Centro de
MemĂłrias e Ideias do TamanduateĂ 1
Pedro Felix Guilherme Wisnik
Este caderno consiste no Trabalho Final de Graduação de Pedro Ricardo Felix Telles dos Santos na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo.
O trabalho foi orientado pelo Prof. Dr. Guilherme Wisnik e concluído em julho de 2020.
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Centro de
MemĂłrias e Ideias do TamanduateĂ 3
Pedro Felix Guilherme Wisnik
AGRADECIMENTOS
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Ao meu orientador do TFG, Guilherme Wisnik, por me guiar pelos caminhos tortuosos e enevoados da contemporaneidade, iluminados por meio da arquitetura, arte, sociologia e filosofia. Foi um privilégio ser seu aluno durante a graduação e ter caminhado ao seu lado em meio à deriva da vida. Agradeço pelas conversas, pelas ideias e pela confiança em um projeto tímido e confuso que foi sendo desenhado em meio a toda sorte de adversidades. À professora Flávia Brito do Nascimento, por termos iniciado nossas trajetórias na FAU no mesmo ano, e desde então ter me orientado, me levando a crescer ao seu lado e construir a formação de arquiteto, pesquisador e acadêmico que carrego hoje. Obrigado por partilhar tanto do seu tempo e energia. Ao professor Ângelo Bucci, pelos ensinamentos de projeto e arquitetura que edificaram minha forma de pensar e projetar. Sua produção e ensinamentos sempre foram e serão referências para mim. Obrigado acompanhar a minha graduação e orientar alguns dos projetos mais marcantes da minha graduação além de ensinar a compreender e me apaixonar pela linguagem projectual da arquitetura brasileira. À FAU, como escola, casa, família e trabalho. Agradeço a todos os colegas, professores, funcionários e técnicos que cruzaram minha trajetória. Levarei todos os bons momentos e conhecimentos na memória e no coração. À FAUP, que foi minha casa durante um ano, mas que me trouxe outros olhares sobre a arquitetura, sobre o mundo e sobre as minhas próprias convicções. Aos meus amigos arquitetos e designers que acompanharam minha trajetória e levarei para a vida: Adriano Bergemann, Amanda Ferreira, Amanda Moreira, Angélica Holguín, Beatriz Coelho, Bruna Kanashiro, Clarissa Mohany, Gabriela Matsuzaki, Julia Kahvedjian, Larissa Lira,
Luiz Machado, Luiza Zucchi, Maria Eduarda, Maria Vittória, Marília de Castro, Melina Moscardini, Natália Mota, Pedro Fortunato, Stefany Trojan, Tereza Pessoa, Thais Mattos de Godoi, Thalissa Bechelli, Victor Sophia , Victor Vital Martins, e em especial Lucas Cunha e Bianca Lupo, que me ajudaram ativamente na realização deste trabalho. Aos eternos amigos da vida: André Almeida, Alexandre Serra, Cecília Conte, Christopher Nichols, Enrico Gomes, Gabriel Perrone, Gabriela Souza, Giulia Caropreso, Jefferson Luiz, João Pedro Branco, João Nuci, Julie Dias, Marcela Formoso, Marcus Vilar, Mariah Barone, Matheus Almeida, Natasha Lars, Pedro Valle, Rafael Yano, Rodrigo Santi, Sophia Donadelli, Thalita Cardoso, Thalis Baldassin, Taís Marques, Thiago Cortiz, Verônica de Oliveira, Victor Aviani, Victor Hugo, Victor Mariotto e em especial Pedro Grunewald Louro, por caminhar pelo incerto, sempre idolatrando a dúvida. À equipe da Jacobsen Arquitetura, por me acompanharem nesta etapa final e conceder a oportunidade e a confiança de seguir a minha trajetória como arquiteto. Obrigado pela incrível experiência de trabalhar com vocês e por mostrarem que ainda é possível trabalhar com dignidade, segurança e qualidade nas relações de trabalho. Aos amigos e trabalhadores do MUBE, que me mostraram que as situações mais adversas são capazes de nos unir e fortalecer os laços, além de que sempre podemos aprender mais com aqueles que trabalhamos lado a lado. Aos meus tios Luiz Telles e Ruth Zein, que me receberam tantas vezes em sua casa para discutirmos sobre a arquitetura, sobre a FAU, e sobre meus sonhos irreais. E sobretudo, aos meus pais, que me acompanharam desde o princípio e trabalharam arduamente para garantir o meu trajeto até aqui. Devo a eles a eterna gratidão de sonharem, à partir de mim, um futuro melhor.
