Da letra de mão à letra de forma

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DA LETRA DE MÃO À LETRA DE FORMA percursos da caligrafia nas artes e nas técnicas

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Da letra de mão à letra de forma: percursos da caligrafia nas artes e nas técnicas


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[fig. 0] Oficina tipográfica do séc. XVI, gravura sobre cobre de Théodor Gale, desenho de Jan van der Straet.

Ilustra os vários cavaletes de tipo, com as folhas originais de que o oficial compositor e o revisor se ocupam. Ao fundo, o transporte do papel e a mesa com os atados de papel a imprimir; do lado esquerdo, um impressor fazendo a tintagem da forma no mármore da prensa; outro impressor accionando a alavanca da prensa; num estendal, várias folhas impressas, que, depois de secas, um aprendiz vai juntando em maços. Assiste-se nesta época de fim de milé nio à revolução que o computador e as «artes» da informática proporcionam: revolução porque implica qualitativa e quantitativamente uma alteração nos padrões tradicionais de cultura e civilização, com as respectivas incidências sociais, económicas ou religiosas. O seu alcance estará bem longe de ser medido ou avaliado. O que não acontece com semelhantes revoluções que sofreram aqueles que viveram os primór-

dios da tipografia de Quatrocentos, e ainda aqueles que há milénios transcreveram num suporte de terra endurecida, manualmente e com o auxílio de um estilete, os primeiros signos de transmissão do pensamento humano pela grafia, aos quais podemos fazer coincidir os grandes impérios da Antiguidade e respectivas civilizações; pelo que se pode afirmar que a invenção da escrita não é de forma alguma um processo concluído, quer nas suas múltiplas formas de expressão, quer nos seus efeitos. A nossa preocupação neste estudo centrase exclusivamente nos aspectos que tiveram incidência directa na ligação da caligrafia e da sua actividade, com o seu natural desenvolvimento na letra de forma, ou impressa. Existe, de facto, um paralelismo de soluções, uma transposição de técnicas e de estilos que são inquestionavelmente resultado tanto da tradição


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Na actividade complementar da escrita, copista e impressor são opostos liminarmente no que se refere à ideia de qualquer acto criador: um translitera fielmente, o outro possui já o génio da invenção ligado à técnica. Se qualquer inovação subsiste, é a nível artístico ou mais propriamente ornamental: o estilo tudo diz, quanto à observação. A técnica situava-se para aquém do plano alquímico, talvez dos matizes das tintas, dos preparos sequenciais da iluminura que se seguia à transcrição caligráfica do texto em cópia, em modos esmerados, imitação ou aproximação à obra divina e ao mero acto de criação, como um espelho, obra de fé. É do senso comum afirmar que a caligrafia tem o seu início, como arte, em Carlos Magno, ou seja, obra de engenhosos gauleses, que instituíram a famosa letra carolina. Tal não será assim: torna-se evidente que a caligrafia, cuja grafia, era mecanizada pelo cálamo, tem sistematização no mundo romano e grego, pelo menos, e só para nos referirmos à antiguidade clássica ocidental. A caligrafia, com o cálamo, como instrumento de gravação ou de inscrição pela tinta, é identificada nas escritas do Oriente médio, entre as civilizações egípcias, hitita, suméria ou acádica. É já uma arte semi- mecânica, pois socorre-se instantaneamente do cálamo, antepassado da moderna caneta, quer actuasse sobre placas de argila ou barro, no papiro, no pergaminho ou no papel. Não se pense que no mundo medieval as artes da escrita coexistiam com a desorganização ou com a improvisação: certamente uma boa dose

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de intuição ou imaginação eram necessárias no ambiente dos scriptoria a par com a erudição, que se exprimia exigência de dispor cada vez mais de cópias de todo o corpus do saber. O copista, ou «escriba» (hoje tomado num contexto algo depreciativo), incluía-se originariamente em dois níveis como o religioso e o administrativo (chancelarias reais, judiciais ou fiscais). Obedecia a uma estrutura profissional que posteriormente se organizou nos modelos corporativos dos mesteres e guildas ou em confrarias laico-religiosas, não só à sombra dos mosteiros, mas também das universidades e chancelarias, com o advento do fenómeno da burguesia nascente. O scriptoria exigia uma divisão precisa, sequencial e anónima de várias tarefas até chegar ao resultado final do volume ou códice manuscrito, cópia fiel de uma matriz, o exemplar. A cópia era fundamentalmente um acto repetitivo em que a letra era norma fixa na fidelidade ao texto princeps, à pontuação, às regras das linhas ou ao estilo no desenho da letra. A intuição ocorreria em certas passagens obscuras de difícil interpretação, no desenvolvimento ou utilização das abreviaturas no texto, em certas inovações estilísticas a nível caligráfico. A imaginação intervinha mais no nível meramente artístico e criador, na decoração das iniciais capitulares historiadas ou floreadas, na ilustração da iluminura. A tarefa mais humilde era preparar o suporte da escrita, o pergaminho ou o velino, para além do papel, cuja utilização foi aumentando com a sua vulgarização e disponibilidade, pela dispersão, no século XV, de fábricas de papel por toda a Europa: nessa época, o pergaminho era


