A LEI DA ÁGUA: UM OLHAR GEOGRÁFICO SOBRE O NOVO CÓDIGO FLORESTAL E A “NOVA” POLÍTICA DE TERRAS NO BRASIL Prof. Me. Samuel Marinelo Antes de tudo, é necessário estabelecer um acordo: discutir questões ligadas ao Novo Código Florestal Brasileiro significa, estar aberto a uma discussão que seja, primeiramente política e, só depois, socioambiental. Nesse sentido, em acordo com a visão de Ivan Valente, explícita no documentário “A lei da água” (2014), a presente análise busca fundear-se numa observação de planos: o modelo econômico brasileiro (baseado na exportação); a abundância de riquezas naturais (graças ao grande potencial de biodiversidade existente no país); a política agrária nacional (fundamentada na concentração de terras, no latifúndio e na necessidade gritante de uma reforma); e as políticas agrícolas (firmadas no incentivo ao agronegócio, produção de ricos, utilização de agrotóxicos, isenção fiscal para o grande produtor, dentre outras benesses). Estabelecido esse acordo, deve-se também buscar compreender como essa análise, mais política que geográfica – e sem a pretensão de se intitular geopolítica – se desenrola no plano espacial, afetando diretamente a geografia de elementos estruturantes: a geografia do lugar e de suas relações cotidianas; a geografia da percepção das paisagens, reflexo material dessas relações; a geografia ambiental, ligada as relações ecológicas e ambientais (diferenciadas mais adiante); a geografia do território, esta como reflexo do exercício do poder; e por último, o espaço geográfico, definido por Milton Santos como “um conjunto de realizações concretizadas através de funções e de formas que se apresentam como um testemunho de uma história, definida por processos do passado e atuais” (Santos, 2008, p. 28), ou seja, este espaço está diretamente vinculado a produção humana que, simultaneamente dá origem ao processo de produção do espaço, processo este observado por escolhas, por sua vez baseadas no sistema político e econômico vigente em seu tempo. Num recorte espaço-temporal mais atual, Gottdiener explicita que “a forma que o espaço adquire é a materialização do desenvolvimento contínuo do capitalismo” (Gottdiener, 1993, p. 54). Nesse aspecto, a morfologia espacial estaria intrínseca e dialeticamente relacionada às mudanças das estruturas da organização social, ou seja, conforme mudam as formas de produção econômico sociais, muda também a configuração do espaço, refletindo-se nas 1
realidades urbana e rural, ambas ligadas aos modos de produção e manutenção do modo de vida globalizado. Voltando a análise conceitual, vale lembrar que o Novo Código, se aplica a categoria de meio ambiente e não ao de ecologia, termos que parecem siameses, mas que possuem características distintas, o que os classifica como diferentes do ponto de vista teórico. Para Odum, o ecossistema é composto pelos organismos vivos (bióticos) e seu ambiente não vivo (abiótico), que estão inter-relacionados e interagem uns com os outros. Um ecossistema é qualquer unidade que inclui todos os organismos em uma dada área interagindo com o ambiente físico de modo que um fluxo de energia leve a estruturas bióticas claramente definidas e à ciclagem de materiais entre componentes vivos e não vivos (ODUM, 2013, p. 18). Nesse sentido, o ecossistema é entendido como “local” do estudo da vida, onde se organizam todas as relações entre o organismo e seu ambiente. Já o meio ambiente compreende uma visão mais ampla, afinal trata de questões humanas e “naturais” como “partes” de um todo indissociável. Vianna coaduna com essa afirmação ao explanar que enquanto a ecologia tem por objeto o estudo das relações entre seres vivos com seu meio natural, o meio ambiente transcende, englobando em seu conteúdo questões afetas ao patrimônio histórico e cultural; ao espaço urbano construído, às condições saudáveis para o exercício do trabalho. Enfim, a expressão meio ambiente não se restringe ao meio natural ou físico, mas perpassa por todas as demais esferas que venham a ser objeto de relação entre o homem e seu meio (VIANNA, 2006, p. 20). Ao considerar todas as esferas em que ocorrem relações entre o meio físico, natural, biológico e biológico humano, a visão de meio ambiente torna-se mais complexa, ao mesmo tempo que é mais completa.