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Dedico este trabalho à minha Mãe, Janete, e a minha avó Terezinha. Duas gerações de mulheres que sonharam em construir um mundo melhor à partir do trabalho feito com suas próprias mãos.
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índice introdução
p. 10
I. caminhos da informalidade
p. 28
II. transformações do capital e das relações de trabalho no brasil e em são paulo
p. 56
III. a deriva
p. 72
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IV. o edifício
p. 94
conclusão
p. 168
bibliografia
p. 173
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introdução
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INTRODUÇÃO
Ter o privilégio de estudar arquitetura me chamou a atenção para a necessidade de observar o mundo com visão crítica, buscando compreender as cidades e seus espaços. Estudar no lugar em que nasci desnudou o conformismo naturalizado em relação às suas condições urbanas, instigando minha vontade de compreender a realidade a partir do recorte individual, do presente e da suposta degradação em relação ao ideal construído pelas classes dominantes. Ao comparar a construção da cidade de São Paulo com tantas outras no Brasil e em outros lugares do mundo, é possível notar como a representatividade da história e a pluralidade da população, a partir dos interesses públicos, torna os indivíduos mais conscientes de seu próprio espaço, necessidades, capacidades e potencialidades. A visibilidade é uma forma de tornar o indivíduo protagonista de sua história. Toda cidade é um espaço de conflito e de disputa. Os atores que edificam o espaço urbano tomam como base os ideais de sua época, a partir dos interesses daqueles que ocupam a posição dominante; enquanto isso, aqueles desprovidos de manifestar seus interesses são excluídos da discussão. Considerando os poucos lugares que tive a oportunidade de conhecer pelo mundo, é notável a maneira como essa disputa se imortaliza na construção do espaço urbano, conseguindo não apenas definir sua leitura histórica, como também a história de quem somos e de quanto nós somos relevantes, em nosso tempo e nos tempos que virão. Compreender a história da cidade em que se habita é entender parte da construção de nossa identidade, permitindo a reflexão sobre a trajetória que nos trouxe até a atualidade. Desta maneira, conseguimos reconhecer a posição que ocupamos no espaço social – assim como passamos a identificar aqueles que desfrutam de mais privilégios ou que são mais oprimidos do que nós. A partir deste trabalho, utilizo os conhecimentos adquiridos no decorrer da minha formação para compreender não apenas o meu papel como arquiteto, mas também o papel dos trabalhadores neste momento de constantes
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1. A palavra Antropoceno deriva de combinação das raízes das palavras em grego anthropo(ανθρωπος) que significa “humano” e -ceno que significa “novo”).
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transformações nas relações sociais. O mundo contemporâneo se constrói não mais sobre a perspectiva do real, mas a partir de uma dinâmica virtual e computadorizada, na qual as relações se tornam mais abstratas e voláteis. Com elas, também sublimam as capacidades do indivíduo em criar conexões com a própria realidade. Enquanto adentramos no Antropoceno1 – essa nova era geológica em que a humanidade se torna tão influente para a transformação do planeta quanto as demais forças da natureza; o indivíduo vem sendo continuamente expropriado de suas conexões com o mundo e com a sociedade, ao passo que a realidade é experienciada através de uma série de mediadores digitais que transcrevem o mundo segundo algoritmos abstratos, os quais amplificam a popularidade e rentabilidade dessas mesmas janelas de realidade. É particularmente neste momento, quando a humanidade transforma ativamente todo o planeta, em que a linguagem, política, cultura, economia, saúde, educação, violência e outras questões – anteriormente, produtos exclusivos das relações humanas – vem se tornando cada vez mais abstratas e automatizadas. O trabalho, essencial atividade que permitiu a humanidade transformar e ressignificar sua posição no planeta hoje, é uma entre muitas outras relações sociais que está sujeita à precarização em decorrência das rápidas transformações que acompanham o mundo tecnológico, computadorizado e globalmente conectado. Enquanto as estruturas de produção se tornam globais, as transações econômicas se pulverizam, de modo que as relações de trabalho ficam significativamente mais voláteis e substituíveis. Neste mundo altamente conectado, o indivíduo que depende da sua própria força de trabalho segue em direção ao isolamento, tanto entre seus iguais, quanto invisibilizado pela sociedade. Uma vez que o mercado de trabalho o força a se identificar como competidor frente à sua categoria, a realidade do indivíduo se constrói a partir do alcance da sua rede social. Compreendendo a atualidade como esse mundo reconstituído a partir das necessidades do homem, em que a comunicação global possibilita conectar praticamente qualquer indivíduo a outro, não importando a distância, em questão de instantes; é paradoxal que, justamente neste mundo, o indivíduo vivencie tamanho isolamento.