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comercializado (dependendo da sua qualidade e acabamento), cerca de 12 a 15 vezes mais caro do que o papel. O papel, mais frágil e efémero, beneficiava do factor da desconfiança num meio tecnicamente pouco inovador, conservador pela disciplina dos métodos, avesso à precariedade ou à funcionalidade que o papel representava, nos actos do quotidiano, como a simples carta ou missiva para além do registo contabilístico. A preparação do suporte consistia após o corte em folhas de formato previamente definido, obtendo-se o folio ó, em fazer o risco da folha, isto é o seu riscado (as linhas em intervalos regulares) e o seu pautado (as margens) em esquadria, calculando e definindo a proporção das margens com a mancha do texto (sua justificação) a preencher. Essa proporção, o mais das vezes feito insuspeitadamente com o apoio da geometria, estabelecia a largura e o comou

menor proporção da largura das margens, criando, primento do rectângulo de texto com a maior por assim dizer, o regime dos brancos e a perfeita harmonia das respectivas superfícies, isto é, o espaço ocupado pelo negro ou sépia das letras ou o colorido dos motivos iluminados. Pela oposição entre os brancos das margens e entrelinhas com a superfície manuscrita (ou impressa, como se verá), resultava o equilíbrio da arquitectura e da economia da página, a ponto de permitir a conclusão de que a maior proporção de espaços em branco determina a riqueza e sumptuosidade da obra final. Essa arquitectura da empaginação foi desde logo observada nos primeiros livros impressos: podemos ir buscar a Villard de Honnecourt, famoso arquitecto francês do século XIII, a técnica desse risco da página, cujo traçado se exemplifica e deduz geometricamente.

[fig. 1]. Construção da mancha de texto segundo o traçado de Villard de Honnecourt. Os números indicam a ordem pela qual devem ser traçadas as diagonais.


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Ou a construção do tipógrafo argentino Raul Rosarivó, que deduziu o traçado regulador da empaginação usada na Renascença, identificando-o com as medidas usadas por Gutenberg na Bíblia de 36 linhas.

[fig. 2]. Formato segundo a projecção de Raul Rosarivó.

Da preparação da folha seguia-se complementarmente a composição das tintas quer de escrita, quer de iluminura, bem como todo o instrumental, a régua, a pena, a raspadeira, antepassada da borracha e todo o instrumental de pintura, bem conhecido e estudado hoje em dia. A preparação das tintas de escrita obedecia a um verdadeiro receituário, quase iniciático e frequentemente secreto, em que intervinha o mais das vezes como base a noz de galho e o negro de fumo, a par com óleos e resinas; da sua preparação, da fluidez ou consistência obtida dependia o bom resultado da sua aplicação, sob a forma manuscrita

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ou impressa, com diferentes soluções para o pergaminho, o velino ou para o papel, na sua absorção, secagem ou na durabilidade pretendida. Em tudo isto, o papel do copista-calígrafo associado ao do ilumina- dor, era fundamental pela arte que utilizavam e pela disciplina a que estavam sujeitos. Nos scriptoria monásticos coexistiam as diferentes especializações aproveitando os meios humanos existentes ou incorporando elementos laicos cuja valia e perícia se impunham. Dá-se a sua laicização quando a importância dos burgos próximos aumenta, sutentada por uma burguesia cada vez mais activa e libertária, ou pelo letrado, clérigo ou não, o qual se emancipa do protector mundo conventual e se realiza no liceu aristotélico ou na universidade. É com a proliferação das universidades, fenómeno que se verifica a partir do século XIII, que a procura dos textos, dos comentários e glosas que faziam objecto dos estudos se torna imparável, constituindo um dos factores decisivos da insustentabilidade da cópia não ser mecanizada e multiplicada ao infinito, tal como hoje, na informatização do texto que assume aspectos preocupantes de globalização: mais uma vez, a necessidade provoca a inovação com consequências imparáveis. A revolução da tipografia, ou seja da invenção da letra de forma, a par com a revolução originária da escrita, foram marcos decisivos para a resultante civilizacional e cultural do mundo moderno: no meio, sempre presente, incansavelmente, o copista-calígrafo, o compositor tipográfico, o digitalizador de textos ou introdutor de dados informáticos, per


