Plantas sem fronteiras: jardins, livros e viagens SÉCULOS XVIII – XIX
Lorelai Kury
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Lorelai Kury1 Fronteiras políticas, afinidades climáticas A história natural do Século das Luzes estabeleceu uma relação ambivalente com os climas quentes, tropicais e subtropicais. Se por um lado o calor e a umidade eram considerados venenos para a saúde do corpo e da alma, por outro havia sempre a esperança de que produtos com propriedades especiais e maravilhosas pudessem ser descobertos nas matas, montanhas e colinas das regiões pouco conhecidas. A quina, a batata, o cacau e o milho eram originários da América. O imenso continente americano estava sendo explorado em busca de riquezas já conhecidas e de plantas que ainda não haviam sido descobertas pelos habitantes mais recentes do Novo Mundo. A América do Sul e suas fronteiras políticas internas imprecisas e tensas possuem outro tipo de fronteira, a natural, ligada aos diferentes biomas. O norte do continente, incluindo as Guianas, Venezuela, Colômbia (Nova Granada) e a região do Rio Negro, Grão-Pará e Maranhão, formava um universo natural relativamente homogêneo nas regiões não montanhosas. As outras fronteiras políticas também acabaram se impondo artificialmente às naturais, como é o caso das regiões Oeste e Sul do Brasil. Mesmo a flora das Antilhas era bastante próxima da flora brasileira. Muitas espécies nativas do Brasil – e amplamente utilizadas pela população – foram descritas por naturalistas que visitavam regiões vizinhas, como é o caso de Plumier, Labat, Feuillé, Ruiz e Pavón, Jacquin e Bonpland. A circulação natural das plantas pelos continentes era uma questão relevante para homens de ciência e também para administradores, como governadores, vice-reis e ministros, pois, se um determinado vegetal existisse nas Américas, era possível que fosse encontrado ou aclimatado no Brasil.
1 Professora do Programa de PósGraduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz e professora do Departamento de História da Uerj. Pesquisadora do CNPq.
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Página de abertura: Thomas Gosse, 1796. Detalhe de Transplanting the bread-fruittrees from Otaheite [Transplantando a fruta-pão do Taiti]. Acervo Rex Nan Kivell Collection, National Library of Australia, Camberra Charles Plumier, 1693. Variétés de colocasia hederacea et d‘arums. Estampa do livro Description des plantes de l’Amerique, avec leurs figures, par le R. P. Charles Plumier, religieux minime. O religioso Charles Plumier (1646-1704) foi um importante naturalista e explorador das Antilhas. Deixou trabalhos significativos sobre a flora da América. Muitos gêneros botânicos descritos por ele foram adotados posteriormente por Lineu. Ele classificou espécies americanas que ocorrem também no Brasil. Na imagem, epífitas e lianas das aráceas compõem um ambiente de folhagem tropical, no qual as espécies se entrelaçam. Acervo Bibliothèque Nationale de France, Paris
Plano de la mayor parte de la provincia de Cumaná y de la Isla de la trinida de Varloto. O mapa retrata a atual Venezuela, que compartilha ambientes naturais com a Amazônia brasileira. Nesta representação do século XVIII, vê-se nos detalhes cenas do cotidiano dos indígenas que poderiam se passar na América portuguesa, tanto por causa da fauna e flora, quanto pela presença humana. Acervo Archivo General de Simancas (Valladolid)
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As fronteiras naturais podem ser até certo ponto expandidas. O auxílio da agricultura, com a amenização de características climáticas extremas, e também a criação de ambientes artificiais, como as estufas, ofereciam novas possibilidades de obter plantas de outros climas. Essas possibilidades são, no entanto, limitadas. Uma das vantagens em possuir colônias é dispor de terras situadas em diferentes localizações geográficas. Como se sabe, muitas plantas plenamente naturalizadas no Brasil atual têm sua origem em outros continentes, como a cana-de-açúcar, a manga, a jaca, o café e a carambola, entre muitas outras. Algumas delas entraram no Brasil pela via dos jardins botânicos, outras foram trazidas pelos navios negreiros, comerciantes e viajantes. Para que a naturalização ocorra é necessário que a nova planta encontre condições adequadas para seu desenvolvimento. Caso contrário, dependerá sempre do auxílio do homem para se manter e reproduzir. Em razão das afinidades climáticas, os destinos de muitas plantas africanas, europeias e asiáticas as levaram ao continente americano e as incorporaram ao cotidiano das populações. Essas mesmas afinidades agiram no sentido inverso e permitiram que da América muitas plantas passassem ao Velho Mundo.
Francisco Franco de Almeida Serra, 1777. Parte do Brazil que comprehende a navegação que se faz pelos tres Rios Madeira, Mamoré, e Guaporé, athe Villa Bella, Capital do Governo de Matto Grosso, com Estabelecimentos Portuguezes, e Espanhoes, nelles adjacentes. A região central do mapa mostra área de Cerrado submetida a negociações para demarcação de fronteiras entre espanhóis e portugueses, na segunda metade do século XVIII. O Rio Guaporé separava os territórios de Portugal e da Espanha e servia como principal acesso a Vila Bela. Acervo Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro
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Nicolai Josephi Jacquin, 1763. Frontispício do livro Selectarum Stirpium Americanarum Icones. O médico e naturalista Jacquin explorou a flora das Antilhas, a serviço da Áustria. Era correspondente de Lineu e dos Jussieu. Além de botânico, foi um grande artista. Muitas plantas que ocorrem no Brasil foram inicialmente descritas por ele. Acervo John Carter Brown Library, Providence Miguel Antônio Ciera, 1782. Mappa geographicum quo flumen Argenteum, Parana et Paraguay exactissime nunc primum describuntur. Ciera, de origem italiana, foi contratado pela Coroa portuguesa para participar como astrônomo dos trabalhos de demarcação de fronteiras da América setentrional, no contexto do Tratado de Madri. O mapa retrata o bioma Pampa, cujos limites escapam aos recortes políticos. Acervo Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro
Jardins coloniais
2 Bastos, Lúcia. 2011. Guerra aos franceses: a política externa de D. João VI e a ocupação de Caiena. Navigator 11 (dossiê 7):70-82, cf. p. 76. 3 Cf. Santos Gomes, Flávio. 2002. Entre fronteiras e sem limites: espaços transnacionais e comunidades de fugitivos no Grão-Pará e na Guiana Francesa (séculos XVIII-XIX). In:
Um episódio pouco conhecido da guerra que opôs a França napoleônica e Portugal do príncipe regente D. João foi a invasão de Caiena, em 1809, pela tropa terrestre de 500 homens chefiada pelo tenente-coronel Manuel Marques. Por mar, a invasão foi apoiada por uma força naval anglo-portuguesa. 2 A região tinha já um extenso lastro de conflitos, principalmente em razão da passagem de escravos fugidos pelas fronteiras.3 Entre 1794 e 1802, a escravidão havia sido abolida em todos os territórios franceses. Os escravos do território português que conseguissem passar para a Guiana Francesa estariam consequentemente livres. Além disso, as disputas envolviam delimitação de fronteiras, contrabando de mercadorias e casos de espionagem. Porém, um objeto esteve no cerne de diversas disputas: a existência em Caiena de plantas cultivadas provenientes de outros continentes, além de variedades aprimoradas de alguns vegetais. Os franceses possuíam à época uma rede de jardins botânicos espalhados por suas colônias, centralizada no Jardin des Plantes, em Paris. As riquezas vegetais exóticas de Caiena deveram-se inicialmente aos envios do filósofo e agente colonial Pierre Poivre (17191786), intendente das ilhas de France e de Bourbon (atualmente Maurício e Reunião, respectivamente). Poivre teve uma vida repleta de atribulações e aventuras. Foi missionário na China, trabalhou para a Companhia das Índias Orientais francesa, esteve na Indonésia e na Índia. O intendente foi personagem central para a circulação de plantas pela Terra, já que conseguiu contrabandear, principalmente dos neerlandeses, diversas especiarias, que passou a plantar no jardim botânico de Île de France (Maurício), chamado de La Pamplemousse. Daí, muitos vegetais partiram para outras partes do Oceano Índico, África e Américas. Philibert Commerson, que viajara com Bougainville ao redor do mundo, foi um dos naturalistas que se envolveram com as plantações de vegetais úteis implementadas por Poivre. O naturalista ajudou o intendente a analisar, por exemplo, as moscadeiras e os craveiros-da-índia, que estavam sendo aclimatados na ilha. Poivre acreditava que se os hábitos das plantas fossem mudados aos poucos, elas conseguiriam se adaptar a condições de vida inteiramente diversas, com um tipo de concepção evolucionista próxima da que seria sistematizada por Lamarck. Essas experiências não deram os frutos esperados, já que as plantas só podem mudar expressivamente de ambiente se forem cruzadas com outras espécies. No entanto, o jardim mantido por Poivre e alguns outros na Europa e suas colônias realizavam experimentos para aprimoramento das espécies, como a seleção de sementes, enxertos, escolha de solos apropriados, técnicas de propagação.
Bastos, C.; Almeida, M. & FeldmanBianco, B. (orgs.). Trânsitos coloniais. Diálogos críticos luso-brasileiros. Campinas: Unicamp.