O homem se torna um “Flâneur ” do mundo real e, portanto, passa desapercebido diante de toda a sociedade que vivencia suas experiências através dos mediadores que reinterpretam o real. A cidade, como produto das relações humanas, também apresenta na sua construção os efeitos da mediação da realidade por meio do universo virtual e a desmaterialização das relações sociais. Enquanto o indivíduo se desconecta da sociedade, sua representação já não é mais lida como um interesse comum, discutido pela sociedade, mas como um dado captado entre seus interesses e reinterpretado como um possível gerador de valor para novos empreendimentos. Enquanto o público se distancia cada vez mais da produção ativa da cidade, o capital encontra seus próprios meios de compreender as necessidades da população e categorizá-las conforme a possibilidade de lucro. O espaço privado incorpora a modernidade a partir da emulação do espaço público em seu interior, e a cidade passa a intensificar a atomização do indivíduo e sua completa desassociação com o real. Ao estudar o movimento situacionista, compreendemos que o caminhar à deriva pela cidade pode ser visto como uma maneira de criar situações inusitadas e novos significados ao espaço construído. A partir de jogos, atividades, instalações e performances, os situacionistas propunham projetar espaços urbanos completamente distintos sobre o espaço dado pelo presente, pelo agora. Essa ideia surrealista de recriar no espaço urbano outros espaços e propor outras relações, vagando sonambulamente por eles, e que busca ressignificar e potencializar o real, é anterior à era do mundo virtual como mediador do real. Entretanto, essa experiência de realidade aumentada é justamente a que utilizamos para compreender as dinâmicas dos centros urbanos e imaginar novas possibilidades de construção do real. Então, por que não convidar esse indivíduo atomizado e precarizado, já acostumado à sobreposição do virtual sobre o real, a percorrer os mesmos espaços “deteriorados” da cidade e sobrepor a ela suas diferentes camadas históricas? A cidade de São Paulo é frequentemente considerada como um espaço destruído e reconstruído continuamente sobre o mesmo território. Entretanto, nesse constante movimento pendular, algumas estruturas são deixadas para trás, como testemunhas de seu próprio tempo. Entende-se que compreender a história da cidade nos possibilita
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reconstruir e imaginar esses espaços urbanos já inexistentes e, a partir deles, revisitar virtualmente as cidades históricas e suas relações sociais, na tentativa de reconfigurar as origens de nossas próprias relações e da cidade constituída, permitindo imaginar novas possibilidades sobre a cidade real e compreender que a cidade construída não é uma estrutura parada no tempo e, sim, um produto das dinâmicas sociais. Desse modo, o indivíduo é capaz de integrar as dinâmicas sociais de forma consciente, interferir na construção da cidade e nas relações sociais que imperam sobre ele, desde que consiga se imaginar como parte de um grupo e não mais como indivíduo atomizado. Como produto do estudo da história da cidade e das relações de trabalho em São Paulo, imaginei um ponto focal no centro da cidade, de frente para o Rio Tamanduateí, a partir do qual é possível revisitar diversos momentos históricos de São Paulo, assim como sua importância para a história das relações de trabalho na cidade. Nesse ponto focal, pretende-se não apenas tornar legível a história da cidade e das relações de trabalho, como também abrigar as atividades profissionais dos trabalhadores precarizados e invisibilizados. O edifício proposto busca conectar a história da cidade com a modernidade, dialogando com as novas relações de trabalho e possibilitando que o trabalhador precarizado tenha a infraestrutura necessária para realizar suas atividades e entender mais sobre sua própria produção. Desta maneira, o indivíduo será aguçado a compreender a si mesmo como parte de um grupo real, que pode ser mobilizado como apoio e rede. Assim, imagina-se um edifício que toma para si a condição de trajeto situacionista, observatório da cidade histórica, espaço de aprendizado e experimentação contínua, local de trabalho flexível e reconexão do indivíduo com a cidade e com as diferentes condições dos trabalhadores de diversas áreas, mas que enfrentam semelhantes processos de transformação das relações de trabalho. Respeitando as demandas da região e consciente da incapacidade de se prever assertivamente o futuro das dinâmicas urbanas, idealiza-se um edifício que cumpra as necessidades da cidade atual e que possa ser utilizado em conformidade com as dinâmicas urbanas da região, pautando-se pelo uso temporário e efêmero, mas de grande fluxo da cidade. Dados esses pressupostos, concebemos o Centro de Memórias e Ideias do Tamanduateí.
