UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS-UNISINOS CIÊNCIAS HUMANAS ESPECIALIZAÇÃO EM EDUCAÇÃO INFANTIL
CRISTIANE NOBRE FIUZA
JANELA – PANELA – CANELA: A CONSCIÊNCIA FONOLÓGICA INVADE A EDUCAÇÃO INFANTIL
SÃO LEOPOLDO 2013
Cristiane Nobre Fiuza
JANELA – PANELA – CANELA: A CONSCIÊNCIA FONOLÓGICA INVADE A EDUCAÇÃO INFANTIL
Trabalho de conclusão de curso de Especialização apresentado como requisito parcial para a obtenção do título de Especialista em Educação Infantil, pelo Curso de Especialização em Educação Infantil da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS.
Orientador: Prof. Dr. Luciano Bedin da Costa
São Leopoldo 2013
Cristiane Nobre Fiuza
JANELA – PANELA – CANELA: A CONSCIÊNCIA FONOLÓGICA INVADE A EDUCAÇÃO INFANTIL
Trabalho de Conclusão de Curso de Especialização apresentado como requisito parcial para a obtenção de título de Especialista em Educação Infantil, pelo Curso de Especialização em Educação Infantil da Universidade do Vale do Rio dos SinosUNISINOS
Aprovado em (
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BANCA EXAMINADORA
Orientador(a) Professor Doutor Luciano Bedin da Costa _______________________________________________________________
Segundo Avaliador(a) ________________________________________________________________ Professor Doutor Remi Klein
Escrever é coisa séria, disse a mãe Depende de quem escreve - retrucou o menino... De como escreve, De quando escreve E porque se escreve. Se for o chefe é coisa séria Se é formal é muito sério Formulário então, nem se fala Para julgar, demitir, pedir e não dar permissão... coisa seríssima. Mas há palavras que são pura diversão As que gargalham... Graça, palhaço, fanfarrão As que flutuam... pena, nuvem, bolha de sabão As saborosas... Pipoca, brigadeiro, algodão E há aquelas que tornam os sérios crianças de prontidão balanço, pega-pega, bicho-papão Não sei, mas desconfio que a escrita deveria mudar de mão.
Trabalho realizado a partir de observações e interações com jogos de consciência fonológica na turma de Educação Infantil, Pré II B, do CMEB Santo Inácio, Esteio, no decorrer do ano de 2012.
SUMÁRIO
1
INTRODUÇÃO.....................................................................................................7
2
POETIZANDO A CONSCIÊNCIA FONOLÓGICA..................................9
3
O TERRITÓRIO DA CONCIÊNCIA FONOLÓGICA...............................11
4
O TEMPO DAS LETRAS........................................................................30
5
CONCLUSÃO.........................................................................................42
6
REFERÊNCIAS.......................................................................................45
INTRODUÇÃO
Esta pesquisa busca investigar como os jogos de consciência fonológica interferem no modo das crianças pensarem o processo de construção da escrita. O trabalho tem como finalidade deslocar o foco do resultado e transpô-lo para o processo, tendo como pressuposto seu elemento primordial: o som. Este será abordado como ingrediente essencial na vida das crianças desde seus nascimentos e a teoria do Ritornelo de Deleuze e Guattari alicerçará a pesquisa, apresentando o conceito de (des)territorialização. Creio que mais importante do que a apropriação do código seja o caminho percorrido pelas crianças, a forma que elas constroem e moldam suas hipóteses, modificado-as, colocando em xeque suas alternativas, se despindo daquilo que julgavam regra para se refazer sempre que surge um novo componente. Pensar o processo pela ótica da criança, tendo-a como autora deste, é sabê-la capaz e produtora de seu conhecimento. O trabalho apresentará a seguinte formatação: trechos que buscam embasar a consciência fonológica como sendo uma habilidade metalinguística importante no processo de aquisição da linguagem escrita farão uma trama com outros trechos denominados aqui de “retratos sonoros”. A palavra “retrato” no dicionário apresenta dois significados: o primeiro com o sentido de paisagem, imagem, e o segundo advindo do verbo retratar, com o sentido de mostra, expressão. Assim, podemos entender os “retratos sonoros” como trechos carregados de poesia, frases, pensamentos, inferências feitas pelas crianças, além de tentar captar as reflexões por detrás dos registros. Os retratos sonoros são os aportes que dão voz e vez a infância. Todas as falas contidas nestes trechos foram enunciadas pelas crianças nas aulas realizadas no decorrer de 2012. Sendo assim, estes trechos dão a fluidez indispensável a qualquer trabalho que pretenda abordar a infância ao mesmo tempo em que busca o contraponto à linha dura apresentada no território da consciência fonêmica. Esperamos que este texto seja um bom material de apoio para os que desejam ingressar em seus estudos sobre esta habilidade metalinguística, além de brindá-los com a expressividade da infância e a mostra de que as crianças se
constroem, tambĂŠm, pela forma como se relacionam com os elementos que as rodeiam e pelo modo como estes elementos lhes sĂŁo apresentados.
POETIZANDO A CONSCIÊNCIA FONOLÓGICA “Uma criança no escuro, tomada de medo, tranquiliza-se cantarolando. Ela anda, ela pára ao sabor de sua canção.” (DELEUZE & GUATTARI, 2005, p. 116)
... É natural que as pessoas façam uma relação do silêncio com a paz. Tratamos até como sinônimo. Costumam convencionar o estar em silêncio com a produção de uma sensação de harmonia com o meio, que acreditam só poder se tratar de uma tremenda paz (de espírito). Concebem assim, o silêncio, que é o nada sonoro, ou mais poeticamente como John Cage o definiu, afirmando que o significado essencial do silêncio é a desistência da intenção, como sendo uma garantia do nada que te assusta, do nada que te amedronta, do nada que te coloca em perigo; em contrapartida, esse mesmo silêncio te confronta com a ausência do que te conforta, do que te acalanta. O escuro é o caos. O silêncio também o é. Apenas o som, que quebra o silêncio, traz em si a perspectiva de que ao seu redor existem elementos. O tic-tac de um relógio, os passos apressados ou cautelosos no corredor, a conversa quase sussurrada em outro cômodo, indicando que há vida(s) naquele local e que é chegada hora de sentir-se seguro. ...
A mãe chama seu filho. Pronuncia uma vez seu nome. A criança sabe que o tom é amoroso, mas não sabe que aquele conjunto fonético será usado toda vez que alguém desejar sua atenção. Sua mãe seguirá repetindo esse mesmo chamado, a mesma sonoridade sendo enunciada, letra por letra, sílaba por sílaba, fonema por fonema, muitas vezes mais, até que a criança assimilará que aquele som é de sua propriedade; sim, aquele som já a constitui. ...
Ao sentir-se em perigo, a criança chora e esse choro (som) tem o poder de aproximá-lo de um cuidador. Ao ouvir o nome, agora já conhecido, pronunciado, sabe que o caos novamente se estabilizará.
...
Ao dormir a mãe canta para seu filho. A música além de embalá-lo, tem o poder de deixar as pálpebras pesadas. O efeito não é apenas biológico. O que o produz é a capacidade que o filho já tem de reconhecer que aquela canção é entoada por quem velará o seu sono. A mãe, então, canta a cantiga “boi, boi, boi, boi da cara preta, pega esse menino que tem medo de careta” e as palavras pronunciadas (observe que espantoso) não dizem apenas de seu sentido, não são mais, tão somente, signo (significante/significado); as palavras agora adquirem um novo caráter. São um aviso, um informe de que lá fora tudo é calmaria. E o filho dorme acreditando naquele som e no além do som.
...
