte da dieta dos colonos.12
10 Sobre os costumes paulistas, ver Buarque de Holanda, Sérgio. 1994. Caminhos e fronteiras. São Paulo: Companhia das Letras; e Monteiro, John Manuel. 1994. Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras. 11 Sobre a circulação e o uso do cacau, ver Mendes Ferrão, José. 1993. A aventura das plantas e os descobrimentos portugueses. Lisboa: Instituto de Investigação Científica Tropical-Comissão Nacional para as comemorações dos Descobrimentos Portugueses; e Schivelbusch, Wolfgang. 1993. Tastes of Paradise: A Social History of Spices, Stimulants and Intoxicants. New York: Vintage Books. 12 Cf. Russel-Wood, A. J. R. 1998. Um mundo em movimento: os portugueses na África, Ásia e América (1415 – 1808). Lisboa: Difel; Alencastro, Luiz Felipe de. Op. cit; e Monteiro, John Manuel. Op. cit.
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Pedro de Montenegro, c. 1710. Arbol del cacaho, do Libro primero de la propiedad y virtudes de los árboles y plantas de las misiones y provincia del Tucuman, con algunas del Brasil y del Oriente. Montenegro, da Companhia de Jesus, foi missionário na Província do Uruguai. Em seu livro podemos perceber que a circulação das plantas ocorria no interior da América. Neste texto, destacam-se as virtudes medicinais do cacau; da sua polpa era preparada uma bebida que podia ser açucarada ou fermentada. Acervo Biblioteca Nacional de España, Madri
Johannes Blaeu, s/d. Yucatan Conventus Iuridici Hispaniae. No cartucho, o cacau envolve a cena. O produto ficou conhecido pelos espanhóis quando Montezuma, no México, ofereceu a Fernando Cortez em taças de ouro uma bebida aromatizada com baunilha e as sementes do cacau pulverizadas junto com farinha de milho. Acervo Harvard University Library, Cambridge
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Willem Piso & George Marcgraf, 1548. Processamento da mandioca, do livro Historia Naturalis Brasiliae, de Facultatibus Simplicium, livro IV, p. 53. Embora a técnica de produção apareça incrementada com a utilização de um engenho de farinha, as etapas de preparação são as mesmas aprendidas com os índios. Acervo Instituto Ricardo Brennand, Recife Giovanni Antonio Cavazzi, 1670. Rainha Nzinga e o tocador de tambor, da Descrição histórica dos três reinos do Congo, Matamba e Angola. O costume indígena de fumar tabaco atravessou o Atlântico. Aqui a rainha Nzinga aparece com cachimbo. Acervo University of Virginia Library, Charlottesville
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Embora o trânsito das espécies fosse verificado em vários sentidos, a direção Oriente-Ocidente foi mais intensa, e vemos que a flora brasileira foi conquistada por frutas e árvores das Índias que hoje compõem a paisagem florestal, como as jaqueiras, pés de fruta-pão, as mangueiras e caramboleiras. Em parte, isso pode ser explicado pelo fato de a ocupação territorial ter sido intensa sobretudo na América, enquanto a presença portuguesa tanto na África quanto na Ásia dava-se mais em enclaves litorâneos e os colonos estavam mais envolvidos com o comércio. Ainda assim, é possível identificar a presença de frutos como pitanga, araçá, caju, goiaba e abacaxi em várias regiões do Império. Desde finais do século XVI, a América portuguesa era vista como um espaço a ser efetivamente conquistado, inclusive pela necessidade de defender as terras diante dos ataques de franceses e holandeses. Isso pode ser percebido nas palavras de um senhor de engenho que viveu entre Pernambuco e Paraíba, Ambrósio Fernandes Brandão, quando reclama da atenção dada às Índias em detrimento do Brasil. Em seu diálogo travado