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Retrato de Pierre Poivre, s/d. Importante administrador colonial francês, Pierre Poivre (1719-1786) estabeleceu um jardim botânico na Ilha Maurício, em meados do século XVIII, que foi um dos grandes centros de difusão de vegetais para as colônias francesas e – indiretamente – também para o Brasil. Archives de la Ville de Lyon, Lion
Capitão de infantaria Ignácio Antônio da Silva, s/d. Detalhe do mapa Plan de L’Etablissement et des plantations des Epiceries sur la habitation de la Gabrielle appartenante a Son Altesse Royale le Prince du Bresil. O jardim botânico da Guiana Francesa, em Caiena, recebeu valiosas espécies de plantas asiáticas, vindas principalmente da Ilha Maurício. Pouco depois da invasão de Portugal pelos franceses (1807), os portugueses ocuparam Caiena (janeiro de 1809) e se apropriaram das plantas de precioso jardim chamado de La Gabrielle. Nesse detalhe da planta do jardim, pode-se ver a localização dos viveiros para pés de noz-moscada, caneleiras e craveiros-da-índia (n.os 23 e 24). Acervo Arquivo Histórico do Exército, Rio de Janeiro
Capitão de Infantaria Ignácio Antônio da Silva, s/d. Plan de L’Etablissement et des plantations des Epiceries sur la habitation de la Gabrielle appartenante a Son Altesse Royale le Prince du Bresil. Esta planta de La Gabrielle da época do domínio português mostra espaços destinados à alimentação dos escravos, um hospital, alojamentos, canteiros e viveiros, principalmente destinados ao cravo, noz-moscada e canela. Acervo Arquivo Histórico do Exército, Rio de Janeiro
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Jacques-Nicolas Bellin, 1764. Carte de l’Isle de France. Sob a administração de Pierre Poivre, o jardim botânico da Île de France (Maurício) tornou-se um centro para aclimatação de plantas e experiências de cultivo. O jardim chamava-se La Pamplemousse e tinha as mais prezadas especiarias orientais. Acervo Bibliothèque Nationale de France, Paris
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4 Grove, Richard. 1995. Green Imperialism. Cambridge: Cambridge University Press. 5 Soublin, Jean. 2003. Cayenne 1809. La conquête de la Guyane par les Portugais du Brésil. Paris: Karthala, p. 19. 6 Sanjad, Nelson. 2006. Éden domesticado: a rede luso-brasileira de jardins botânicos, 1790-1820. Anais de História de Além-Mar 7:251-278, p. 259. 7 Soublin. Op. cit., p. 100. 8 Sanjad. Op. cit., p. 269. 9 Cf. Meunier, Isabelle M. J. & da Silva, Horivani C. 2009. Horto d’El Rey de Olinda, Pernambuco: história, estado atual e potencialidades de cobertura vegetal de uma área verde urbana (quase) esquecida. Revsbau 4(2):62-81 e Rodrigues, Jefferson; Dutra, Milena; Albuquerque, Priscilla; Dias, Silvana; Almeida, Argus Vasconcelos de. 2005. Aspectos histórico-ecológicos
Além disso, Poivre é reconhecido como sendo um dos mais notáveis exemplos de execução de uma política ambiental coerente na época moderna.4 Poivre, que poderia ser classificado entre os fisiocratas, buscou executar na ilha Maurício uma política de preservação das matas e replantio visando garantir a médio prazo a continuidade da exploração racional da natureza. Caiena participava da rede de jardins coloniais franceses sem o brilho das ilhas do Índico. A fundação e a manutenção da Guiana tinham sido extremamente difíceis por conta do altíssimo índice de mortalidade das tropas e dos colonos franceses enviados para lá, atingidos sobretudo pela febre amarela. Apesar disso, em 1773, Caiena recebe da ilha Maurício pés de moscadeira, cravos-da-índia e caneleira. As plantas foram cultivadas em um jardim, chamado La Gabrielle. Um outro jardim em Mont Baduel também era usado para acolher as plantas exóticas. Os resultados vieram logo em seguida, pois já em 1776 a Guiana começou a exportar cravos-da-índia, além dos produtos já existentes, como urucum, algodão, cacau e açúcar.5 O jardim botânico do Grão-Pará foi criado em 1798, por demanda de D. Rodrigo de Souza Coutinho e com a colaboração de seu irmão, D. Francisco de Souza Coutinho, capitão-general do Estado do Grão-Pará e Rio Negro. Desde essa época já havia plantas exóticas plantadas no jardim, como fruta-pão, cravo e canela, contrabandeadas de Caiena. Os esforços também foram concentrados no plantio de espécies indígenas, como as chamadas “drogas do sertão” e as madeiras adequadas para produção naval.6 A atuação do ministro e de sua rede de administradores e peritos intencionava seguir o exemplo de outros impérios coloniais e estabelecer conexões entre os jardins brasileiros e os do Reino com as demais regiões do Ultramar. Em 1809, as negociações com os franceses previam que o jardim La Gabrielle fosse conservado, ou seja, houve uma tentativa de impedir o confisco em massa das plantas para o Pará ou para os aliados ingleses de Portugal.7 Apesar das restrições, D. Rodrigo, que passara a ser ministro da Guerra, aproveitou a oportunidade e recolheu para o jardim botânico do Pará muitas das especiarias plantadas em La Gabrielle, principalmente a noz-moscada. No final de 1809, o administrador de La Gabrielle, o naturalista Joseph Martin, enviou para Belém 82 espécies distintas de plantas, entre as quais carambola, fruta-pão, moscadeira, pimenteira, “groselha-da-índia”, e uma variedade de cana mais produtiva que as que eram cultivadas pelos luso-brasileiros, chamada no Brasil de cana-caiena ou caiana.8
do Horto d’El Rey de Olinda, Pernambuco. Mneme – Revista de Humanidades 7(19):388-413, p. 398. 10 Ribeiro, Jerônimo Luís. Requerimento encaminhado ao Ministério do Império, solicitando mercê da Ordem de Cristo [...]”. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, manuscritos.
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Mais de uma década depois do jardim de Belém, um horto foi criado em Olinda em 1811 com o objetivo de acolher plantas provenientes de Caiena, para serem disseminadas por Pernambuco, mas também para dali serem enviadas ao Rio de Janeiro. Em 1812, segundo lista estabelecida pelo padre Montenegro, seu primeiro diretor, estavam aclimatados no horto craveiros-da-índia, árvores de fruta-pão, caneleiras, caramboleiras, bilimbizeiros, frutas-do-conde, entre outras plantas exóticas, várias delas provenientes de La Gabrielle.9 O papel do horto de Olinda como lugar intermediário para plantas oriundas de Belém e Caiena, antes de serem enviadas para o Rio de Janeiro, pode ser comprovado por diversos documentos de época. Durante todo o período de domínio português sobre a Guiana diversas remessas foram feitas para os jardins brasileiros. Franceses, portugueses e luso-americanos envolveram-se com as trocas de plantas e sementes entre os jardins americanos. Jerônimo Luís Ribeiro, diretor do horto de Olinda entre 1818 e 1819, obteve seu posto por ter como lastro uma estada de cinco anos em Caiena, além de ter viajado por outras colônias, pela América setentrional e mesmo pela Europa. Ele indicava em seus pleitos que poderia contribuir para a reativação das culturas de plantas exóticas em Olinda, que estavam em estado de semiabandono e ainda sugeria a possibilidade de remeter para “os Estados do Brasil” um número considerável de plantas úteis, acompanhadas por 24 escravos “exercitados em diferentes ramos de agricultura, e economia rural”, que poderiam passar seus conhecimentos aos encarregados das plantações. Da lista estabelecida por Ribeiro constam, além de cravo, canela, pimenta-da-índia e noz-moscada, a cana-roxa, a carambola, vários tipos de frutas, incluindo o abacaxi da variedade maipure, a jalapa – batata-de-purga – e possivelmente a Quassia amara, estas duas últimas com propriedades medicinais.10
O desenho não tem autor, mas é acompanhado de uma carta de G.F. van Wreeden e H. Klingengergh datada de 1670; ambos pertencem a um conjunto de cartas enviadas da ilha Maurício para a VOC. Affteeckening van‘t bouwlant in de Vuijle bocht [A fazenda na Baía Foul]. As ilhas do Oceano Índico e a ilha Maurício em particular foram centrais para a colonialismo moderno. Eram pontos importantes para reabastecimento e de aclimatação de espécies exóticas de plantas e animais. A ilha Maurício em algumas décadas viveu intenso desmatamento e degradação ambiental, o que levou seus administradores a proporem políticas ambientais adaptadas à nova situação. A imagem mostra o corte de ébano no final do século XVII e provavelmente retrata um pássaro endêmico, já extinto. Acervo Nationaal Archief, Kaarten Leupe 4.vel, inventory number 1132, Den Haag
I. Haas, 1761. 1. Bilimbeira; 2. Bilimbin; 3. Cajuyera; 4. Caju eller Acaju; 5. Kaneel-Traeet. Prancha no. 5 da Almindelig Historie over Reiser til Lands og Vands [Hist贸ria geral de viagens por terra e por mar]. As imagens e descri莽玫es de plantas ex贸ticas circulavam pela Europa. Alguns vegetais eram extremamente valiosos, como a caneleira; outros ficaram menos conhecidos, como o bilimbizeiro, introduzido no Brasil a partir do jardim de Caiena. Acervo John Carter Brown Library, Providence
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A entrada de plantas provenientes de colônias francesas não se deu apenas por Caiena. O sítio da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro, onde funcionavam uma fábrica de pólvora e um jardim, recebeu em 1809 um carregamento de plantas exóticas vindas da ilha Maurício. A história dessa remessa foi narrada por Luiz de Abreu em Notícia das plantas exóticas transplantadas da Ilha de França. Essa memória relata as atribulações pelas quais passou Abreu ao ser feito prisioneiro de guerra na ilha Maurício, em 1808. No ano seguinte, o oficial português conseguiu ser resgatado e trazer para o Brasil diversas plantas cultivadas no jardim colonial francês La Pamplemousse. Abreu narrou sua proeza de forma explícita: tratei de negociar, e efetuei, com aquele Governo o meu resgate, [...] prospectando ao mesmo tempo roubar aquela colônia, para enriquecer este Estado, parte das preciosidades, com as quais Mrs. De Poivre, e Menonville, em 1770, tanto o tinham ilustrado: o projeto foi temerário [...] e o resultado o mais feliz, pois que consegui subtrair do Jardim Real um grande número de árvores de especiarias e de sementes exóticas.11
11 O Patriota I(3):16-23. 12 Ver Moisés Ribeiro, Márcia. Ciência e Império: o intercâmbio da técnica e o saber científico entre a Índia e a América portuguesa. Texto inédito. Agradeço a gentileza da autora. 13 Inventário dos documentos relativos ao Brasil existentes no Arquivo de Marinha e Ultramar. 1909. Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, vol. XXXI, p. 10 e 12. 14 Papavero, Nelson; Teixeira, Dante & Overal, William. 2001. Notas sobre a história da zoologia do Brasil. 2. As viagens de Francisco de Melo Palheta, o introdutor do cafeeiro no Brasil. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi (série Zool.), 17(2):181-207.
