Sobre a Batida no Portão em Macbeth - Thomas De Quincey

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THOMAS DE QUINCEY

SOBRE

A BATIDA NO PORTÃO EM MACBETH

___________________ A mera consciência, apesar de útil e indispensável, é a mais cruel das faculdades da mente humana. ____________________

TRADUÇÃO PAULO RAVIERE BARRETO DOURADO


______________________ Thomas de Quincey (1785-1859) nasceu em Manchester, na Inglaterra. Estudante precoce, estudou em Oxford e se destacou em idiomas clássicos e filosofia. Seu vício em ópio inspirou sua obra mais famosa, as Confissões de um Comedor de Ópio (1821). No Brasil também foram publicados os livros Do Assassinato com uma das Belas Artes (1827) e Os Últimos Dias de Immanuel Kant (1827). ______________________


NOS MEUS DIAS de juventude sempre senti uma grande perplexidade com um ponto de Macbeth. Era este: a batida no portão, que sucede o assassinato de Duncan, produzia em meus sentimentos um efeito que eu nunca pude explicar. O efeito era um horror peculiar e um fundo de solenidade que eram reflexos do assassinato; porém, por mais obstinados que fossem meus esforços com minha

consciência

para

compreendê-lo,

durante muitos anos nunca pude ver por que tal efeito era produzido. Aqui

dou

uma

pausa

por

um

momento, para estimular o leitor a nunca {3}


prestar atenção à consciência quando ela ficar em oposição a qualquer outra faculdade de sua mente. A mera consciência, apesar de útil e indispensável, é a mais cruel das faculdades da mente humana, e a mais desconfiável; ainda assim, a grande maioria das pessoas não confia em mais nada, o que pode servir para a vida comum, mas não para fins filosóficos. De dez mil exemplos que eu possa criar, citarei um. Peça a qualquer pessoa, que não esteja previamente preparada para o pedido

através

do

conhecimento

da

perspectiva, para desenhar de modo muito tosco a imagem mais comum que dependa das leis desta ciência; por exemplo, a representar o efeito de duas paredes que formam ângulos retos entre si, ou a aparência das casas de cada lado de uma rua, como vista por uma pessoa que observa a mesma de uma de suas extremidades. Em todos os casos, a não ser que a pessoa por acaso já {4}


tenha analisado como os artistas produzem estes efeitos em seus quadros, ela vai ser completamente incapaz de criar a menor das aproximações. E por quê? Porque ela na verdade viu estes efeitos em todos os dias de sua vida. A razão é que ela deixa a consciência governar os seus olhos. A sua consciência,

em

que

não

nenhum

conhecimento intuitivo das leis da visão, não pode lhe fornecer nenhum motivo para que uma linha que é conhecida e provada como horizontal não deva ser mostrada como ela de fato é; uma linha que criou qualquer ângulo menor que o reto com a perpendicular deve lhe parecer indicar que suas casas estavam todas desabando. Portanto, ele desenha a fila de

casas

numa

linha

horizontal

e

evidentemente falha em produzir o efeito pedido. Este é somente um exemplo de muitos, em que não apenas a consciência se sobrepõe aos olhos, mas em que a consciência {5}


é positivamente estimulada a suprimir os olhos como se ela fosse os próprios, porque não apenas o homem acredita nas evidências de seu entendimento em oposição àquela de seus olhos, mas (o que é monstruoso!) o idiota não se dá conta de que seus olhos sempre deram sua evidência. Ele não sabe que viu (logo, o que sua consciência não viu) aquilo o que viu durante todos os dias de sua vida. Para retornar desta digressão, minha consciência não poderia fornecer nenhuma razão para que a batida no portão em Macbeth produzisse qualquer efeito, direto ou por reflexão. Na verdade, minha consciência dizia que ela não poderia produzir efeito algum. Mas eu sabia mais; eu sentia que ela podia; e esperei e estive preso ao problema até que a sabedoria posterior me permitisse resolvê-lo. Enfim, em 1812, o Sr. Williams teve sua estreia nos palcos da Ratcliffe {6}