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20!?
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I.
caminhos da informalidade
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PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO
1.1
A estabilidade parece se desmaterializar, cada vez mais, em função das transformações do capitalismo pós-industrial. Instituições, direitos, costumes e relações parecem se desmanchar. O trabalho, portanto, não está isolado neste cenário. Ao escrevermos a História como um ideal de progresso, uma constante construção sob a qual apoia-se o presente e sustenta-se o brilhante futuro que nos aguarda; por vezes nos esquecemos de que, na verdade, equilibramo-nos sobre um amontoado de opções definidas ao acaso, um empilhamento de decisões que, no calor do momento, fariam sentido, ou seriam inevitáveis. Porém, perante o observador do futuro, poderiam ser diferentes, uma vez que este caminha em meio às consequências da história. O choque do homem contemporâneo é perceber que sua realidade não é estável, mas dinâmica; e que o progresso não está direcionado para um futuro brilhante, mas para um caminho conflituoso definido por aqueles que vivenciam a atualidade. A burguesia não pode existir sem revolucionar incessantemente os instrumentos de produção, por conseguinte as relações de produção e, com isso, todas as relações sociais [...] Dissolvem-se todas as relações sociais antigas e cristalizadas, com seu cortejo de concepções e ideias secularmente veneradas; as relações que as substituem tornam-se antiquadas antes de se consolidarem. Tudo o que era sólido se desmancha no ar, tudo o que era sagrado é profanado e os homens são obrigados finalmente a encarar sem ilusões a sua posição social e as suas relações com outros homens (MARX & ENGELS, 1848, p. 43)
Marx e Engels, no Manifesto Comunista, escrito em 1848, atribuíram à burguesia industrial o poder de desmanchar a estabilidade social. A indústria tem papel essencial na modernidade, pois além de ser o grande motor do progresso, também possibilita que todos os bens que facilitam a vida moderna possam ser produzidos e adquiridos pela sociedade. E, além disso, emprega o trabalhador em troca do
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oferecimento de condições de existir e consumir, tornando-se integrante do mundo moderno. Nesse modelo, o trabalhador é parte essencial para a manutenção da sociedade, pois a indústria depende do trabalhador para viabilizar a sua produção e para consumir o seu produto. Porém, se a burguesia detentora dos meios de produção busca, em favor do seu próprio progresso, maneiras de otimizar a produção; o trabalhador, então, torna-se o elo frágil dessa relação, podendo ser substituído a qualquer momento. No decorrer da história, conflitos que vão desde as relações entre trabalhador e indústria, até as guerras mundiais, evidenciam a necessidade de que o Estado se torne um elemento de articulação. Para a manutenção do equilíbrio, atribui-se às instituições sociais e ao Estado a função de articular os interesses dos trabalhadores, da sociedade civil e dos detentores dos meios de produção para que haja alguma equidade entre as relações. Assim, seria constituído o Estado de Direito, como um regulador, visando garantir o equilíbrio das relações sociais e a manutenção da estabilidade necessária para se caminhar em direção ao progresso. Uma sociedade que almejava a equidade nas relações sociais, a constante geração de riqueza, o desenvolvimento da nação e aspirava ao ideal modernidade; é natural que enxergue com maus olhos a inconsistência de nossos tempos. Porém, as revoluções em questão já não estão sob o controle da burguesia, mas se manifestam numa complexa rede de interesses, na qual o grande capital, o Estado, as instituições sociais e a própria sociedade interagem sem necessariamente buscar o desenvolvimento comum. Com os avanços tecnológicos e a globalização do capital, a indústria se desarticulou na forma de uma extensa rede global, desativando sua produção interna e substituindo-a por partes produzidas em outras indústrias especializadas, de maneira a prevalecer o melhor custo-benefício para a indústria contratante. Bauman (2001) discute as relações sociais a partir da ideia da fluidez, considerando que a vida na modernidade é pautada pela incerteza e precariedade em decorrência da instabilidade e imediatismo constante em todas as relações. Ao discutir sobre o trabalho, mostra como a estabilidade foi um modelo que o capitalismo encontrou para manter o seu sistema de produção em pleno funcionamento. Ao mesmo tempo,