Parte das mudas e sementes obtidas por Abreu foi cultivada no jardim da Lagoa Rodrigo de Freitas. O encarregado, João Gomes da Silveira Mendonça, relatou o cultivo de moscadeiras, canforeiras, caneleiras, craveiros, toranjeiras, entre outros. Abreu foi igualmente responsável pela introdução da planta do chá, que fez vir de Macau por intermédio de seu amigo, o senador Rafael Bottado de Almeida. O plantio de chá no Rio de Janeiro, iniciado em 1812, contou com a presença de cultivadores chineses. Trezentas pessoas chegaram de Macau em 1814 e se estabeleceram no jardim botânico e suas redondezas. Parte desses imigrantes acabou se fixando nas proximidades da fazenda imperial de Santa Cruz, antiga propriedade dos jesuítas. Ao longo do século XVIII, outras iniciativas envolveram a migração para o Brasil de cultivadores orientais. Em 1751, cinco indianos cristãos de Goa, chamados de “canarins”, foram enviados a Bahia pelo Marquês de Távora, vice-rei da Índia, para tentar extrair de palmeiras um licor e produzir com ele uma bebida destilada denominada urraque.12 Seus conhecimentos técnicos também seriam usados para incrementar a fiação de linhos e o preparo do arroz. 13 Exemplos como esses demonstram que as relações entre as diferentes partes do Império português se mantiveram ativas ao longo do Setecentos. Nas últimas décadas do século XVIII e no início do século XIX, assistiu-se, assim, a uma mudança no ritmo da circulação de plantas exóticas no Brasil. Houve pequenos surtos produtivos de novos cultivos na região, como o chá e o anil. Esse ritmo, porém, voltou a desacelerar quando, por volta de 1830, um produto exótico assumiu preponderância nos negócios do Brasil independente: o café. A introdução desse produto se deveu ao militar Francisco de Mello Palheta, que o contrabandeou de Caiena em 1727, levando-o para o Pará.14
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Jean-Baptiste Debret, c. 1818. Caffé [sic]. O café, originário da Ásia, tornou-se no século XIX o principal produto de exportação do Brasil. Antes disso, sua presença era mínima. O hábito brasileiro de tomar café começou a se formar a partir de meados do Oitocentos, sendo, portanto, um produto do país independente e não dos tempos coloniais. Acervo Museus Castro Maya / Instituto Brasileiro de Museus / Ministério da Cultura, Rio de Janeiro
Charles Landseer, 1825/1826. Árvore de chá. O chá começou a ser cultivado no Brasil no início do século XIX, por plantadores chineses. Sua infusão é uma das bebidas estimulantes, consumidas com açúcar, cujo uso se difundiu com o colonialismo. Acervo Instituto Moreira Salles, Rio de Janeiro
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A viagem das plantas em escala planetária teve início nos primeiros anos de colonização da América, em grande parte de forma espontânea. Porém, a introdução e aclimatação de vegetais como uma política deliberada e planejada por meio de cultivo em hortos e jardins existia pelo menos desde o século XVII. Os holandeses iniciaram essas práticas em suas colônias do Índico, como demonstrou Richard Grove,15 seguidos pelos ingleses e franceses. No século XVI, os portugueses haviam sido pioneiros na transferência de vegetais da Ásia para a África ocidental, o Caribe e o Brasil, tendo inclusive jardins de aclimatação na Ilha da Madeira, São Tomé e Fernando Pó.16 Mas, apesar de ter sido o primeiro país europeu a constituir canais intercontinentais de trocas no colonialismo moderno, 17 sua lógica de ação, após breve período marcado pelos Colóquios dos simples e drogas... da Índia, de Garcia da Orta, publicado em português em 1563, e traduzido para o latim em 1567, privilegiou a proteção do comércio do Oriente. No século XVI, chegaram-se mesmo a destruir, no Brasil, várias espécies exóticas transplantadas anteriormente da Ásia. Essa política, que perdurou até meados do século XVII, dificultou a naturalização de especiarias do Oriente – de grande valor comercial – na América portuguesa.18 Assim, grande parte das espécies e variedades de plantas valorizadas no mercado internacional chegou ao Brasil por meio da biopirataria, já que a configuração do comércio e do cultivo de especiarias havia se modificado radicalmente e os portugueses tinham perdido acesso a muitas delas. As experiências para a naturalização e o aperfeiçoamento de plantas tornaram-se um ramo importante das políticas coloniais, com o pioneirismo holandês, já no século XVII. No Século das Luzes, essas práticas tornaram-se sistemáticas em diversos países. Os jardins botânicos de Kew e de Paris adquiriram celebridade: tornaram-se centros de distribuição de mudas e sementes para os jardins coloniais, como os de St. Vincent, Calcutá, ilha Maurício, Cidade do Cabo ou Caiena. As plantas cultivadas e aperfeiçoadas eram mantidas sob vigilância, o que não impediu contrabandos de diversos tipos por parte de pessoas das mais diferentes nacionalidades e formações. O roubo de plantas não era uma atividade fora do comum na época. O próprio Pierre Poivre havia povoado as Mascarenhas com espécies contrabandeadas do Timor, quebrando o monopólio holandês do comércio de especiarias.
15 Grove, Richard. Op. cit. 16 Ibid., cap. 2. 17 João Fragoso afirma que “o Império luso era mais que uma simples entidade político-administrativa com sede em Lisboa, sendo, em realidade, um espaço econômico com alto grau de refinamento”. Cf. A noção de economia colonial tardia no Rio de Janeiro e as conexões econômicas do Império português: 1790-1820. In: Fragoso, J.; Bicalho, M. F. & Gouvêa, M. de F. (orgs.). 2001. O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, p. 324. 18 Cf. Russell-Wood, A. J. R. 1998. The Portuguese Empire, 1415-1808. A World on the Move. BaltimoreLondres: Johns Hopkins Univ. Press, cap. V. Ver capítulo de Heloisa Gesteira.
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Jacques-Nicolas Bellin, 1763. Indiens de la Guyane habitants aux environs de l’Orenoque [Índios da Guiana habitantes do entorno do Orenoco], prancha ilustrada na página 82 do livro Description geographique de la Guyane. A imagem representa um casal de indígenas cercado por plantas úteis – algodão, índigo e tabaco –, além de um pequeno mamífero. Ao lado do algodoeiro, um enfeite confeccionado com uma liga de metais, chamada de caracoli. Ao representar os habitantes locais, o artista acrescentou à cena o que poderia servir aos interesses coloniais. Acervo Bibliothèque Nationale de France, Paris
Nas Américas, entre os séculos XVIII e XIX, além das especiarias, novos produtos haviam conquistado o mercado europeu, principalmente o anil e a cochonilha. O corante azul do anil era produzido a partir da planta Indigofera tinctoria e o corante carmim vinha da decocção do inseto Dactylopius coccus, criado no cacto chamado palma (Opuntia), originário do México (Oaxaca). Esses corantes eram importantes ramos de comércio nas Américas. O índigo – planta originária da Índia – era cultivado principalmente nas Antilhas e na Carolina do Sul. Já o corante carmim era produzido sobretudo no México, mas, em 1777, Thierry de Menonville conseguiu levar insetos e cactos para Santo Domingo.19 Os portugueses participaram dessa luta pela produção e venda dos corantes de diversas maneiras. O Rio de Janeiro chegou a produzir quantidades significativas de anil, com incentivos da coroa. A produção de carmim também alcançou algum resultado, embora não tenha prosperado ou pela má qualidade do produto ou pela adulteração que sofria para o comércio.20 O viajante Alexander von Humboldt mencionou que o almirante Nelson, então capitão, teria colhido cochonilhas no Rio de Janeiro e as transportado para Madras. Não se sabe que tipo de inseto foi coletado, mas esse episódio demonstra que as tentativas de alguns homens de ciência e de práticos da América portuguesa, incentivados pela Coroa, davam resultado.21
Autor desconhecido, [post. 1770]. Fábrica de anil nos destritos do Rio de Janeiro, exemplares de um conjunto de nove desenhos aquarelados (negro e sépia) dedicados à explicação dos diversos processos de produção de anil. Nas últimas décadas do século XVIII, o Rio de Janeiro chegou a produzir quantidades relevantes de anil para exportação, com apoio da Coroa, que garantia a compra da produção. Para esse empreendimento concorreram práticos locais, que foram adquirindo expertise na produção da tintura, a partir da experiência e da leitura de livros, panfletos e instruções. Acervo Arquivo Histórico Ultramarino, Lisboa
19 Diguet, Léon. 1909. Histoire de la cochenille au Mexique. Journal de la Société des Américanistes 6:75-99. http://www.persee.fr/web/revues/ home/prescript/article/jsa_00379174_1909_num_6_1_3527 Ver também Ferraz, Márcia. 2007. Rota dos estudos sobre a cochonilha em Portugal e no Brasil no século XIX: Caminhos desencontrados. Química Nova 30(4):1032-1037. 20 Pesavento, Fábio. 2009. Um pouco antes da Corte: a economia do Rio de Janeiro na segunda metade do Setecentos. Tese de doutorado, Programa de Pós-Graduação em Ciências Econômicas. Niteroi: Universidade federal Fluminense. 21 Diguet, Léon. Op. cit., p. 78.