Outros sons vão chegando. O canto dos pássaros, os brinquedos sonoros que enfeitam o quarto, o choro da barriga vazia, o da fralda suja, o da manha e da birra, e tantos outros que ainda aprenderá, o móbile sempre rodando e tocando, a mesma música, as mesmas notas... ...
Ao decorrer dos anos, muitas vezes a criança recorre a sua cançãozinha, pois ela é o fio que a devolve a estabilidade. Essa canção harmoniza. Ao mesmo tempo em que, organiza o mundo, a criança organiza a si mesmo. Com todos esses elementos sonoros, a criança estabeleceu o seu espaço. Ela compreendeu que a canção tem o poder de retirá-la do caos e devolvê-la à zona de conforto. O círculo está fechado e ela permanece no centro. Até quando?
...
A televisão ligada na sala, a chuva no telhado, o vento que faz bater a janela, os risos das crianças nos quintais, os gritos, as buzinas dos carros, a máquina de lavar, a campainha, o telefone, as ondas do mar, os sons construindo um arquivo mental, separados inconscientemente em gavetas que acionam ora uma sensação de medo, ora prazer/felicidade. O barulho de uma freada mais forte pode paralisar,
indicando que uma situação de perigo aproximou-se, enquanto que uma música agradável pode ser o convite para fechar os olhos e deixar-se levar pelos pensamentos. Os sons fazendo-nos trilhar diferentes caminhos, experimentar diferentes sensações.
O TERRITÓRIO DA CONSCIÊNCIA FONOLÓGICA
Nessa fase de reconhecimento, os sons estão no mundo e as crianças, à medida que os vão vivenciando, passam a percebê-los, assimilá-los, porém eles não são vistos de modo estruturado.
Fazem parte do mundo e são reconhecidos,
embora ainda não pensados. Guattari e Deleuze (2005) diriam que a criança construiu seu “em-casa”, fazendo referência ao círculo criado por ela em seu entorno – o chamado território -, povoado destes sons (re)conhecidos e que compõem o arquivo mental, remetendo as mais variadas formas de relacionar-se com o mundo. Apesar de a palavra território designar literalmente terreno, espaço físico, localidade; a concepção dada pelos autores abarca um sentido além do geográfico, caracterizando-se por “componentes do meio tornados qualitativos” (1998). O território é um limitador entre dentro e fora. Ele marca propriedade, posse, domínio. No entanto, as relações estabelecidas entre a criança e seu território vão além de suas estruturas visíveis. A consciência fonológica invade este círculo trazendo novos elementos para se pensar os sons pelos sons. O “em-casa” abre-se ao caos para buscar a acomodação dos novos componentes neste território, agora distendido. No âmbito dos trabalhos sobre o desenvolvimento cognitivo e metacognitivo, o conceito de consciência fonológica começou a ser descrito e investigado no fim dos anos 70 e início dos anos 80 (GUILLON, 2004). Este conceito pode ser genericamente definido como a capacidade de manipular os elementos sonoros que constituem as palavras orais (Gombert, 1990; Lamprecht et al., 2004; Tunmer & Rohl, 1991, citado por Silva, 2003).
Ao ingressar na escola, mais especificamente nas classes de alfabetização, a criança é “levada” a pensar nos sons produzidos pelas letras, pois somente depois desta habilidade aprendida, estará apta a dominar o código de leitura/escrita alfabética.
É um sujeito que aprende basicamente através de suas próprias ações sobre o mundo, e que constrói suas próprias categorias de pensamento ao mesmo tempo em que organiza seu mundo. (FERREIRO e TEBEROSKY, 1985, p.21)
Ainda que a leitura e a escrita sejam aprendidas de forma estruturada na série de alfabetização e, a partir do ano de 2012, nos ciclos que envolvem do 1° a 3° ano do ensino fundamental*, percebe-se que, um trabalho que busque essa tomada de consciência dos sons antes de se chegar a estas séries é possível, viável e, talvez o mais eloquente, necessário se pensarmos nos benefícios que este trará aos alunos que dele se utilizarem.
Estudos abordando esse tema têm afirmado que o desempenho em tarefas de consciência fonológica pode predizer como a criança irá desenvolver as habilidades de leitura e de escrita, tendo sido correlacionado o sucesso quanto à consciência fonológica com o êxito no aprendizado da escrita alfabética. (GUEDES e GOMES, 2010, p.264)
Sendo assim, cabe aprofundarmos nosso conhecimento a respeito do quem vem a ser a consciência fonológica e como se efetiva um trabalho que prime pelo desenvolvimento desta habilidade metalinguística na educação infantil. A consciência linguística ou metalinguagem refere-se à habilidade de refletir sobre a língua, isto é, de tratar a língua como objeto de análise e observação, de focalizar a atenção especificamente para as suas formas. As habilidades metalinguísticas podem estar relacionadas a três níveis, segundo Cielo (2000): fonológico, lexical e sintático, os quais têm-se mostrado relacionados tanto ao desenvolvimento linguístico quanto à aquisição da linguagem escrita. A consciência lexical diz respeito à capacidade da criança em segmentar a linguagem oral em palavras. A consciência sintática refere-se à habilidade para refletir e manipular a estrutura das sentenças em um enunciado. E, finalmente, a consciência fonológica permite às crianças analisar a língua oral de acordo com as sequências de sons que
a compõem. Assim, a habilidade em analisar a fala explicitamente em seus componentes fonológicos é chamada de consciência fonológica, sendo um subtipo da consciência linguística. Sendo assim, devemos entender o conceito de consciência fonológica como sendo a habilidade de perceber os sons da fala, independente de seus significados, ou seja, entender, de modo consciente que, os sons associados às letras são os mesmos sons produzidos pela fala e que esses sons podem ser manipulados auditiva e oralmente. O termo consciência fonológica foi definido como a percepção de que as palavras são construídas por diversos sons. Tal conceito diz respeito tanto à compreensão de que a fala pode ser segmenta quanto à habilidade de manipular esses segmentos. (MEDEIROS e OLIVEIRA, 2008, p. 72) E ainda: É a de distinguir e manipular os sons constitutivos da língua. A consciência fonológica existe, de maneira mais ou menos grosseira, antes do aprendizado da leitura e se reforça ao longo dos diferentes tempos desta aquisição. (RIVIERE, 2001 apud CARVALHO, 2007, p.98) O trabalho de consciência fonológica na educação infantil consiste em proporcionar aos alunos atividades direcionadas e específicas. Estas atividades são sempre realizadas de forma lúdica e as crianças interagem e participam ativamente. São utilizados jogos com regras que despertam o aprendizado das rimas, aliterações, e ainda, fazem com que os alunos aprendam a dividir as palavras em unidades menores (sílabas, letras), identificar palavras isoladas, ordená-las de forma diferente, e, consequentemente, compreender que os sons falados podem ser escritos e vice-versa. Existem dois níveis de consciência fonológica: o primeiro diz respeito à segmentação da língua, onde a frase pode ser segmentada em palavras, as palavras em sílabas e as sílabas em fonemas; enquanto o segundo aponta que as unidades segmentadas repetem-se em diferentes frases, palavras e sílabas.
...
A sineta da escola... bateu... a sineta anuncia: é chegada hora de entrar!