com Alviano, seu interlocutor recém-chegado do reino, em vários trechos defende a situação do Brasil justamente por nele os colonos enriquecerem pelos seus “bens de raiz” e não apenas pelo comércio. Além disso, havia a facilidade da comunicação marítima e, pela produção, se garantiria a oferta abundante de produtos. Chama atenção como essa perspectiva é defendida pela sugestão do senhor de engenho na introdução de especiarias da “Índia”, neste caso a pimenta, mas vejamos dois trechos de seus argumentos: que o Brasil é mais rico e dá mais proveito à fazenda de Sua Magestade que toda a Índia; porque não me haveis de negar que para as naus que dela vêm, virem carregadas das fazendas que trazem, se desentranha todo esse Oriente, com se ajuntar a pimenta do Malabar e a canela do Ceilão, cravo do Maluco, massa e noz moscada da Banda, almiscre, benjoim, porcelanas e sedas da China, roupas e anil de Cambaia e Bengala, pedraria do Baiagate e Bisna-
Logo adiante, Ambrósio Fernandes Brandão deixa claro seu projeto em relação ao lugar estratégico que o Estado do Brasil deveria ocupar com as seguintes palavras: e é que Sua Majestade devia mandar uma caravela à Índia para que somente lhe trouxesse de lá pimenta de semente, em pipas ou em outra parte, onde mais acomodada viesse, e que a tal caravela passasse pelo Brasil, aonde a fosse entregando nas Capitanias de sua costa aos Capitães-mores, que a repartissem pelos moradores, obrigando-os a que a plantassem, e desta maneira se colheria do Brasil mais pimenta do que se colhe na costa do Malabar.14
Essa expectativa de Ambrósio Fernandes Brandão provavelmente foi compartilhada por outros colonos que chegaram aqui antes dele. Mas mesmo antes da ocupação efetiva das terras americanas, havia decretos régios, desde o reinado de D. Manuel I, que proibiam o cultivo de especiarias orientais visando proteger os comerciantes que haviam investido suas expectativas no Levante. Segundo Russel-Wood, a única planta que sobreviveu às ordens régias foi o gengibre “o qual, pelo fato de se tratar de uma raiz, era menos visível a qualquer força invasora”.15 Apenas com as perdas sofridas no oriente após as guerras holandesas e incursões inglesas, houve maior tolerância à introdução de algumas especiarias. A partir do reinado de D. João IV assistiu-se a um maior interesse por parte das autoridades em liberar o envio de plantas do Oriente para o Brasil, pedidos foram encaminhados para se transferir plantas como a pimenta, a noz-moscada, o cravinho, a canela e mesmo o gengibre para todas as regiões da América portuguesa. Concretizavam-se, muitos anos depois, as propostas de Ambrósio Fernandes Brandão, embora apenas a partir de meados do século XVIII as iniciativas mais sistematizadas de aclimatação de espécies tivessem maior impacto na economia imperial, sobretudo com a construção de jardins botânicos.
ga e Ceilão; por maneira que é necessário que se ajuntem todas estas cousas, de todas estas partes, para as naus que vêm para o Reino poderem vir carregadas, e se se não ajuntassem não viriam.13
João Teixeira Albernaz, 1629. Ilhas Molucas, folha 16 do Atlas Universal. Importantes no comércio do cravo-daíndia, as ilhas Molucas, ou Malucas, foram objeto de disputas entre portugueses e espanhóis, pois havia discordância a respeito da localização do Meridiano de Tordesilhas. Acervo Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro
13 Brandão, Ambrósio Fernandes. 1997. Diálogos das grandezas do Brasil. Organização e introdução de José Antônio Gonsalves de Mello. Recife: Fundaj-Massangana, p. 89. 14 Idem, p. 96. 15 Russel-Wood, A.J.R. Op. cit., p. 232.