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José Mariano da Conceição Veloso, 1800. Na página à esquerda, folha de rosto e frontispício; à direita, cacto da cochonilha. Estampas d’O fazendeiro do Brasil, cultivador, melhorado na economia rural dos generos já cultivados [...]. As publicações de Frei Veloso – como O fazendeiro do Brasil – visavam incrementar a agricultura e as manufaturas no Brasil, inclusive de corantes. O carmim extraído da cochonilha foi produzido no Brasil, mas sua qualidade não atingiu padrão desejável para a exportação. A produção do carmim é complexa porque uma variedade específica do inseto precisa se alojar em uma espécie particular do cacto Opuntia. A combinação ideal dos fatores associados à produção ocorria na região de Oaxaca. Acervo Coleção Brasiliana da Universidade de São Paulo – USP, São Paulo
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Uma análise recente demonstra que a viagem aos Estados Unidos de Hipólito da Costa, realizada entre 1798 e 1800 foi uma custosa missão de espionagem botânica. Frei José Mariano da Conceição Veloso redigira instruções específicas para ele, que incluíam obter informações e amostras de tabaco, algodão, cânhamo, índigo, entre outras produções da natureza. O ministro D. Rodrigo de Sousa Coutinho considerava que ele deveria, sobretudo, conseguir insetos e cactos para produção de carmim. Costa iria até o México e remeteria as cochonilhas e suas plantas hospedeiras para o Rio de Janeiro. A atividade do luso-brasileiro contemplou também pesquisas sobre livros, panfletos e instruções que pudessem auxiliar a agricultura e as técnicas do que se chamava à época de “economia rural”.22 Assim, as plantas desempenhavam papel central nas preocupações dos governos e nas estratégias individuais de sobrevivência e posicionamento social de militares, técnicos, aventureiros, homens de ciências e de letras. Os jardins estiveram associados a atividades de espionagem, contrabando, circulação de mudas, sementes, de técnicos, plantadores, botânicos e suas técnicas. Com as plantas circulavam também manuscritos, além de panfletos, revistas e livros impressos que auxiliavam no processo de coleta, identificação, transplantação, aclimatação e cultivo de espécies. José Mariano da Conceição Veloso, naturalista recrutado por D. Luís de Vasconcelos e, em seguida, vinculado a D. Rodrigo de Souza Coutinho, foi responsável pela edição da obra O fazendeiro do Brasil, em onze volumes, entre 1798 e 1806, que buscava dar conta dos produtos mais atraentes para cultivo no Brasil e também da criação animal. As plantas foram agrupadas pelas rubricas “especiarias”, “canas e factura do açúcar”, “tinturaria”, “bebidas alimentosas” e “filatura”. A historiografia vem tratando detalhadamente do grande empenho editorial capitaneado por Veloso, principalmente à frente da Tipografia do Arco do Cego.23 Em seu conjunto, tanto O fazendeiro do Brasil quanto as demais obras dedicadas à economia rural constituem um imenso apanhado do que havia sido escrito de mais relevante sobre os produtos “coloniais”. Como o próprio Veloso afirmava, Portugal deveria aproveitar suas “Colônias entre os trópicos”,24 assim o faziam os ingleses, franceses, espanhóis e holandeses. Veloso atribui à inação costumeira dos plantadores o fato de muitos produtos úteis, como o índigo, terem levado tanto tempo para ser cultivado no Brasil.
22 Safier, Neil. 2009. Spies, Dyes and Leaves. Agro-intermediaries, LusoBrazilian Couriers, and the Worlds they Sowed. In: Schaffer, S.; Roberts, L.; Raj, K. & Delbourgo, J. (eds.). The Brokered World. Go-betweens and Global Intelligence, 1770-1820. Sagamora Beach: Science History Publications e, do mesmo autor, ver o seguinte texto, que contém, anexa, a transcrição das instruções de Veloso: Instruções e impressões transimperiais: Hipólito da Costa, Conceição Veloso e a ciência joanina. In: Kury, L. & Gesteira, H. (orgs.). 2012. Ensaios de história da ciência no Brasil, das Luzes à nação independente. Rio de Janeiro: Eduerj. 23 Ver Campos, Fernanda de et al. (org.). 1999. A casa literária do Arco do Cego (1799-1801) – Bicentenário: “sem livros não há instrução”. Lisboa: Biblioteca Nacional-Imprensa Nacional-Casa da Moeda. 24 Veloso, José Mariano da Conceição. 1805. O fazendeiro do Brazil, cultivador [...], tomo IV, parte 1, Especiarias. Lisboa: Impressão Régia, “Dedicatória”, s. p.
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José Mariano da Conceição Veloso, 1800. Equipamento para produção de açúcar ilustrado no tomo 1, parte 2 d’O fazendeiro do Brasil, cultivador, melhorado na economia rural dos generos já cultivados [...]. O fazendeiro do Brasil foi uma coleção publicada entre 1798 e 1806 que reunia informações sobre atividades econômicas já presentes no Brasil ou potencialmente interessantes. Os livros buscavam passar o conhecimento internacional disponível sobre os temas e mostrar maneiras de aprimorar as técnicas utilizadas tradicionalmente. As imagens tinham destaque nos projetos de Veloso, pois constituem ferramentas poderosas para o aprendizado por meio da leitura. Acervo John Carter Brown Library, Providence
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Os produtos coloniais, desse modo, se agrupavam segundo seus usos: fabricação de cordas e tecidos, como o algodão e o cânhamo; corantes, como o anil, a cochonilha e o urucum; os edulcorantes, como as canas e o Acer saccharum (bordo-açucareiro, típico da América do Norte); estimulantes, como café, chá e cacau. Os produtos alimentares produzidos no mundo colonial acompanharam uma profunda transformação nos hábitos alimentares da Europa. O açúcar transformou-se em um dos principais energéticos consumidos no mundo inteiro. Até o século XVII, o açúcar era uma mercadoria cara, usada como medicamento e presente em boticas de médicos. Originário da Ásia e plantado em larga escala no Brasil e nas Antilhas, passou a ser item básico para a alimentação, também associado a outros produtos tropicais, principalmente o cacau, chá e café. 25 Durante as guerras napoleônicas e o Bloqueio Continental, os franceses rapidamente tiveram que desenvolver uma alternativa ao açúcar de cana originário de sua colônias nas Antilhas. O mercado interno francês passou a consumir açúcar de beterraba, produzido em grande escala a partir de 1812.26
José Mariano da Conceição Veloso, 1800. Acer assucareiro, ilustração do tomo 1, parte 1 d’O fazendeiro do Brasil, cultivador, melhorado na economia rural dos generos já cultivados [...]. Acervo Coleção Brasiliana da Universidade de São Paulo – USP, São Paulo 25 Mintz, Sydney. 1985. Sweetness and
Monnet [del.], David [grav.], s/d. Le Ministre de l’Interieur Présente à l’Empereur du Sucre de Betterave [O ministro do interior apresenta ao Imperador o açúcar de beteraba]. Acervo Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro
Power: The Place of Sugar in Modern History. London: Penguin Books. 26 Cf. Kury, L. 2007. Descrever a pátria, difundir o saber. In: Iluminismo e Império no Brasil: O Patriota (18131814). Rio de Janeiro: FiocruzBiblioteca Nacional.
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Durante as guerras do período napoleônico houve grande desestabilização do comércio de açúcar proveniente das Antilhas. O Acer saccharum, muito usado na América do Norte, produz uma seiva da qual se extrai um xarope doce, podendo, assim, substituir o açúcar como edulcorante. Durante o Império, Napoleão incentivou a química aplicada à alimentação. Data desse época o início da produção de açúcar de beterraba na França.
Plantas que curam: mobilidade geográfica e cultural
Uma importante categoria de vegetais atraía a atenção das políticas de governo, de coletores, naturalistas e comerciantes: as plantas com virtudes medicinais. As próprias especiarias orientais eram usadas para curas, mas diversos vegetais endêmicos das Américas passaram a abastecer as boticas do Novo Mundo e da Europa. A ipecacuanha e a jalapa, por exemplo, figuram na Materia medica de Lineu. A lista das plantas brasileiras que circularam em tratados médicos e de história natural é extensa. A quina, no entanto, tornou-se essencial para a própria colonização dos trópicos por ser o único medicamento capaz de controlar febres, a malária em particular. A Cinchona officinalis é originária da região andina, mas ocorre também na Amazônia brasileira. Outros vegetais do mesmo gênero ou mesmo outras plantas têm propriedades febrífugas e o gosto amargo da quina e eram também procurados pelos coletores. Os espanhóis realizaram expedições científicas que tinham entre seus objetivos pesquisar as diferentes espécies de quina. O naturalista Hipólito Ruiz publicou, em 1792, a obra Quinología, ó tratado del árbol de la quina ó cascarilla, como um dos primeiros resultados de sua viagem ao Vice-reino do Peru. O religioso José Celestino Mutis viajou para nova Granada (hoje Colômbia), onde acabou ficando por 25 anos, de 1783 até sua morte em 1808. Seus estudos sobre a planta resultaram em um texto chamado “El arcano de la quina” (1793) e em uma rica iconografia identificando as diferentes espécies do gênero Cinchona, realizada por artistas vinculados à expedição.27 O governo português promoveu em diversas ocasiões a busca pela quina verdadeira e por similares. Naturalistas como Manuel Arruda da Câmara e Joaquim Veloso de Miranda tinham entre seus objetivos procurar quinas eficazes. D. Rodrigo de Sousa Coutinho e o governador e capitão-general de Mato Grosso Caetano Pinto de Miranda Montenegro haviam promovido pesquisas do padre José Manuel de Siqueira para identificação de pés de quina nas cercanias de Cuiabá, no final do Setecentos.