A cidadezinha da Clarinha era bem pequenininha, nela, só vivia gente miudinha: branquinha, pretinha, amarelinha, quanta coisa nessa cidadezinha tinha casinha, carrinho, ruazinha, arvorezinha, frutinha, florzinha, passarinho, borboletinha, cachorrinho, gatinho, tartaruguinha e nas casinhas... fogaozinho, mesinha, cadeirinha, e cada coisinha seu lugar tinha. Acontece que o tempinho passou rapidinho e Clarinha foi para a escolinha pegou sua mochilinha e saiu faceirinha de longe avistou os coleguinhas e a professorinha que aguardava no portão(zinho)... entraram na salinha e a professora pegou um livrinho e começou uma estorinha falou de um tal João que plantou um pé de feijão e fez tipo avião, chegou nas nuvens de algodão... cantou ainda uma canção falou até de dragão
e que com imaginação o pequeninho vira grandão e o “inho” vira “ão” Clarinha saiu de lá cheia de satisfação, pois tinha feito uma constatação, O mundo não pode ser visto apenas com os olhos É preciso que se ponha também o coração.
(Poema coletivo produzido pela turma do Pré II B da Escola Municipal Santo Inácio, em agosto de 2012, a partir da gravura de Clarinha e da seguinte orientação: sabendo que tudo que há na cidade de Clarinha termina com o mesmo som presente no final do nome da menina, diga o que mais há nessa cidadezinha).
...
Na escola, a professora fala através dos sons, sobre os sons e provoca seus alunos a pensarem nestes, não apenas como barulhos, ruídos, mas como objetos passíveis de serem capturados... a folha é o alçapão. O que eu escrevo nesta folha são sim meros símbolos, mas esses símbolos tem o poder de transformar o som em registro e assim, propagar os sons que me povoam. Quando registro um som, por meio das letras, ele deixa de ser meu e passa a ser (com)partilhado. O som (palavra) não está mais apenas para mim, ele está para o mundo. Deixa de ser pura abstração e passa a adquirir funções, desde o simples comunicar/informar, indicar caminhos/rotas, até passar histórias adiante. ...
A criança entra na sala e ao fazer a chamadinha a professora coloca sua ficha juntamente com a de dois colegas. Então, ela vê que a letra M de seu nome, não é apenas sua. Percebe que Manuela e Marcelo também possuem a mesma letra, no mesmo local, o início da palavra, e se depara com a primeira dúvida de muitas que irão surgir ao longo do processo: quer dizer que o M não é só de Mariani?
... A professora afirma que não. E ressalta “com M escrevemos muitas coisas Mariani: mar, martelo, maçã, manhã, mãe. E além dessas, ainda tem meia, milho, moto e mundo”. Mariani até consegue perceber uma semelhança pequena entre Mariani, Marcelo, Manuela e Mar... agora meia ou moto?... a professora só pode estar brincando... essas não começam com M definitivamente.
...
Antes de se fazer um trabalho que provoque as crianças a pensar no som das palavras e que remetam a regularidade da língua, hipóteses como a de que cada pessoa possui uma letra e que esta letra não aparece no nome de ninguém mais é muito aceitável, ou ainda, critérios de escrita que levam em consideração apenas o objeto e não a sonoridade da palavra. Assim a palavra formiga é escrita utilizando-se poucas letras, enquanto leão é escrito com muitas letras, porque o leão é muito maior do que a formiga. Ou seja, a palavra é fruto de uma representação do
objeto no mundo concreto. Somente um trabalho que vise à tomada de consciência dos sons e o entendimento de que para se escrever é necessário pensar na palavra a partir de sua sonoridade podemos evoluir no processo de apropriação da escrita. ... Museu do Chulé O museu do chulé não dá pra acreditar
é uma inhaca só
meia fedida, tênis suado sapato fedorento, coturno de soldado pantufa xexelenta, chuteira chulepenta chinelo de menino relaxado
tudo minuciosamente catalogado
pé rançoso, fedegoso, malcheiroso pestilento, virulento, infecto contagioso tem bodum de tudo quanto é bodoso
carpim de padre, sandália de pescador frieira de freira, pezinho de princesa bota catinguenta de estivador
a fedentina nunca acaba
os visitantes vão circulando torcem o nariz, fazem caras futum é o que não falta
pra quem não agüenta o fedor tem prendedor BRITO, Alexandre, Museu Desmiolado, Editora Projeto, Porto Alegre, 2011.
A professora abre sua aula com um livro de poesias. Muitas rimas. Sons repetindo-se e formando uma dança. Ela lê o livro “Museu desmiolado”. Os alunos começam a se dar conta de que muitos sons se aproximam. Gostam da história. Acham graça. As palavras fazem rir. Existem palavras engraçadas, diz um dos alunos. E tem umas que dá até “angústia” no estômago - completa a colega - chulé e lombriga são assim. ...
A professora propõe: que tal montarmos um texto sobre o que lemos? Os alunos aprovam e começam a jogar frases, palavras soltas a princípio. A professora passa a procurar sinônimos, inverte a ordem, organiza as palavras, para que a rima se mantenha e a sonoridade seja preservada. Alguns alunos percebem as mudanças e notam que as trocas tem uma função. Então, passam a se aproximar do que a professora está fazendo, buscando adequar as palavras aos sons.
...
O Museu do chulé que virou trabalho com o pé
Nossa turma leu o livro Museu Desmiolado de Alexandre Brito e Gostou muito do “museu do chulé”. O Nathan não gostou. Se assustou e chorou. Falar do museu do chulé é muito engraçado. É tanta ideia de fedor que a gente fica até enjoado. Na cabeça muita ideia boa: Que tal fazer o museu que a gente usa no pé?! A profe achou uma músca que é “Pé com pé”. Um pé pra lá, um pé pra cá. É tanto pé que o pé parado não quer ficar! Passamos lápis no pé. Recorta e escreve o nome para não esquecer de quem é. Alguns cheiraram o pé para ver se tinha chulé. Só lápis não foi divertido. Legal foi lambuzar o pé de tinta e fazer uma dança no papel. A pintura ficou bonita, pegada pra todo lado. A sala não escapou da arte. Azul, verde, rosa, laranja, roxo, vermelho, fazem do chão agora parte. O pé sujo não ficou. Lavamos no balde com água e pano. Até massagem no pé todo mundo ganhou. A tia da limpeza não achou na sala a mesma beleza!
(Texto coletivo produzido pela turma de Educação Infantil 03 (05 anos de idade), para o Projeto de Leituração Escola Dr. Oswaldo Aranha, São Leopoldo – professora Roseane Sfoggia Sochacki, agosto de 2012).
...
As palavras tornam-se passíveis de manipulação; transformam-se em brincadeiras e jogos. Elas são vivas. As crianças, ao mesmo tempo em que descobrem a utilidade do som, percebem-no como uma possibilidade de divertimento. Algumas palavras são engraçadas - disse o menino. ... A professora, ao trabalhar com os alunos a poesia o “Museu do Chulé”, deixou-os mais livres para que fossem falando o que mais lhes chamou a atenção na poesia, enquanto anotava as ideias e frases enunciadas pelos alunos. Naquele momento, ela servia de escriba e os alunos, ao participarem de atividades como essa, dão-se conta de que aquilo que falam pode ser escrito, e ainda mais, após escrito, outras pessoas podem ler, transmitindo as informações para um número cada vez maior de leitores. No entanto, as frases ditas por eles, apesar de terem sentido e obedecerem a uma lógica de sequência do poema e dos acontecimentos que nortearam a construção deste, não apresentavam rimas, reprodução de sons, ou seja, não havia preocupação com a sonoridade. Percebendo isso, a professora ouvia-os atentamente, e ao anotar as ideias captadas no grupo, modificava as palavras de modo a preservar a sonoridade. Fazendo isso, e repetindo em voz alta essas alterações, os alunos começaram a notar que a transformação das palavras, ou a substituição das mesmas apresentava uma função: a preservação do som. Sendo assim, alguns alunos começaram a buscar palavras que respeitassem o som, dando sequencia as rimas e mostrando que haviam compreendido o que a professora esperava.