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George Marcgraf & Ioannes Blaeu, c. 1646. Mapa mural Brasilia Qua Parte Paret Belgis. Ao centro, o engenho de cana movido a água. A cana-de-açúcar, originária da Ásia, foi introduzida pelos portugueses na América no século XVI. O produto contribuiu para o estabelecimento da sociedade colonial em Pernambuco e na Bahia, regiões que se destacaram no comércio europeu. Acervo Mapoteca do Ministério das Relações Exteriores, Rio de Janeiro
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Conquista, história natural e circulação de plantas
16 Barreto, Luís Filipe. 1989. Os descobrimentos e a ordem do saber: uma análise sociocultural. Lisboa: Gradiva. O autor demonstra as relações entre os estudos de medicina e as transformações na cultura renascentista em Portugal. 17 Sobre a relação entre os descobrimentos e os diversos tipos de registros gerados, ver as reflexões de Godinho, Vitorino Magalhães. 1994. O papel de
Verifica-se nas cartas, crônicas e narrativas sobre a região ultramarina, a presença de informações precisas sobre o mundo natural, incluindo notícias acerca do clima, da geografia, da fauna, dos habitantes naturais da terra e da flora. Algumas notícias foram publicadas e inundaram a Europa com informações escritas, iconográficas e dos produtos propriamente ditos que passaram a ser consumidos. Esse fenômeno repetia-se em menor escala nas sociedades coloniais. No caso do império português, poderíamos entender tais práticas a partir do que Luís Filipe Barreto chamou de “cultura dos descobrimentos”, que se caracterizava por uma série de atitudes práticas e teóricas diante do exótico. As notícias e novidades sobre as terras distantes ou desconhecidas eram controladas pelos agentes colonizadores e, quando consideradas estratégicas, mantidas sob sigilo, formando um enorme “banco de dados” sobre as terras distantes controlado pelo Estado.16 A ideia de “cultura dos descobrimentos” aponta para um controle absoluto por parte do Estado sobre as informações, mas, o que verificamos foi que havia, ao mesmo tempo, um processo de acumulação de informações sobre uma determinada região colonial não apenas por parte dos agentes metropolitanos, mas, sobretudo, levado a cabo por aqueles interessados na edificação de uma nova sociedade e, ao mesmo tempo, comprometidos com os interesses locais, como, por exemplo, os missionários da Companhia de Jesus, como veremos mais adiante.17 O surgimento de novas sociedades decorrentes da expansão europeia implicou a construção de formas criativas de dominação. Uma delas foi coletar e controlar as informações acerca das características e potencialidades dos vegetais, entre outros produtos, para serem remetidos para Europa, onde eram incorporados ao comércio, às coleções particulares de nobres e comerciantes e às coleções pertencentes a universidades. Os livros de história natural, tratados sobre plantas somados à literatura de viagens redigidas por cosmógrafos, soldados, missionários, comerciantes também contribuíram para a difusão de novos hábitos de consumo que, por sua vez, estimularam a circulação das plantas pelos quatro continentes.18
Portugal nos séculos XV-XVI; Que significa descobrir? Os novos mundos e um mundo novo. Lisboa: Grupo de Trabalho do Ministério da Educação para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses. 18 Sobre as relações entre os estudos, o comércio e as trocas culturais, ver a coletânea organizada por Schiebinger, Londa & Swan, Claudia. 2007. Colonial Botany: Science, Commerce and Politics in the Early Modern World. Filadelfia: Pennsylvania University Press.
