Osso de arvore(1)

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UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS – UNISINOS UNIDADE ACADÊMICA DE EDUCAÇÃO CONTINUADA CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM EDUCAÇÃO INFANTIL

RITA JAQUELINE MORAIS

OSSO DE ÁRVORE

São Leopoldo 2013


Rita Jaqueline Morais

OSSO DE ÁRVORE

Trabalho de Conclusão de Curso de Especialização

apresentado

como

requisito parcial para a obtenção de título de Especialista em Educação, pelo

Curso

de

Especialização

em

Educação Infantil da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS.

Orientador: Dr. LUCIANO BEDIN DA COSTA

São Leopoldo 2013


Rita Jaqueline Morais

OSSO DE ÁRVORE

Trabalho de Conclusão de Curso de Especialização apresentado como requisito parcial

para

a

obtenção

de

título

de

Especialista em Educação, pelo Curso de Especialização em Educação Infantil da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS

Aprovado em ____/_____/ 2013

BANCA EXAMINADORA

Dr. Luciano Bedin da Costa – Universidade do Vale do Rio dos Sinos UNISINOS Dr. Euclides Redin – Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS


AGRADECIMENTOS A Deus: Pela vida, pela minha vida, pela vida que me cerca e por toda forma de vida. Aos meus pais: Por abrirem e indicarem caminhos, pelos entraves que impulsionam à frente, pelo aconchego. Ao meu amado, José Carlos Ames: Por seres quem és na exata medida, pela parceria, pela paciência, pelo nosso amor. Ao Secretário de Educação Beto Carabajal Por me oportunizar compor sua equipe e desenvolver um trabalho que muito me realiza. Às amigas-colegas da Educação Infantil e Ambiental da SMED/NH Pela parceria, pela amizade, pelas trocas, pelo incentivo, por tudo. Aos “Pesquisados”:Crianças: Pela alegria, pela sinceridade, pela simplicidade, por criançarem embelezando a vida. Professoras: Por acreditarem, junto comigo, que as práticas pedagógicas podem ser melhoradas sempre. Aos professores do Curso de Especialização em Educação Infantil Pelas reflexões, pela parceria, por indicarem outros caminhos possíveis. Às parceiras-amigas da OMEP Por cantarmos juntas as belezas da infância fortalecendo sonhos e devires. Ao Pequeno Gigante, meu filho, Francisco Morais Ames: Pela inspiração poética que trouxe ao crescer dentro de mim junto com esta pesquisa. Por me dar a maior de todas as razões para desejar um mundo melhor a todas as crianças.


Achei que os eruditos nas suas altas abstrações se esqueciam das coisas simples da terra. Foi aí que encontrei Einstein (ele mesmo – Alberto Einstein). Que me ensinou esta frase: A imaginação é mais importante do que o saber. Fiquei alcandorado! E fiz uma brincadeira. Botei um pouco de inocência na erudição. Deu certo. Meu olho começou a ver de novo as pobres coisas do chão mijadas de orvalho. E vi as borboletas. E meditei sobre as borboletas. Vi que elas dominam o mais leve sem precisar de ter motor nenhum no corpo. (Essa engenharia de Deus!) E vi que elas podem pousar nas flores e nas pedras sem magoar as próprias asas. E vi que o homem não tem soberania nem pra ser um bentevi. (Manoel de Barros, 2008, X)


RESUMO

Falar de Educação Ambiental. Não dos problemas ambientais, ou das batalhas, ou das causas. Nem mesmo das consequências ou da necessidade de mudança de comportamento a fim de evitar catástrofes. Falar de Educação Ambiental para crianças ainda pequenas. Falar de alegrias, beleza e encantamento. Falar de criança, falar de árvore, falar de comer fruta no pé, falar de vida! Falar e cartografar. Cartografar os primeiros encontros com a natureza, experienciados pelas crianças das escolas municipais de Educação Infantil de Novo Hamburgo. Cartografar e acompanhar os processos de composição da subjetividade destes sujeitos. Refletir e propor caminhos para a Educação Ambiental na Educação Infantil.

Palavras-chave: Educação infantil; educação ambiental; natureza; infância.


A RELATIVIDADE DO CAPIM


Ontem: Abundante, alto, imponente. Aconchegante! Palco de aventuras e descobertas. Hoje: Raro, inso, repugnante. Alergênico! Motivo de contrariedade e prejuízo. Ontem: Toque suave que acorda a sensibilidade. Afago da natureza. Influência precisa na constituição do ser! Hoje: Pequeno Mesmo quando atinge o pico máximo de sua estrutura. Imenso! Na lembrança prazerosa de quem foi acariciado por ele.

Das cabaninhas de capim Às salas da academia. Quem imaginaria um destino assim?

Afetada por essa brincadeira (de justificar a ânsia de conhecimento pela brincadeira com o capim) Estremecida pela lembrança Emoção em tremedeira Compreendo o desejo de mostrar aos quatro ventos Na forma silenciosa da poesia A marca sutil e eterna Tatuada nessa guerreira da natureza!


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................. 9 TER E SER PÁTIO ......................................................................................... 11 EU QUERIA UMA CASA ASSIM .................................................................... 15 O LOBO! ........................................................................................................ 21 QUEM JOGOU AS LARANJAS NO CHÃO? ................................................. 27 HOJE ESTÁ UM DIA PERFEITO PARA BRINCAR! ...................................... 32 E A GALINHA FUGIU ..................................................................................... 36 ...MAS A ONÇA ME PROTEGEU ................................................................... 40 LELO LELO.................................................................................................... 43 OSSO DE ÁRVORE ....................................................................................... 48 UMA “COBA” ................................................................................................. 53


9 INTRODUÇÃO

A paixão por dois temas, aparentemente distintos, deu origem a esta pesquisa. Escolhi a palavra paixão intencionalmente pela origem pathos (do grego), indicando passagem, passividade, sofrimento, assujeitamento. Impossível passar pelos temas escolhidos sem ter sido afetada por eles. Porque me afetaram em algum momento foram escolhidos. Porque segue o desejo de afetar tantos outros quantos for possível senti necessidade de olhá-los atenta e reflexivamente. A paixão por dois temas, aparentemente, distintos: Educação Infantil e Educação Ambiental. O elo de ligação poderia encontrar-se na palavra Educação, mas após esse estudo, ouso apostar que infância (e Educação Infantil) e natureza (e Educação Ambiental) estejam ligadas de forma indissociável. Sempre acreditei que a Educação Infantil precisa ser prazerosa e desafiadora. Da mesma maneira, e com a mesma intensidade, acredito que é chegada a hora da humanidade optar por uma ética de maior sensibilidade e cuidado com a vida, tanto nas relações humanas quanto na sua relação com a natureza. Minha experiência como educadora no município de Novo Hamburgo me permitiu unir essas duas paixões num único pátio. Atuo como assessora de Educação Ambiental dentro da equipe de Educação Infantil da Secretaria Municipal de

Educação

e

Desporto

SMED,

desse

município.

Nesse

lugar,

o

acompanhamento do trabalho das 22 escolas de Educação Infantil, por meio do projeto ‘‘Esverdeamento do pátio escolar”, e da minha atuação como executora do projeto “Vamos Passear na Floresta: experiências de encontro com a natureza para a educação infantil” durante o ano letivo de 2012, tornaram-se o campo desta pesquisa. Enquanto que cartografar as experiências realizadas neste território, identificando os efeitos delas no processo de construção das subjetividades das crianças foi meu objetivo principal. Por um estilo de escrita poético e fabulado, em alguns momentos as cenas que trago não foram descritas em versão original tal e qual ocorreram, mas também não foram criadas pela minha imaginação. Foram coletadas durante a investigação e no processo de escrita, algumas agregadas, misturadas, inclusive quanto ao cenário – em algumas passagens misturei o que ocorreu no Centro de Educação Ambiental Ernest Sarlet - CEAES com o que encontrei no pátio da escola. As imagens foram,


10 em sua maioria, registradas por mim, mas também foram coletadas no acervo das escolas e, algumas, inclusive, registradas pelas próprias crianças. A composição do texto se inspira num mosaico, onde as escritas são encaixadas com as diversas imagens que narram cenários, descobertas das crianças, ludicidade, encantamentos e atuação do professor. O cimento-cola que une as peças deste mosaico é formado pela seleção de autores que trouxeram importantes reflexões a essas narrativas: Eduardo Passos e Virgínia Kastrup dão pistas sobre o método da cartografia; Manoel de Barros, Chico Buarque e Arnaldo Antunes trazem beleza e poesia; Léa Tiriba, Silvino Santin, João-Francisco Duarte Jr, Roland Barthes, Jorge Larrosa e Felix Guattari defendem o valor da sensibilidade, da estesia, da experiência e da ludicidade como uma nova ética necessária e possível. Finalmente, o rejunte que dá o acabamento final a esta obra é a voz das crianças que, ao expressarem-se livremente, vão trazendo as perguntas e respostas que delimitam a pesquisa.