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manecem constantes na sua essência que é a de transcrever as letras e as palavras do texto, sem a sua cabal inteligência ou compreensão, sustentados por um aparelho erudito ou criador, que vai do revisor ao tradutor, e ao comentador e autor. A laicização dos escritórios de cópia e iluminura provoca a independência de uns face a outros com a criação de oficinas próprias: o atelier do copista-calígrafo coexiste com a loja do comerciante de pergaminhos ou de papel, com a oficina do iluminador, do rubricador, do encadernador ou a loja ou tenda do livreiro. Contudo, quem detinha originariamente a «chave» e o poder dos textos era o convento com a sua livraria, proporcionando as fontes e a transmissão do conhecimento. Era prática comum o empréstimo entre bibliotecas conventuais de espécimes únicos, permitindo a sua cópia a quem deles necessitava. Obra acabada, o volume ou exemplar era cuidadosamente revisto com a fixação e garantia da fidelidade do texto transcrito em e como exemplar. A necessidade de cópias sucessivas a partir dessa matriz, com o aparecimento in loco da universidade (que também detinha scriptoria próprios), leva à solução inovadora do empréstimo, para além da sua venda, quer controlada pelo bibliotecário, quer pelo livreiro como mero representante ou intermediário. O empréstimo, motivado em parte pela sua componente económica, não se efectuava com a transferência temporária de todo o exemplar para cópia posterior: a sua cedência era frequentemente feita caderno a caderno, ou seja, à peça (pecia).

O primeiro embate entre a cópia manuscrita e a folha impressa deu-se a nível primário entre a iluminura e a gravura, mercê da utilização de uma prensa ou prensagem manual: datam do século XIV as primeiras gravuras talhadas sobre blocos de madeira, a xilogravura, com alguns textos também gravados a acompanhar as ilustrações.

[fig. 3] Bloco xilográfico ilustrado com cenas do Apocalipse e respectivos comentários.


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A miniatura iria perder gradualmente terreno perante a gravura em madeira ou em cobre impressa sobre o papel; a cor cedia terreno perante a subtileza do branco e do negro, cuja utilização no desenho era apesar de tudo mais forte em contrastes e menos perfeita nos seus contornos. Dessa primeira fase conhecem-se folhas volantes, hoje muito raras, com figura- ção de santos acompanhadas de textos com orações ou trechos bíblicos; serviam para serem colocadas em oratórios ou simplesmente colocadas em portas ou paredes, tal como os calendários. Contudo, pensa-se que a primeira utilização desta técnica provém do fabrico das cartas de jogar e da indústria têxtil, para repetição indefinida dos padrões de desenho. Também dessa época datam os donatos, gramáticas latinas de Élio Donato, provenientes da impressão tabular ou xilográfica na Holanda e na Alemanha, as Ars moriendi ou as Biblia pauperum, já não uma simples folha impressa, mas constituindo um volume, com várias folhas dobradas ou simplesmente juntas, formando cadernos que eram posteriormente cosidos à linha e porventura encadernados em cartão, pergaminho ou pele. Para cada folha ou página era necessário executar em gravura um bloco xilográfico que era por sua vez impresso a negro ou a duas cores, o mesmo negro e o vermelho ou raramente o azul ou o amarelo. O inventor