Para a doutora em Liguística pela USP, Leonor Cabral, a habilidade da consciência fonológica pressupõe um processo atencional, ou ainda, com intencionalidade para exercê-la. Vejamos o que é colocado a respeito da consciência fonológica e da habilidade metafonológica pela doutora:
Incluem-se entre estas habilidades, a de fazer julgamentos sobre igual e diferente e mesmo uma habilidade que se implanta muito precocemente, por volta dos 24 meses coforme Clarke (1978), a da autocorreção: a criança em virtude da auto-regulação total, se dá conta de que o que produziu não confere com o alvo pretendido, o que não significa que, ao se autocorrigir, esteja consciente sobre quais os articuladores que deva acionar para as modificações pretendidas, nem que já tenha completado o controle dos gestos praticados pela variedade sociolinguística com a qual interage. (SCLIAR CABRAL, 1999, p.156) ...
A professora realiza uma atividade com a turma. Esta consiste em afixar gravuras no quadro. Essas gravuras servem como base para o jogo. Os alunos devem buscar em uma mesa outras gravuras e relacionar aquelas cujo som final combine com as que estão afixadas no quadro, ou seja, devem formar rimas. Há no quadro a gravura de um nariz e os alunos colam juntamente a ela as figuras de um “giz”, uma “atriz” e um “chafariz”. Depois de relacionar todas as palavras, a professora questiona se os alunos conhecem outras palavras que rime com aquelas que estão no quadro. Nesse momento há uma chuva de ideias. A professora avalia a atividade de forma positiva, então, findado o jogo a professora dá a seguinte orientação: “Turma, é hora do lanche”. Neste momento um aluninho levanta de sua cadeira e proclama “lanche - avalanche” e tão logo ele senta, uma de suas colegas revida: “é, mas podia ser lanche – lancheira”. E a professora maravilha-se ao presenciar o jogo saindo do tabuleiro e adentrando a rotina escolar.
...
Os sons não moram nas tabelas, cheias de imagem oferecidas pela professora. Os sons moram em nós, basta que abramos a nossa boca e que deixemos eles (re)visitarem os locais que habitamos.
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O trabalho de consciência fonológica é todo feito por meio de jogos que buscam aprimorar essa sensibilidade auditiva. Fazer com que o aluno perceba que o som das letras/sílabas repete-se em várias palavras e que é possível reconhecer essas palavras à medida que ficamos mais atentos a essa regularidade. Na situação descrita acima, os alunos conseguem vislumbrar que os sons não estão apenas inseridos nas cartelas confeccionadas para que eles joguem em sala de aula. Eles estão presentes nas palavras de cada dia, e mostram aos alunos que eles próprios podem ser os autores de seus jogos, quando interferem em uma fala e a complementam. Não há cartelas, não há regras, não há que se esperar a sua vez, há apenas que se estar inserido em um ambiente que privilegie essa tomada de consciência e que veja na sonoridade um grande degrau para a escalada rumo ao topo do processo de aquisição da leitura e da escrita. Estes jogos produzidos têm como finalidade desenvolver nos alunos a capacidade de reconhecer os sons (sílabas) que se repetem no início (aliteração) ou no fim (rima) das palavras. Alguns jogos trazem palavras que mudam totalmente de significado alterando apenas a letra inicial, como o caso de “rato-pato-mato”, “panela-janela-canela”, “carro-jarro-barro”. Para Freitas (2004), a consciência fonológica é uma habilidade que desempenha um importante papel na aquisição da escrita de uma língua alfabética, como é o caso do português. A autora realizou uma pesquisa que apontou que crianças a partir de 4 anos são capazes de responder a testes metafonológicos.
A identificação de rimas por crianças pequenas não-alfabetizadas, por exemplo, pode indicar a existência de uma consciência implícita, ou seja, de uma sensibilidade às similaridades fonológicas. Pesquisas com crianças de 3 e 4 anos apontam nessa fase da infância, que as crianças são capazes de “brincar” com as palavras, identificando e produzindo algumas que apresentem sons iguais. (FREITAS, 2004, p.266)
…
Mão, dragão, pião, rincão, chão, avião, colchão, verão, balão, cão, mamão, pão, sabão, papelão, meditação, feijão, não, galpão, plutão, oração, leão, blusão, grão, melão, porão, calção, fogão, lixão, leilão, cidadão, alemão, carvão, cordão, gavião, paixão, pavão, perdão, pensão, solidão, decoração, roupão, estação, lampião, algodão, educação, chimarrão, confusão, lotação, maldição, aparição, artesão, natação, exposição, respiração, alfabetização, comunicação, ação... ...
Ao jogar com estas palavras o aluno vai percebendo que palavras que produzem o mesmo som, são escritas da mesma forma. E a hipótese anterior, que levava em conta o objeto real, dá lugar a uma nova hipótese, onde a escrita parte da sonoridade da palavra. A superação de uma hipótese é sempre um salto. ...
Um salto sem paraquedas. ...
A professora entrega aos alunos um jogo de cartas. A proposta consiste em unir as cartas em pares. Para formá-las devemos seguir a seguinte instrução: uma das palavras deverá “morar” dentro da outra. Como em “uva-luva”. A palavra “uva” mora dentro da palavra “luva”, pois o aluno consegue identificar que o som de uma está presente quando eu enuncio a outra. Os alunos estão separados em grupos, cada grupo recebe suas cartas. Ao virá-las, o grupo A, composto por quatro alunos, faz a seguinte sequência “asa-casa, cano-tucano, olho-repolho”, mas para o aluno Victor restam duas cartas; uma delas com a imagem de uma vela e a segunda com a figura de um cinto. O aluno olha para os colegas, pois sabe que seus colegas uniram corretamente seus pares, e olha atentamente as duas cartas que têm em suas mãos. Não consegue compreender porque os sons não combinam, está inquieto... a professora percebe que não está confortável com a constatação de que aquelas duas cartas não podem formar um par. Então, a professora pergunta: “Quais as cartas que tens?” e o aluno responde “Um cinto e uma vela”. A professora então questiona: “Será que a carta mostra o cinto ou a fivela que está no cinto?” e o
aluno satisfeito une as duas cartas, e os sons, antes desordenados, voltam a fazer todo sentido para ele. O caos se desfez. ...
É muito comum que as crianças nas turmas de pré-escola trabalhem com classificação, seriação, sequenciação. Todos esses itens são muito trabalhados nessa fase do desenvolvimento das crianças. E elas já fazem esse tipo de exercício, ainda que não haja uma solicitação direta da professora, como quando separam os lápis da turma pelas cores, ou separam os lápis de cor dos gizes de cera. Há inclusive testagens realizadas para analisar quais desses conceitos a criança já assimilou. No início do ano letivo é comum que se faça uma sondagem, aplicando alguns exercícios e analisando as respostas dos alunos a estes testes. Em uma das atividades os alunos ganham fichas, as quais devem organizar conforme seus critérios. Ao fazer esta testagem em março, início do ano, todos os alunos separam as fichas levando em consideração critérios que evidenciam o uso deste objeto no mundo real. Assim, separam as fichas em grupos como os apresentados a seguir:
Esta sequencia foi formada por um dos alunos. Ele juntou primeiro pato-leãopassarinho, depois sapato-chapéu-anel e por fim, pião-bola-avião.
...