11 TER E SER PÁTIO


12 As cenas narradas pelas imagens acima foram capturadas no pátio das escolas de Educação Infantil da Rede Municipal de Ensino de Novo Hamburgo – RME/NH. Elas traduzem uma concepção de infância, de natureza, de escola e, principalmente, de uma escola que pensa a infância e a natureza como elementos fundamentais de uma única trama. As palavras cooperação, curiosidade, tradição, experiência, sentidos, estesia, afeto,

imaginação,

imitação,

aventura,

investigação,

introspecção,

cultura,

brincadeira e desafio colorem a estampa desta trama. Acrescenta-se a elas uma palavra chave, que merece destaque, por ser o cenário que reúne tantas possibilidades: o pátio escolar ou, simplesmente, o pátio. Para mergulhar com maior profundidade nesta ideia, buscamos em ReisAlves a origem da palavra pátio:

Pateo* 1. Recinto lajeado para que dá entrada a porta principal de algumas casas; terreno murado anexo a um edifício; recinto descoberto no interior de um edifício ou rodeado por outros edifícios; vestíbulo.* Do verbo latino: Patēo, ĕs, ui, ēre, v. int. Estar aberto, exposto; estender-se; abrir-se; estar descoberto; manifestar-se; ser evidente . (REIS-ALVES, 2004)

As primeiras palavras referem-se a um espaço físico delimitado por paredes ou muro, embora sem cobertura. Na sequência, percebe-se que o pátio pode ser mais do que um espaço físico, podendo caracterizar, inclusive, uma forma de comportamento, de ser e estar no mundo. E as duas formas são indissociáveis na trama citada anteriormente. O pátio, enquanto espaço físico, de acordo com suas dimensões e composição, pode ampliar ou diminuir as possibilidades de relação que os indivíduos que o frequentam estabelecem com o mundo. Da mesma forma, a atitude “pateo”, de estar aberto, exposto ao que vier dará maior ou menor significado às relações estabelecidas neste espaço. Uma das escolas acompanhadas neste estudo, durante muito tempo manteve seu pátio coberto, exclusivamente, por brita. As crianças menores, principalmente os bebês, tinham dificuldade para se deslocar ali sob o risco de se machucarem e, assim, pela própria constituição do ambiente, as professoras optavam por permanecer dentro da sala de aula, oportunizando às crianças um contato restrito com o mundo exterior. Após estudo e reflexão sobre essa questão, a equipe de


13 profissionais desta escola optou por substituir a brita por grama. As professoras surpreenderam-se com as reações dos bebês. Segundo seus relatos, as crianças, nos primeiros contatos, ficaram encantadas: rolavam, mergulhavam na grama, faziam toquinhas com seus dedinhos tentando descobrir o que havia ali no meio, alguns chegaram a provar seu sabor... A alegria proporcionada pela experiência contagiou a todos que desfrutaram dela. O acréscimo de um único elemento novo ao pátio possibilitou uma variedade de sensações e emoções. Mas esse elemento só teve efeito porque veio acompanhado de uma atitude “pateo”, tanto das crianças quanto das professoras: das crianças porque se lançaram prazerosamente à experiência e das professoras porque, com sensibilidade, deram o apoio e a liberdade necessária a este processo de interação. Esse exemplo me faz acreditar que quanto mais diversificados forem os elementos que constituem o pátio, maiores serão as experiências realizadas pelos sujeitos que com ele contatarem, seja no sentido de conhecer o mundo externo quanto no conhecimento de si mesmo e da construção de sua subjetividade. Ter um pátio é fundamental no sentido de ampliar o repertório de conhecimentos: o cheiro dos jasmins, o colorido das dálias, o sabor das pitangas, a temperatura da geada, a intensidade do vento, o frescor da chuva, o calor do sol, a melhor terra pra plantar a couve... Mas ter um pátio não é suficiente. Observei cenas onde o pátio é bastante diversificado, mas intocável: as crianças não podem interagir, colher, saltar; elas permanecem como que engessadas num universo de possibilidades, para não se ferirem ou para não “estragar o gramado”. Reis-Alves propõe que:

Segundo o verbo latino Patēo, os atos de expor, abrir e descobrir-se se fazem presentes neste espaço. O que é estar aberto; abrir-se? Estas idéias sugerem o conceito de relacionamento. Relacionar-se com os seus semelhantes, com a natureza, com o clima, enfim, várias possibilidades de relacionar-se. Estar exposto; estar descoberto refere-se à acessibilidade, o estar suscetível. Quem está exposto, encontra-se acessível à chuva, ao sol, aos ventos, às pessoas, ao movimento, à inquietude, ao cheio e ao vazio, ou seja, está em uma posição passiva aos acontecimentos. Os verbos manifestar-se e ser evidente, em oposição, mostram-se com uma postura ativa perante o mundo. O indivíduo se faz ser visto e adquire uma razão de ser. (REIS-ALVES, 2004)


14 O indivíduo se faz ser visto e adquire uma razão de ser ao descobrir-se. Como conhecer-se sem conhecer o mundo? Como eleger suas preferências quanto a aromas, cores, texturas, temperaturas sem contatá-las? Como perceber seus medos e desafios sem oportunidade para testá-los? Como descobrir-se curioso, investigativo sem a aventura da investigação? Como saber a importância do silêncio sem a oportunidade de calar-se para escutar a água, o vento, o amigo? Como conhecer seu corpo sem a experiência de expor-se? Para conhecer a si próprio, o sujeito precisa estabelecer o maior número de relações com o que está fora. De acordo com Costa (2011, p.36), “a própria noção de corpo passaria pela experiência de um corpo, pois nunca saberemos exatamente o que pode ou o que quer este corpo sem o experienciarmos na relação com os outros corpos que o entornam”. Por outra via, buscando aprofundar essa relação da infância com a natureza, relaciono o conceito “alfabetização ecológica”, apresentado por Fritjof Capra, com o texto “O Prazer da Leitura” de Rubem Alves, sem perder de vista a ideia de que o pátio pode ser o lugar legítimo de colocar as paixões (pathos) em movimento. Capra (2006, p. 14) defende o ensino dos princípios básicos da ecologia e, com eles, um profundo respeito pela natureza viva por meio de uma abordagem multidisciplinar baseada na experiência e na participação. Alves (2002) defende que para ensinar a ler, tão importante quanto ensinar as letras, é mostrar ao alfabetizando as delícias de um texto. Ele recorda: “Mas me lembro com alegria das aulas de leitura. Na verdade, não eram aulas. Eram concertos. A professora lia, interpretava o texto, e nós ouvíamos, extasiados. Ninguém falava. (...) Era prazer puro.” Isso me faz acreditar que para que um sujeito seja alfabetizado, do ponto do vista dos conceitos ecológicos, é indispensável que esse processo envolva a paixão. Assim como o menino que sente prazer puro ao ouvir um texto, acordando o seu desejo de aprender a ler, é necessário que ele seja afetado prazerosamente, que possa se misturar aos elementos da natureza, compor-se e compor seu mundo de maneira prazerosa, para que os conceitos ecológicos ou de sustentabilidade passem a ter algum significado. São muitas as possibilidades de saber o mundo. O pátio é uma delas (ou muitas delas!). Relacionar-se, interagir com seus semelhantes, conhecer a natureza e conhecer-se. Para isso é preciso estar em espaço aberto, livre de paredes, estar no pátio. Para isso é preciso estar aberto, exposto, suscetível, ser pateo. Não basta ter pátio, é preciso ser pateo.


15 EU QUERIA UMA CASA ASSIM

Uma das atividades preferidas das crianças durante os passeios no Centro de Educação Ambiental Ernest Sarlet – CEAES é entrar na árvore. Lá existe uma árvore conhecida como rosa de maio cujos galhos dobram-se e fecham ao redor do tronco, formando uma grande toca. Por essa característica, esse espaço convoca a imaginação e a brincadeira transformando-se em cenário de caçadas, pescarias e aventuras. Além de brincadeiras de casinha, pega-pega, esconde-esconde, chuva de folhas e tantas outras. Durante a atividade com uma turma de quatro anos de idade, Sarah, encantada com tamanha beleza e liberdade, com um sorriso aberto e muito brilho nos olhos dirige-se pra professora e diz: - “Profe”, eu queria uma casa assim! Sarah descobre, com segurança, a casa que deseja: um lugar que lhe permita experimentar o mundo e ser afetada por ele, um espaço para fruir e descobrir-se. A casa que lhe permite ser e viver pateo.


16 Na tradução desse desejo de Sarah também transpassa meu desejo profissional (e pessoal), que é o de que todas as crianças pudessem ter acesso a uma “casa assim”. Desta forma, também justifico este estudo: se quero uma casa assim, é necessário olhar a casa que tenho e em que território ela está situada. Esse desejo me provoca a delimitar o território desta pesquisa em minhas vivências, enquanto educadora, e nos potentes encontros com as infâncias que me rodeiam. Entretanto, antes de prosseguir, gostaria de apresentar, brevemente, uma definição sobre território. De acordo com Costa (2009. p. 1)1, “podemos falar em territórios afetivos, territórios políticos, territórios existenciais, territórios desejantes, territórios morais, territórios sociais, territórios históricos, territórios criativos, territórios patológicos e assim por diante”. Segundo o autor, trata-se de uma matéria “que não é nada estanque, que nada tem de parada e que se caracteriza exclusivamente por ser relacional, por estabelecer relações entre si e com seu meio”. Um território é demarcado por linhas: duras, flexíveis e de fuga. Na definição de Costa:

As linhas duras demarcam identidades, deveres, hábitos, convenções, opiniões cristalizadas, enfim, representam os modos mais seguros de existência. As linhas duras são mantidas por mecanismos de controle e disciplina. Impedem a criação do novo porque o que está em jogo é a manutenção do território. (COSTA, 2009, p.2)

Enquanto que,

As linhas flexíveis são responsáveis pelos pequenos desvios nestes mesmos territórios. (...) As linhas flexíveis produzem pequenas rachaduras nos territórios mais endurecidos, causando pequenas mutações no que já está estabelecido. As mudanças e movimentos causados por estas linhas são, em sua maioria, imperceptíveis – Deleuze chamará estas pequenas variações e mudanças de micropolítica. (COSTA, 2009, p.2)

1

Texto para fins pedagógicos, não publicado.