2
Assim, longe de ignorar as diversas categorias abordadas pelo Novo Código Florestal Brasileiro (água, desmatamento, agronegócio, anistia, redução das áreas de proteção permanente, etc.), buscou-se neste ensaio, abordar, com maior ênfase aqueles referentes ao agronegócio, para tratar das diferentes formas de apropriação do espaço pelo pequeno, médio e grande produtor e à redução das áreas de proteção permanente (APPs), diretamente relacionadas à configuração territorial, e que se desdobram no plano conceitual das paisagens, do lugar e, por conseguinte, do próprio espaço geográfico. Sobre o agronegócio, vale salientar que, cerca de 22% do Produto Interno Bruto brasileiro1 (1,1 trilhão de reais), advém desse modal econômico, baseado na produção de soja, algodão, laranja e carne, todos participando do que se convencionou chamar de “produção de ricos”, graças ao fato desse tipo de produto contribuir para a economia do país por serem muito valorizados no mercado externo, ou seja são produzidos visando, majoritariamente, o mercado de exportação, enquanto que o abastecimento interno de alimentos do país fica às provisões do trabalho do pequeno proprietário, de mão de obra familiar. Segundo aborda Silvio Tendler, em seu documentário2 intitulado “O veneno está na mesa” de 2011, no Brasil, se pratica a isenção fiscal para a produção de monocultura que utiliza agrotóxicos e defensivos agrícolas, o que impede o pequeno proprietário de impor competitividade ao grande produtor. Assim, já se estabelece a primeira evidência de que o resultado territorial e geográfico brasileiro é produto de escolhas, sobretudo políticas (incentivo a monocultura), e não de uma condição de crescimento e apropriação orgânica do território, o que leva a crer que, esse direcionamento da produção agrícola tenciona para um crescimento territorial planejado para beneficiar classes sociais que já detém os benefícios obtidos antes mesmo da Lei de Terras de 1850. A terra, como símbolo e instrumento de poder foi instituída em paralelo a criação da Lei de Terras de 1850, que extinguiu a posse e passou a regulamentar a propriedade. Em seu parágrafo inicial e artigo 1º, a referida lei não deixa dúvidas sobre seus objetivos: Valor estimado para o ano de 2015 pelo Ministério da Agricultura, consultado pelo sítio eletrônico www.agricltura.gov.br, acessado em 08/09/2015. 1
Segundo o diretor e roteirista Silvio Tendler, “O veneno está na mesa”, documentário lançado em 2011, é dedicado a elucidar o cidadão brasileiro sobre o escândalo dos agrotóxicos no Brasil, com depoimentos de agricultores, representantes de consumidores, representantes de multinacionais e agência nacional de vigilância sanitária. Segundo ele, o Brasil é, lamentavelmente, o país que mais consome agrotóxicos no planeta. 2
3
“Dispõe sobre as terras devolutas do Império, e acerca das que são possuídas por título de sesmaria sem preenchimento das condições legais, bem como por simples título de posse mansa e pacífica; e determina que, medidas e demarcadas as primeiras, sejam elas cedidas a título oneroso, assim para empresas particulares, como para o estabelecimento de colônias de nacionaes e de extrangeiros, autoriza o Governo a promover a colonização extrangeira na forma que se declara. Art. 1º Ficam prohibidas as aquisições de terras devolutas por outro título que não seja o de compra” (BRASIL, 1850, p. 01). Vale aqui a reflexão sobre os conceitos estruturantes da cadeira geográfica, pois, se o que se quer trabalhar é a forma de exercício desses conceitos, impossível fazê-lo sem compreender o direcionamento da organização territorial ligada ao agronegócio, portador de interesses que perpassam a questão ambiental (ou de uma suposta proteção do meio), e que se vale da adequação à economia mundial, onde o Brasil figura como exportador de produtos primários. Assim, a configuração do território nacional está diretamente ligada ao atendimento de uma lógica economicista que responde aos números da produção agrícola mundial e não aos anseios e/ou necessidades internas, estas últimas, sempre em segundo plano, quando não nulas. O próprio professor Milton Santos ao comentar a mudança de conteúdo das regiões urbanas e agrícolas alertou que “essa nova região urbana compreende, também, por contiguidade, as áreas que não são diretamente tocadas pelo processo modernizador” (SANTOS, 1997, p. 69). Ou seja, áreas urbanas ou mesmo rurais não podem ser tratadas como áreas homogêneas, onde a população residente deva ser enquadrada em um só modelo de plano, no entanto, a apropriação da terra, por essa população, está diretamente relacionada a forma como o indivíduo
é
compreendido
social
e
economicamente,
refletindo-se
assim
nas
“circunferências” das parcelas do território que farão parte de seu repertório geográfico e espacial cotidianos. Ainda sobre o Novo Código Florestal Brasileiro, outra discussão que tange para a análise geográfica é a considerável diminuição das Áreas de Proteção Permanente. Essa mudança 4