Ao questioná-lo sobre quais foram os grupos formados por ele, o aluno me responde: “o primeiro é de bichos, o outro de coisas de usar e o debaixo de brinquedos”. Ao observar as figuras o aluno levou em consideração o uso dos objetos apresentados, suas funções e utilidades. Após um trabalho efetivo de consciência fonológica com essa turma, a professora ao chamar o aluno para nova testagem, mostra o trabalho que ele havia realizado em março e interroga se não há outra forma de separarmos estas imagens. O aluno pensa um pouco, mas parece indeciso. A professora questiona e se pensarmos nos nomes dessas figuras e pensarmos no som que elas têm quando as falamos, será que os grupos ficariam desse jeito. E o aluno resonde logo “não, tem que mudar”. Então o aluno começa a reorganizar as gravuras e separa-as da seguinte forma: Pato – sapato Leão – pião – avião Chapéu – anel Bola Passarinho O aluno diz “bola e passarinho não tem par”. E depois prossegue: “ah, mais um grupo tem três.” “Avião se diz avião ou aviãozinho?” A professora responde “como você preferir”. Então o aluno coloca a gravura do aviãozinho ao lado de passarinho e comenta “acho melhor ele (aviãozinho) ficar com esse (passarinho), para ele (passarinho) não ficar sozinho”. ...
Ao separar as gravuras levando em consideração a sonoridade das palavras, a criança está exercendo uma habilidade diferente daquela utilizada em março, porque ainda que nas duas testagens ela estivesse utilizando-se do processo de
classificação, ao sair da concepção da gravura como o real (testagem um) e utilizar como critério a palavra e seu som (testagem dois), devemos ter consciência de que a abstração é muito maior no segundo caso e esse resultado só será atingido após a realização de um trabalho de consciência fonológica anterior.
...
A primeira vez que a professora chamou Victor para uma testagem de escrita em abril, ele demonstrou nervosismo, até mesmo um certo desconforto com a situação. Começou escrevendo seu nome na parte superior da folha. Victor escreveu seu nome espelhado. Isso acontecia algumas vezes, afinal o terreno das letras era ainda território novo para ele, e aquele amontoado de letras que formavam seu nome não passava de mera convenção. Escrevia-o de memória, não que as letras fizessem sentido ou que compreendesse que elas precisassem obedecer a uma ordem rigorosa. Após, a professora solicitou que Victor escrevesse a palavra “bola” e ele falou “primeiro eu vou desenhar a bola, tá? Mas eu não sei escrever. Eu vou usar qualquer letra tá?”. Victor usou as letras “CORT” para a escrita de bola. Então a professora pediu “agora escreve boneca” e Victor retrucou desolado “eu não sei desenhar boneca nem escrever. Vou usar qualquer letra tá?” E Victor usa as mesmas letras, mas em uma nova sequência “RTOC” e olha a professora com olhos que dizem “é o melhor que sei fazer”!
...
Eis a primeira produção escrita do Victor:
...
Victor sabe que desenhar não é escrever, mas está inseguro. Acredita que a professora não conseguirá ler sua produção e precisará do desenho como referência para se guiar, “desvendando” assim sua escrita. As letras que Victor usa são as letras do seu nome. Nas duas escritas utiliza quatro letras e não as repete. Essas são características do nível pré-silábico. A criança sabe que a escrita é produzida por sinais gráficos (letras), mas ainda não faz vínculo destas com o som. Leva
assim, em consideração, aspectos quantitativos como o número de letras (nunca menos de três), o tamanho do objeto no mundo e a questão da repetição de letras na mesma palavra (as letras não se repetem). Em agosto Victor apresenta mudanças na forma de pensar a escrita. Vejamos:
Victor utiliza agora letras com valor sonoro para escrever as palavras ditadas pela professora. Na maioria delas, Victor utiliza uma letra para cada sílaba, como em TAUA para “tartaruga”, ATO para “macaco” e OI para “boi”, sendo apenas a escrita de pato (ATO) a que foge a essa regra, nela Victor utiliza a letra “A” fazendo correspondência a sílaba “pa” e a sílaba “to” é grafada corretamente, obedecendo a escrita alfabética. Qualquer professor alfabetizador consideraria esse um grande progresso, e ele sem dúvida o é. No entanto, creio que o divisor de águas entre essas duas testagens reside naquilo que não apareceu - os desenhos. O aluno Victor não titubeou ao ser cobrado que escrevesse uma lista de palavras; não falou em momento algum que não sabia escrever ou que usaria quaisquer letras; tão pouco falou que desenharia a tartaruga, o macaco, o pato e o boi. Victor acreditava que a referência da imagem não era mais necessária, não para ele – afinal, o desenho da bola como uma referência nunca foi uma necessidade para o Victor (crianças sempre sabem ler seus escritos); o desenho era uma referência para a professora, para os adultos e Victor não se sentia preparado para escrever a eles. Na segunda testagem isso mudou.
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Victor se autoriza a escrever apenas com letras, ele sente-se capaz e a professora percebe a mudança. O lápis preso por mãozinhas pequenas, mas firmes, traçam agora letras com sentido. Há um motivo para que elas sejam as escolhidas. Em um alfabeto que consta de 26 sinais gráficos, Victor escolhe quatro delas para registrar a palavra tartaruga. Pega o lápis, olha o papel e redigi TAUA e volta a olhar a professora, orgulhoso de seu feito.
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A professora chama agora o aluno Lucas. Ele senta-se timidamente. A professora solicita também que ele escreva “pato”. Ele diz “patu é com ‘a’ e com ‘u’, mas eu não sei quem é o u’”. A professora o orienta, afirmando “coloca a letra que tu pensas que seja” e ele, decidido, responde “mas daí fica errado, cada uma tem um
barulhinho, eu preciso que me mostre qual faz o barulho do U.” O aluno vence a batalha e a professora, veja a contradição, saí feliz derrotada, apontando-lhe a letra no quadro, ela sorri.
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Alguém pergunta “por que escrever? pra quê escrever?” e o interlocutor só consegue pensar “como não escrever?” Há o mundo que se vê, o mundo que se ouve, o que se tateia e aquele que se lê. Sim, o mundo também pode ser lido.
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O TEMPO DAS LETRAS
Esther Pillar Grossi, Doutoura em Psicologia da Inteligência em uma coluna de Zero Hora de 19 de agosto de 2012, abordando a questão do Ideb, afirma que competências não resultam de memorização de conteúdos, mas de construção de esquemas de pensamento que são os motores das aprendizagens. “A conquista de uma competência, metaforicamente, é o que nos alonga a passada e nos permite subir degraus mais altos do que os anteriores. Uma tal conquista é a da alfabetização, entendida como a possibilidade de ler com compreensão um texto escrito por outro e de escrever um texto que alguém medianamente instruído logre compreender. Quando isto ocorre, o aluno adquire a possibilidade de aprender novas coisas, porque está instrumentalizado com mais dispositivo, fruto de uma síntese qualitativa de conhecimentos e não de um acúmulo quantitativo de conteúdos linearmente memorizados.” (GROSSI, Esther Pillar, Zero Hora, agosto de 2012)
Grossi entende a apropriação do processo de leitura e escrita como uma competência. Para ela nosso cérebro só registra e guarda estavelmente esquemas de pensamento. A leitura e a escrita resultam desta construção e, quando se dá este registro, quem aprende passa de um patamar a outro na escalada do conhecimento. Para Esther Pillar Grossi a escalada rumo à aquisição desta competência pode ser representada melhor por escadas do que por rampas, porque aqueles que as sobem, não o fazem sem que haja rupturas. …
Voltando a Deleuze e Guattari, e a concepção do “em-casa” , podemos analisá-la como sendo a construção de um território que vai sendo preenchido à medida que se adquirem vivências. O “em-casa” não preexiste, ele é formado por meio dos componentes, referências e marcas que incorporamos e que funcionam como um círculo que nos entorna. Ao formá-lo, temos como objetivo organizar e delimitar nosso espaço; um espaço tranquilo com a finalidade de nos afastar do caos. Pensamos que o som está dentro deste círculo. Os sons compõem o “emcasa” e, portanto marcam também o nosso território. A criança conhece os sons que povoam seu círculo e faz uso destes para que sua canção a transporte a um mundo equilíbrado. No entanto, não há como manter-se preso a este círculo; ainda que seguro é necessário conectar-se com que há no exterior. É necessário deixar que novos elementos habitem este círculo, ampliando-o. Nem sempre esta abertura àquilo que nos é estranho é fácil. É muito comum que estes novos componentes tragam uma desestruturação, desequilibrando o que antes era de domínio. Então, será preciso acomodar novamente esses elementos diversos que adentraram o círculo e buscar novo ponto de equilíbrio, adicionandoos. Esther Pillar Grossi ao abordar a aquisição da leitura e da escrita como o resultado de um processo de rupturas vai ao encontro da concepção de “em-casa” de Deleuze e Guattari.
