Despertar-me
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Baseado na peça O Despertar da Primavera de Frank Wedekind Trechos da peça O Despertar da Primavera Tradução de Sheila Ewert Texto, Fotografia e Design Gráfico por Pedro Flores
Gostaria de agradecer a professora Manoela Dutra, orientadora deste projeto, pela disposição em contribuir com o ensino do design gráfico e da fotografia, essenciais a este livro. Ainda, agradecimentos ao David Ceccon, meu companheiro e artista visual cujo olhar foi de extrema importância na concepção das imagens que se seguem. Por fim, mas não menos importante, agradeço a minha mãe Rosemari Ferrari Flores pelo suporte e apoio integral durante a minha formação em design gráfico.
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Despertar-me pedro flores
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Eu acredito que a fotografia pode mudar nossa percepção individual. Quando exploramos a nossa imagem, percebemos o que está além do nosso olhar, dando uma nova dimensão ao que estamos vendo em nós mesmos. Conversamos com a nossa imagem a partir dos nossos anseios, daquilo que queremos expressar ou, até mesmo, a ausência de algo a ser expresso. Como pintar-se a si, eternizar-se em algo. Estamos em uma nova plataforma da humanidade. Transpomos a barreira do físico e imergimos em um mundo de informação. Nós, por apenas sermos, transformamo-nos em informação também. Somos as linhas, os dados, os diagnósticos, o código. Lemos a nós mesmos em pixels, passamos a entender que a nossa essência interna objetificouse em data. E memória. A série que aqui apresento propôs, também, a transposição de algo. Desde que comecei a educar-me nas artes cênicas, percebi que meus sentimentos estavam profundamente conectados ao o meu corpo. A tradução que se faz disso, a partir da intenção, criou uma ponte imaginária
entre mim e o espectador. Em julho de 2017 tive a oportunidade de apresentar a peça O Despertar da Primavera, de Frank Wedekind. Tal plataforma me possibilitou receber Moritz Stiefel em meu interior, entender suas angústias, empatizar com suas dúvidas, sentir o seu suicídio. Exaustivamente, por meses, estudei Stiefel e o contexto em que vivia na peça. Apresentei-o quatro vezes em dois dias, quase sem intervalos. De maquiagem e figurino ao sangue das cenas finais, me transformava diversas vezes, preparandome para a próxima sessão. Foi a partir disso, da minha relação amigável com Melchior Gabor à conexão vital que estabeleci com Wendla Bergmann, falecida logo após o meu suicídio, que percebi a importância destas figuras que personificam algo tão real em nossa sociedade. O ensaio que se segue partiu da ponte entre a realidade e a ficção, da representação teatral e das imagens estáticas que transcrevem cenas dinâmicas. Acredito que a fotografia pode ser performance, teatro e arte cênica. Sobretudo, tais manifestações também podem ser design. Este projeto representa a reflexão sobre fazer a si mesmo e ser aquilo que não se é.
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Melchior Gabor
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Melchior Gabor é um estudante vivendo na Alemanha em 1981. Ele é o terceiro melhor de sua turma, ainda que digam que se ele quisesse poderia ser o primeiro. Melchior possui uma enorme frustração, pois ele entende que a sociedade em que vive esconde informações dos jovens. Ele é frequentemente visto como radical, carismático e popular, fazendo com que seja adorado por todos. Apesar disso, seus professores o acham disruptivo por sempre protestar contra suas lições. Melchior vem de uma família acolhedora e sua mãe, Fanny Gabor, o cria com mente aberta e liberdade. Seu melhor amigo é Moritz Stiefel. Um garoto acanhado e sombrio, cheio de dúvidas sobre a vida. Ambos imergem em diálogos e filosofias que ilustram a angústia perante a puberdade. Melchior demonstra-se confortável e altivo em sua posição como homem, ainda que Moritz não entenda a reprodução e a natureza inerente ao homem. Tal laço que se forma entre os dois nos faz pensar como divergem entre si. Como antagônicos, os dois passam a tentar compreender a sociedade em que vivem. Dessas reflexões sugem um dos pontos determinantes da peça: Melchior entrega ao seu melhor amigo uma dissertação contendo desenhos e ensinamentos específicos sobre a sexualidade. Este é um ponto chave, que determinará o destino de ambos. Em certo ponto, envolve-se com Wendla Bergmann. Ela é uma personagem alegre e curiosa, sempre tentando desvendar aquilo que não conhece. Um dos principais momentos é dado em um ato, onde ambos estão deitados na relva conversando sobre a pobreza e a bondade humana. Posteriormente, Melchior acaba por envolver-se cegamente por Wendla e a violenta sexualmente.
