KARELČAPEK
DOISENSAIOS BOAVONTADE ELOGIOAOS DESASTRADOS É INTELECTUALMENTE DESONESTO CLASSIFICAR VERDADES E OPINIÕES DE ACORDO COM QUEM AS ARTICULA
TRADUÇÃOPAULORAVIERE {1}
∞∞∞ Karel Čapek (1890-1938) nasceu em Malé Svatoňovice, na região da Boêmia (atualmente República Tcheca), e além de ter inventado a palavra "robô", também foi um notório antifascista durante a década de 30. De sua obra, no Brasil foram publicados a peça R.U.R, ou A Fábrica de Robôs (1920), o romance distópico A Guerra das Salamandras (1936), e o volume de contos Histórias Apócrifas (1932). Os ensaios aqui presentes foram traduzidos do inglês, a partir da antologia Toward the Radical Center: A Karel Čapek Reader (1990). ∞∞∞
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BOA VONTADE
BOA VONTADE intelectual não é meramente tolerância ou complacência branda. É um esforço
ativo
para
compreender
outras
pessoas. Se escutamos debates sobre cultura, conflitos de opinião e choques de pontos de vista, geralmente saímos com a desconfortável sensação de que as pessoas se esforçam para não concordar. É como se todos estivessem gritando entre si em idiomas diferentes e então cada um saísse com a presunçosa sensação de ter dado uma grande lição no outro. Se fosse um jogo, diríamos que se trata de um esporte estranho. Mas esses debates podem ser sérios, pois dividem as pessoas em {3}
campos diferentes. Se você não é capaz de convencer
pessoas
com
palavras
e
argumentos, então talvez precise recorrer a unhas e dentes. Ainda assim, num debate sobre a verdade a questão não deveria ser quem vence, mas o que vence. O tema do debate se perde quando as pessoas conversam com mal-entendidos ou alguém se esforça para não prestar atenção no que o outro quer dizer. Mesmo o conflito mais apaixonado e com as visões mais sofisticadas é uma farsa sem propósito se ela não passa de uma esgrima verbal contra opiniões espúrias. E isso não apenas é uma perda de tempo; é um pecado mortal contra o espírito, uma vez que o dever do intelecto é exatamente compreender bem. O dever do intelecto é organizar um reino de raciocínios,
uma
autenticidade
do
pensamento, uma soberania da verdade pesquisada e estudada.
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Também poderíamos afirmar que a boa vontade
intelectual
é
simplesmente
a
honestidade intelectual. É intelectualmente desonesto não compreender, não desejar compreender. É intelectualmente desonesto classificar verdades e opiniões de acordo com quem as articula. Não desejamos escutar efusões espirituais a não ser que elas provenham de nosso campo. Desejamos não saber.
Acreditamos
que
tampar
nossos
próprios ouvidos silenciará as outras pessoas. Há outro nome para isso: covardia intelectual. Assim, que o conceito de “boa vontade” seja o suficiente, pois a boa vontade que não for corajosa ou honesta não é nem boa, nem vontade. E na encruzilhada onde agora nos encontramos, entre o governo pela força e o governo pelo entendimento, que se destaque, em primeiro lugar, a boa vontade. ∞∞∞
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ELOGIO AOS DESASTRADOS
ALGUMAS PESSOAS são afligidas por uma malevolência
especial
do
Destino;
são
chamadas de desastradas, como se pudessem evitar que em suas mãos as coisas pareçam ganhar vida e demonstrem um temperamento deliberado e quase diabólico. Melhor afirmar que tais pessoas são mágicas cujo mero toque inspira
objetos
inanimados
com
uma
exuberância inenarrável. Se eu bato um prego numa parede, o martelo ganha vida em minha mão
com
um
ânimo
tão
inusitado
e
indomável, que quebro a parede ou o dedo ou uma janela do outro lado do cômodo. Se tento amarrar um pacote, o laço do nada adquire a {6}
destreza de uma cobra; se contorce, salta de minha mão, e por fim realiza seu truque favorito, o de prender meu dedo ao pacote. Tenho um conhecido que discorre com muita habilidade sobre alta política e todos se maravilham com isso, mas ele simplesmente não ousa sacar a rolha de uma garrafa; ele sabe que se o fizesse, a rolha continuaria em sua mão, enquanto a garrafa, com a esperada agilidade, saltaria dela e se espatifaria no chão. As pessoas são muito bobas; em vez de apreciarem essa mágica peculiar, dão risada do homem que se relaciona com os objetos lhes dando vida e chamam-no de pateta, mãos-de-manteiga,
bronco,
trapalhão,
atabalhoado, ou touro numa loja de porcelana. Na verdade, toda a diferença é que os desajeitados
se
relacionam
com
objetos
inanimados como se eles fossem vivos, isto é, selvagens, obstinados, e dotados com vontade própria, enquanto as pessoas expeditas se {7}
relacionam com objetos inanimados como se eles
realmente
fossem
inanimados
e
pudessem ser manipulados à vontade. Um assistente de vendedor não manuseia um pedaço de corda com cautela, como uma cobra selvagem se retorcendo; mas como se fosse um pedaço de corda obediente e morto; um, dois, e pronto! O martelo na mão de um pedreiro não é uma arma desajeitada e obstinada se lançando ao que lhe apraz; é um instrumento desanimado, passivo, que bate onde lhe é ordenado. Na opinião dos desastrados, tal controle dos objetos é realmente mágico; mas as pessoas expeditas deveriam reconhecer que a falta de jeito também é mágica e misteriosa. Sinto que as histórias sobre objetos que falam não foram inventadas por pessoas habilidosas, mas por desastrados que fazem mágica.