A análise implica em pensarmos primeiramente em um
círculo com componentes elementares (os sons), que vai sendo aprimorado à
medida que novos componentes são inseridos neste círculo (vivências com os jogos de consciência fonológica). Estes, por sua vez, desestabilizam o que já havia sido construído, já que se faz necessário uma reorganização dos elementos anteriores frente à chegada dos novos - mais elaborados -, no entanto a alavancada, a subida ao próximo degrau, a expansão do círculo, só será possível com esta distensão do território. Com a ampliação desta superfície e o aparecimento de novos elementos, a criança será capaz de evoluir em suas hipóteses. Para Grossi a criança galga degraus. O conhecimento parte de algo mais simplicado e a medida que a criança adquire um conhecimento mais complexo ela sobe para o próximo degrau, ou seja, vai agregando informações que a auxiliam rumo a escalada. Já Deleuze e Guattari partem de um território criado pela criança, o qual vai sendo ampliado/expandido.
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O caos é revertido. A criança, depois de se desacomodar, encontra novamente a estabilidade. De mãos dadas com outras crianças, canta uma cantiga de roda, reproduzem ritmo e letra. Giram em harmoniosa ciranda, repetindo a sinfonia aprendida. A uniformidade na dança aponta: o que antes era revoada, agora é calmaria.
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Uma menina de três anos vai até a prateleira de livros e pega um livro sem gravuras. Sua mãe apressada lhe diz “filha, os seus são da prateleira de baixo, esse que você pegou não tem desenho” ao que a filha responde “mas eu vou ler só com as letras hoje”.
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Emília Ferreiro em seu livro “Reflexões sobre a alfabetização” toca nesse ponto que considero crucial sempre que adentramos o campo da importância de ler e escrever, ao abordar o quanto as crianças são seres porosos em relação às diversas aprendizagens que vão tendo ao longo de suas vidas e ao tempo em que elas ocorrem ou deveriam ocorrer. “Se pensarmos que a criança aprende só quando é submetida a um ensino sistemático, e que sua ignorância está garantida até que receba tal tipo de ensino, nada poderemos enxergar. Mas se pensarmos que as crianças são seres que ignoram que devem pedir permissão para começar a aprender, talvez comecemos a aceitar que podem saber, embora não tenha sido dada a elas a autorização institucional para tanto.” (FERREIRO, 2001. P.17)
Pensar que crianças só possam participar de práticas que envolvam a consciência fonológica e a apropriação de leitura e escrita no 1° ou 2° ano do ensino fundamental é acreditar que o conhecimento, as aprendizagens são próprias de um ensino formal e institucionalizado. Sabemos que as crianças aprendem em casa, aprendem brincando, aprendem na troca e interação com os outros e com o mundo e o mais relevante, aprendem ainda que não tenham recebido autorização para aprender. Suas vivências são produtoras das mais variadas hipóteses. E estas hipóteses serão utilizadas para solucionar os problemas que irão se interpor ao longo de seu
desenvolvimento. Crianças de quatro e cinco anos tem total
capacidade de brincarem com os sons e, por meio desta brincadeira prazerosa, começar a pensar o processo de escrita.
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A professora propõe aos alunos que participem de um jogo de tabuleiro. A brincadeira consiste em jogar um dado, verificar o número obtido e observar o animal que se encontra na tabela e que possuí o mesmo número alcançado pelo
jogador. Ao verificar o nome do animal, o aluno deveria buscar outra cartela que começasse com o mesmo som inicial do animal do tabuleiro. Por exemplo: um jogador atira o dado e consegue o número quatro. O animalzinho do tabuleiro que corresponde ao quatro é um pavão. O aluno deverá procurar cartelas em torno do tabuleiro que comessem com o mesmo som inicial de “pavão”. Ao propor esta atividade a turma do Pré, obtivemos a seguinte situação...
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O aluno Victor é o primeiro a jogar o dado. Joga-o e o número que cai é o oito. Victor olha o tabuleiro e diz a professora “O oito é o dinossauro”. A professora questiona: “e o que tem nas cartelas com o mesmo som de dinossauro?” Victor pensa por algum tempo. De repente ele complementa: “Eu vou falar o nome das coisas, tá bom?”... e começa “cadeira, folha, tábua, galinha, bacia, dinheiro... DINHEIRO”.
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O aluno Victor da pré-escola obteve sucesso no jogo. Ele conseguiu encontrar uma outra palavra que começava com o mesmo som da palavra “dinossauro”, mas para isso ele precisou ouvir. O aluno precisou repetir as palavras em voz alta para ouvir seu som. E assim poder compará-las. Ao enunciar as palavras das cartelas o aluno ia analisando se o som inicial era compatível ao som da palavra sorteada e, aquelas que não se encaixavam, eram imediatamente eliminadas. Ao enunciar a palavra “dinheiro” o aluno repete-a mais uma vez para ter certeza que o som é o mesmo. E após pega a ficha e a coloca sobre a figura do dinossauro, seguro de sua escolha. O que move sua escolha é somente o som. O som é o elemento que o Victor possui e só o som poderá guiá-lo na alternativa de qual ficha escolher.
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Ao propor o mesmo jogo para uma turma de 1° ano, o resultado é bastante diferente, embora os alunos de pré-escola sejam apenas um ano mais novos do que os alunos do 1° ano (6 anos de idade). O aluno Pedro joga o dado e tira o número quatro. O tabuleiro apresenta a figura de um pavão neste número. O aluno Pedro fala “pavão começa com a letra p”, e então começa a procurar nas demais cartelas alguma que tenha a letra “p” como letra “inicial”. O aluno encontra uma cartela e diz “essa aqui”. A professora questiona: “qual cartela você pegou Pedro?” e o aluno lhe diz “peguei a cartela do palito, porque tem o “p” aqui no início”. O aluno não se deixou guiar pelo som. Ainda que as palavras “pavão” e “palito” tenham a mesma sonoridade inicial, o que moveu a escolha do Pedro foi a letra inicial, ou seja, seu guia foi o sinal gráfico; esse fato poderia fazer com que o aluno cometesse um possível erro, já que ele poderia pegar outras cartelas que estavam dispostas na mesa, como “peixe” ou “pipoca”, que apesar de iniciarem com a letra “p”, não possuem a mesma sonoridade de “pavão”, afinal, sua escolha não obedecia o critério do som e sim o da letra que iniciava a palavra. Desta forma, podemos verificar que quanto menos estruturada for a linguagem escrita e quanto menos elementos uma criança tem sobre a mesma, mais profundo é o seu mergulho nas questões sonoras.