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Escritos por letrados que circulavam pelos vários enclaves ultramarinos europeus que se formaram a partir do século XVI, entendemos que os conhecimentos sobre os produtos dos vários pontos do globo inseriam-se, de alguma forma, nos quadros das disputas europeias pelo aproveitamento mercantil, sublinhando que afora produtos efetivamente produzidos em maior quantidade, muitos frutos, especiarias e plantas medicinais eram considerados artigos de luxo e circulavam de forma mais restrita. Além disso, ao mesmo tempo em que essas narrativas contam os feitos dos europeus em vários pontos do globo, também ensinam sobre os costumes dos povos, os usos e virtudes das plantas, suas utilidades terapêuticas e alimentares. Com a expansão das fronteiras, ampliava-se o conhecimento sobre a flora dos vários lugares. Tal prática era também fruto das transformações nos estudos sobre a natureza que ocorreram durante o Renascimento, em particular a descoberta de novos produtos até aquele momento desconhecidos na Europa, e que também não faziam parte dos compêndios herdados da Antiguidade. Em relação aos saberes sobre plantas, presentes na cultura da História Natural e na medicina, as referências eram os escritos de Plínio e Dioscórides. O contato direto com novas regiões levou ao questionamento dos saberes herdados dos antigos, que ainda eram uma referência, mas tornava-se igualmente relevante a experiência da observação direta. Em 1563, foi publicado em Goa, o livro escrito por Garcia da Orta, Colóquios dos simples, e drogas e cousas medicinais das Índias. Seu trabalho foi parcialmente publicado por Carolus Clusius, em Aromatum et simplicium alíquota medicamentarum apud índios nasciementium historia. Ainda contribuindo para a difusão do conhecimento de espécies do Oriente na Europa, foi também publicado o Tractado de las drogas y medicina de las índias orientales de Cristóvão da Costa, que ampliou e atualizou algumas informações contidas nos Colóquios, uma vez que visitou uma área mais ampla, chegando a Málaca e a China.
Johannes Nieuhoff, 1682. Ilustração de frutas do livro Gedenkweerdige Brasiliaense Zee- en Lant-Reise und Zee-en Lant-Reize door verscheide Gewesten van Oostindien. Na gravura podemos identificar produtos tropicais dos vários continentes que circulavam no comércio global controlado pelas companhias de comércio neerlandesas: cana-de-açúcar, papaia, caju, índigo e pimenta do Brasil, entre outros. Acervo John Carter Brown Library, Rhode Island
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19 Vasconcelos, Simão de. 1864. Crônica da Companhia de Jesus no Estado do Brasil. Rio de Janeiro: Typographia de João Ignacio da
Em relação ao Novo Mundo, os portugueses, embora tenham contribuído para a disseminação de espécies, muito do material, seja textual ou iconográfico, permaneceu em forma manuscrita, portanto com circulação limitada. As informações relativas à história natural da América portuguesa tenham sido veiculadas na Europa das letras pelos livros escritos por Willem Piso e George Marcgrave, homens de ciências, médico e astrônomo respectivamente, que estiveram no Recife entre 1637 e 1645 a serviço da Companhia Holandesa das Índias Ocidentais. Destaca-se em especial a Historia Naturalis Brasiliae, publicada em Amsterdam no ano de 1648. Verifica-se que mesmo o padre jesuíta Simão de Vasconcelos, autor da Crônica da Companhia de Jesus no Brasil e reitor do Colégio da Bahia, que viajou pela América portuguesa em finais do século XVII, fez em seu texto inúmeras referências e indicou a leitura da História Natural do Brasil caso o leitor tivesse interesse em conhecer melhor algumas plantas e animais citados por ele.19 Essas obras inundaram os centros editoriais da Europa. Quando publicadas em latim, destinavam-se a um público mais seleto, mas havia publicações em línguas vernáculas e consumidas por homens que tinham suas riquezas oriundas da aventura ultramarina: nobres, comerciantes, financistas e cosmógrafos. Um belo exemplo foi o livro do cosmógrafo real na França, André de Thevet, que viveu na região da baía de Guanabara na colônia fundada pelos franceses em meados do século XVI. Em Singularitez de la France Antartique, Thevet descreve costumes dos nativos e, entre eles, as maneiras de uso de vegetais, além de suas virtudes para a vida humana. Somem-se ainda os vários gêneros ligados à literatura de viagens, como, por exemplo, a narrativa das guerras escritas por um soldado do exército da Companhia Holandesa das Índias Ocidentais, Johan Nieuhoff, que serviu no Brasil. Em seus registros, além do cotidiano das lutas, há informações sobre animais e plantas das regiões por onde ele passou. Centenas de manuscritos que permaneceram depositados em arquivos também registraram informações preciosas, inclusive aquelas sobre o trânsito de frutas, como o belo manuscrito do cosmógrafo luso-malaio Manuel Godinho de Erédia, Suma de árvores e plantas da Índia intra Gangez. Em seu trabalho, composto principalmente por desenhos dos vegetais, encontram-se informações sobre o caju, o ananás e a goiaba, originárias do continente americano, além de muitas plantas do Oriente que há muito estão aclimatadas no Brasil: a carambola, a romãzeira e a jaca. Interessante notar que, nesses escritos, muitas vezes, eram reunidas espécies utilizadas no lugar mas não era mencionada, obrigatoriamente, sua procedência geográfica, o que nos permite considerar esses registros como representações eloquentes do espaço imperial.