Acredito
que
Hans
Christian
Andersen caiu de sua cadeira ou bateu nela, e daí surgiu a ideia de que às vezes uma cadeira {8}
está viva e pode falar. Quando Honza, o Tolo1, cumprimentou um banco e lhe desejou felicidade, sem dúvida estava com medo de ser jogado num rio. Se tivesse se associado ao Clube de Automobilismo da Tchecoslováquia, não teria falado com ele, pois teria certeza de que
fora
posto
ali
apenas
por
sua
conveniência. Pessoas expeditas disseminam ao
mundo
uma
possibilidades
heroica
impressão
de
ilimitadas,
enquanto
as
desastradas introduzem e sustentam a épica e verdadeiramente sofisticada concepção das dificuldades, aventuras, obstáculos e oposição sem limites. A história da montanha de vidro que se eleva no lado oposto dos abismos, lagos negros e florestas impenetráveis expressa a experiência
viva
dos
inábeis:
pois
é
terrivelmente difícil chegar em qualquer lugar ou fazer qualquer coisa, e é possível se encharcar ou se machucar enquanto isso. 1
Arquétipo tcheco do tolo (N. do T.)
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Mas não é por seus talentos gráficos que estou elogiando os desastrados; sua significância é maior. Gostaria de demonstrar toda
a
sua
contribuição
para
o
desenvolvimento e progresso do mundo. Também foram eles a razão das maiores invenções da humanidade. Foram esses desprezados patetas que trouxeram a divisão do trabalho ao mundo. Os primeiros e horripilantes mãos-de-manteiga tiveram de nascer para que seu amigo das cavernas mais hábil não os deixasse manusear um utensílio ou curtir uma pele, grunhindo: “sai da frente, seu bronco, deixa que eu faço isso!” Foi o inábil que criou o especialista. Se todas as pessoas fossem igualmente aptas, não haveria divisão de trabalho; o resultado disso seria a ausência de progresso. Enquanto alguns dos homens das cavernas tinham habilidade manusear utensílios e outros em matar mamutes e alces, havia alguns indivíduos {10}
raros e avançados que não tinham nenhuma habilidade. Ou talvez eles soubessem de algo sem valor algum. Um deles, por tédio, contou as estrelas; um segundo inútil criou toda espécie de sons com uma mandíbula, o que induziu os outros primeiro a dançarem, depois a tentarem imitá-lo; o terceiro começou a brincar com uma argila colorida e esboçou na fuligem os primeiros afrescos da caverna de Altamira. Eram trapalhões um tanto perdidos e peculiares, incapazes sequer de partir
um
osso
ao
meio.
Os
hábeis
descobriram que é possível fazer uma faca com uma pedra; mas os inábeis fizeram a descoberta posterior de que é possível deixar esse trabalho para os outros. Criaram uma sociedade que não conseguia se levantar sem eles. As pessoas fortes e hábeis descobriram que é preciso ser um caçador e um guerreiro para conseguirem sobreviver; os inábeis, entretanto, provaram que basta um número {11}
pequeno de caçadores e guerreiros para os outros também sobreviverem. O homem deixou de ser um mero caçador quando nasceram indivíduos que eram caçadores muito ruins. Se todos fossem capazes de fazer botas, não haveria sapateiros. Se não fosse por inábeis como nós, não haveria nem um Prometeu nem um Edison. ∞∞∞
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∞∞∞ Paulo Raviere nasceu em Irecê-BA, em 1986. Colaborou com o Blog do IMS e com as revistas Outros Críticos, Barril e Piauí. Traduziu O Médico e Monstro e Outros Experimentos, de Robert Louis Stevenson (DarkSide Books, 2019). Atualmente pesquisa a obra de Charles Lamb em doutorado na FFLCH-USP. ∞∞∞ issuu.com/pauloravierebarretodourado ∞∞∞ pauloraviere@hotmail.com ∞∞∞ raviere.wordpress.com ∞∞∞
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