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da tipografia de caracteres móveis, Johann Gensfleish zum Gutenberg (nascido à volta de 1400 e falecido em 1468), conseguiu executar uma síntese científica e técnica em várias actividades que pouco a pouco se aproximavam do livro impresso como processo acabado: o aperfeiçoamento da prensa de rosca, para vinho ou azeite, transformada para receber o papel, a substituição dos blocos de madeira com letras por todo o processo de gravação e metalografia da letra de forma ou caracter tipográfico. Ou seja, processos derivados da tipografia xilográfica (calendários, ex-votos ou indulgências, etc.), as artes da ourivesaria no trabalho de gravação e utilização de punções de letras, vinhetas decorativas ou marcas de ourives, a fundição de bronzes e outros metais (moeda) para sinos, canhões e tantos outros artefactos. Por outro lado, reúne num só processo o calígrafo, o gravador de punções de letra, o metalúrgico hábil na obtenção da liga metálica e na respectiva fundição dos caracteres móveis, individualmente, moldados a quente, um a um, que o artífice de composição juntaria de modo a formar as palavras e as linhas consecutivas dos textos em uma ou mais páginas, as quais permitiriam imprimir, após uma tintagem adequada desse conjunto ou «deitado» de letras, uma ou quantas folhas se desejasse para cópia.


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[fig. 4] Fundidor de caracteres móveis no séc. XVI. Note-se o cadinho por onde a liga de metal é vasada no molde. Em baixo, um cesto com lingotes de tipo já fundido. Gravura de Jost Amman, 1568.

[fig 5] «Atado» com bloco de texto ou granel, mostrando os caracteres de letra, a justificação das linhas e espaços.


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O processo implicava a necessidade de dispor de milhares de caracteres resultantes de fundição em um alfabeto ou família de tipo móvel em que comportaria uma caixa alta de tipo (maiúsculas), caixa baixa (minúsculas), as vogais acentuadas, um conjunto de abreviaturas e letras em ligatura pelo menos, ou seja, com os primeiros góticos ou romanos, eram necessários um conjunto de punções gravados e respectivas

matrizes de fundição, numa variedade que atingia sete ou oito dezenas, como mínimo, as quais proporcionariam os milhares de caracteres necessários à composição de uma ou mais páginas. Esta fundição comporta cerca de 130 caracteres, dispostos segundo uma certa ordem que o compositor sabia de cor.

[fig. 6] Cavalete de tipo moderno; as divisões móveis comportam diferentes quantidades de letra.

[fig. 7] Caixas de punções e matrizes com alfabeto grego (Museu Plantin).


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[fig. 8] Molde de tipos, o instrumento cujas duas partes ajustáveis deixam um orifício aproximadamente de uma polegada de profundidade, tapado num extremo pela matriz cinzelada e aberto na outra extremidade para deixar verter o metal fundido, e ajustável à largura de cada letra, desde o M ao I, o que proporcionava quantidades ilimitadas de caracteres de letra, para as diversas matrizes que compunham o alfabeto da língua a utilizar.

[fig. 9] Punção, matriz, caracter fundido (Museu Plantin).


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Este processo de escrita artificial, de caracteres móveis que eram compostos manualmente, durou até ao presente século na indústria tipográfica. O trabalho de corte ou gravação dos punções durava meses inteiros e exigia a especialização e a perícia de um ourives ou gravador de imagens, pois qualquer letra tinha que ter o mesmo corpo ou altura (ou proporção) de modo a poder ser disposto linearmente tal como a mais perfeita caligrafia de um copista num manuscrito. A letra de forma foi inicialmente desenhada e fundida de modo a imitar perfeitamente a letra de mão, para que, uma vez impressa, emprestasse a ilusão de que um manuscrito se tratava. A primeira obra, com forma de volume,

[fig. 10] Trecho da Bíblia de 42 linhas de Gutenberg.

a ser impressa nos prelos de Mogúncia pertencentes a Gutenberg, foi uma Bíblia em caracteres góticos, com o texto em duas colunas contendo 42 linhas cada, com os títulos correntes e epígrafes impressos a vermelho e iniciais capitulares manuscritas. Esta atribuição é controversa pois existem hipóteses da sua oficina datar de cerca de dez anos antes, ainda em Estrasburgo, com calendários, donatos e folhas de indulgências. É uma obra notável pela perfeição desde logo obtida, o que sugere uma longa prática e rigor, tanto no tipo de letra empregue, na empaginação e na impressão. Levou cerca de três anos a fazer, de 1452 a 1455, imprimindo cerca de 200 exemplares, dos quais 30 em velino, e os restantes em papel.