Silva, p. 102. 20 Daniel, João. 2004.Tesouro descoberto no máximo Rio Amazonas. Rio de Janeiro: Contraponto, vol. 2, p. 183. 21 Idem, ibidem.
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Outro exemplo importante são os escritos do padre jesuíta João Daniel. O texto, redigido durante o período em que esteve recluso nas prisões em Portugal, traz informações importantes sobre os costumes, os povos, as riquezas naturais e a história dos descobrimentos e a conquista do Rio Amazonas. Depois da extinção da Companhia de Jesus em Portugal e seus domínios, muitos padres foram arrastados e presos, assim, durante os dezoito anos em que ficou recluso, Daniel dedicou-se a escrever sobre sua experiência no Estado do Maranhão. Em seu Tesouro descoberto no máximo rio Amazonas dedicou um capítulo ao cultivo do arroz na região, o qual, além de servir de alimento para os colonos, poderia render frutos se exportado para Europa. Entre as qualidades do arroz, refere-se ao seu uso como “pão” por todo o Oriente: Sendo o arroz um dos maiores empregos dos lavradores, [...] é muito estimado no mundo este legume, que em muitas províncias não só se serve de legume, mas de pão, especialmente na Ásia, onde é muito cultivado. Na maior parte do império do Japão, em muitas províncias da China, em toda a vastidão do império Mogol, e finalmente em todos os reinos e estados da Índia, não há outro pão se não arroz, nem se cultivam em outras searas ordinariamente senão arroz, se excetuarmos algum uso de trigo, que [...] introduziram os portugueses; é pois o arroz toda a sementeira daquelas gentes; é o seu trigo, é o seu milho.20
O missionário não chega a falar aqui das formas específicas de cultivo, mas aponta como argumento para sublinhar o valor do arroz a utilização em cerimônias no reino da Cochinchina. Nos conta o missionário que os habitantes, quando celebram suas bodas, organizam uma espécie de procissão formada por parentes e amigos. Em meio ao grupo, muitas cargas são levadas pelos homens com riquezas, demonstrando a opulência dos convidados. Entre as cargas, a que tem mais valor “é sempre uma vasilha de água, e outra vasilha ou medida de arroz, não tanto para provimento dos novos desposados, quanto para denotarem que a água e o arroz são as riquezas que mais estimam, e com que sustentam e conservam as casas.”21 O arroz, no século XVIII, já era um dos produtos que saíam pelos portos do Estado do Maranhão.
Frans Post, 1647. Prancha [vista de] Friburgum do livro de Caspar Barléu Rerum per Octennium in Brasilia et alibi per nuper gestarum sub Praefectura Illustrissimi Comitis I. Mauritii Nassoviae [...]. Vista do Palácio Vrijburg, residência oficial do Conde João Maurício de Nassau-Siegen, governador de Pernambuco entre 1637 e 1644.
