VIRGINIAWOOLF O pensamento sobre tudo o que a vida poderia ter sido caso uma pessoa tivesse nascido com outra forma a faz ver suas atividades comuns com uma espécie de piedade. AMORTEDAMARIPOSA TRADUÇÃOPAULORAVIERE
∞∞∞ Virginia
Woolf
(1882-1941)
nasceu
em
Londres. Ao lado do marido Leonard Woolf, foi uma das figuras centrais do grupo Bloomsbury, que entre outros intelectuais, tinha John Maynard Keynes e E. M. Forster. Escreveu inúmeros romances e ensaios, entre eles Orlando (1928), Mrs. Dalloway (1925), Ao Farol (1927) e O Leitor Comum (1925). Em 1941,
Woolf
se
suicidou
em
Sussex,
Inglaterra, ao entrar num rio com um casaco cheio de pedras. ∞∞∞
MARIPOSAS que voam de dia não deveriam ser chamadas de mariposas; elas não estimulam aquela agradável sensação das escuras noites de outono e da floração de hera, que uma ordinária mariposa da asa amarela adormecida sob a sombra da cortina nunca falha em nos despertar. Elas são criaturas
híbridas,
nem
alegres
como
as
borboletas, nem sombrias como as de sua própria espécie. Todavia, o espécime presente, com suas finas asas cor de palha, franjado com uma borla da mesma cor, parece estar contente com a vida. Era uma manhã agradável, em meados de setembro, suave, benigna, e com uma atmosfera mais viva que a dos meses de verão. O arado já estava riscando o campo do outro lado da janela, e onde havia ação a terra estava aplainada e brilhava com {3}
o orvalho. Esta vitalidade veio deslizando dos campos e do declive além dela e foi difícil manter os olhos virados unicamente para o livro. As gralhas também estavam dando uma de suas festas anuais; pairando ao redor dos cumes das árvores até que parecesse que uma grande rede com milhares de nós pretos fora jogada no ar e, pouco depois, tivesse afundado vagarosamente em direção às árvores, até que no final cada galho parecia ter um nó. Assim, de repente, a rede seria lançada ao ar mais uma vez, desta vez em um círculo mais largo, com o máximo de clamor e vociferação, como se fosse uma experiência tremendamente excitante ser lançado pra cima e descer vagarosamente para os cumes das árvores. A mesma energia que inspirou as gralhas, os lavradores, os cavalos, e até, parece, os estreitos declives de superfície nua, fazia a mariposa rodopiar de um lado para o outro dos limites do vidro da janela. Não era possível deixar de observá- la. Qualquer um sentiria, na verdade, um estranho sentimento de piedade por ela. Naquela manhã as possibilidades de prazer {4}
pareciam tão enormes e variadas que ter apenas uma parte da vida de uma mariposa, e nela um dia de mariposa parecia um destino difícil, e seu entusiasmo
em
aproveitar
suas
magras
oportunidades ao máximo, patético. Ela voou vigorosamente para um canto de seu compartimento e depois de ficar lá por um segundo o atravessou para o outro. O que restava para ela além de voar para o terceiro canto e depois para o quarto? Era tudo o que podia fazer, apesar do tamanho do declive, da amplitude do céu, da distante fumaça das casas, e da romântica voz, vez ou outra, de um navio a vapor no mar. Ela fez o que podia. Observando-a, parecia que uma fibra finíssima, mas pura, da enorme energia do mundo foi introduzida em seu corpo frágil e diminuto. Como sempre que ela atravessava a janela, eu imaginava que se tornava visível um filamento de luz vital. Ela não era nada mais que a vida. Ainda assim, porque ela era tão pequena e uma forma de energia tão simples que estava deslizando na janela aberta e passeando por tantos {5}