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Destinada a embaratecer substancialmente o custo da cópia manual, a sua venda não foi tão imediata como talvez julgasse o impressor: as dívidas acumuladas pelo grande investimento efectuado até então, levam o principal sócio de Gutenberg, Johann Fust, ainda em 1455, a exigir o seu pagamento em tribunal, levando o impressor à ruína. Fust dirige-se de Mogúncia a Paris (aí falece em 1466), como simples livreiro, para vender a edição da Bíblia de 42 linhas ou outras edições que teria feito. A novidade era

[fig. 11] Colofão da primeira obra impressa em Paris, 1470.

colocar no merca- do volumes impressos como se manuscritos fossem. Essa questão foi exemplar, pois, anos mais tarde, com os primeiros prototipógrafos parisienses na esclarecida Sorbonne verificou-se um insurreição contra a «heresia» do livro impresso, apelidando-o de feitiçaria, ao mesmo tempo que as guildas dos copistas e iluminadores queriam proibir a existência de impressores por motivos nitidamente concorrenciais.


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[fig. 12] Trecho do Saltério de 1457, impresso em Mogúncia na oficina de Fust e Schoeffer.

Já em 1457, com a impressão de um Saltério [fig. 12], longo de 143 folhas, ocorre o primeiro colofão (datado e assinado) em obra impressa, complemento do explicit, e que constitui inovação como individualização do trabalho do artífice, o que raramente sucedia com as oficinas dos copistas e iluminadores, que mantinham o anonimato: O presente volume dos salmos, decorado com belas capitulares e

rubricado com suficiente realçe, foi feito com invenção artificiosa da imprensa de caracteres, sem uso de cálamo concluído com indústria para o culto de Deus. Por Johann Fust, cidadão de Mogúncia, e Peter Schoeffer de Gernsheim, no ano do Senhor de 1457, na véspera da festa da Assunção. Mais tarde, num dos derradeiros incunábulos atribuídos a Gutenberg, o Catholicon, impresso em Mogúncia, declara,


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com maior propriedade da Arte utilizada: Com o auxílio do Altíssimo a cujo mando as línguas infantis se tornam eloquentes, e que muitas vezes revela aos humildes o que esconde aos sábios, este nobre livro, Catholicon, acabou de se imprimir, sem ajuda de cálamo, estilete ou pena, mas com a com- binação, proporção e harmonia maravilhosas de tipos e punções, no ano de 1460 da Incarnação do Senhor, na magnânima cidade de Mogúncia. Desde logo se faz menção da inovação da letra de forma obtida através de punções e do seu uso tipográfico, com a combinação, proporção e harmonia dos tipos de letra. Estes três conceitos merecem ser um pouco desenvolvidos, no aspecto em como por fidelidade à letra de mão se chegou ao caracter de letra cuja harmonia no desenho, sua proporção num corpo ou tamanho e sua combinação na composição da linha e da

página, resultaram na nobre arte da impressão. Já se considerou que a dimensão da página e da empaginação desde logo obedeceu a uma proporção que distribuía geometricamente a justificação da linha de texto e respectiva mancha tipográfica em relação aos brancos de página ou margens. Porém, esse exame exige o desenho da própria letra, num caminho de como quem vai da molécula à partícula do átomo: sem dúvida, existe um proporção divina em todas as coisas que a ciência nos revela. Isso foi tentado desde os alvores do Quatrocento por Frei Luca Pacciolli, contemporâneo de Leonardo da Vinci, ao escrever a sua famosa obra De Divina Proportione, impressa em Veneza, 1509. Aí deduz o desenvolvimento geométrico das letras do alfabeto segundo uma grelha quadrada na qual cada lado se divide em nove divisões, ou seja na relação 1:9.

[fig. 13] Desenho de letra de Luca Pacioli.


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Contudo, estas discussões que se estenderam a Albrecht Dürer e Geoffroy Tory, nos inícios do século XVI, não foram prementes no espírito de Gutenberg, ao reproduzir o desenho caligráfico do alfabeto «textura» utilizado pelos copistas alemães, apesar de mencionar expressamente a proporção e a harmonia dos caracteres de letra móveis entre si.

[fig. 14] Desenho de letra de Albrecht Dürer.