Nota-se o limite do terreno com a plantação de coqueiros que circundava o jardim construído no local. Planta originária da Ásia que se difundiu pelas regiões tropicais, não é possível precisar sua chegada na América, mas acredita-se que foi ao longo do século XVI. Acervo Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro
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22 Sobre a expansão holandesa para o Atlântico e as trocas culturais com a Universdidade de Leiden, conferir os textos de Boogaart, Ernst van de. 1992. La Espansión Holandesa en el Atlántico. Madrid: Mapfre; Meyjes, G.H.M. & Scheurleer, Th.H. (eds.). 1975.
Durante o período em que os neerlandeses ocuparam as capitanias de Pernambuco, Itamaracá, Paraíba e Rio Grande, o Recife, centro administrativo da colônia batava na América, passou por uma transformação. Entre os investimentos realizados pelo Conde João Maurício de Nassau-Siegen, destacamos a construção da cidade Maurícia, onde ele fixou residência no Palácio Vrijburg. O palácio era rodeado por um jardim ornamentado com plantas e onde circulavam animais típicos da América que para ali eram levados. O lugar era denominado pelos cronistas coevos “Jardins do Conde”. Nos relatos que temos sobre o jardim fica claro que este cumpria várias funções. Interessa-nos aqui considerar especialmente o lugar como um espaço importante para a coleta e observação de algumas plantas da América, mas ali também encontravam-se plantas exóticas. Do jardim foram remetidas espécies para a Europa, tanto para serem inseridas em outros jardins, como o da Universidade de Leiden, por exemplo, quanto para serem depositadas em outras coleções, como as residências do Conde de Nassau em Haia e em Cleves, ambas ornamentadas com objetos do Brasil. Ao mesmo tempo, o jardim foi ponto de recepção de espécies que eram introduzidas na América. O jardim delimitava o terreno do Vrijburg. Um dos lados terminava nas margens do Rio Capibaribe. Em cada lado do terreno, situavam-se as ervas e arbustos cercados de limoeiros. Havia um caminho de vinhas e um de romãzeiras. Atrás da construção, encontrava-se um viveiro de peixes rodeado de um lugar reservado para cisnes. Na mesma direção do viveiro, à esquerda, havia uma plantação de frutas cítricas; à direita, árvores de frutas variadas. A variedade de espécies era grande e reunia produtos dos vários continentes: coqueiros, originários do Arquipélago Malaio; as laranjeiras e limoeiros, naturais da Ásia; as romãzeiras, encontradas no norte da África, sul da Europa e sul da Ásia; e as figueiras, das Arábias. Entre as espécies americanas destacam-se os mamoeiros, os jenipabeiros (América tropical); as mangabeiras, encontradas no Cerrado brasileiro; os cajueiros, nativos do Brasil; palmeiras, majoritariamente as espécies encontradas na Colômbia e Brasil; as pitangueiras, nativas do Brasil; e, ainda, segundo cronistas coevos, pacobeiras ou bananeiras, cabaceiros, araticuns jamacurus, uvalheiras, tamarindeiros, castanheiros, tamareiras e vinhas, além de arbustos, legumes, ervas medicinais e plantas ornamentais.22
Leiden University in the Seventeenth Century, an Exchange of Learning. Leiden: University Press; e Gesteira, Heloisa. 2004. História natural e colonização neerlandesa (1624-1654). In: Revista da SBHC 2(1):6-21. As informações sobre o jardim foram retiradas de Barleus, Gaspar. 1974. História dos feitos recentemente praticados durante oito anos no Brasil. Belo Horizonte-São Paulo: Itatiaia-Edusp.