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Uma folha é entregue aos alunos. Após eles cantarem muito a música folclórica “caranguejo não é peixe, caranguejo peixe é, caranguejo só é peixe na enchente da maré” a professora pede a eles que observem os desenhos que estão representados em suas folhas. São eles: um cavalo, uma casa e uma bota. Os alunos devem circular quais desses desenhos apresentam o mesmo som inicial de “caranguejo”. Enquanto os colegas fazem, Jair questiona a professora “bota começa igual caranguejo?”, antes que a professora esboce uma resposta, Jaqueline intervém “claro que não, né. Senão ia ficar ‘cabota’”. O grupo ri.
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A aluna Jaqueline consegue compreender que as palavras são formadas por sílabas e que ao pronunciar a palavra “bota” preciso abrir minha boca duas vezes, o que faz com que a palavra seja formada por duas sílabas, enquanto para pronunciar “caranguejo” é necessário abrir a boca quatro vezes, o que demonstra que a palavra é formada por quatro sílabas Jaqueline não sabe que “bota” é uma palavra dissílaba e que “caranguejo” é uma palavra polissílaba, e estes conceitos para ela são irrelevantes. A aluna sabe apenas que a palavra “caranguejo” é maior do que a palavra “bota”.
No entanto, quando ela pensa no som inicial, apenas consegue
identificar a sílaba “ca” como sendo o som inicial de caranguejo e transpô-la ao início da palavra “bota”. Ela percebe que os sons não se assemelham, mas não consegue transformar a sílaba inicial de uma em objeto substituto da outra. Essa hipótese perdurará por algum tempo. Até o dia que...
... “A professora faz uma roda e as crianças dispostas nesta rodinha estão conversando sobre as palavras, seus sons, analisando o que é uma rima. Ao falar das rimas que estudaram ao formar o poema da Cidade de Clarinha, as crianças lembram que muitas palavras rimavam. Uma das colegas cita as palavras mesinha e casinha. É quando a professora os interroga “será que estas duas palavras se escrevem da mesma forma, de forma parecida ou de forma diferente?” Em coro muitas respostas. Alguns pensam que as palavras devem ser escritas da mesma forma e alguns acreditam que são escritas de forma parecida. É quando a aluna Jaqueline pede a palavra e diz: “não são iguais... casinha começa com “Ca” e mesinha começa com o som do “M”.” ...
A aluna não fez mais a transposição da sílaba inicial de uma para o início da outra palavra, formando algo como “camesinha” ou “mecasinha”. Ao contrário, pensou no início de ambas as palavras e viu que a diferença da escrita delas residia exatamente ali. ...
Quando a professora perguntou sobre como ficava o resto da palavra Jaqueline retrucou “não sei como se escreve, mas sei que são iguais. Parece que tem barulho de Z”. ...
Sopa, sol, soar, sofá, sócio, somar, sonso, sótão, sobrar, sofrer, solene, sólido, soltar, soneca, sonhar, soprar, solário, solitário, solução, soluçar, soberano, sonífero, sobremesa, sobrenome, soletrar, songamonga, solucionar, sonoplasta, soterrar, sorvete, sobrancelha, só? ...
Nas próximas semanas, ao fazer um sorteio dos alunos que iriam apresentar uma peça de teatro de fantoches para os demais colegas, a mesma aluna se pronuncia quando a professora sorteia o colega Jair para começar a apresentação: “Puxa, pensei que fosse eu quando a profe disse JA-IR, porque começa igual meu nome. O “Ja” de Jaqueline é igualzinho o do Jair.”
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Cabe ressaltar que a consciência fonológica não é um método de alfabetização. Acredita-se que a consciência fonológica atua como facilitador para o aprendizado da leitura e da escrita, ao passo que esse aprendizado desenvolve e aprimora as habilidades metafonológicas.
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Duas alunas criam com os blocos de construção. Montam. Desmontam. Formam pilhas, para depois destruí-las. É a hora do brinquedo e há apenas três alunos em sala de aula. Lá fora, chove muito. Enquanto o menino brinca com carrinhos, Thamara e Jaqueline seguem absortas em seu trabalho com os blocos. De repente vão até a mesa da professora, que fazia algumas anotações e a chamam: “profe, vamos ver se você advinha o que construímos?” No meio da mesa redonda muitas casas, enfileiradas. A professora olha e responde rápido “casas”. As
meninas respondem negativamente. A professora tenta mais uma vez “castelo” e elas respondem novamente que não. Então elas se afastam, cochicham uma no ouvidinho da outra e voltam: “profe, nós vamos te dar uma pista”... “Começa com ‘s’”. A professora pensa, mas não consegue associar casas a nenhuma palavra que comece com esta letra. Então depois de algum tempo a professora fala: “está muito difícil” e Thamara retruca “mas, agora ficou mais fácil, afinal nós demos uma dica”... passado mais alguns segundos Jaqueline fala: “Profe, é uma cidade”... A professora sorri e lhes responde “uma cidade, como eu não pensei nisso”.
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Pereira (2004) também faz referência aos níveis de consciência fonológica, observando que as habilidades que representam a consciência fonológica das crianças se encontram em um contínuo de complexidade. Na ponta de menor complexidade desse contínuo, estão atividades como as rimas e a segmentação de sentenças. No centro desse contínuo, estão as atividades relacionadas à segmentação de palavras em sílabas. Posteriormente, as atividades como segmentar as palavras em rimas e aliterações. E, finalmente, o mais sofisticado nível de consciência fonológica: a consciência fonêmica, que se refere à compreensão de que as palavras são constituídas de sons individuais ou fonemas e à habilidade de manipular esses segmentos. O nível de consciência fonológica utilizado pelas alunas Thamara e Jaqueline fazem parte desse último grupo, pois ambas identificaram o som do fonema inicial da palavra “cidade” (ainda que elas tenham dito que o som era o de “s”), afinal a letra “c” na palavra cidade, realmente apresenta esse som. O objetivo da consciência fonológica é sempre o de pensar a questão da sonoridade, portanto, casos como este, em que uma mesma letra pode apresentar mais de um som, não são analisadas como erro e sim como uma hipótese sonora. Ao jogar um jogo de tabuleiro em que a professora sorteia uma palavra e a criança deve marcar em sua ficha uma outra que comece com a mesma sílaba sorteada (aliteração), ao sortear a palavra “xale”, alunos que possuem cartelas com as gravuras “chaleira”, “chapéu”, “chave” podem/devem assinalar estas palavras, pois como foi citado no parágrafo acima o que importa, em exercícios deste modelo, é a percepção sonora, não sendo relevante a escrita ortográfica.
Na escala de complexidade da consciência fonológica, o nível fonêmico parece ser o que traz maiores dificuldades para a criança. Conforme afirma Freitas (2004), essa parece ser uma tarefa que exige um alto nível de consciência fonológica, pois a criança está lidando com unidades abstratas. O fato de a fala ser um contínuo sonoro dificulta a percepção dos fonemas individualmente. Isso somente comprova que as duas alunas estão no nível mais alto da consciência fonológica, pois conseguem identificar o som inicial, pensando no fonema e não mais na sílaba. Jaqueline e Thamara identificavam também o som o inicial ao preencher o quadro do calendário, afixando os dias da semana, os meses e as estações corretamente.
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As crianças amam os sons. Amam as rimas. Amam os poemas. Palavras curtas, sonoras, que contam histórias. Atentos, eles sentam em círculo para ouvir poesia, viajar pelas letras e transportar-se ao mundo do imaginário. Sabe o que é o melhor da poesia? Tudo vale, tudo pode, tudo é permitido. As lógicas não moram dentro dos poemas.