27 Kirkbride Jr., Joseph. 1982. The Cinchona Species of Jose Celestino Mutis. Taxon 31(4):693-697.
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[José María Carbonell], s/d. Determinatio specierum generis Cinchonae, desenho pertencente ao conjunto Dibujos de la Real Expedición Botánica del Nuevo Reino de Granada (1783-1816), dirigida por José Celestino Mutis y Bosio. O religioso e naturalista Mutis residiu na região de Nova Granada entre 1783 e 1808, onde chegou como chefe de expedição botânica a serviço da Coroa espanhola. Suas investigações resultaram em vastas coleções e obra científica relevante. A imagem, realizada pelos artistas da expedição, mostra as características do gênero Cinchona. Acervo Real Jardín Botánico de España, Madri
Francisco José de Caldas, s/d. Carta topografica de las cercanias de Loxa en que nace la Cinchona officinalis, desenho pertencente ao conjunto Dibujos de la Real Expedición Botánica del Nuevo Reino de Granada (1783-1816), dirigida por José Celestino Mutis y Bosio. As quinas tinham importância estratégica, já que eram eficazes contra as febres, principalmente a malária. O mapa, que mostra a ocorrência da cinchona perto de Lorca, foi estabelecido por Francisco José de Caldas, sábio nascido no Vice-reino de Nova Granada e integrante da expedição chefiada por Mutis. Acervo Real Jardín Botánico de España, Madri
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José Manuel de Siqueira, 177-. Planta topográfica da nova descuberta da Quina, na Villa do Cuyabá. Durante o século XVIII, a descoberta de quinas na América portuguesa fez parte dos objetivos da Coroa. O mapa indica a ocorrência de dois tipos genéricos de quina, identificados pelo padre José Manuel de Siqueira. Acervo Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro
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28 Santos, N. P. dos & Pinto, A. C.
Muitas amostras foram enviadas de diferentes capitanias para Lisboa ao longo de todo o século XVIII e mesmo no século XIX. O médico Bernardino Antônio Gomes e José Bonifácio de Andrada e Silva pesquisaram as propriedades químicas de cascas que receberam do Brasil.28 O primeiro identificou o cinchonino, considerado por ele o princípio ativo da planta. Antes disso, Veloso já vinha publicando grande quantidade de material escrito e imagens sobre a quina, visando tanto esclarecer seu emprego medicinal quanto reconhecer as diferentes espécies de cascas que levavam o nome de quina.29 O texto sobre a quina de Hipólito Ruiz é em parte transcrito e também muitas descrições de espécies são extraídas da Flora peruviana et chiliensis, de Ruiz e Pavón (1798-1802). As compilações de Veloso demonstram que consultava uma grande variedade de fontes e estava a par das novidades que saíam pela Europa e América. As redes de viajantes e funcionários ligados de algum modo a seus empreendimentos editoriais também tinham como orientação a busca de textos úteis para o reino e suas colônias, como foi o caso de Hipólito da Costa, já comentado. As informações sobre o emprego de plantas em medicina aparecem muitas vezes em memórias sobre outros temas ou em tratados médicos mais amplos, publicados sob a direção do naturalista. Alguns livros e panfletos foram, no entanto, dedicados a plantas específicas, como é o caso da quina, da ipecacuanha-fusca e da Quassia amara. Esta última foi objeto de uma obra interessante: Coleção de memórias sobre a quássia amarga e simaruba, de 1801, compilação composta de textos versando majoritariamente sobre uma planta usada no Suriname para a cura de febres e doenças estomacais. Veloso conseguiu reunir os mais importantes escritos que narravam a história surpreendente de um vegetal nomeado por Lineu em homenagem a um ex-escravo chamado Graman (Great man) Quacy, que originou o gênero Quassia. O curador Graman, nascido na África, era reconhecido por toda a sociedade da colônia e mantinha suas receitas em segredo. A planta que levou seu nome só foi divulgada porque ele concordou em vender a informação ao sueco Daniel Rolander, que a fez conhecer na Europa em 1756. Poucos anos mais tarde, Carl Dahlberg, que também conheceu o africano, levou várias plantas para a Suécia e para Lineu. O tema e o conjunto de memórias escrito em torno da planta adquiriram certa visibilidade na esfera de circulação de textos referentes às colônias. As curas de Graman ficaram mais conhecidas graças ao sucesso do livro Narrative of a Five Years Expedition against the Revolted Negroes of Surinam (1796), escrito por John Stedman, peça importante na literatura abolicionista do período.
2012. A mata é sua farmácia – a pesquisa de plantas brasileiras para o combate de doenças tropicais no século XIX. Rev. Virtual Quím. 4(2):162-172. 29 Veloso, José Mariano da Conceição (org.). 1799. Quinografia portuguesa. Lisboa: Oficina de João Procópio Correa da Silva.
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José Mariano da Conceição Veloso, 1799. Coutinia illustris (planta e sementes), pranchas pertencentes ao livro Quinografia portugueza ou collecção de varias memorias sobre vinte e duas espécies de quinas [...]. As imagens representam um galho florido e sementes da Coutinia illustris, cujo nome foi dado em obséquio devido ao Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor D. Francisco de Souza Coutinho, Governador e Capitão General do Grão-Pará e Províncias do Amazonas, pelo zelo com que tem introduzido o gosto de cultivar nos jardins as Dríadas, estimáveis habitadoras das nossas brasílicas florestas, e as mais raras das estranhas, como o girofleiro, a árvore do pão e outras. Acervo Brasiliana da Universidade de São Paulo
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José Mariano da Conceição Veloso, 1801. Estampa da Quassia amara incluída na publicação Collecçaõ de memorias sobre a quassia amarga e simaruba [...]. Acervo Brasiliana da Universidade de São Paulo William Woodville, 1792. Quassia amara ilustrada no livro Medical Botany Containing Systematic and General Descriptions with Plates of all the Medicinal Plants [...]. Acervo Missouri Botanical Garden Library, Saint Louis Frei Veloso, em sua publicação sobre a Quassia amara, reproduz textos e imagens de obras que circulavam na Europa, como é o caso da ilustração retirada do livro sobre botânica médica de Woodville.
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John Gabriel Stedman, 1796. The celebrated Graman Quacy [o célebre Graman Quacy], ilustração do livro Narrative, of a Five Years’ Expedition, Against the Revolted Negroes of Surinam,in Guiana, on the Wild Coast of South America; from the Year 1772, to 1777. A imagem mostra um famoso curador do Suriname, conhecido como Graman Quacy, que deu nome à planta Quassia amara, descrita por Lineu. A quássia era usada contra febres e problemas gastrointestinais. Na imagem Quacy aparece com roupas europeias, que ganhara de autoridades neerlandesas. Acervo John Carter Brown Library, Providence
30 Cf. Scott-Parrish, Susan. 2006. American Curiosity. Cultures of Natural History in the Colonial British Atlantic World. Williamsburg: Omohundro Institute of Early American History and Culture. 31 Veloso, José Mariano da Conceição. 1799. Coleção de memórias sobre a quássia amarga. Lisboa: Oficina de João Procópio Correa da Silva, p.
A própria descoberta e divulgação das virtudes da Quassia envolve um intrincado caso de circulação e apropriação de saberes. É possível que Graman tenha aprendido sua arte a partir do contato com comunidades de escravos e libertos. Provavelmente os negros do Suriname aprenderam a usar as plantas locais com o contato com os indígenas.30 A partir da nomeação e classificação da Quassia nos padrões lineanos, a planta se tornou um objeto científico relativamente estável aos olhos europeus. Sua representação iconográfica sofreu alguns ajustes até se estabilizar, junto com a descrição textual. O livro publicado por Veloso dá pouca importância à vida de Graman e enfatiza a descrição botânica da planta, além dos protocolos de cura estabelecidos no Suriname. Em seus escritos, Veloso sempre pregava a desconfiança para com o vulgo. Ele acreditava que a prática deveria ser fundada em princípios claros, para que pudessem levar a algum progresso. O trabalho botânico de Veloso, no entanto, esteve intimamente associado ao seu contato com os índios, ainda no tempo em que residira no Brasil, entre Minas, São Paulo e Rio de Janeiro. Distinguir as plantas, conhecer suas virtudes, saber onde e como coletá-las era algo que dependia de um profundo conhecimento das matas, embora, é claro, os padrões e objetivos dos indígenas fossem inteiramente distintos dos da botânica iluminista. Grande parte das plantas úteis nativas do Brasil é conhecida por seus nomes indígenas, que se mantiveram estáveis ao lado dos nomes científicos. De todo modo, Veloso não inclui em seu livro o retrato do “médico” negro Graman Quacy, que consta da narrativa de Stedman e de suas inúmeras traduções. Além disso, coloca em apêndice um excerto do De Lepra Commentationes, de Gottfried Wilhelm Schilling (1778), bastante crítico com relação às experiências feitas “temerariamente” por pessoas formalmente não qualificadas.31 Veloso inclui em sua Coleção o texto “Lignum Quassi”, das Amoenitates academicae, redigido pelo discípulo de Lineu, Carl Blom, de 1763. A tradução de Veloso não indica a procedência da memória, além disso, estabelece algumas pequenas modificações nas notas e troca a imagem original do texto lineano 32 por outra que consta de verbete de William Woodville em livro ilustrado sobre botânica médica, de 1792. 33 De fato, Woodville explica em seu verbete que houve um erro na representação das folhas da Quassia do Amoenitates. O leitor de Veloso não fica a par desse percurso. O que parece importar ao religioso é passar a informação correta e divulgar somente a imagem adequada.