17 Finalmente, Costa (2009, p. 2) define a linha de fuga como aquela capaz de promover rupturas radicais, abrindo o território para novas configurações. Para prosseguir, considero indispensável iniciar falando da minha participação nos projetos de Educação Ambiental e Sustentabilidade como assessora pedagógica da equipe da Educação Infantil na secretaria Municipal de Educação e Desporto – SMED do município de Novo Hamburgo. Dentre os tantos projetos desenvolvidos neste

espaço,

destaco

dois

deles

como

referência

para

este

estudo:

''Esverdeamento do pátio escolar nas escolas de educação infantil'' e “Vamos Passear na Floresta: experiências de encontro com a natureza para a educação infantil”. Esses projetos tiveram como base a orientação do parecer CNE/CEB nº20/2009 sobre a revisão das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil ao sinalizar que:

As crianças precisam brincar em pátios, quintais, praças, bosques, jardins, praias e viver experiências de semear, plantar e colher os frutos da terra, permitindo a construção de uma relação de identidade, reverência e respeito para com a natureza. (Parecer CNE/CEB 20/2009. p. 15).

Essa referência traz aspectos importantes, destacando a ludicidade, os espaços de brincar e conviver, bem como a relação com a natureza, almejados como elementos indispensáveis na prática cotidiana das escolas de educação infantil. O projeto de esverdeamento do pátio escolar consiste em tornar o pátio um ambiente vivo, agradável e prazeroso, onde a criança possa experimentar o brincar em sua plenitude, ampliando seu repertório de cheiros, cores, sons, sabores e temperaturas. Esses espaços foram, na maioria das vezes, cultivados pelas próprias crianças, juntamente com suas professoras e toda a comunidade escolar. Para que isso se tornasse viável, foram criados os “Laboratórios Teóricos e Práticos de Educação Ambiental na Educação Infantil”, onde os professores (um ou mais representantes por escola) receberam formação teórico-prática para atender a este propósito.


18 O projeto “Vamos Passear na Floresta: experiências de encontro com a natureza para a educação infantil” teve como fundamento complementar esta ação da escola, levando as turmas de Educação Infantil da Rede Municipal ao encontro da natureza, a fim de entrarem em contato com suas belezas, encantamentos e mistérios numa área destinada a isso no município, o CEAES. Desta maneira, cartografar, ou seja, acompanhar as experiências realizadas neste território – o pátio da escola e o CEAES - identificando os efeitos dessas experiências na construção das subjetividades das crianças envolvidas, tornou-se o objetivo desta pesquisa. Segundo Barros e Kastrup (2010, p. 58), “quando tem início uma pesquisa cujo objetivo é a investigação de processos de produção de subjetividade, já há, na maioria das vezes, um processo em curso”. A coleta de dados foi realizada por meio de visitas às escolas, nos encontros de formação com os professores, em conversas com professores e alunos nos momentos de pátio e durante os passeios realizados no CEAES. Como afirmam Barros e Kastrup (2010, p. 61), é preciso estar no campo, ser afetada por aquilo que os afeta. Grande parte dos relatos foram trazidos espontaneamente pelas professoras, que encantadas pelas falas produzidas pelas crianças, alegravam-se em partilhá-las, sinalizando o envolvimento com o projeto. Outras escutas foram realizadas em encontros com as crianças no pátio das escolas. Eu me aproximava e tentava me inserir na brincadeira, ou elogiava algum elemento novo como a presença da horta, um canteiro de flores, o plantio de árvores ou a ampliação do gramado. Numa das escolas, onde pátio passou por uma grande transformação, enquanto fotografava alguns elementos, um menino da turma de três anos se aproxima e pergunta: - Tu viu, profe, que bonito nosso pergolado? E, em seguida, chama-me na sala e mostra os vasos que acabaram de confeccionar com garrafa pet e papéis coloridos, dizendo orgulhoso: - É vaso de cacto (cactos)! Essas falas indicam que essa criança pertence a esse território de cuidado e embelezamento que a escola está construindo. (E muito interessante é que as palavras pergolado e cactos não costumam fazer parte do vocabulário de uma criança de três anos de idade). Noutra ocasião, recebi a ligação de uma professora que levara seus alunos para viver a experiência no CEAES no mês de setembro de 2012. É uma turma


19 integrada, com alunos de quatro e cinco anos de idade. Em razão do encerramento do ano, essa professora realizou uma auto avaliação com as crianças. Na auto avaliação, deveriam indicar qual o momento mais significativo para eles durante todo o ano. Grande parte da turma indicou o passeio ao CEAES, através de falas e desenhos que serão apresentados ao longo do texto. Esse fato indica dois elos importantes: o elo das crianças com a natureza, por meio da experiência proporcionada pelo projeto “Vamos Passear na Floresta”, bem como o elo da professora que, envolvida com os objetivos do projeto, preocupa-se em registrar esta fala das crianças junto à coordenação do projeto, colaborando com a pesquisa e ratificando que os objetivos do projeto estão sendo alcançados. Tanto a fala do menino da escola quanto o telefonema da professora indicam que estamos cartografando um território com a participação de diferentes segmentos de uma rede de ensino: alunos, professores e equipe da secretaria de educação. Para Alvarez e Passos (2010, p. 135), “não se trata, portanto de uma pesquisa sobre algo, mas uma pesquisa com alguém ou algo. (...) Tal processo coloca o cartógrafo numa posição de aprendiz”. De acordo com os mesmos autores,

A maioria dos manuais de metodologia indica a necessidade de penetrar no campo da pesquisa sabendo de antemão o que se pretende buscar. O aprendiz-cartógrafo inicia seu processo de habitação do território com uma receptividade afetiva. Tal receptividade não pode ser confundida com passividade. (...) Aberto a experiência de encontro com o objeto da pesquisa, o aprendizcartógrafo é ativo na medida em que se lança em uma prática que vai ganhando consistência com o tempo, marcando o propósito de seguir cultivando algo. (ALVAREZ E PASSOS, 2010, p. 137)

Pela posição de principal articuladora que desempenho nos projetos já citados, não imaginava que as repostas que procurava chegariam de forma tão espontânea e despretensiosa, tão despretensiosa que se não estivesse atenta (ou tensa demais na tentativa de encontrá-las), possivelmente não conseguiria percebêlas. Esse sentimento pode ser explicado por meio das palavras de Clarice Lispector:


20 Tudo errou, e havia a grande poeira das ruas, e quanto mais erravam, mais com aspereza queriam, sem um sorriso. Tudo só porque tinham prestado atenção, só porque não estavam bastante distraídos. Só porque, de súbito exigentes e duros, quiseram ter o que já tinham. Tudo porque quiseram dar um nome; porque quiseram ser, eles que eram. Foram então aprender que, não se estando distraído, o telefone não toca, e é preciso sair de casa para que a carta chegue, e quando o telefone finalmente toca, o deserto da espera já cortou os fios. Tudo, tudo por não estarem mais distraídos. (LISPECTOR, 2007)

E, realmente, algumas respostas não foram percebidas de imediato. Elas foram registradas e, somente quando incorporadas à escrita, associadas às leituras ou a outras falas é que foram ganhando significado. Foi como se, ao desistir da espera indo visitar um amigo, o carteiro deixasse na minha caixa postal a carta tão ansiosamente esperada. Uma carta que continha não apenas as respostas desejadas, mas novas e importantes perguntas, que já estavam ali, mas que por não estar suficientemente distraída, eu não conseguia percebê-las.


21 O LOBO!

Antes de iniciarmos as atividades previstas para cada turma em sua visita ao CEAES, sentávamos à sombra de um majestoso Guapuruvu, onde, além de geralmente sermos saudados pelo canto de um João-de barro, realizávamos uma conversa inicial. Nesse momento, eu aproveitava para convocar as experiências de encontro com a natureza já vivida pelas crianças por intermédio de perguntas: Marcelo, tem árvore na tua casa? Alice, tu já subiste numa árvore? Mariana, tu gostas de apanhar amora (ou outra fruta de época que as poderíamos colher)? Carlos, tem passarinho perto da tua casa? Como eles cantam? Mateus, tu já visitaste uma floresta? E finalmente: - O que tem na floresta? Não importou a idade das crianças, a professora, a escola, o bairro ou qualquer outro aspecto que pudesse ser analisado, a resposta foi sempre a mesma: - O LOBO! Meu objetivo com essa pergunta era conhecer a concepção de floresta dessas crianças, mas depois de tantos lobos, a pergunta era apenas pra confirmar que a concepção de uma criança urbana sobre a floresta é de que ela é o território do lobo, de preferência do lobo mau. O lobo que representa o perigo do desconhecido (porque de fato nunca existiram lobos nas florestas brasileiras - temos o lobo-guará, uma espécie bastante arisca e covarde que habita o cerrado) e que, simbolicamente, pode representar medos de outros territórios também desconhecidos ou assustadores. A floresta, na concepção das crianças, é o território do lobo. O aquecimento global, a perda de biodiversidade, a poluição do ar, do mar, dos rios, sonora e urbana, o derretimento das calotas polares, as alterações climáticas, os resíduos urbanos e industriais, o consumismo, a seca, a enchente, os agrotóxicos, a monocultura, as áreas de desertificação, a globalização e outras catástrofes do gênero delimitam o foco de atuação da educação ambiental, ou seja, o território da Educação Ambiental. Juntamente com esses elementos, podemos citar também o forte apelo do movimento ecológico para a mudança de hábitos e comportamentos da população em geral, especialmente daqueles que dizem respeito ao consumismo.