Highway1 , e executou estes assassinatos sem paralelos, que lhe deram uma reputação brilhante e imortal. Sobre tais assassinatos, por sinal, devo observar que a respeito de um ponto tiveram um efeito doentio: deixou muito melindroso o gosto do conhecedor de assassinatos, descontentando-o com tudo o que desde então tem sido feito neste sentido. Todos os outros assassinatos parecem pálidos diante de seu profundo carmesim; e, como um amador uma vez me disse em tom lamuriento: “Não se fez absolutamente nada desde sua época, ou nada que valha a pena mencionar”. Mas isso é um erro; porque é irracional esperar que todos os homens sejam grandes artistas, e nascidos com o gênio do Sr. Williams. Por agora será lembrado que no primeiro destes assassinatos (o dos Marr)

Em dezembro de 1811, duas famílias fora m assassinadas brutalmente, sem motivo específico. O principal acusado, John Williams, se suicidou antes de ter sido levado a julga mento (N. do T.) 1

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ocorreu na verdade o mesmo incidente (uma batida na porta assim que terminado o trabalho de extermínio) que foi inventado pelo gênio de Shakespeare; todos os bons juízes e os mais eminentes interessados entenderam a felicidade da sugestão de Shakespeare logo que ela foi percebida. Aqui então estava uma nova prova de que eu estava

certo

sentimentos

em em

dar

crédito

oposição

a à

meus minha

consciência; então mais uma vez me dediquei a estudar o problema; enfim o resolvi para minha própria satisfação. Eis minha solução: o assassinato em casos ordinários, em que a simpatia está totalmente dirigida à pessoa assassinada, é um incidente de terror vulgar e grosseiro; e por esta razão ele dirige o interesse exclusivamente ao instinto ignóbil, porém natural, que nos apega à vida; um instinto que, como sendo indispensável à primária lei da própria preservação, é da {8}


mesma espécie (mas em graus diferentes) entre todas as criaturas vivas; logo, este instinto, porque aniquila todas as distinções, e rebaixa os maiores dos homens ao nível dos “pobres insetos que

pisamos”, exibe

a

natureza humana em sua atitude mais abjeta e humilhante. Tal atitude pouco encaixa com as propostas do poeta. Então o que ele deve fazer? Deve jogar o interesse sobre o assassino. Nossa simpatia precisa ficar com ele; (obviamente me refiro à simpatia da compreensão, a simpatia pela qual nós entramos em seus sentimentos e nos faz entendê-los, - não a simpatia2 da pena ou da Parece bem ridículo defender e explicar meu uso de uma palavra numa situação em que ela já estaria naturalmente explicada. Mas foi necessário fazê-lo, devido ao uso vulgar da palavra simpatia, tão generalizada no momento, que em vez de tomada em seu sentido apropriado, como o ato de reproduzir em nossas mentes os sentimentos do outro, seja ódio, indignação, amor, pena ou aprovação, ela se tornou um simples sinônimo de pena; e assim, ao invés de dizer “simpatia com o próximo”, muitos escritores adotam o monstruoso barbarismo de “simpatia pelo próximo” (N. do A.) 2

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aprovação). Na pessoa assassinada cada conflito de pensamento, cada torrente e vazante da paixão e da intenção, são pulverizados pelo pânico esmagador; o medo da morte instantânea o castiga “com sua clava petrificada”. Mas no assassino, um assassino como só um poeta se dignaria a ser, é preciso rugir alguma grande tempestade passional, – ciúmes, ambição, vingança, ódio, – que

criará um inferno

dentro

dele;

observaremos este inferno. Em Macbeth, para satisfazer à sua enorme e abundante capacidade de criação, Shakespeare apresentou dois assassinos: e, como é comum em suas mãos, eles são notavelmente

distintos. Mas, apesar do

conflito mental de Macbeth ser maior que o de sua esposa, seu espírito de tigre não está completamente desperto, e seus sentimentos são adquiridos principalmente pelo contágio com ela, – assim, como os dois estão {10}


envolvidos com a culpa do assassinato, devese inevitavelmente presumir que ambos tenham uma mentalidade assassina. Isto deveria estar expresso; para sua própria explicação, assim como para criar um antagonista mais proporcional à natureza inofensiva

de

Duncan”,

e

sua

vítima,

o

adequadamente

“gracioso expor

“a

profunda danação de sua morte”, isto deveria estar

expresso

com

energia

especial.