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“Frio, muito frio. Queria abrir um buraco e me enterrar, mas não dá. Eu passei por tantas mortes e quase não chorei. Mas, às vezes, dependendo de como o sol se põe por trás da ponte ou de como as nuvens se debatem formando espirais de chumbo no céu, aí eu choro... Um choro que me sacode, que vem em soluços. Eu me entrego sem resistência, em espasmos de tristeza. Eu choro pelo fim da inocência, pela escuridão do coração humano e pela falta que me fazem o meu amigo (sempre os sonhos entre nós) e o meu amor agora eu sei que era amor. Desculpe, eu esqueci de dizer o meu nome: é Melchior.”
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melchior - Ninguém vai me procurar aqui. Eu posso respirar um pouco enquanto eles procuram nos bordéis. Quando amanhecer, eu tento me embrenhar no meio da mata. Até agora foi fácil, mas eu não sei se eu estava preparado pra isto. Chegar na beira do abismo. Ver esses buracos na terra, tudo afundando na minha frente. Eu não devia ter saído de lá. Por que é que ela tem que ser punida por um crime que eu cometi? Por que não sou eu que sofro a punição? Chamam isso de providência divina. Eu passava fome, se precisasse. Quebrava pedras, se precisasse. Nunca um vivo andou por aqui e sentiu tanta inveja. Estar aí embaixo. Os túmulos novos são ali. O vento passa pelos túmulos e assobia diferente em cada um. Uma sinfonia angustiante. Estas coroas se desintegrando. “Aqui repousa Wendla Bergman. Nasceu em 5 de maio de 1878. Morreu de anemia, em 27 de outubro de 1892 - Bem-aventurados os limpos de coração”. Eu matei - eu sou o assassino dela. O desespero - não vou chorar aqui. Eu vou embora. Eu tenho que ir embora deste lugar.
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Moritz Stiefel
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Moritz Stiefel é um adolescente confuso. Não há maneira específica que possa descrevê-lo essencialmente, pois suas angústias transpassam a nossa total compreensão. Ele se revela como alguém melancólico e desesperançoso, expressando a sua angústia sempre acompanhado de seu melhor amigo Melchior Gabor. A cronologia que se estabelece é crucial no entendimento de Stiefel. Nos primeiros atos, ele reflete acerca da natureza e dos detalhes que o acometem durante a experiência da puberdade. O íntimo que se estabelece a partir da culpa que sente perante as manifestações do próprio corpo determinam o seu futuro conforme a história avança. Por diversos momentos, Moritz afirma desejar não existir, qualquer coisa que pudesse tirá-lo de tais situações que diz considerar “um calvário”. Os próximos atos vivenciados por Moritz demonstram que ele passa a ter seu ensino prejudicado. Ele é alvo de chacota e brigas na escola, dorme durante as aulas e reprova de ano (algo inaceitável no contexto em que vive). Segundo estudos, Moritz Stiefel é um personagem adotado e possui enorme remorso perante a figura de seus pais. Não admite falhar por um momento e a culpa se torna fatal. Durante os últimos atos, Moritz beira a psicose. Ele vê em Fanny Gabor, mãe de Melchior, a chance de arranjar dinheiro e fugir, porém lhe é negado tal pedido. Por fim, acaba não vendo mais nenhuma saída. Na cena do seu suicídio, ele disserta sobre a humanidade e sobre como não consegue se adaptar à vida. Inerte em sua loucura, atira em sua cabeça e dá fim ao seu sofrimento. No último ato, retorna como um espírito e tem seu último diálogo com Melchior Gabor.
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“A Lua cobre o rosto. E depois tira de novo o véu. Mas nem por isso parece ter alguma coisa a dizer. Vou voltar para o meu lugar. Endireitar a cruz que o louco idiota derrubou brutalmente. E quando estiver tudo arrumado, eu me deito outra vez de costas, me aqueço ao calor da minha putrefação. E sorrio.”