22 Diante disso, aponto a expressão “necessidade de mudança” como um aspecto de transição entre as linhas desse território: por um lado temos uma sociedade consumista, em que a criança, como afirma Souza Junior (p. 4), é compreendida, pelo mercado, como consumidora; em contrapartida, temos os movimentos ecológicos e de defesa da infância, que vêm propondo de forma progressiva outra maneira de ser e viver através da redução do consumo. Ou seja, de uma linha dura que coloca esse tempo da pós-modernidade como sinônimo de cultura de consumo (LIPOVETSKI, apud SOUZA Jr. p. 3) a um movimento de flexibilidade que propõe a construção de um novo paradigma de relação do homem consigo mesmo, com seu semelhante e, consequentemente, com os elementos naturais, a fim de garantir a sua preservação. Afinal, para que a vida possa se constituir, é preciso que os territórios mais endurecidos possam ser desmanchados (COSTA, 2009). Entretanto, mudanças muitas vezes assustam. Principalmente quando desestabilizam um modo já tão arraigado de ser. Assim, ousaria dizer que, para uma grande parte da população, ao traduzir o que representariam essas mudanças de comportamento propostas pelos ecologistas, elas diriam: - O LOBO! Suspeito que o lobo representa o desconforto suscitado por essa convocação a outro modo de viver. Percebe-se o quanto a população, e aqui foco o olhar nos professores, ainda nega a Educação Ambiental ou para a Sustentabilidade, bem como todas as convocações dos movimentos ecológicos. Assim, o território do lobo migra da floresta para a cidade – cidade-urbana-consumista-devoradora. E a floresta, representando todos os recursos naturais (muitos em extinção!), de grande vilã passa ser a maior vítima, juntamente com as crianças, que já não têm mais a oportunidade de conhecer toda a sua diversidade e os seus encantos.


23

A criança urbana-contemporânea já nasce inserida numa cultura que idealiza felicidade como uma tarde de compras no shopping center. Para ser protegida da violência urbana, muitas vezes, passa horas dentro de casa, exposta à programação televisiva, onde a palavra de ordem é COMPRE! Como se não fosse violento expô-la ao intenso apelo do consumismo. Como se não fosse violento, num país de imensa beleza e diversidade ecológica, o ato de negar à criança o contato com essa beleza do lugar onde ela mora, onde é a sua casa, o seu território. Como se não fosse


24 violento negar à criança uma infância recheada de imaginação e criatividade favorecidas pelo encontro com os elementos naturais e as experiências ao ar livre. Irrefletidamente, como se essa fosse a única opção, vamos acolhendo as imposições do sistema capitalista num processo definido por Guattari:

O capitalismo pós-industrial que, de minha parte, prefiro qualificar como Capitalismo Mundial Integrado (CMI) tende, cada vez mais, a descentrar seus focos de poder das estruturas de produção de bens e de serviços para as estruturas produtoras de signos, de sintaxe e de subjetividade, por intermédio, especialmente, do controle que exerce sobre a mídia, a publicidade, as sondagens etc. (GUATTARI, 1990, p.31)

Acelerando o ingresso das crianças no mundo do capital e privando-as da experiência de “criançar”, registram-se marcas importantes na subjetividade de uma sociedade que tem sua atenção capturada para atender os interesses do CMI. Numa rodada de conversa, constituída por professoras, coordenadoras pedagógicas e equipe da SMED/NH, com um grupo de estudos sobre bebês, cada participante foi convidado a trazer um objeto que lembrasse sua primeira infância. As participantes trouxeram bonecas, roupinhas, fraldas... Algumas trouxeram fotos. Na hora de apresentar e comentar suas memórias ao grupo, parte dessas profissionais afirmaram que trouxeram esse objeto por estar relacionado ao tema do encontro, mas que suas lembranças mais remotas e agradáveis eram, justamente, as brincadeiras ao ar livre, em contato com a natureza, de onde destaco o relato: - Eu gostava muito dos brinquedos, eu e meus irmãos. Eu sou a mais velha, depois vem um irmão e um casal de gêmeos. Então, o meu irmão gostava muito de jogar pinica e ele me ensinou, claro né!? E na escola, naquela época eu não podia jogar, imagina se naquela época uma menina iria brincar de jogar pinica na escola? Então, lá na nossa casa, o que gente fazia muito era isso: pinica, motorista... Colocávamos duas cadeiras uma atrás da outra, a tampa da panela era a direção do ônibus... Elementos da natureza, as folhas das árvores eram dinheirinho pra pagar a passagem (risos). Enfim, subíamos nas árvores, comíamos o fruto da própria árvore – nunca fez mal! Então domingo, lá na casa da minha mãe, estávamos eu e meus irmãos, falei deste encontro e disse: eu vou levar pinica!


25 Ainda tivemos relatos sobre coleção de sapinhos (girinos) e tirar lesmas das cascas. Experiências totalmente independentes de consumo. Experiências prazerosas e marcantes para adultos, que mesmo com o passar dos anos e imersos no mundo do consumo, são lembradas com muita emoção. Marcas que constituem a subjetividade do sujeito. Marcas de infância e de ludicidade que, com simplicidade e inteireza de ser, levam-me a acreditar serem importantes rotas de desvio do capitalismo. Para Santin (2001, p. 15 e 20), “parece cada vez mais unânime que o lúdico ou o brinquedo, é uma forma de humanizar a humanidade da era industrial”, pois “o lúdico, sem dúvida, é um desses valores que podem representar um reencontro do homem consigo mesmo”. Experiências que, mesmo como marcas bastante sutis, quase ingênuas, se não forem refletidas e efetivadas intencionalmente, podem interferir (e ferir) no território capitalista, produzindo uma nova ética, assim como propõe Guattari:

Em todas as escalas individuais e coletivas, naquilo que concerne tanto à vida cotidiana quanto à reinvenção da democracia – no registro do urbanismo, da criação artística, do esporte etc - trata-se, a cada vez, de se debruçar sobre o que poderiam ser os dispositivos de produção de subjetividade, indo no sentido de uma resingularização individual e/ou coletiva, ao invés de ir no sentido de uma usinagem pela mídia, sinônimo de desolação e desespero. (GUATTARI, 1990, p. 15)

As escolas (instituições) de Educação Infantil, como uma proposta adequada, podem ser o espaço legítimo desta busca, pois, de acordo com Tiriba:

No universo escolar, as IEI são campos férteis para revoluções moleculares (GUATTARI, 1977) porque se inserem num segmento que ainda não sofreu inteiramente os efeitos da institucionalização escolar. São, portanto, um campo mais flexível, em que são maiores as possibilidades de subversão, transgressão de práticas que sustentam a lógica capitalística. (TIRIBA, s/d. p. 14)

A partir desse olhar, precisamos, escolas e sociedade em geral, de forma clara e intencional, auxiliar as crianças a realizar processo semelhante ao de


26 Chapeuzinho Amarelo – personagem de Chico Buarque – que superou o medo do LOBO de forma sensível, poética e bem-humorada:

Aí Chapeuzinho encheu e disse: “Para assim! Agora! Já! Do jeito que você tá!” E o lobo parado assim do jeito que o lobo estava já não era mais um LO-BO. Era um BO-LO. Um bolo de lobo fofo, Tremendo que nem pudim, Com medo da Chapeuzim. Com medo de ser comido Com vela e tudo, inteirim. (BUARQUE, 2011)


27 QUEM JOGOU AS LARANJAS NO CHÃO?

Nesta cena, é possível observar a professora com um grupo de crianças numa roda de conversa num espaço ao ar livre. Ao desviar o olhar do primeiro plano podemos observar que, neste espaço onde se encontram, existem muitas laranjas caídas no chão e é aqui que queremos focar a atenção. - Por que as laranjas estão no chão? - Quem fez isso? - Perguntaram as crianças, bastante intrigadas e quase revoltadas com esse fato. Para os adultos, especialmente aqueles que tiveram uma infância marcada pelas brincadeiras de subir em árvore e comer a fruta “do pé”, a resposta seria óbvia: - As laranjas caíram porque estão maduras demais. Entretanto, olhando essa cena com maior profundidade percebemos a denúncia das próprias crianças sobre quanto perderam: perderam a oportunidade de conhecer o doce/azedo das laranjas, perderam a oportunidade de arranhar a pele ao colhê-las, perderam a oportunidade de sentir o doce perfume das flores - se tivessem chegado mais cedo. Perderam de acompanhar as flores se transformando em fruto, perderam de ver os frutos crescendo, amadurecendo; perderam de


28 conhecer, em seu paladar, o melhor momento de colher as laranjas, perderam a oportunidade de partilhar com os familiares e amigos o excesso da colheita. Perderam o exato momento de ser a criança e a laranjeira, como ilustra Manoel de Barros:

Porque se a gente fala a partir de ser criança, a gente faz comunhão: de um orvalho e sua aranha, de uma tarde e suas garças, de um pássaro e suas árvores. Então eu trago das minhas raízes crianceiras a visão comungante e oblíqua das coisas. Eu sei dizer sem pudor que o escuro me ilumina. É um paradoxo que ajuda a poesia e que eu falo sem pudor. Eu tenho que essa visão oblíqua vem de eu ter sido criança em algum lugar perdido onde havia transfusão da natureza e comunhão com ela. Era o menino e os bichinhos. Era o menino e o sol. O menino e o rio. Era o menino e as árvores. (BARROS, 2003).

A partir disso, observo (e lamento!) que as crianças perderam o direito à interação com a natureza, empobrecendo a experiência de ser humano na relação e mistura com o mundo, nesse belo processo de construção de si mesmo.

Se há um consenso entre os teóricos de várias linhas é que o processo de aprendizagem parte das interações realizadas pelo corpo. Costa (2011,p. 29), fazendo referência a Nietzsche, aponta que “é com o corpo, e não com o seu abandono, que se entra na vida e a vida é eminentemente uma experiência do corpo”.