34-35. 32 As Amoenitates eram consideradas obras de Lineu, já que os alunos ainda não eram “autores” plenos. 33 Woodville, William. 1792. Medical
José Mariano da Conceição Veloso, 1801. Estampa da Quassia amarga incluída na publicação Collecção de memorias sobre a quassia amarga e simaruba [...]. Acervo Brasiliana da Universidade de São Paulo J.-B. Patris, 1791. Estampa da Quassia amarga ilustrada no livro Observations et Mémoires sur la Physique, sur l’Histoire Naturelle et sur les Arts et Métiers, etc. Acervo Missouri Botanical Library, Saint Louis Dentre as memórias coligidas por Frei Veloso encontra-se o texto de JeanBaptiste Patris, médico que residira em Caiena e desenhara a planta a partir de um espécime vivo.
Botany Containing Systematical and General Descriptions with Plates of all the Medicinal Plants, Indigenous and Exotic [...] Londres: James Phillips, Quassia amara, prancha 77.
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A Coleção de memórias inclui também o artigo Jean-Baptiste Patris (1735-1786). Essai sur l’histoire naturelle et médicale du Quassie, de 1777, com cópia da prancha original, que, segundo o autor, foi desenhada a partir de um exemplar vivo. Desta vez, Veloso indica o título e o autor do texto. Patris era médico real em Caiena, onde executou excursões científicas e estudos de centenas de plantas úteis. É provável que esse artigo tenha sido escolhido pelo fato de mostrar que seria muito provável que a planta existisse também na Guiana Francesa, vizinha do Suriname, embora o próprio Patris não a tivesse encontrado em suas viagens. Ele narra ter conseguido sementes e amostras da Quassia por envio gentil do governador do Suriname, em resposta a pedido do governador de Caiena, que talvez não tivesse avaliado o potencial econômico da planta: ela viria a ser um relevante produto de exportação do Suriname, no século XIX.34 Além dos textos sobre a Quassia amara, a publicação de Veloso contém uma pequena memória de Woodville sobre a Quassia simaruba (usada contra disenterias), com uma imagem, e o apêndice referido acima, de Schilling. Esse texto descreve os usos que se faziam popularmente no Suriname das plantas tondim, cuscuta e viscum. O livro português inclui cópias das imagens de Schilling, com o nome que as plantas têm no Brasil e seus nomes científicos corrigidos. Veloso exclui, no entanto, a descrição botânica dessas plantas, com a seguinte explicação: “Não se juntam a este papel as descrições das três plantas acima mencionadas, e de que aqui se dão as estampas, por serem assaz conhecidas no Brasil pelos nomes (tondim) timbó, (cuscuta) cipó-chumbo e (viscum) erva-de-passarinho”. 35 Essa escolha por parte do editor indica inicialmente que a flora medicinal do Suriname e a brasileira eram próximas. As descrições propriamente botânicas dessas plantas não estavam inteiramente disponíveis na época de Veloso, até porque os nomes populares se referem a famílias inteiras e não apenas a uma determinada espécie. Talvez o religioso brasileiro não quisesse valorizar um trabalho de estrangeiro, distante das plantas da América portuguesa, sendo que havia naturalistas, como ele próprio, muito mais habilitados para descreverem plantas tão corriqueiramente usadas e conhecidas pelos indígenas e demais habitantes do Brasil.
A Coleção de memórias publicada por Veloso sintetiza exemplarmente um conjunto de conhecimentos garimpados de bibliotecas estrangeiras, mas que envolve conhecimentos da flora brasileira e de suas propriedades por parte do próprio editor. Além disso, as memórias demonstram a forma complexa como os conhecimentos são construídos, circulam e se transformam de um grupo a outro, de um continente a outro, entre as matas da América do Sul, jardins da Suécia, herbários ingleses, publicações portuguesas, nas mãos de nativos do Novo Mundo, africanos, europeus e luso-americanos. As camadas de conhecimento paulatinamente superpostas à Quassia amara mantêm a admiração da botânica para com suas virtudes. Blom a descreve como “divina”: Em conclusão: do que fica exposto se mostra e se convence que, sendo o lenho da Quassia um remédio Divino, não tenho palavras com que possa persuadir aos nossos Boticários e Droguistas que a mandem vir d’América com todo o empenho, para que os Professores tenham este eficacíssimo específico com que possam socorrer a vida dos mortais e muito mais, principiando a grassar entre nós a meia terçã [febre].36
Patris chama a atenção para “as propriedades heróicas da Quassia”, lenho, segundo ele, tido por “divino”, que poderia ser até superior à própria quina.37
Gottfried Wilhelm Schilling, 1770. Estampa de Viscum surinamensi, incluída na obra De Lepra Commentationes. Acervo Oxford University, Bodleian Library, Oxford José Mariano da Conceição Veloso, 1801. Estampa de Lorantho americano incluída na publicação Collecção de memorias sobre a quassia amarga e simaruba [...]. Acervo Brasiliana da Universidade de São Paulo As ilustrações da obra de Veloso retomam em larga medida as imagens do livro de Schilling, porém, ao invés de referir o nome da planta ao Suriname, acrescenta o epíteto “americano”, o que incluiria o Brasil como berço da planta. Além disso, Veloso identifica o nome vulgar brasileiro entre parênteses: o Lorantho americano seria a bem conhecida erva-de-passarinho.
34 Cf. Scott-Parrish, Susan. Op. cit. 35 Veloso, José Mariano da Conceição. Coleção [...]. Op. cit., p. 39. 36 Ibid., p. 16-17. 37 Ibid., p. 18.
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Gottfried Wilhelm Schilling, 1770. Estampa de Tondim surinamensium, incluída na obra De Lepra Commentationes. Acervo Oxford University, Bodleian Library, Oxford
José Mariano da Conceição Veloso, 1801. Estampa de Cuscuta d’America incluída na publicação Collecção de memorias sobre a quassia amarga e simaruba [...]. Acervo Brasiliana da Universidade de São Paulo
José Mariano da Conceição Veloso, 1801. Estampa de Paullina empennada incluída na publicação Collecção de memorias sobre a quassia amarga e simaruba [...]. Acervo Brasiliana da Universidade de São Paulo
Gottfried Wilhelm Schilling, 1770. Estampa de Cuscuta surinamensis, incluída na obra De Lepra Commentationes. Acervo Oxford University, Bodleian Library, Oxford
O tondim de Schilling foi identificado na obra de Veloso como Paullina empennada (Paullinia pinnata), vulgo timbó. Tratava-se de planta venenosa usada pelos índios brasileiros na pesca
A cuscuta tornou-se “americana” na obra de Veloso, de acordo com a nomenclatura lineana e com o seu desejo de vincular as plantas estudadas com o Brasil.
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Domesticando o mundo das plantas
A história natural e a medicina do Século das Luzes se nutriam em parte de um sentimento difuso de que a própria natureza produzia cura para os males da humanidade: remédios para os doentes, alimentos para os necessitados, beleza para contentamento do olhar, soluções para a indústria. As utopias da época eram povoadas por imagens de uma natureza benéfica, previdente. Se havia febres, plantas foram criadas pelas mãos da natureza para combatê-las, como a quina e a quássia. Além dessas, a fruta-pão ocupava um lugar simbólico particular no universo das viagens e das trocas vegetais. O seu nome por si só evocava aspirações de abundância. Sua terra natal é o Taiti – terra fabulosa, materialização das utopias iluministas. Nessa ilha do Pacífico não havia propriedade privada nem de bens nem de mulheres, segundo relatos de época. A árvore chegou ao Brasil também pela via de Caiena, para onde havia sido enviada pelo Jardin des Plantes de Paris, em 1797. Lahaye, um jardineiro que viajara na expedição de d’Entrecasteaux, conseguira levar pés da fruta-pão para Paris e para as ilhas francesas do Índico. Acreditava-se na época que seus frutos poderiam alimentar facilmente os escravos, sem que fosse necessário semear ou preparar a terra e o alimento. A árvore se adaptou bem no Brasil e até hoje cresce espontaneamente, principalmente no Nordeste. O movimento de aclimatação da fruta-pão nas Américas era uma das múltiplas atividades relacionadas às disputas entre França e Inglaterra no Pacífico e no Atlântico. O jardim botânico de Bath, na Jamaica, foi criado, em 1779, para receber plantas exóticas. Em 1782, a carga de um navio francês proveniente da ilha Maurício – mangas, carambolas, bilimbizeiros, jaqueiras... – foi interceptada e levada para Bath. Em 1793, esse jardim recebeu pés de fruta-pão, que se aclimataram e, em alguns anos, foram incorporados à dieta da população, composta majoritariamente por escravos. O feito foi obtido pelo comandante William Bligh, em sua segunda missão para transportar essas árvores do Taiti para a Jamaica. Sua primeira tentativa resultou no célebre motim dos marinheiros do navio Bounty, em 1789. O comandante foi acusado de negar água à tripulação, usando-a para regar as árvores de fruta-pão, que acabaram sendo lançadas ao mar pelos homens revoltados.38
38 Cf. Rice, Tony. 2007. Viagens de descobrimento. Rio de Janeiro: Andrea Jakobsson Estúdio; Kury, Lorelai. 2001. Histoire Naturelle et voyages scientifiques. Paris: L’Harmattan e Alexander, Caroline. 2009. Captain Bligh’s Cursed Breadfruit. Smithsonian Magazine, Setembro.