[fig. 15] Desenho de letra de Geoffroy Tory

Em meados do século XV, a actividade do copista estava subordinada à natureza dos textos e à sua finalidade, para além de se verificar uma variedade significativa de escritas ditas nacionais no seu desenvolvimento, assim, numa breve sistematização, o grupo gótico representado pela «letra de soma», o da letra de «missal», o de letra «bastarda» e uma família de letra completamente diferente, a letra humanística ou «littera antiqua». O estilo denominado gótico, abrangia, respectivamente, das obras de teologia como a Suma Teológica, às obras de texto litúrgico, de corpo maior, definindo um canon próprio, às obras de temática es- sencialmente literária ou mesmo de direito, baseado na prática das chancelarias, de carácter cursivo. O estilo da letra humanística, baseada na letra romana, portanto recuperada, como o grego, dos textos dos clássicos latinos e gregos, para além de adoptar o desenho da minúscula carolina, é que foi objecto de elucidação geométrica. Gutenberg obtém a harmonia e a proporção dos seus caracteres na medida em que é fiel ao estilo caligráfico da letra, ao mesmo tempo que respeita as relações proporcionais dos caracteres entre si, ainda que só muito tarde, no século XVIII fosse definida a sua principal medida, o ponto tipográfico (= 0,343 mm.), mercê dos trabalhos de Fournier Le Jeune, em 1737 e Francisco Ambrósio Didot em 1775, com uma relação proporcional de 1:12 (quanto a Portugal, o ponto Didot só foi adoptado em 1851 na Imprensa Nacional, mais de meio século de- pois). Os corpos de letra não eram definidos por qualquer medida de referência,


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mas denominados segundo uma terminologia utilitária que definia as suas características: parangona, texto, tanásia, leitura, intérduo, breviário ou solfa, para citar a nomenclatura dos corpos de letra mais usados em Portugal no século XVIII, e mesmo assim, dentro de cada categoria, com variações na altura e na largura do corpo de letra; por exemplo, o cícero, que apresenta uma medida de 12 pontos didot, como canon de leitura, tem origem nos caracteres usados numa obra, De Oratore, de Cícero, impressa por Schoffer, um dos sócios de Gutenberg.

Uma aproximação a este tema pode ser encontrado no que foi desenvolvido mais tarde por Dürer no seu tratado Instituitiones Geometricae, em quatro livros, sendo que no tercei- ro trata precisamente da proporção e da geometria da letra. A gravura que apresentamos é a que determinava, desde as teorias euclidianas, a proporção ou corpo das letras entre si, com o recurso a um ponto de perspectiva exterior e sua divi- são angular. A projecção obtida determinava as alturas das letras.

[fig. 16] Proporção da altura das letras a partir das regras de perspectiva de Albrecht Dürer.

[fig. 17] Desenho das minúsculas do alfabeto gótico de Albrecht Dürer.


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No que se refere ao desenho dos caracteres góticos minúsculos de caixa baixa, desenvolve um curioso método de justaposição de figuras geométricas, essencialmente quadrados e triângulos, na proporção 1:10.

[fig. 18] Maiúsculas do alfabeto gótico de Albrecht Dürer.

No que diz respeito ao caracter redondo, dito de romano, ou littera antiqua, a que logo se seguiria o itálico, grifo ou aldino, este aparece logo a seguir aos primeiros caracteres móveis góticos, por exigência dos estudiosos humanistas das universidades ou de vários centros culturais da Europa que a pouco e pouco aderiram ao livro impresso com edições das obras clássicas gregas e latinas, essencialmente. Um exemplo disso é o exemplo, uma vez mais, da Sorbonne, cujos protoimpressores alemães Ulrich Gering, Michael Friburger e Martin Crantz, só imprimiram inicialmente, desde 1470, em caracteres romanos, sendo obrigados

a utilizar alfabetos góticos em 1472-3, em oficina própria, fora da Universidade parisiense, na rua de Saint-Jacques, sob a insígnia de «Soleil d’Or», para atingirem um público leitor mais vasto, pouco familiarizado com a letra romana. Essa condição do gótico e subordinação do romano manteve-se ainda por meados do século seguinte, altura em que o gótico é gradualmente substituído. Desde então, principalmente a partir dos punções de Claude Garamond e do seu canon romano, desde 1530, o romano imperou até ao século XX, é certo, em vários estilos, mas que na sua essência assumiram uma forma quase perfeita e sublime.


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[fig. 19] Canon de Claude Garamond, obtido recentemente a partir da sua fundição com matrizes do Museu Plantin em Antuérpia.

A origem do «romano» é imprecisa, surge provavelmente entre Estrarburgo com o impressor Adolf Rush, anterior a 1467 (Enciclopédia, de Raban Maur), e Subiaco/ Roma, em 1465, com Sweyneym e Pannartz (De Oratore, de Cícero).