29 Duarte Jr. afirma que:

O saber sensível, pelo qual se sabe o mundo no modo sensórioperceptivo, foi chamado pelos gregos de aisthesis, ou estesia, em português. Consiste no mais primordial conhecimento, ajustando e equilibrando nossa ação física sobre a realidade por meio de uma harmoniosa e precisa integração de informações levada a cabo pelos nervos, neurônios, músculos, substâncias químicas e correntes elétricas que constituem o corpo humano. Sobre esse saber primeiro (e as emoções a ele associadas), erige-se então todo e qualquer conhecimento outro que se possa reunir sob a denominação de conhecimento inteligível, como as abstrações filosófica, as científicas e mesmo as mais comezinhas e corriqueiras reflexões do dia a dia. (DUARTE JR., 2010, p. 111)

Esse pensamento vai ao encontro de Fernandes, que fazendo referência a Spinoza, aponta que o sujeito se constitui a medida que o corpo interage, experimenta.

Quando Spinoza incita — Nós nem sequer sabemos de que é capaz um corpo —, ele está, também, dizendo que é a cada encontro que um corpo aprende suas velocidades e intensidades, individua-se e experimenta as relações que o fortalecem ou o limitam. (FERNANDES, 2012, p.229)

Tiriba, ao comentar o artigo 4º das Diretrizes Curriculares nacionais para a Educação Infantil/DCNEI, reforça a necessidade de um corpo em interação ao propor que:

Ao brincar na terra, construir castelos de areia, fantasiar segredos da floresta encantada de seus sonhos, ao imaginar enredos em que se transmutam em animais e vice-versa, as crianças vão construindo sentidos sobre a sociedade e sobre a natureza. (TIRIBA, 2010, p.5)


30 Essa ideia é reforçada por Bill Waterson de forma bem-humorada, com seu personagem Calvin que, praticamente, transpira a necessidade de liberdade e interação com os elementos naturais.

www.satirinhas.com/2012/09/sem-controle/ Se o corpo em interação é um corpo livre e imaginativo, acredito na necessidade de repensarmos os espaços, tempos e materiais (propostas pedagógicas) das escolas de Educação Infantil. Não podemos ''emparedar'' o corpo privando-o de conhecer o mundo. De acordo com Tiriba:

A estratégia de emparedamento das crianças está relacionada ao objetivo de produção de corpos dóceis de que o capitalismo necessita. De fato, o processo de estatização da sociedade, que possibilitou as condições de plena instalação do projeto capitalístico, está indissoluvelmente ligado ao caráter disciplinar desta sociedade (Foucault, 1987). Assim, o que podemos concluir é que os desequilíbrios ambientais – evidenciados num plano macropolítico correspondem, no plano micropolítico, ao aprisionamento das crianças. (TIRIBA, s/d. p. 13).

De que outra forma pode-se desejar defender uma árvore sem sabê-la? De que outra forma saber uma árvore sem balançar-se em seus galhos e fazê-los degraus para alcançar o sabor de seus frutos, sem descansar sob sua sombra, sem sentir seus perfumes?


31

Assim, concordando com Santin (2001, p. 30), ao referir que a brincadeira é a principal maneira de a criança relacionar-se consigo mesma, com os outros e o meio ambiente, finalizo este ponto destacando sua importância, que, sem pretensão ou responsabilidade de cumprir essa função, torna-se alicerce indispensável na construção da relação criança-natureza e de novas formas de ser e estar no mundo.


32 HOJE ESTÁ UM DIA PERFEITO PARA BRINCAR!

Ao final do passeio numa tarde muito agradável, depois de se pendurar no cipó, atravessar ponte pênsil, subir na pitangueira, apanhar e comer laranjas, fazer piquenique, provocar chuva de folhas secas, puxar e ser puxado na casca de coqueiro, entre tantas outras brincadeiras, Ruan, do mais alto de sua sabedoria – adquirida aos seus quase três anos de idade – conclui: - Hoje está um dia perfeito para brincar! Com essa afirmação, Ruan nos indica um caminho. Se brincar, como afirmam diversos autores, é algo fundamental da infância e, se essa criança consegue perceber num espaço amplo, livre e desprovido de brinquedos industrializados, condições perfeitas para esse brincar, há muito que se considerar nesta fala. O brincar em si, as condições para o brincar e os efeitos produzidos por ele precisam ser não apenas considerados, mas potencializados no processo de educação (também ambiental) para crianças, especialmente, para as ainda bem pequenas. De acordo com Linn:


33 Por promover uma abertura nas experiências das crianças, permitir sua auto-expressão e oferecer uma oportunidade de formular sentidos para o mundo, brincar é essencial para o bem-estar psicológico infantil. (LINN, 2006, p. 95)

Ao experimentar essa sensação, Ruan identifica condições, talvez nunca contadas até aquele momento (nem por ele e nem por outras tantas crianças cujo desenvolvimento tem como único cenário a paisagem urbana), mas extremamente favoráveis ao seu desenvolvimento, afinal como indica Santin (2001, p. 26) sem liberdade à criatividade, a criança fica circunscrita às regras do jogo social, econômico e científico. Para esse autor:

Quem brinca gosta da liberdade de sonhar e de inventar; para isso precisa da liberdade de sua imaginação para manter e superar incertezas, sem destruí-las. Ele quer sentir, viver e fruir a liberdade de criação, cujo único lugar de acontecer, diz Winnicott, é no ato de brincar. (SANTIN, 2001, p. 56)

Essa liberdade para a imaginação, a fantasia e a fruição podem ser reduzidas de acordo com a condição de brincar que uma criança tenha acesso. Concordo com Linn (2006, p. 95) ao sinalizar que “uma vez reconhecida a importância do brincar, faz sentido que brinquedos – as coisas que as crianças brincam – também tenham importância crucial”. Barthes denuncia o quanto os brinquedos aos quais a criança tem acesso podem condicionar seu comportamento:

Simplesmente, perante este universo de objetos fiéis e complicados, a criança só pode assumir o papel de proprietário, do utente, e nunca do criador; ela não inventa o mundo, utiliza-o: os adultos preparamlhe gestos sem aventura, sem espanto e sem alegria. Transformamna num pequeno proprietário aburguesado que nem se quer tem de inventar os mecanismos da casualidade adulta, pois já lhe são fornecidos prontos: ela só tem de utilizá-los, nunca há nenhum caminho a percorrer. (BARTHES, 2001, p. 41)

No mesmo sentido, o poeta Manoel de Barros, ao rememorar os feitos e as marcas de sua infância, traz-nos pistas sobre importância, para a criança, de habitar territórios lúdicos, desprovidos de intencionalidade pedagógica ou comercial:


34 Isto porque a gente foi criada em lugar onde não tinha brinquedo fabricado. Isto porque a gente havia que fabricar os nossos brinquedos: eram boizinhos de osso, bolas de meia, automóveis de lata. Também a gente fazia de conta que sapo é boi de cela e viajava de sapo. Outra era ouvir nas conchas as origens do mundo. Estranhei muito quando mais tarde, precisei morar na cidade. (BARROS, 2003, p. XV)

Para reforçar a influência do brincar, no que diz respeito à capacidade de imaginação, Linn (2006, p. 93) menciona a trajetória de J. K. Rowling, autora de Harry Poter, criada em área rural, selvagem e bela, repleta de lendas e relativamente isolada da cultura de massa, destacando que tal autora conjectura em suas entrevistas que o ambiente e a falta de coisas pra fazer estimularam sua imaginação. Diante de tais considerações, não acredito em proposta de Educação Infantil que não considere a ludicidade como base. Assim como Santin, aposto nas interações constituídas a partir do brincar – consigo mesmo, com o outro e com o meio – e, por isso também, na necessidade de ampliarmos o repertório de espaços e materiais oferecidos para a brincadeira:

No mundo do brinquedo, para existir é preciso brincar; se não brincar, não existe. É fundamental brincar para nascer e existir. A presença do outro é incorporada, é amada é sentida como prolongamento, como continuidade de uma mesma corporeidade. Inaugura-se uma crescente sensibilidade que inicia por sentir o próprio corpo e sentir os corpos participantes de todos os personagens que se tornam “cidadãos” do país do brinquedo. Daí a importância do tipo de material com que a criança brinca e gosta de brincar. (SANTIN, 2001, p. 58)

Dessa forma, ao pensar os projetos de Educação Ambiental nas escolas de Educação Infantil em Novo Hamburgo, que tem em vista a ampliação e qualificação dos espaços habitados por essas crianças, constato que estamos interferindo não apenas nas práticas de Educação Ambiental, mas na educação como um todo, bem como na infância e nas possibilidades de criançar. Se a presença do outro só é incorporada, amada, sentida como parte de sua própria corporeidade a partir do brincar e, se para cuidar é preciso amar, é necessário oportunizar à criança que brinque livremente na natureza, ainda que esta relação somente seja percebida anos


35 mais tarde, na vida adulta. Manoel de Barros anuncia esse processo com toda sua poesia:

Acho que o quintal onde a gente brincou é maior do que a cidade. A gente só descobre isso depois de grande. A gente descobre que o tamanho das coisas há que ser medido pela intimidade que temos com as coisas. Há de ser como acontece com o amor. Assim as pedrinhas do nosso quintal são sempre maiores do que as outras pedras do mundo. Justo pelo motivo da intimidade. (BARROS, 2003, p. XIV)

Brincar: talvez esteja aí uma rota de fuga para romper com a dinâmica de aceleração imposta pelo sistema capitalista. Brincarmos mais com a vida, viver cada momento com mais leveza, colocando em primeiro plano a saúde pessoal (integral), aprofundando as relações com o próximo e preservando os recursos naturais. Santin (2001, p. 20) afirma que “o lúdico, sem dúvida, é um desses valores que podem representar um reencontro do homem consigo mesmo” e, fazendo referência à obra “A Educação Estética do Homem” de Friedrich Schiller, cita que o impulso lúdico fez nascer o homem. Em outras palavras, Redin confirma esta direção:

Há outro aspecto importante na brincadeira para o desenvolvimento infantil: a conquista da autonomia. Podendo a criança criar seu mundo fictício, estabelecer suas regras, projetar sua ação, ela está livre dos autoritarismos da situação real, fazendo um exercício de tomada de decisões que, posteriormente, comporão sua identidade política como cidadão. (REDIN, 2007)

Caminho semelhante é indicado pelo poeta Thiago de Mello (1965): “Porque é do amor e da infância que o mundo tem precisão”. Parodiando a versão original, proponho: o homem lúdico: é disso que o mundo tem precisão!