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Thomas Gosse, 1796. Transplanting the bread-fruit-trees from Otaheite [Transplantando as árvores de fruta-pão do Taiti]. A árvore da fruta-pão tem uma história intrincada, que envolve o motim da tripulação do Bounty contra o comandante Bligh, em 1789. Um dos estopins da revolta foi o fato de que a água potável restante a bordo estava sendo usada para regar as mudas de plantas, racionando a cota dos marinheiros. A imagem mostra o episódio bem-sucedido de transplante da fruta-pão para as Antilhas, em 1791, novamente sob o comando de Bligh, representado no quadro de pé no bote. Acervo Rex Nan Kivell Collection, National Library of Australia, Camberra
39 Ver Kury, Lorelai. 1998. Les instructions de voyage dans les expéditions scientifiques françaises (1750-1830). Revue d’Histoire des Sciences 51(1):65-91. 40 Carta de Lineu a Vandelli (Upsala, 12 de fevereiro de 1765), reproduzida em AA.VV. 2008. O gabinete de
Os eventos em torno da transferência da fruta-pão para as regiões tropicais e intertropicais da América lançam luz sobre alguns aspectos negligenciados da circulação das plantas: sua coleta, seu transporte e sua aclimatação. O navio Bounty estava carregado de árvores plantadas em vasos, que deviam ser regadas regularmente. As plantas transplantadas já crescidas davam resultados muito mais rápidos, apesar das perdas. Em muitos casos, os viajantes e naturalistas eram instruídos a levar sementes e grãos, que seriam plantados apenas em algum jardim apropriado. Muitas instruções de viagem foram publicadas ao longo do século XVIII e também no século XIX, incluindo textos práticos sobre os cuidados com a coleta e o transporte das plantas.39 A grande matriz das instruções de viagem do Iluminismo foi a tese de Eric Anders Nordblad, supervisionada por Lineu, Instructio Peregrinatoris, de 1759. A instrução lineana ensinava a dirigir a curiosidade do viajante para que pudesse realizar descrições úteis dos chamados três reinos da natureza e também dos hábitos das populações visitadas. Além disso, o texto indicava a melhor maneira de anotar as observações e redigir um diário. Nordblad se referia ao lado prático da coleta e da embalagem e transporte, mas remetia a outras instruções específicas sobre essas práticas, como a tese Instructio musei rerum naturalium (1753), defendida por David Hultman, também discípulo do naturalista sueco. Lineu e seus discípulos foram importantes para a difusão dos métodos de coletar, viajar e de aclimatar de plantas. O próprio Lineu fez uma paradigmática viagem à Lapônia. Na Suécia, plantava espécies exóticas no jardim botânico de Uppsala, com a esperança de que um dia se aclimatassem ao frio da Europa do Norte. Vivendo em país de clima severo, ele sabia da vantagem que levavam os países que possuíam colônias tropicais. Em 1764, em carta a seu correspondente paduano Domenico Vandelli, que se mudava para Portugal, Lineu exclamou, referindo-se às terras de ultramar: “Bom Deus! Se portugueses e espanhóis conhecessem seus bens naturais, quão infelizes seriam quase todos os outros, que não possuem terras exóticas!”40 Além das instruções de viagem de Lineu, outros textos circulavam nos meios da história natural europeia, como o famoso e importante Avis pour le transport par mer des arbres, des plantes vivaces, des semences, et de diverses autres curiosités d’histoire naturelle, de Duhamel du Monceau, e Mémoire instructif sur la manière de rassembler, de préparer, de conserver, et d’envoyer les diverses curiosités d’histoire naturelle, de Étienne-François Turgot. Essas duas obras são didáticas e práticas, dirigidas a funcionários coloniais e pessoas sem formação em história natural, e foram escritas do ponto de vista de administradores de impérios transcontinentais. Ensinam a confeccionar um herbário, secar plantas, transportar sementes, empalhar animais ou conservá-los em líquido. Duhamel ensina a fazer um catálogo preciso dos envios de plantas.
curiosidades de Domenico Vandelli. Rio de Janeiro: Dantes, p. 58-59, vol. 2.
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Autor desconhecido, s/d. Fra Linné’s Ungdom [Da juventude de Linné]. A imagem representa idealmente o jovem Lineu exausto depois de uma frutuosa herborização. No gabinete do naturalista jazem por terra seu chapéu, seu cajado e plantas recém-colhidas. Nas estantes, acumulam-se exsicatas, livros, ossos de animais, anotações, vidros contendo objetos de história natural. Uma ave exótica – talvez um papagaio – no alto de um poleiro equilibra a cena. Acervo The Royal Library, Copenhaguem
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M. Hoffman (del.), A. van der Laan (grav.), 1787. Frontispício da obra Flora Lapponica, de Carl von Linné. Lineu nunca saiu da Europa, embora seus discípulos tenham adquirido notoriedade como viajantes. No entanto, a viagem que o naturalista fez à Lapônia figura como modelo para expedições posteriores. A imagem mostra uma espécie de síntese das observações feitas na Lapônia, na qual aparecem habitantes locais, habitações, paisagem, plantas e animais, formando um todo articulado. Acervo Linnean Society, Londres
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Carl von Linné, 1759. Frontispício da obra Instructio Peregrinatoris. A obra faz parte dos textos lineanos, embora tenha sido redigida por Eric Nordblad, seu aluno, que seguia rigorosamente os passos do mestre. Essa instrução dá ênfase à importância das viagens para o desenvolvimento da história natural e, consequentemente, para o conhecimento da obra do Criador. Todas as instruções aos viajantes posteriores têm por referência esse texto. Cortesia do The Hunt Institute for Botanical Documentation, Carnegie Mellon University, Pittsburgh
G. Hallman (del. e grav.), 1745. Horti Upsaliensis Prospectus, ilustração incluída no livro de Samuel Naucler (Carl von Linné) Hortus Upsaliensis. A imagem ilustra texto atribuído a Lineu e ao seu discípulo Naucler. No jardim botânico de Uppsala, Lineu tentou aclimatar plantas do mundo inteiro. Da Suécia, o naturalista estabeleceu uma imensa rede de correspondentes que lhe enviavam descrições, sementes, exsicatas e textos. Acervo Linnean Society, Londres
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41 Ms. Azul, Academia das Ciências de Lisboa. 42 As breves instrucçoens [...] estão disponíveis no site http://purl.pt/720. Sobre outras instruções em circulação em Portugal na mesma época ver Brigola, João Carlos. 2003. Coleções, gabinetes e museus em Portugal no século XVIII. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian-Fundação para a Ciência e a Tecnologia; Pataca, Ermelinda & Pinheiro, Rachel. 2005. Instruções de viagem para a investigação científica do território brasileiro. Revista da SBHC 3(1):58-79; e Barbalho da Cruz, Ana Lúcia. 2004. Verdades por mim vistas e observadas oxalá foram fábulas sonhadas: cientistas brasileiros do Setecentos, uma leitura auto-etnográfica. Tese de doutorado. Curitiba: Universidade
Em Portugal, o gênero das instruções também se desenvolveu, em geral associado a Domenico Vandelli e a seus discípulos. As chamadas “viagens filosóficas” contavam com instruções adaptadas a cada situação específica. Vandelli redigiu, em 1779, Viagens filosóficas ou dissertação sobre as importantes regras que o filósofo naturalista, nas suas peregrinações, deve principalmente observar, que permaneceu manuscrito.41 Além deste e do repertório de instruções que circulava entre os naturalistas, os discípulos de Vandelli puderam, em alguns casos, contar com instruções específicas e com a grande compilação prática Breves instrucçoens aos correspondentes da Academia das Sciencias de Lisboa sobre as remessas dos productos e noticias pertencentes a historia da natureza para formar um Museo Nacional, de 1781, provavelmente escrita com a colaboração do diretor do Jardim da Ajuda. Os títulos indicados no opúsculo demonstram que houve efetiva utilização das instruções que circulavam internacionalmente, inclusive os textos lineanos.42 Diversos artefatos foram criados para auxiliar o transporte de plantas durante as viagens. Estufas portáteis, caixas para acondicionamento de sementes, capas de couro para guardar plantas secas, vasos de planta com camadas plantadas de sementes e mudas, entre outras invenções, estiveram presentes no dia a dia das trocas botânicas. O conde Luigi Castiglioni, que fez uma viagem aos Estados Unidos, entre 1785 e 1787, deixou interessantes desenhos das caixas e artefatos feitos para transportar plantas em navios. André Thouin, jardineiro-chefe do Jardin des Plantes de Paris, projetou uma série de dispositivos que eram levados nas longas viagens por homens muitas vezes preparados especialmente para cuidar de plantas. No século XIX, por volta de 1829, Nathaniel Ward desenvolveu um terrarium portátil, com vidros e totalmente vedado, o que melhorou de maneira considerável o transporte de plantas vivas. Com técnicas diferentes e inventividade, muitas espécies cruzaram mares e passaram a povoar outras terras. A maior parte dos envios de plantas a longa distância não era bem sucedida, ou então os vegetais morriam ao serem plantados em condições diferentes das ideais. Estufas, para-ventos, para-sóis, vasos e caixas eram usados para simular diferentes ambientes naturais nos jardins botânicos públicos e privados espalhados pelo planeta. Além de todo o aparato que poderia existir em torno da transposição de vegetais, havia outro aspecto relevante a ser observado: o uso.
Louis van Houtte, 1834-1836. Sem título. O jardim botânico de Bruxelas foi bastante ativo no envio de coletores e naturalistas para os trópicos, inclusive para o Brasil. O comércio de plantas exóticas na Bélgica foi vigoroso ao longo de todo o século XIX. A imagem mostra o viajante protegido do sol, simulando um ambiente propício para os habitantes de climas temperados. As plantas brasileiras, por sua vez, são transportadas em estufas no estilo Ward, recebendo luz pelos vidros das caixas, em um ambiente que não será transformado até sua chegada em local adequado. Ao fundo, a Baía da Guanabara. Os escravos negros, com pouca roupa, trabalham e parecem não se importar com o sol. Acervo National Botanic Garden Belgium, Bruxelas
Federal do Paraná. Ver também Pereira, Magnus & Barbalho da
Nathaniel Bagshaw Ward, 1852. On the Growth of Plants in Closely Glazed Cases. A chamada Wardian Case era um sistema fechado, que revolucionou o transporte de plantas em navios. Graças a esse invento, o comércio de plantas exóticas se desenvolveu imensamente na Europa, no século XIX, inclusive o de flores e de plantas delicadas. Acervo Oxford University Library, Bodleian Library, Oxford
Cruz, Ana Lúcia. 2011. Instructio Peregrinatoris. Algumas questões referentes aos manuais portugueses sobre métodos de observação filosófica e preparação de produtos naturais, da segunda metade do século XVIII. In: Kury, Lorelai & Gesteira, Heloisa (orgs.). Ensaios de história das ciências no Brasil: das Luzes à Nação independente. Rio de Janeiro: Eduerj.