Deveríamos ser induzidos a pensar que a natureza humana, – ou seja, a natureza divina do amor e do perdão, espalhada pelos corações de todas as criaturas, e raramente afastados do homem por completo, – estava desaparecida, dissipada, extinta; e que a natureza demoníaca tomara seu lugar. E, assim como este efeito é maravilhosamente alcançado nos próprios diálogos e solilóquios, ele finalmente se completa pelo recurso que

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estamos discutindo; e é a isto que agora solicito a atenção do leitor. Se o leitor já testemunhou um desmaio de uma esposa, uma filha ou uma irmã, ele possivelmente teve a chance de ter observado que o momento mais comovente de tal espetáculo é aquele em que um suspiro e um movimento anunciam o recomeço da vida suspensa. Ou se o leitor já esteve presente numa grande metrópole no dia em que algum

importante

ídolo

nacional

foi

carregado até seu túmulo com pompas funerárias e, tentando andar próximo ao curso por onde ele passava, sentiu de modo poderoso, no silêncio e abandono das ruas e na estagnação do comércio comum, um interesse profundo no que naquele momento era causado pelo coração de um homem, – se de uma vez por todas ele escutar a quietude mortífera quebrada pelo som de rodas se distanciando da cena, fazendo-lhe perceber {12}


que a transitória visão foi dissolvida, ele vai perceber que em momento algum a pausa de suas preocupações humanas ordinárias e seu senso de completa suspensão foram tão inteiros e comoventes como naquela hora em que a suspensão acaba e os acontecimentos da vida normal subitamente recomeçam. Toda ação em qualquer direção é melhor exposta, medida e compreendida através da reação. Agora apliquemos tudo isto ao caso de Macbeth. Aqui, como disse, deveria ser expresso

e

tornado

perceptível

o

recolhimento do coração humano e a entrada do coração diabólico. Outro mundo começou; e os assassinos são retirados da região das coisas humanas, das intenções humanas, dos desejos humanos. Eles são transfigurados: Lady Macbeth fica “assexuada”; Macbeth se esqueceu de que nasceu duma mulher; ambos estão conformados com a imagem de {13}


demônios; e o mundo dos demônios é subitamente revelado. Mas como isto pode ser transmitido e se tornar palpável? Para que um novo mundo possa começar, este mundo precisa desaparecer por um tempo. Os assassinos, e o assassinato, precisam ficar ilhados – separados por um imensurável abismo da maré do ordinário e da sucessão dos afazeres humanos – trancado e isolado em algum recesso profundo; devemos nos sensibilizar para o fato de que o mundo da vida

ordinária

foi

detido

subitamente:

dormindo deitado – em transe – torturado num armistício soturno: o tempo precisa ser aniquilado; a relação com as coisas externas, abolida;

tudo

precisa passar

por

uma

profunda síncope e suspensão da paixão terrena. Assim, quando o ato é executado, quando o trabalho das trevas está perfeito, finalmente o mundo das trevas poderá ir embora como o fausto nas nuvens: a batida {14}


no portão é ouvida; e torna possível perceber audivelmente que a reação começou: o ser humano reflui sobre o diabólico; os pulsos da vida estão começando a bater novamente; e o reestabelecimento dos acontecimentos do mundo em que vivemos é o que primeiro nos sensibiliza

profundamente

pelo

terrível

parêntesis que os deteve. Ó, grande poeta! Vossos trabalhos não são como os de outros homens, mera e simplesmente grandes obras de arte; mas são também como os fenômenos da natureza, como o sol e o mar, as estrelas e as flores, – como o gelo e a neve, a chuva e o orvalho, o granizo e o trovão, que devem ser estudados com a inteira submissão de nossas próprias faculdades, e com a perfeita confiança de que neles não pode existir excesso ou falta, nada inútil ou inerte – e de que, quanto mais avançamos em nossas descobertas, mais podemos enxergar as provas do desígnio e da {15}


combinação autocorroborante em que o olho descuidado não viu nada além de um acaso!

{16}


______________________ Paulo Raviere nasceu em 1986. Trabalhou como

professor,

intérprete,

escritor

e

tradutor. Em sua dissertação de mestrado organizou clássicos

uma ingleses,

antologia em

que

de

ensaístas

traduziu

comentou os onze ensaios selecionados. ______________________ ______________________ pauloraviere@hotmail.com ______________________ raviere.wordpress.com ______________________

{17}

e


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