36 E A GALINHA FUGIU


37 No dia seguinte ao passeio de sua turma, a professora retoma com as crianças o que realizaram e o que mais gostaram de fazer. Lucas, narra sua brincadeira: - Eu gostei de fazer ninho de galinha. Eu fiz um ninho grande perto da árvore. E o ovo era o sabão. E a galinha fugiu. E galinha fugiu, libertou-se, ganhou o mundo. Assim foi com a sensibilidade e a fruição, que também ganharam mundo, potencializadas pelas brincadeiras ao ar livre e com elementos naturais. Lucas e seus amigos permaneceram por grande tempo imersos nessa brincadeira da galinha. Sua imaginação foi tão real que, observando-os brincar, quase que podíamos visualizar a galinha fujona, fato que possivelmente não conseguimos visualizar com brinquedos estruturados. Santin (2001, p. 55) afirma que utilizando somente artefatos industrializados a criança “vai para o trabalho, para a guerra, para a escola; entra em todos os lugares da vida adulta, não consegue mais entrar nos mundos de sua imaginação lúdica”. Para esse autor:

O corpo dos elementos que entram na criação do mundo lúdico são importantes. Segundo Walter Benjamin, os materiais naturais são os ideais, porque eles mantêm o tato, isto é, a sensibilidade, deixandose moldar, transmitem intimidade e familiaridade. O ar, a água, o tempo, o espaço são vividos pelo prazer de senti-los, e não como elementos a serem superados e vencidos. Os materiais plásticos são de origem química, perderam a poesia, o encanto, a sensibilidade, facilmente acabam se transformando em utensílios. (SANTIN, 2001, p.58)

Barthes enriquece essa ideia falando sobre a sensibilidade que é mantida acesa em contato com os elementos naturais:

Um signo espantoso é o desaparecimento da madeira, matéria, no entanto, ideal pela sua firmeza e brandura, pelo calor natural do seu contato, a madeira elimina, qualquer que seja a forma que sustente, o golpe de ângulos demasiado vivos, e o frio químico do metal: quando a criança a manipula, ou bate com ela onde quer que seja a madeira não vibra e não range, produz um som simultaneamente surdo e nítido; é um substância familiar e poética, que deixa criança permanecer numa continuidade de tato com a árvore, mesa, o soalho. (BARTHES, 2001, p. 42)


38 E a galinha fugiu, libertou-se. Ela que já estava acostumada com sua vidinha de galinheiro; de repente, se viu livre para ir ao encontro do mundo. Assim foi com a imaginação: fora das quatro paredes pode ir muito mais longe, fugiu, libertou-se. Com um repertório maior de espaços, materiais e experiências ampliam-se também as possibilidades de criação e imaginação:

Quanto mais rica a experiência da pessoa mais material está disponível para a imaginação dela. Eis porque a imaginação da criança é mais pobre que a do adulto, o que se explica pela maior pobreza de sua experiência. (VIGOTSKI, 2009, p. 22).

E a galinha fugiu, libertou-se. Ela que já estava acostumada com sua vidinha de galinheiro, de repente, se descobriu águia (BOFF,1997). Fora das quatro paredes, na rua, o sujeito amplia suas possibilidades de construção de si mesmo, pois tem maiores possibilidades de conhecer-se a si mesmo ao outro, o mundo:

A rua dá o que a casa muitas vezes nem avista. Que quer dizer sair? Que implica esse verbo, mediante o que indica a ação de abrir uma porta e passar do interior ao exterior, ganhar a rua, deixar atrás a casa? A rua, mais do que a casa, é cortada pelo extemporâneo, pelas multiplicidades, pelas tribos que perambulam por ela. (...) Cada um tem recursos próprios para distinguir o seu bando, mas talvez alcançar o máximo dessa conduta exige que se vá à rua para passear, arriscar-se, tropeçar, ver, apreçar. E continuar aprendendo na rua o que nem o lar nem a escola ensinariam jamais. Seja no espaço físico, seja no pensamento, há de se levar o pensamento para passear. (FERNANDES, 2012, p. 228)

Aquele que leva seu pensamento para passear e conhece a si mesmo tem menos chances de se submeter ao que lhe é “ingenuamente” proposto (ou imposto?) entre paredes. Esse pensamento é refletido na ação de um menino que, ao receber a câmera fotográfica para registrar aquilo que lhe soa mais interessante na sua escola, captura várias cenas do pátio, dos amigos, da professora. Mas captura também o


39 lado de fora do pátio, revelando a sua necessidade de ir além-muro.

A explicação de Fernandes para esta imagem, embora não tenha sido inspirada pela própria imagem, embora a autora nem saiba da existência dela, nos ajuda a perceber essa necessidade de olhar além para conhecer-se:

O menino olha por entre os buracos do muro de uma casa. Será a casa de seu amigo? O menino não sabe. Fica ali olhando, observando. E o que se vê através das frestas do muro? O longínquo, o distante. É outrem que se vê ao longe, outrem que seduz, chama, provoca. O muro é a marca física de que há outrem, um corpo que está para lá, que não é de casa, da família, papai e mamãe. O muro serve de apoio para a mão que busca encosto. (FERNANDES, 2012, p.22)

Mas e a galinha? Fugiu, libertou-se. Ela que já estava acostumada com sua vidinha de galinheiro, de repente, pulou o muro, ganhou as alturas e se descobriu uma linda e poderosa águia, rainha dos céus, de si mesma e dos seus pensamentos.


40 ...MAS A ONÇA ME PROTEGEU

O imaginário é o outro aspecto que pode ser destacado ao longo das trilhas realizadas no CEAES. A fim de alimentá-lo e de construir o personagem (professor guia nas trilhas) adotei uma bengala que tinha esculpida uma cabeça de onça – a onça mágica. Inicialmente, não sabia bem como utilizá-la. Tinha em mente a função de um cajado ou, simplesmente, de uma alegoria. Sem planejar, num ato muito mais intuitivo do que previamente programado, fiz uma brincadeira que permaneceu em todos os grupos e, a cada reencontro com as crianças, nas suas escolas, elas sempre perguntavam: - “Profe” cadê a onça? Como a onça é o maior mamífero das florestas brasileiras, apresentei-a às crianças dizendo que ela era a protetora da floresta e de todos os amigos da floresta. Para garantir proteção, a onça sempre abriria a trilha e seguiria à frente avisando aos seres da floresta que estavam chegando amigos, assim nenhum mal poderia acontecer durante o passeio; quem passasse à frente perderia a proteção.


41 Além disso, criamos um ritual de fortalecimento do ''campo de força da onça'' (essa expressão foi definida assim por uma das crianças). Cada vez que a onça perdesse sua força eu faria o grito de chamada: - Olha a onçaaa!! Eles deveriam se aproximar, vindo rapidamente de onde estivessem, emitindo forças pra onça através de um gesto com as mãos e imitando o seu rugido com um poderoso “huaaauu”.


42 O medo foi um dos elementos presentes nas trilhas. Não tive intenção de provocá-lo, embora soubesse que ele poderia aparecer. Assim como também não imaginei que a onça ganharia essa dimensão de elemento de proteção e segurança, quase um talismã. Porém, encontrei explicação em Santin (2001, p. 56) que, embora se referindo ao contexto do treinamento esportivo, acredito aplicar-se também a esta situação. O autor nos fala sobre a necessidade de manter aceso “o risco, a incerteza e a aleatoriedade do brinquedo, estímulos e condições da liberdade de criar quando se brinca. Só é possível manter a liberdade da magia lúdica quando a incerteza se mantém viva e desafiadora”. A trilha, por todo seu potencial já descrito nos capítulos anteriores, oferecia grande prazer, mas também oferecia essa pitada de medo, de incerteza: e se aparecesse uma cobra? E se encontrássemos o lobo? E se alguém se machucasse? E se eu não tivesse equilíbrio para atravessar a ponte que balança? Tudo isso pode ser superado porque, de acordo com a explicação de quem chegou ao final da trilha são e salvo: - A onça me cuidou!