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Luigi Castiglione, 1776-1793. Do manuscrito Opusculi varri. Luigi Castiglioni foi um dos muitos viajantes que partiram em busca de conhecimento e aventura durante o Iluminismo. Os manuscritos relativos a sua viagem aos Estados Unidos mostram que estudava a melhor maneira de transportar vegetais a partir da literatura técnica disponível sobre o tema. Cortesia Department of Special Collections, Memorial Library, University of Wisconsin-Madison
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aqui podemos aumentar o fundo
André Thouin, 1781. Serres à vegetaux vivans pour les voyages [estufas de viagem para vegetais vivos]. André Thouin, jardineiro-chefe do Jardin des Plantes, de Paris, foi extremamente ativo no que se refere ao cultivo de vegetais, tanto locais quanto exóticos. Ele preparava jardineiros e coletores para viagens científicas, além de inventar e aperfeiçoar apetrechos para transporte marítimo e terrestre de plantas vivas e sementes. Nos próprios canteiros do Jardin des Plantes, Thouin buscava adequar espécies de outros climas ao ambiente parisiense, expondo-as ou protegendo-as contra o sol, o vento, a umidade. Na imagem veem-se estufas e caixas para sementes a serem utilizadas em viagens ao redor do mundo, como é o caso das expedições de La Pérouse, d’Entrecasteaux ou Baudin, que contaram com a perícia de Thouin. Acervo Bibliothèque Centrale du Muséum National d’Histoire Naturelle, Paris
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Auguste Garneray, século XIX. Intérieur de la serre-chaude à la Malmaison [Interior da estufa em Malmaison]. Joséphine de La Pagerie nasceu na Martinica, de pais plantadores de cana-de-açúcar e proprietários de escravos. Em 1796, casou-se com Napoleão Bonaparte. Os jardins de sua propriedade La Malmaison, adquirida em 1799, foram importantes centros de cultivo de plantas exóticas. O naturalista Charles-François Brisseau de Mirbel tornou-se superintendente dos jardins em 1803. O famoso pintor de flores Pierre Joseph Redouté realizou diversos trabalhos para a imperatriz, retratando plantas cultivadas em La Malmaison. O jardim tinha também uma grande estufa, que permitia simular um clima quente e úmido mesmo durante o inverno. Acervo Musées Nationaux Napoleoniens/Photo RMN, Daniel Arnaudet/Jean Schormans/Other Images
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43 Muratori-Philip, Anne. 1994. Parmentier. Paris: Plon. 44 Inventário dos documentos relativos
Assim como o açúcar foi aos poucos se introduzindo nos hábitos cotidianos das populações europeias, outros vegetais também viveram processos relativamente longos de acomodação aos costumes locais. A chamada batata-inglesa é, na verdade, americana, originária dos Andes e cultivada pelos antigos incas. Na Europa, a batata parece ter sido introduzida desde o século XVI, mas só começou a ser consumida pelas pessoas no século XVIII. Até então, era considerada própria apenas para alimentar animais ou usada para decoração. Antoine Parmentier, boticário e militar, esteve associado ao crescimento do consumo do tubérculo pela população europeia, já que divulgava incansavelmente maneiras de usá-lo. Os europeus tiveram que aprender como cozinhar a batata, que pratos poderiam preparar com ela, além da melhor maneira de plantá-la e armazená-la. 43 Desse modo, a circulação das plantas não é apenas uma questão botânica ou associada ao comércio de forma abstrata. A uma planta se associam saberes, gestos, práticas, artefatos, trabalho. Uma experiência ocorrida no Brasil pode servir de exemplo para demonstrar a complexidade das questões que envolvem as relações entre as pessoas e os vegetais. Os canarins de Goa que foram para a Bahia, em 1751, levavam como bagagem sua perícia na produção de uma bebida destilada extraída de uma palmeira da Índia. Em 1753, quiseram voltar para sua terra natal, pois, segundo a explicação do vice-rei do Brasil, o conde de Atouguia, as palmeiras da Bahia – chamadas coqueiros – eram diferentes das de Goa e, por mais que as sangrassem os canarins, não conseguiam extrair delas licor suficiente para preparar a bebida indiana. Eles continuariam a procurar outras palmeiras nas redondezas, “ainda que não haja lugar para esperanças de melhor sucesso, pela total diferença da terra”. O conde acrescenta, no entanto, que “cuido que nem por isso virá a perder muito o Brasil”, e segue descrevendo o que se faz na Bahia para obter as mesmas serventias que em Goa. Com as folhas de coqueiros – sapé, seririca e pindova – se cobrem os tetos das casas de campo, chamadas senzalas. Do açúcar, continua o vice-rei, fazem uma bebida chamada cachaça, que “se vende por preço muito acomodado”; vinhos e água ardente há em abundância do Reino e das ilhas; açúcar há em quantidade. “Há várias castas de azeite e todo se vende barato”, informa o documento, que descreve os usos dos óleos de baleia, mamona, “jandiroba” e dendê. Há sempre vinagre, porque os vinhos degeneram com o clima, além de se fazer de banana e de milho. Dos cocos fazem copos para beber, chamados cuias e para carvão usam raízes de diversos paus. Quanto às cordas, o vice-rei indica a piassaba, a imbira e a imbiriba. Com relação às madeiras, no Brasil há excelentes, afirma ainda, concluindo que aguardava ordens sobre a continuação do trabalho dos canarins. 44
ao Brasil existentes no Arquivo de Marinha e Ultramar. 1909. Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, vol. XXXI, p. 10 e 12.
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Hendrik van Reede tot Drakestein, 17681703. Carim-Paná, ilustração no. 9 do Hortus indicus malabaricus: contines regni Malabarici apud Indos cereberrimi onmis generis plantas rariores [...]. Van Reede foi governador neerlandês de Malabar. O Hortus indicus malabaricus foi publicado em 12 volumes, entre 1678 e 1693. Logo tornou-se a principal referência quanto à flora do sudoeste da Índia. O livro originou-se da confluência de interesses europeus e dos saberes médicos e botânicos locais, além da expertise de artistas flamengos e de um tradutor luso-indiano. Os nomes das plantas aprecem em latim, sânscrito, árabe e malaiala, língua dominante na região de Kerala. A imagem representa uma palmeira (Borassus flabellifer), com a qual se faz um licor de uso na Índia. Os canarins de Goa que foram para a Bahia no século XVIII não conseguiram usar para esse fim as palmeiras que aqui encontraram. Acervo Missouri Botanical Library, Saint Louis
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No caso dos goeses, sua perícia havia sido adquirida durante anos de contato com uma cultura que aprendera a tirar todo o proveito de suas plantas nativas e aclimatadas. Chegando à Bahia, sem as palmeiras indianas, sua habilidade para produção de urraque de nada servia. Como não havia naturalistas associados ao empreendimento, não se indagou sobre a identificação das diferentes espécies de palmeiras do Império português. Na Bahia, os habitantes haviam aprendido a lidar com as plantas que os cercavam. Muitas delas eram nativas, como a pindova, a andiroba, as madeiras, a piassaba. Outras, como o coco, a banana, o açúcar, a mamona e o dendê não eram da América, mas foram introduzidas pelos colonizadores. Em meados do século XVIII, tais produtos já passavam por serem “da terra”. Nessa época, começava a se tornar comum um novo personagem, especialista na identificação, coleta, transporte e classificação das plantas: o naturalista. Associado às habilidades dos jardineiros, médicos, químicos e demais sábios, constituiu um tipo de saber que se pretendia universal, que deveria funcionar nos quatro cantos da Terra, sempre que houvesse jardins, livros, herbários, estufas e navios. Das experiências particulares, das culturas específicas, esses homens extrairiam certo tipo de informações, organizadas em tabelas, gráficos, listas, mapas. A viagem das plantas continuava, só que com práticas que buscavam ser válidas globalmente, sem distinção geográfica e cultural.
Autor desconhecido, século XIX. The Pharmacist Antoine Parmentier Presenting Louis XVI with a Potato During One of the King’s Visits to the Field at Sablons, France, c. 1775 [O farmacêutico francês Antoine Parmentier presenteia Luís XVI com uma batata durante uma das visitas do rei aos campos em Sablons, na França, por volta de 1775]. Parmentier foi um dos responsáveis pela difusão do consumo da batata – de origem americana – na França. Inicialmente, o tubérculo era usado apenas para alimentar animais, mas foi aos poucos sendo nobilitado e passou a ingrediente importante da dieta, inclusive como substituto do pão em anos de má colheita. O episódio retratado na imagem mostra Luís XVI recebendo florezinhas de batata das mãos de Parmentier. O rei prendeu o buquê em sua lapela como forma de homenagear os esforços que estavam sendo feitos para a popularização de seu consumo. Acervo The Granger Collection, New York
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Johann Christoph Nabholz, 1770-1797. Vue de la Ville de Goa. Goa era parte do Império lusitano. O famoso médico português Garcia da Orta viveu ali no século XVI. Muitas plantas de origem americana foram transplantadas para a Índia e vice-versa. Além das plantas, costumes e saberes também atravessaram os oceanos nos dois sentidos, não sem que fossem transformados e adaptados em suas novas pátrias. Acervo Biblioteca Nacional de Portugal, Lisboa
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L&J