corredores estreitos e intricados em meu próprio cérebro e naqueles de outros seres humanos, havia nela algo de patético e de maravilhoso. Era como se alguém houvesse apanhado uma minúscula pérola de pura vida e a enfeitado com plumas e penas, com o máximo de leveza, fazendo-a dançar e ziguezaguear para nos mostrar a verdadeira natureza da vida. Assim apresentada ninguém poderia superar sua estranheza. É possível esquecer tudo sobre a vida, vendo-a arqueada e falha e enfeitada e distraída de modo que ela tem que se mover com grande circunspecção e dignidade. Mais uma vez, o pensamento sobre tudo o que a vida poderia ter sido caso uma pessoa tivesse nascido com outra forma a faz ver suas atividades comuns com uma espécie de piedade. Mais tarde, aparentemente cansada de sua dança, ela pousou diante do sol na saliência da janela e, com o fim do estranho espetáculo, a esqueci. Em seguida, olhando para cima, minha visão se surpreendeu com ela. Ela estava tentando continuar sua dança, mas parecia tão rígida e esquisita que só podia voar até fundo do vidro da {6}
janela; e quando ela tentava atravessá- la, falhava. Com minha atenção voltada a outros assuntos, por um tempo observei sem pensar a estas fúteis tentativas, esperando inconscientemente que ela continuasse seu
voo como
alguém espera
funcionar de novo uma máquina que parou momentaneamente, sem refletir sobre o motivo de sua falha. Após talvez a sétima tentativa ela escorregou da saliência de madeira e caiu de costas, batendo as asas, sobre peitoril da janela. O desamparo de sua atitude me aturdiu. Ocorreu- me que ela tinha problemas; não podia mais levantar; suas pernas lutavam em vão. Mas, enquanto estendia um lápis, tentando fazê- la se endireitar, me dei conta que a falência e a estranheza eram a aproximação da morte. Guardei o lápis de novo. As pernas se agitaram mais uma vez. Olhei como que à procura do inimigo que ela enfrentava. Olhei pelas portas. O que havia acontecido ali? Presumivelmente era meio-dia, e o trabalho nos campos estava parado. A quietude e o silêncio substituíam a animação anterior. Os pássaros haviam saído para se alimentar no riacho. {7}
Os cavalos estavam parados. Mas a energia estava lá fora do mesmo jeito, unida, indiferente, impessoal, sem esperar nada em particular. De alguma maneira era hostil com a pequena mariposa cor de palha. Era inútil tentar qualquer coisa. Só era possível assistir aos esforços daquelas pernas pequeninas contra uma sentença iminente que poderia, se quisesse, afundar uma cidade inteira, não apenas uma cidade, mas multidões de seres humanos; nada, eu sabia, tinha qualquer chance contra a morte. Mesmo assim, depois de uma pausa de exaustão, as pernas bateram novamente. Este último protesto foi soberbo, e tão frenético que ela finalmente conseguiu
se
endireitar.
Minha
torcida,
evidentemente, estava do lado da vida. Além disso, quando ninguém sabia ou se importava, este gigantesco esforço da parte da pequena e insignificante mariposa contra um poder de tamanha magnitude, para reter o que ninguém mais valorizava ou desejava manter, foi causa de uma estranha comoção. Mais uma vez, de alguma maneira, a vida foi observada, uma pérola pura. {8}
Levantei o lápis outra vez, apesar de saber que era inútil. Mas mesmo fazendo isso, os inconfundíveis símbolos da morte se mostraram. O corpo relaxou e endureceu instantaneamente. A luta havia acabado. A criatura pequena e insignificante agora sabia o que era a morte. Enquanto observava a mariposa morta, este minúsculo triunfo marginal de força tão grandiosa diante de um antagonista tão cruel me preencheu com admiração. Logo quando a vida era tão estranha alguns minutos antes, agora a morte era também estranha. Uma mariposa
que
se
endireitou
agora
jaz
decentemente e resignadamente composta. Sim, ela parecia dizer, a morte é mais forte que eu.
{9}
∞∞∞ Paulo Raviere nasceu em 1986, na Bahia. Trabalhou
como
professor,
intérprete,
escritor e tradutor. Em sua dissertação de mestrado
organizou
uma
antologia
de
ensaístas clássicos ingleses, em que traduziu e comentou os onze ensaios selecionados. ∞∞∞ pauloraviere@hotmail.com ∞∞∞ raviere.wordpress.com ∞∞∞ issuu.com/pauloravierebarretodourado ∞∞∞
{10}