43 LELO LELO

Era uma tarde muito agradável, o frio do inverno já havia cedido espaço para os primeiros raios de primavera, o céu estava azul e o cheiro doce de pitanga se espalhava pelo ar. As crianças aventuravam-se em suas primeiras tentativas de desafiar a gravidade escalando as árvores, pequenas ou grandes, em busca de


44 frutos, desafios e alegrias. Os mais habilidosos faziam referência aos menos experientes e assim interagindo - entre eles e com o meio - iam conhecendo o mundo e a si mesmos. De repente, alguém desponta rapidamente e alcança o galho mais alto de todos. É alguém muito habilidoso, além da técnica para subir em árvores, tem equilíbrio, segurança e o melhor de tudo, a malícia, para, ao chegar ao topo, olhar pra baixo e provocar: - Lelo lelo, lelo leo, lelo lelo. As crianças, que talvez nem imaginassem poder subir tão alto, ficam ouriçadas e, na ânsia de imitar o amigo, buscam recursos e forças para subir também. As professoras precisaram reforçar a atenção, as cordas e tudo mais que pudesse ser degrau para essa aventura, pois a provocação teve efeito imediato. Ao subir na árvore, para muito além do prazer de criançar, a professora Fabiani ensina através de sua experiência o que é “saber” uma árvore. Ao mesmo tempo, torna-se o parceiro experiente que ajuda a ver o mundo ou, como indica Fernandes, é o amigo que abre as portas para outras possibilidades:

Um amigo é sempre outrem que indica mundos possíveis e impregna o universo de possibilidades. Vem de um espaço-tempo distinto, produz perceptos, afectos, e introduz o signo do não percebido naquilo que é percebido. Caso não houvesse outrem, um campo de forças incomparável seria inconcebível. Os signos que outrem exprime afectam e fazem variar algo no corpo do amigo, propiciando um aumento de potência. (FERNANDES, 2012, p.224)

Um aumento de potência: eis aí, possivelmente, uma das mais desafiadoras tarefas do professor. Mas para isso, acredito que ele precisa cultivar em si mesmo a fonte da ludicidade, o que nem sempre é percebido como algo essencial para o adulto - especialmente para aquele que trabalha com a criança. Santin nos diz que o adulto da sociedade industrial não consegue mais ter acesso ao mundo lúdico:

Aí comecei a olhar ao meu redor e vi o quanto é difícil voltar a brincar. E procurei identificar as resistências ao lúdico para tentar transformar uma mentalidade geral adversa. A palavra pode ser um ponto de partida, mas é preciso chegar à prática, isto, é, brincar. (SANTIN, 2001, p. 16)


45 O adulto precisa brincar: subir em árvores, rolar na grama, soltar pipa, tomar banho de mangueira, jogar dominó, dançar, tocar algum instrumento musical, brincar. Sim, brincar! Embora o brincar seja uma das marcas principais da infância, ele também deve fazer parte da vida adulta. Percebo que, como regra:

Para o adulto tudo aquilo que se faz deve ter uma razão, deve significar alguma coisa. Para a criança o brinquedo tem valor em si mesmo. Ele não tem uma motivação externa. Brincar é brincar, e não fazer alguma coisa. A gente faz isto ou aquilo, desta ou daquela maneira, simplesmente porque sim. (SANTIN, 2001, p. 46)

Não estou afirmando com isto que todo professor, a exemplo da professora Fabiani – no auge de sua juventude e vitalidade – precisa subir na árvore, mas sim que deva manter acesa em si a chama da ludicidade. Feliz do adulto que consegue conservar a infância em si, dando espaço à alegria, ao encantamento e ao assombro e, a partir disto, provocar o desejo da criança, ensiná-la a ver, despertar nela a gana de estar viva, ajudá-la a contatar a sede de conhecer a si mesma, o outro, a natureza, o mundo. Para que isso seja possível, acredito que:

Derrubar as paredes é uma condição para que possamos refazer elos de proximidade com o mundo natural e consideração pelos desejos do corpo. Em conseqüência, as propostas pedagógicas e de formação de educadores precisam orientar-se por objetivos de contemplação e reverência à natureza, assim como de respeito pelas vontades do corpo, justo o que, nos humanos, é também natureza. (TIRIBA, s/d. p.17)

No mesmo sentido, encontramos apoio no artigo 15 § 2º das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Ambiental, ao indicar que:

O planejamento dos currículos deve considerar os níveis dos cursos, as idades e especificidades das fases, etapas, modalidades e da diversidade sociocultural dos estudantes, bem como de suas comunidades de vida, dos biomas e dos territórios em que se situam as instituições educacionais. (CNE/CP resolução 02/2012)


46 Assim, se o respeito à idade e à especificidade das fases em que a criança se encontra são considerados e, tendo a compreensão de que respeitar as especificidades da infância significa respeitar a necessidade de brincar e conhecer o mundo através de todos os sentidos, a Educação Ambiental na Educação Infantil deve se preocupar menos com a transmissão de conceitos abstratos, embora ecologicamente corretos, e muito mais com o encontro da criança com a natureza, proporcionado, através de momentos lúdicos, desafiadores e prazerosos, em que a própria criança vai desenvolver bases para a compreensão – inclusive afetiva - da necessidade de atitudes ecologicamente mais apropriadas. Somente a partir do saber uma árvore a criança compreenderá de fato a necessidade de preservá-la, para si mesma e para as gerações futuras.


47 E quanto ao professor de Educação Infantil/Ambiental: - Para aquele que tem conhecimento técnico e teórico: lelo! - Para aquele que tem conhecimento técnico, teórico e mantém a ludicidade viva em si: lelo lelo! Um lelo sozinho não vira brincadeira, já lelo lelo...


48 OSSO DE ÁRVORE

Ao longo da trilha, com uma turma de crianças de quatro anos, elas descobrem uma porção de ossos depositados entre os galhos de um maricá centenário. Enquanto recolhia as cordas, usadas como apoio numa subida, e nos


49 preparávamos para seguir em frente, tento prestar atenção ao momento investigativo-filosófico-poético que as crianças travaram espontaneamente: - Olha é osso... e que grande! - Deve ser de dinossauro. - Não, não pode ser de dinossauro. - É sim! Esse osso é muito grande, só pode ser de dinossauro. - Não, os dinossauros já morreram... foi quando caiu um meteoro e isso faz muuuiiito tempo... - Será que não é osso de cachorro? Vai ver que ele escondeu ali pra ninguém pegar. As crianças pegam os ossos, analisam, cheiram, testam sua “dureza”. A discussão continua: - Já sei: esses ossos são dos urubus, eles comeram a carne do bicho, mas guardaram os ossos pra comer depois. Algumas crianças acham que essa é uma boa possibilidade, mas outros têm outras apostas. Um menino cogita a possibilidade de serem ossos de vaca, outro disse que eram parecidos com os ossos do porco que seu avô matou na chácara. Foi quando uma das crianças que observava em silêncio conclui: - Cara, isso é osso de árvore! Olha bem – apontando para o alto da copa como tu “acha” que elas param assim, de pé? Com tanta convicção, encerra-se a discussão. Poderia ter sido apenas uma cena da Educação Ambiental: além da aventura proporcionada para se chegar até ali, o professor poderia ter dado uma aula sobre a função ecológica do maricá ou da mata ciliar, cuja explicação os alunos, provável e infelizmente, esqueceriam antes mesmo de sair da mata. Muito mais do que isto, a cena convocou saberes prévios, capacidade de diálogo, espírito investigativo, liberdade para devaneios, espaço para dúvida e para conclusões científicas dentro da lógica e dos saberes prévios das crianças... Uma atividade que proporcionou “um verdadeiro desenvolvimento da sensibilidade, que precisa ser estimulada por experiências sensíveis (que envolvam os cinco sentidos) e não apenas discursos teóricos” (DUARTE JR., 2010, p.30). Destaco a potência gerada por uma atividade como essa. Quando em sala de aula, numa atividade dirigida, o professor consegue convocar diálogos tão ricos como este? As crianças têm muito mais a oferecer em espaços ao ar livre, em


50 contato com a natureza e com as infinitas possibilidades de conhecer o mundo. É como se, fechada entre quatro paredes, sua capacidade de interação também ficasse

restrita

aos

limites

do

espaço

fechado.

Tiriba,

ao

defender

o

“desemparedamento” das crianças aponta que:

Trata-se, então, de considerar as intervenções criativas das crianças, seus interesses presentes, pois é possível definir o que se ensina, mas jamais o que se aprende. Assim, as vivências ao ar livre, os passeios no entorno podem ser entendidos como possibilitadores de aprendizagens de corpo inteiro, em que são incluídas a atenção curiosa, a contemplação, as sensações, as emoções, as alegrias! São aprendizagens que se realizam aqui e agora, não servem apenas para confirmar o que foi trabalhado de forma sistemática, antes ou depois. (TIRIBA, s/d. p. 10)

Momentos como esse, que se passaram durante a trilha, e também outros citados até aqui (exploração da grama pelos bebês, do pátio das laranjeiras, das brincadeiras ao ar livre...) podem engendrar a transformação do sujeito que se deixa transpassar, afetar por esses momentos, fenômeno que, de acordo com Larrosa, podemos chamar de experiência:

A experiência é o que me passa. Não o que faço, mas o que me passa. A experiência não se faz, mas se padece. A experiência, portanto, não é intencional, não depende de minhas intenções, de minha vontade, não depende de que eu queira fazer (ou padecer) uma experiência. A experiência não está ao lado da ação, ou da prática, ou da técnica, mas do lado da paixão. Por isso a experiência é atenção, escuta, abertura, disponibilidade, sensibilidade, vulnerabilidade, ex/posição. (LARROSA, 2011, p.22)

Assim, acredito que a experiência, quando compreendida com paixão, como algo que transpassa afetando/transformando, está no mesmo patamar do “ser pateo”. E, assim como o “ser pateo” pressupõe um pátio que o favoreça, a experiência que humaniza o sujeito também precisa ser favorecida. Redin aponta essa necessidade ao defender o valor da experiência estética:


51 A falta de espaço para a experiência estética no cotidiano das sociedades modernas tem gerado o sujeito anestesiado, inexpressivo, uniforme, conformado e com dificuldade de deixar ser atingido ou atravessado pela experiência. O sujeito pobre de experiência (experiência que é muito mais do que o experimento), aquele que caracteriza a ciência moderna, a racionalidade técnica que somente quantifica, busca competências em nome de conhecimentos supostamente universais e objetivos, que acabam silenciando a experiência e anulando a subjetividade que a acompanha, torna-se pobre em humanismo e em história. (REDIN, 2010, p. 245)