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moritz - É assim que tem que ser. Eu não me encaixo. Eles que enlouqueçam, eu não ligo mais. Vou fechar a porta e pronto - liberdade. Chega de me empurrarem pra lá e pra cá. A pressão. Eu não culpo os meus pais. Mas mesmo assim, eles deviam estar preparados pro pior. Eles têm idade suficiente pra saber o que estão fazendo. Por que é que eu tenho que pagar pelo fato de todos os lugares estarem ocupados? Se os bebês não fossem burros quando nascem, eu podia ter escolhido ser uma outra pessoa. Engraçado que nascer seja assim, uma obra do acaso. É de dar um tiro na cabeça! Pelo menos o tempo está cooperando. Ameaçou chuva o dia todo. Tudo estava tão quieto hoje. Em paz. Cada coisa no seu lugar - o céu e a terra. Eu estou curioso. Deve ser uma sensação diferente - como cair de uma cachoeira. Eu não vou voltar e dizer que eu não fiz nada. É uma vergonha ter sido um homem e não ter conhecido aquilo que é mais humano. “Foi ao Egito e não viu as pirâmides, senhor?”. Chega de chorar. Eu não quero pensar no enterro. O Melchior vai por uma coroa no meu caixão. O pastor vai consolar meus pais. O reitor vai citar exemplos da História. Eu gostaria de um túmulo de mármore branco. Mas não vou sentir falta, graças a Deus. Túmulos são pros vivos. Eu levaria um ano pra me despedir de todo mundo. Chega de chorar. É bom poder olhar pra trás sem amargura. Todas as noites que eu passei com o Melchior. No mato, perto do rio. Na ponte. E essa tristeza, de o meu destino ter sido esse que foi. Lá longe eu consigo ver o rosto de pessoas conhecidas. Sérios. E de novo a Rainha Sem Cabeça. Abrindo os braços pra mim. A minha passagem pra liberdade está aqui. A vida é só uma questão de gosto. Você gosta dela. Ou vai embora.
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fim do ato ii
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Wendla Bergmann
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Wendla Bergmann é vista como uma menina curiosa e madura, muitas vezes rompendo com o paradigma de sociedade tradicional da época em que vive. Junto de suas duas melhores amigas, Martha e Thea, encontra-se impressionada com o mundo em que vive. Ela desperta a beleza da juventude na peça. Por ora, Wendla demonstra-se protetora e acolhedora dos desfavorecidos. Ela defende Martha, que sofre com a rigidez dos pais e a forma como é tratada pelos colegas de escola. Durante suas cenas principais, encontra-se imersa na reflexão sobre a bondade do espírito humano. Wendla conta que visita famílias pobres, mandada por sua mãe, para oferecer suprimentos e ajuda aos mais necessitados. Por isso, é vista como ingênua por Melchior que a tenta convencer de que o faz apenas por obrigação, afirmando que não existe bondade intrínseca ao ser humano, apenas o interesse. Tal reflexão passa a ser a temática principal que ilustra seus argumentos, sendo contrária ao pensamento de que sua bondade é favorecida pelo próprio ego. Apesar disso, sente-se culpada por não vivenciar situações desfavoráveis como a pobreza e a fome, sendo impelida a castigar-se na tentativa de sentir a dor e o sofrimento do outro. Wendla questiona sua mãe sobre o nascimento e a reprodução, pois encontra-se na esperança de que um dia casará e terá filhos como sua irmã, obrigações pertinentes ao modelo tradicional da época. Por negarem a educação sobre a natureza e o sexo, ela torna-se alvo de Melchior, que a abusa sexualmente. Ela acaba por engravidar e falecer durante um aborto forçado, arranjado por sua mãe que a tenta convencer de que a gravidez é inaceitável.
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“Por que é que você saiu do quarto? Foi pegar violetas? Porque a mamãe ia me ver sorrindo. Por que você não consegue mais controlar os lábios? Não sei. O que é que está acontecendo comigo? Eu nem sei achar as palavras pra explicar isso. O caminho parece de veludo. Nem uma pedrinha. Nem um espinho. Os meus pés não encostam no chão. Como eu dormi de noite! Era aqui que elas estavam. Eu me sinto estranha, como uma freira na comunhão. Violetas lindas! Não, mamãe, fique calma. Vou usar o vestido comprido. Se pelo menos aparecesse alguém que eu pudesse abraçar e contar tudo.”
wendla - Tem horas que eu sinto uma alegria tão grande. Parece uma ventania. Eu não sabia que alguém podia se sentir assim. Eu tenho vontade de sair correndo - no rio, no sol. Ficar sonhando. Aí eu tenho um ataque de dor de dente e acho que vou morrer. Frio e calor. Arrepios. Suor. Fica tudo escuro e o monstro aparece de novo. E toda vez que eu acordo, a mamãe está chorando. Ah, Ina, é insuportável. Eu nem sei explicar.
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fim do ato iii
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tipologia Sabon tiragem Ăşnica
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Baseado na peรงa O Despertar da Primavera de Frank Wedekind