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No âmbito da experiência portuguesa, os jesuítas tiveram destaque no processo de cultivo e circulação dos produtos naturais, sobretudo para uso medicinal ou alimentar. Para os quintais e campos das missões eram levadas espécies oriundas dos quatro cantos do mundo. Embora não se tenha notícias precisas, há muita referência à Quinta do Tanque, espécie de “jardim” ligado ao Colégio de Salvador, onde os missionários cultivavam frutas cítricas, laranja e limão, entre outros vegetais – americanos ou não – que eram utilizados em suas mesinhas: cravinho, canela, gengibre entre outras. As trocas ocorriam também entre os missionários que percorriam o continente americano. O missionário Pedro de Montenegro nasceu na região da Galícia em 1663 e exerceu medicina no Hospital Geral de Madrid. Não se sabe ao certo se em 1679 ou em 1693 ele veio para América, mais precisamente para a província do Paraguai, onde serviu como enfermeiro nas missões. Há notícias de que participou dos conflitos, ao lado de outros religiosos, na Colônia do Sacramento, em 1705, para onde os jesuítas enviaram 4.000 índios guaranis. Seu Libro primero de la propriedad y birtudes de los arboles i pantas das missòes y províncias de Tucuman com algunas Del Brasil e Del Oriente (1711) traz notícias sobre o uso de plantas originárias de várias partes do mundo, e deixa transparecer a existência de redes de trocas entre os missionários, redes estas que se entrecruzavam nas áreas dominadas pelas coroas espanhola e portuguesa, uma vez que as fronteiras americanas eram ainda bastante fluidas, havendo interpenetração nos territórios lusos e espanhóis. Além disso, informa sobre produtos que ultrapassaram a fronteira americana.
Frans Post, 1647. Prancha Friburgum (planta) do livro de Caspar Barléu Rerum per Octennium in Brasilia et alibi per nuper gestarum sub Praefectura Illustrissimi Comitis I. Mauritii Nassoviae [...]. Planta para o jardim botânico situado ao redor do palácio Vrijburg. O local era ornamentado com plantas nativas da América e algumas introduzidas pelo processo de colonização. Acervo Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro
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Um belo exemplo de um produto que circulou na América, Europa e Ásia devido à ação dos jesuítas, portanto, encontrado em suas boticas, foi o óleo de copaíba. Utilizado na América pela população nativa, incorporado na medicina jesuítica, o uso do óleo de copaíba se difundiu em outros continentes, como foi registrado por Pedro de Montenegro: “El balsamo de Copayba es oy mui conocido y usado por toda la Europa, Africa y America, u con gran estima e subido precio en el Japon, y China.”23 Do outro lado do globo, um exemplo pode ser lido na dedicatória e advertência ao leitor presentes na obra oferecida ao rei D. João V de Portugal, Árvore da vida dilatada em vistosos e salutiferos ramos ornados de muitas aprasiveis e saudaveis folhas em que se deixão ver muitos e singulares remedios assim simplices como compostos, que a Arte, a experiencia, industria e a curiosidade descobrio para curar com facilidade quase todas as doenças e queixas a que o corpo humano esta sujeito principalmente em terras distituidas de Medicos e Boticas, escrita pelo padre Affonso da Costa, missionário que viveu em Goa a serviço da Companhia de Jesus durante a primeira metade do século XVIII. Além dos serviços e compromissos estritamente ligados ao seu ofício de religioso, o padre exerceu também a prática da medicina. Como fruto dessa experiência, ele “planta” essa árvore, que segundo, ele, é ainda mais útil em terras “destituídas de médicos e boticas”. Tanto na dedicatória da obra quanto na advertência ao leitor, o missionário apresentou um conjunto de argumentos a favor de seu envolvimento com o exercício médico e com a escrita de um livro reunindo os remédios e tratamentos mais eficazes para diversas doenças, afirmando que tudo ali registrado foi por ele experimentado durante os quase trinta anos de missão na Ásia. Em primeiro lugar, observemos o título escolhido pelo autor fazendo uma alusão explícita ao jardim do Éden: Árvore da vida. Além das duas outras árvores oferecidas pelo criador, a do Céu e aquela existente no Paraíso Terreal e visto, pois que a árvore da vida do Paraíso terreal se nos foi prohibida, porque se fechou, e a do Celestial Paraíso se nos não comunica, porque desapareceu, para que os homens possão com facilidade achar remédios com que se livrem da suas enfermidades e antídotos eficazes, com que conservem e dilatem suas vidas, cá nestes desertos da Ásia oriental, soube a minha curiosidade e applicação plantar huma terceira, Árvore da Vida, da qual sem muitos dispêndios possão usar todos sem exceção de
23 Montenegro, Pedro de. (1711). Libro primero de la propriedad y
pessoas. [...] E par que em huma só árvore se achassem remédios para
birtudes de los arboles i plantas das
todas as doenças, o meu particular empenho foi buscar sementes
missòes y províncias de Tucuman
medicinais de todas as quatro partes do mundo, e cujas virtudes unidas
com algunas Del Brasil e Del Oriente. Madri: Biblioteca Nacional da
em só corpo a custa do trabalho, desvelo e (sic) de suores de mais de trin-
Espanha, p. 34.