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A MOCHILA DE MARIELA
A mochila de Mariela é uma mochila amarela. Que é que ela guarda nela? Guarda álbum de figurinhas guarda um colar de conchinhas um chaveiro, uma fivela, dois cadernos, três canetas, tinta verde, tinta preta e um estojo de aquarela. Ainda tem mais, Mariela, nessa mochila amarela? Tem boneca de flanela, um diário e um bilhete de Isabela. Um chocolate em tablete, dois chicletes e um pão com mortadela. Um dia, me dá carona, Mariela, nessa mochila amarela?
Glaucia Lemos, do livro O cão azul e outros poemas. São Paulo: Formato, 2004. Depois de trabalharmos com o poema “A mochila de Mariela”, os alunos deveriam pensar nos nomes de seus colegas e buscar algo que rimasse com estes nomes para construirmos um poema da turma. Eles ficaram livres para pensar em qualquer palavra desde que a sonoridade final fosse mantida. Como resultado um texto sonoro, criativo e engraçado.
As riminhas da turminha
Na mochila da Thamara, tem uma arara. A mochila da Mariana, Tem uma banana. Na mochila da Sara, Tem uma cara. A mochila da Sofia, Tem uma tia. A mochila do José, Tem chulé. A mochila da Gabriela, Tem uma panela. A mochila do Felipe, Tem um jipe. A mochila do Luca usa peruca. A mochila da Cris Tem um giz, um bis, um nariz, Uma atriz bem feliz.
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Trabalhar com o som das palavras é um passo importante na tomada de consciência das crianças de que som e escrita estão intimamente ligados. As crianças que são inseridas em um ambiente de letramento onde as rimas, a poesia, a sonoridade são privilegiadas, certamente trilharão um caminho mais suave rumo ao processo de aquisição da leitura e da escrita, pois, o que se pretende ao utilizar os jogos de consciência fonológica em sala de aula é a inserção de perguntas que levem os alunos a refletirem e buscarem as respostas por si só.
CONCLUSÃO
Pode-se concluir que as questões abordadas por Deleuze e Guattari sobre o ritornelo podem associar-se a muitas situações. Ao relacioná-las com o processo de aquisição da leitura e escrita por meio de um trabalho de consciência fonêmica, podemos utilizar a mesma tríade dos autores de Mil Plâtos. Onde 1) procura de um território seguro para conseguir lidar com o caos; 2) filtrar o caos e habitar este território (desterritorializar) 3) reterritorializar. O trabalho com a consciência fonológica propõe que sigamos, de certo modo, os passos a seguir estruturados: Em um primeiro momento cria-se o território, formado pelos elementos que vão tornando-se de domínio à medida que me aproprio deles e faço com que estes componham o círculo que me entorna (os sons). No segundo momento, novas informações são filtradas, pensadas, refletidas, promovendo deste modo uma desterritorialização dos elementos que já estavam acomodados (trabalho efetivo de consciência fonológica a partir de jogos elaborados para desenvolver esta habilidade). E finalmente, no terceiro momento, após essa inserção dos jogos, a elaboração de novas hipóteses tem o caráter de reterritorializar, expandindo o território e ampliando os elementos que o compunham. Pensar no processo de tomada de consciência da linguagem escrita com o uso da consciência fonêmica é pensar, um pouco, em um grande ritornelo. O ritornelo como repetição periódica de um determinado código. Essa repetição tende a constituir territórios que demarcam registros, e como já afirmado anteriormente, não se pode pensar nestes como espaços físicos, mas sim como um ambiente deflagrador de uma série de códigos, repetidos, ressoados. Sendo assim e partindo de uma concepção de criança como ser pleno de capacidade, sujeito de sua aprendizagem e capaz de criar suas próprias hipóteses, reformulando-as quando da percepção de que as antigas não são mais razoáveis, a interrogação que soa pertinente é a seguinte: oferece-se meios para que ela possa abrir seu círculo, lançando-se ao caos, para conjecturar e principalmente, pensar os sons e, mais adiante, o processo de leitura e escrita por si mesma, ou deixo-a à margem daquilo que já lhe é de domínio. Deleuze também já se questionava em seu Abecedário de Gilles Deleuze (1997) sobre essa questão da ampliação de seu círculo: “Volto para o meu território,
que eu conheço, ou então, me desterritorializo, ou seja, parto, saio do meu território?” Pensar que podemos expandir o território das crianças, lançando-as ao caos, mas sabedores de que obterão êxito ao buscar suas respostas é o que move o trabalho de consciência fonológica. Não creio que haja forma mais prazerosa de aprender (qualquer coisa, ainda que nesta pesquisa a ênfase seja a escrita) do que hipotetizar por si próprio. Colocar os instrumentos em suas mãos e deixá-las que construam o caminho que irão trilhar até o fim, é fazer com que a relação com a escrita seja mais do que um simples decodificar, mas envolva aprendizado, relação de pertença e de prazer. ... “Pode acontecer que a criança salte ao mesmo tempo que canta, ela acelera ou diminui seu passo; mas a própria canção já é um salto: a canção salta do caos a um começo de ordem no caos, ela arrisca também deslocar-se a cada instante. Há sempre uma sonoridade no fio de Ariadne. Ou o canto de Orfeu...”
(DELEUZE e GUATTARI, Mil Plâtos, 2005, p.116)
Nota final
Sobre o Ciclo da alfabetização:
O Ciclo da Alfabetização nos anos iniciais do Ensino Fundamental é um tempo sequencial de três anos (seiscentos dias letivos), sem interrupções, dedicados à inserção da criança na cultura escolar, à aprendizagem da leitura e da escrita, à ampliação das capacidades de produção e compreensão de textos orais em situações familiares e não familiares e à ampliação do universo de referências culturais dos alunos nas diferentes áreas do conhecimento.
Retirado do site: http://pacto.mec.gov.br/esclarecimentos.html
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix, Mil Plâtos, Capitalismo e Esquizofrenia. Volume 4. Rio de Janeiro: Editora 34, 2005. CIELO, C. A. Habilidades em consciência fonológica em crianças de 4 a 8 anos. Tese (Doutorado em Lingüística Aplicada) – Faculdade de Letras, PUCRS, Porto Alegre, 2000. GUEDES, Mariana Chaves Ruiz e GOMES, Christna Abreu, Consciência fonológica em períodos pré e pós-alfabetização. Cadernos de Letras da UFF, 2010. FERREIRO, Emília. Reflexões sobre a alfabetização. 24 ed. São Paulo: Cortez, 2001. Byrne B. Treinamento da consciência fonêmica em crianças pré-escolares: por que fazê-lo e qual seu efeito? In: Cardoso-Martins C, organizador. Consciência fonológica e alfabetização. Petrópolis: Vozes; 1996. GILLON, G.T. (2004). Phonological awareness: from research to practice. New York: Guilford Press. SILVA, A. C. (2003). Até à descoberta do princípio alfabético. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. FREITAS, G. C. M. Consciência fonológica e aquisição da escrita: um estudo longitudinal. Tese (Doutorado em Lingüística Aplicada) - Faculdade de Letras, PUCRS, Porto Alegre, 2004 SCLIAR CABRAL, L. Princípios do sistema alfabético do português do Brasil, versão expandida. In: Congresso da Associação Brasileira de Linguística, ABRALIN, 1999. VARELLA, Noely K. Leitura & escrita: temas para reflexão. Porto Alegre: Premier Editora, 2004. Marilyn Jager Adams & cols. Consciência Fonológica em Crianças Pequenas. Porto Alegre: Artmed, 2006.
REFERÊNCIAS BIOGRÁFICAS