[fig. 21] Romano de Nicolau Jenson, na edição de Cícero, Epistolae ad Brutum, Veneza, 1470 [fig. 20] 1.º Romano de Sweynheim e Pannartz, Subiaco, 1467, na obra de Santo Agostinho, De civitati dei.


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[fig. 22] Romano de Nicolau Jenson, em Veneza, 1475, na obra de Virgílio, Bucólicas.

O ciclo das principais inovações fecha-se temporariamente com a figura do impressorhumanista Aldo Manutio, o grande vulgarizador dos caracteres romanos, o redondo, gravado em 1495, para a impressão da obra De Aetna, do cardeal Bembo, e, sobretudo, o itálico ó o qual comprendia mais de sessenta punções com ligaturas, de entre 150 de toda a família de tipo ó, justamente denominado na época por aldino, também da autoria de Francesco Griffo de Bolonha, em data próxima a 1499, utilizados em 1501 na impressão de uma obra de Virgílio.

[fig. 23] Romano de Griffo / Aldo Manutio, Veneza, 1499. Hypnerotomachia Poliphili.

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se diria virtual, pois até à sua impressão no papel, não tem a mínima ex- pressão de forma ou conteúdo execepto na área do monitor. à tipografia a «frio», quase se diria virtual, pois até à sua impressão no papel, não tem a mínima expressão de forma ou conteúdo excepto na área do monitor.

[fig. 24] Itálico de Griffo/ Aldo Manutio, Veneza, 1501.

Tratava-se, mais uma vez, de imitar a letra cursiva das chancelarias italianas, aliando a economia do espaço da letra aos pequenos formatos de edição, tornando-se verdadeiramente económica, «libelli portatiles in formam enchiridii». No nosso século, o transístor, a informatização, os media provocaram profundas alterações na escrita, na caligrafia associada a ela, na tipografia. Restam as famílias de caracteres, mesmo aqueles de estilo «civilité» ou caligráfico, que foram adoptados pela informática aplicada à tipografia e a qualquer actividade que utilize formas mais ou menos complexas de registo; a tipografia a «quente», que resultava da contínua fundição de caracteres, passou drasticamente à tipografia a «frio», quase

[fig. 25] Estrutura linear das letras utilizada no desenho moderno para artes gráficas.

As letras foram definidas matematicamente através da descrição das coordenadas de vários pontos apoiados nas denominadas curvas de «Bézier», formando contornos não à base da régua e do compasso, mas através de complexas elipses. Esse contorno, ou «outline», afinal o batente da letra, é preenchido por pixels, formando o que se denominava por olho da letra, ou seja a superfície do caracter que era impressa e que na leitura proporcionava todo o seu valor fonético e semântico. Contudo, em modos de conclusão, a perenidade e a vitalidade da letra permanece, na sua essência, intocável, conforme foi brevemente descrito neste estudo. À caligrafia, como arte, no seu senti- do lato, mãe de todas as letras, devemos esta aventura sem fim que é a do conhecimento, imparável, belo, mas sem dúvida preocupante.


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Nesta fase, ainda em aberto, porque não totalmete definida, passou-se dos processos ópticos da fotocomposição para os da informática: o ponto didot, a pica, o cícero, foram substituídos pelo pixel, pelo byte e pelo bit, em linguagem algébrica binária (0 ou 1).

[fig. 26] Sistematização dos estilos de letra, segundo Aldo Novarese, Baseia-se na forma das hastes e dos serifs no desenho da letra.

[fig. 27] Letra digital com grande ampliação evidenciando o serilhado dos pixel. [Photoshop].

[fig. 28] Fases do desenho informático da letra. [Fontographer].


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[fig. 29] 1486 - Catálogo de tipos de Erhard Ratdolt, Augsburgo.


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24 - Da letra de mão à letra de forma

Universidade de Lisboa Faculdade de Belas Artes Design Editorial 1 3º ano | 1º Semestre | 2010/11 Docente: Nuno vale Cardoso Aluno : Pedro Silva # 5023



DA LETRA DE MÃO À LETRA DE FORMA

percursos da caligrafia nas artes e nas técnicas

Assiste-se nesta época de fim de milénio à revolução que o computador e as «artes» da informática proporcionam: revolução porque implica qualitativa e quantitativamente uma alteração nos padrões tradicionais de cultura e civilização, com as respectivas incidências sociais, económicas ou religiosas. O seu alcance estará bem longe de ser medido ou avaliado.

francisco g. cunha leão


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