Ao entrar no campo da experiência estética, muitas vezes compreendida como um campo apenas da arte e desejando apontá-la como indispensável nas práticas da Educação Ambiental, busco na mesma autora a ideia de que a ética e estética devem caminhar juntas:

A estética, antes de tudo, não pode ser descolada da ética. Qualquer ato humano, para ser estético, precisa estar sedimentado em princípios que valorizem a vida, o humano. (...) Nesse sentido, falo de ética/estética pela impossibilidade de separar essas perspectivas em qualquer ação humana, principalmente na educação e, mais especificamente, na educação de crianças pequenas. (REDIN, 2010, p.240)

Diante desse apontamento, questiono como e porque falar de aspectos técnicos ou ainda sobre problemas ambientais para crianças pequenas quando elas ainda não foram expostas e, consequentemente, afetadas pela beleza do mundo. A criança contemporânea, especialmente aquela que nasce no ambiente urbano, tem, infelizmente, possibilidades muito restritas de viver a natureza. Na maioria das vezes, essa criança tem mais oportunidade de convivência com os problemas e catástrofes ambientais do que com a natureza em sua plenitude e beleza. Porém:

Se a sociedade de nossos dias trabalha célebre no sentido da anestesia geral, de modo que nos quedemos insensíveis em face da brutalidade de um mundo regido mais e mais pela competição predadora e a ela nos dediquemos com afinco, nosso papel de educadores consiste em contrapor a tal estado de coisas o encantamento com as mais singelas maravilhas de que dispomos em torno a nós, refinando a sensibilidade fundamental de que nosso


52 corpo é dotado. É preciso alcançar o sentido dos sentidos. (DUARTE JR., 2010, p. 31)

O cuidado tão falado nas escolas de Educação Infantil deve aparecer também na forma que o adulto apresenta o mundo para uma criança, auxiliando-a a ver com todos os sentidos e para além dos sentidos. De acordo com Saló e Barbuy:

O adulto tem uma tarefa importante com a criança: tonar possível o assombro valorizando o irreversível de cada vivência. Mantê-la alerta para notar o oportuno de cada etapa. Se não se mantém vigente a atitude de permanente assombro, não se poderá ver o extraordinário no mais corrente e a grande sabedoria do mais simples e cotidiano. (SALÓ e BARBUY, 1977, p. 17).

Acordar a sensibilidade, manter o encantamento, tornar possível o assombro, possibilitar travessias, afetar, incendiar a paixão: - Cara, esse é o osso que mantém a árvore da Educação Ambiental/Infantil de pé!


53 UMA “COBA”

O relato da fala de uma criança de dois anos, fundamentado nas experiências que vivenciou na sua escola, e citado por Cornelius, Schaefer e Morais nos faz acreditar que estamos na direção certa:

Essa fala foi narrada pela mãe desta criança à professora e iniciou quando a mãe pergunta como o filho gostaria de presentear a professora pela passagem do seu dia e, para tal pergunta, teve uma resposta surpreendente:

- Uma “coba”! (referindo-se a uma minhoca). A mãe diz: -Uma minhoca? Mas isso a professora não vai gostar. - Vai gostar sim! - Eu não iria gostar de ganhar uma minhoca. Seguem os dois nessa discussão, quando depois de imaginar tantas coisas a mãe pergunta:


54 - Mas porque tu achas que a professora vai gostar de ganhar uma minhoca? Ao que ele responde: - Porque a “pofi” vai colocar na plantinha, a plantinha vai dar flores e ela vai ficar feliz.

Essa criança, apesar de tão pouca idade, mas embasada em sua própria experiência consegue propor uma rota de fuga ao capitalismo: ela diz não ao consumismo ao mesmo tempo em que diz sim à vida, ao cuidado, à amorosidade e à beleza. Primeiramente destaco o lugar onde esta criança teve oportunidade de viver esta experiência: a escola de Educação Infantil. Mas não qualquer escola, uma escola com uma proposta pedagógica que tem intencionalidade clara, definida e cujo Projeto Político Pedagógico traz em seu registro:

Vivemos num tempo em que a velocidade das mudanças tecnológicas, o convite ao consumismo e as exigências do mercado de trabalho influenciam diretamente nos modos de vida das pessoas. A pressa e o corre-corre acabam sendo características do cotidiano, as quais incorporamos em nosso dia a dia sem percebermos outras possibilidades de vida que podemos optar. Atentas a estas questões e entendendo que o tempo da vida orgânica, histórica, estética, espiritual é outro - constitui-se e é constituído pela beleza e profundidade do percurso - sentimos necessidade de estabelecer em nossa escola concepções que garantam os direitos da infância onde o convívio com a natureza, a ludicidade e as interações entre crianças, crianças e adultos, crianças e o ambiente possibilitem a sustentabilidade do ser e uma nova forma de viver no mundo. Nos referimos a opção de oferecer um espaço onde o cuidado, a reflexão, a sensibilidade e o brincar sejam constantes rumo a garantia de uma infância saudável e prazerosa. (...) A materialização dessa proposta em nossa escola aparece na possibilidade que a criança tem de experimentar, mexer, olhar, cheirar, tocar e se sujar (com a terra, barro, areia, água,...), sentir/perceber (formas, texturas,...), refletir, associar e extravasar sua curiosidade. Para isso, todos os espaços da escola são explorados, mas principalmente o pátio, o qual proporciona múltiplas vivências significativas. (PPP EMEI PICA-PAU AMARELO, 2012)

Uma escola que, de acordo com o que escreve e pratica, está aparelhando as crianças para outra ética. A ética que caminha junto com a estética e que por valorizar a sensibilidade e a beleza, ensina, como define o poeta Manoel de Barros, a gostar das coisas desimportantes:


55 Dou respeito às coisas desimportantes E aos seres desimportantes. Prezo insetos mais que aviões. Prezo a velocidade das tartarugas mais que a dos mísseis. Tenho em mim esse atraso de nascença. Eu fui aparelhado Pra gostar de passarinhos. Tenho abundância de ser feliz por isso. (BARROS, 2003, p.IX)

Uma escola que tem consciência de sua importância, que olha para o movimento capitalista, reconhece seu poder e sua força, mas que não está passiva, pois, ao adotar em sua rotina a prática de manejo de uma composteira, onde a criança tem a oportunidade de ser “afetada” por “uma coba”, ela não apenas deseja, mas oportuniza que a criança tenha padrões estéticos mais sensíveis do que este mencionado por Redin (2007): “A nós adultos, cheios de preocupações e responsabilidades, pode tudo isso parecer perda de tempo – especialmente quando os homens do norte nos disseram ‘tempo é dinheiro’”. Em segundo lugar, esta criança, ao propor o cultivo de flores no lugar do consumismo, indica uma importante linha de flexibilidade ao capitalismo. Na sua sabedoria de dois anos de idade ela dá início ao que propõe Guattari:

Novas prática sociais, novas práticas estéticas, novas práticas de si na relação com o outro, com o estrangeiro, como o estranho: todo um programa que parecerá bem distante das urgências do momento! E, no entanto, é exatamente na articulação: da subjetividade em estado nascente, do socius em estado mutante, do meio ambiente no ponto em que pode ser reinventado, que estará em jogo a saída das crises maiores de nossa época. (GUATTARI, 1990, p. 55)

Obviamente não quero responsabilizar a escola, especialmente a escola de Educação Infantil, como o único lugar responsável pela transformação da sociedade, mas quero destacar sua importância e reafirmar que ela não pode se eximir deste papel, pois como orienta Redin:

Os atravessamentos simbólicos, maneiras de ver, sentir, agir no mundo das crianças, por mais que passem por uma cultura que se


56 engendra e se produz na sociedade, a partir do mundo dos adultos, podem ser potencializados a partir das próprias crianças. Sabemos que a escola para a infância é marcada por diversos atravessamentos simbólicos, que em vez de repetir modelos poderia oferecer às crianças novos lugares, insistindo no novo, no afastamento dos clichês, engendrando outros olhares prenhes de estesia. (REDIN, 2010, p. 247)

Desejo, que cansados da anestesia gerada pelo capitalismo, anestesia que nos torna insensíveis não apenas ao belo, mas também às diferentes formas de violência ao ser humano e ao meio ambiente, possamos, progressivamente, absorver uma ética-estética contemplando as três ecologias propostas por Guattari (1990): a do meio ambiente, a das relações sociais e a da subjetividade humana. Uma ética-estética traduzida de forma singular na poesia de Arnaldo Antunes: Sujar o pé de areia pra depois lavar na água Lavar o pé na água pra depois sujar de areia Esperar o vaga-lume piscar outra vez Ouvir a onda mais distante por trás da onda mais próxima Sujar o pé de areia pra depois lavar na água Respirar Sentir o sabor do que comer Caminhar Se chover, tomar chuva Não esperar nada acontecer Ser gentil com qualquer pessoa Sujar o pé de areia pra depois lavar na água Lavar o pé na água pra depois sujar de areia Esperar o vaga-lume piscar outra vez Ouvir a onda mais distante por trás da onda mais próxima Respirar Sentir o sabor do que comer Caminhar Se chover, tomar chuva Ter saudade no final da tarde Para quando escurecer, esquecer Ao se deitar para dormir, dormir Dormir. (ARNALDO ANTUNES)

E para finalizar, pergunto-me: um passeio na floresta tem este poder de interferir na subjetividade a ponto de transformar a sociedade? Qual a importância das experiências de encontro com a natureza para as crianças? Prefiro silenciar e dar voz às crianças para que elas mesmas respondam:


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58 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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