legislativa aponta para dois processos principais: os fenômenos naturais que são direta e indiretamente ligados à essa manobra e a privatização dos lucros advindos dos recursos naturais e socialização dos prejuízos. No primeiro caso, deve-se observar, a partir da flexibilização do Novo Código, a permissividade da ocupação dos topos de morro, encostas, margens dos rios, manguezais e restingas. Essas atividades humanas são afetadas por fenômenos como os deslizamentos e escorregamentos de solo, inundações e enchentes; ou mesmo estas é que afetam o meio com o assoreamento dos rios, depósito de resíduos sólidos, despejo de resíduos em cursos d’água, retirada da mata ciliar para extensão da malha urbana, dentre outros. Nesse caso, a reflexão sobre os conceitos estruturantes da geografia permeia o aspecto físico e social, no sentido em que as pressões do segundo reverberam no primeiro, fazendo-se sentir na modificação das paisagens, na contribuição (topofílica ou topofóbica 3) da afirmação identitária e nas dinâmicas naturais que, antropizadas alteram a naturalidade dos fenômenos em questão. Para o segundo caso, o da utilização dos recursos naturais, o que parece ocorrer é a privatização destes, com o exercício de práticas como a carcinicultura e a exploração de salinas. Ambas as práticas acabam por centralizar o lucro dessas atividades aqueles que as desenvolvem (grande capital), alterando as caraterísticas naturais das áreas exploradas, além de afetar direta ou indiretamente a vida de populações que dependem desses biomas para estabelecer seu modo de vida, como é o caso das populações ribeirinhas e dos coletores de caranguejo das áreas de mangue. Vale salientar que esse tipo de prática acaba por obter características solidárias, quando os prejuízos ambientais são repartidos entre os atores citados, fazendo com que o impacto da exploração industrial desses biomas se reflita em todos os membros da sociedade que os circunda. Cabe aqui uma última reflexão – última para esse ensaio, mas que embasa uma série de outras, tão ou mais importantes que estas aqui abordadas – acerca dos elementos estruturantes da geografia: como tornar bens naturais em recursos naturais impacta na relação homem x meio e, como o resultado dessa relação se faz presente no plano territorial, É de autoria de Tuan (1980) o termo topofilia, que é “definido em sentido amplo, incluindo os laços afetivos dos seres humanos com o meio ambiente material” (Tuan, 1980, p. 107) além de que, para o autor, esse termo “associa sentimento ao lugar” (Tuan, 1980, p. 129). Tuan ainda apresenta os termos topofobia relacionado ao “ódio ou repulsa pelo lugar” (Tuan, 1983, p.45). 3
5
nos planos de poder, na observação da paisagem, na reestruturação das noções de lugar e na composição do espaço geográfico como categoria de análise? Fato é que, responder a tais questionamentos seja, via de regra o papel último da geografia, no entanto, é preciso ter em mente que, seria no mínimo ingênuo, abordar os temas aqui observados, sem analisar as condições políticas que os ajudaram a criar. Aponta como resultado desse processo, uma máxima comum no país e que, com o advento do Novo Código Florestal Brasileiro, passou a se fortalecer ainda mais: a vontade política está acima dos interesses socioambientais. Diante dessa premissa, encerra-se o presente ensaio com um questionamento para suscitar novas reflexões: qual o papel da geografia, como área de conhecimento conceitualmente estruturada, na análise, refinamento e apropriação das informações referentes ao cenário político, econômico, social e ambiental atuais?
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRASIL. Lei n.º 601, de 1850. Dispõe sobre as terras devolutas do Império. Publicada na Secretaria de Estado dos Negocios do Imperio em 20 de setembro de 1850. - José de Paiva Magalhães Calvet. ______________. Ministério da agricultura. <http://www.agricultura.gov.br> Acesso em 8 de setembro 2015.
Disponível
em:
GOTTDIENER, M. A produção social do espaço urbano. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1993. LEI da água, A. Direção: André D’Elia. Produção: Cinedelia, em coprodução com O2 Filmes. Cidade de Nova Iorque – NI, EUA. 78 min. Son, Color, 2014. ODUM, E. P. Ecologia. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1983 SANTOS, M. Espaço e Método. São Paulo: Nobel, 1997. ______________. Metamorfoses do Espaço Habitado: Metodológicos da Geografia. 6ª Ed. São Paulo: Edusp, 2008.
Fundamentos
Teóricos
e
TUAN, Y. Topofilia. Um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente. São Paulo: Difel, 1980. VENENO está na mesa, O. Direção: Silvio Tendler. Produção: Caliban. Rio de Janeiro, RJ. 49 min. Son, Color, 2011. VIANNA, J. R. A. Responsabilidade civil por danos ao meio ambiente. Curitiba: Juruá, 2006. 6