ta anos saísse esta árvore.24
24 Costa, Affonso da. “Advertência ao leitor”. Árvore da vida dilatada ordenada em vistosos e salutissimos ramos. Mss. Londres: The Welcome Institute for the History of Medicine.
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Tal qual outros tratados médicos escritos em língua portuguesa, o livro traz em seus receituários ingredientes originários da Europa, da Ásia, da África e da América, especialmente do Brasil. Muitas foram, e são, as formas de transplantar espécies de um lado para o outro do globo. Não nos preocupamos aqui em datar o trânsito de vegetais nem mesmo considerar, exceto em algumas situações, se uma determinada planta viajou “espontaneamente”, sem ações programadas. O que buscamos sinalizar foi a forma pela qual o comércio e a migração de seres humanos pelo mundo intensificada pela abertura da navegação no Atlântico, em especial o mundo português entre os séculos XVI e XVIII, e a criação das sociedades coloniais, em destaque a América portuguesa, implicaram uma transformação das paisagens naturais e criaram novos hábitos de consumo. Algumas plantas entraram na cultura e dieta brasileiras com tal força que até os dias de hoje somos surpreendidos ao detectar que alguns emblemas de nossa identidade são produtos exóticos, como os coqueiros que se adaptaram com sucesso nos litorais da atual região do Nordeste. A mesma surpresa é experimentada quando encontramos autores do século XVI, que viviam do “outro lado do mundo” retratando frutas que são originárias da América ou hábitos indígenas, como o consumo de tabaco, conquistar o gosto das elites dos mais remotos confins do império.
Pedro de Montenegro, c. 1710. Noz-moscada, do Libro primero de la propiedad y virtudes de los árboles y plantas de las misiones y provincia del Tucuman, con algunas del Brasil y del Oriente. Originária das Molucas, a noz-moscada foi uma das mais prezadas especiarias do Oriente. Os portugueses monopolizaram seu comércio no século XVI e, em seguida, os holandeses. No século XVIII, sua cultura espalhou-se pelo Índico e ganhou as Américas. Era usada para conservação de alimentos, como tempero e na medicina. Montenegro a indica em socorro dos asmáticos e tísicos e contra os catarros, entre outros usos. Acervo Biblioteca Nacional de España, Madri
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Autor desconhecido, c. 1640. Uma tenda de mercado indiano. Anteriormente atribuída a Albert Eckhout, a tela registra uma cena onde os produtos americanos se misturam aos produtos de outros lugares, o mercado dando sentido às trocas culturais. Entre outras frutas, vê-se a manga, originária da Ásia, mas que hoje em dia se encontra naturalizada no Brasil, onde foi oficialmente introduzida no século XVII. Acervo Rijksmuseum, Amsterdam Autor desconhecido, final do século XVIII. Do códice Risco de vários animais raros de Moçambique, com alguns prospectos e retratos. Na cena, tipos humanos da Europa, Ásia e África negociam marfim. Até meados do século XVIII, Moçambique, região banhada pelo Oceano Índico, articulava-se às rotas do Oriente. Acervo Museu Bocage, Lisboa
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