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a noção de trabalho contribuiu para a configuração de um ideal de progresso em andamento, onde trabalhador e indústria mantinham relação de dependência mútua. Nesse contexto, o Estado de direito funcionava como um dispositivo regulador, para além da direita e da esquerda, administrado e financiado coletivamente para manter o funcionamento de ambas as partes e assegurar a estabilidade do sistema. Sendo assim, a estabilidade seria consequência, e não causa. A mentalidade de longo prazo foi substituída por um modelo pautado a curto prazo, no qual a informalidade permite a livre circulação do trabalhador como vendedor de sua própria força de trabalho. Para resumir: a mentalidade de “longo prazo” constituía uma expectativa nascida da experiência, e da repetida corroboração dessa experiência, de que os destinos das pessoas que compram trabalho e das pessoas que o vendem estão inseparavelmente entrelaçados por muito tempo ainda — em termos práticos, para sempre — e que, portanto, a construção de um modo de convivência suportável corresponde tanto aos “interesses de todos” quanto à negociação das regras de convívio de vizinhança entre os proprietários de casas num mesmo loteamento. [...] Foi só depois da Segunda Guerra que a desordem original da era capitalista veio a ser substituída, pelo menos nas economias mais avançadas, por “sindicatos fortes, garantidores do Estado de bem-estar, e corporações de larga escala”, que se combinaram para produzir uma era de “estabilidade relativa”. A “estabilidade relativa” em questão recobre com certeza o conflito perpétuo. De fato, tornou esse conflito possível e, num sentido paradoxal, bem observado em seu tempo por Lewis Coser, “funcional”: para o bem ou para o mal, os antagonistas estavam unidos por dependência mútua. [...]. Enquanto se supôs que a companhia mútua duraria, as regras dessa união foram objeto de intensas negociações, às vezes com acrimônia e confrontações, outras com tréguas e concessões. Os sindicatos recriaram a impotência dos trabalhadores individuais na forma do poder de barganha coletivo e lutaram com sucesso intermitente para transformar os regulamentos incapacitadores em direitos dos trabalhadores e reformulá-los como limitações impostas à liberdade de manobra dos empregadores. Enquanto se manteve a mútua dependência, mesmo as jornadas impessoais odiadas com todas as forças pelos artesãos reunidos nas antigas
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fábricas capitalistas [...]. Essa situação mudou, e o ingrediente crucial da mudança múltipla é a nova mentalidade de “curto prazo”, que substituiu a de “longo prazo” [...]. “Flexibilidade” é o slogan do dia, e quando aplicado ao mercado de trabalho augura um fim do “emprego como o conhecemos”, anunciando em seu lugar o advento do trabalho por contratos de curto prazo, ou sem contratos, posições sem cobertura previdenciária, mas com cláusulas “até nova ordem”. A vida de trabalho está saturada de incertezas (BAUMAN, 2000, p.185).
O fim da estabilidade nas relações de trabalho marca não apenas o fim do modelo econômico industrial, mas também o fim do modelo “analógico” de produção, convertido para um modelo “digital” em constante transformação e atualização. Enquanto a indústria atraiu boa parte dos trabalhadores para a cidade, devido à concentração de empregos, melhores condições de vida, infraestrutura urbana e demais facilidades da modernidade; os serviços e o comércio se certificaram de que a experiência da modernidade chegaria à população. Partindo de diferentes escalas, desde as grandes corporações internacionais ao vendedor de rua, o mercado está aberto para quem se dispuser a vender a sua força de trabalho. Com a globalização econômica, a distribuição da indústria também se torna global. Com isso, setores inteiros são desativados ou trocam de lugar, de maneira que os trabalhadores acabam sobrando nesse novo modelo. Pensava-se que os avanços na tecnologia seriam capazes de, simultaneamente, gerar novos empregos e aperfeiçoar os meios de produção. Porém, a tecnologia não acompanhou a demanda por emprego na sociedade. A especialização, experiência e atualização se tornaram maneiras de diferenciar as capacidades do trabalhador. Ainda assim, a competição entre os trabalhadores por oportunidades continua a crescer: tanto para o jovem, mais atualizado com as novas demandas do mercado; quanto para o trabalhador mais velho, com anos de experiência. Do trabalho braçal ao intelectual, a instabilidade das relações de trabalho se torna certa. Não há mais oportunidades para todos os trabalhadores. O acesso à educação e à especialização se tornaram uma demanda social para garantir que todos pudessem ingressar no mercado de
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trabalho. Enquanto isso, aqueles que não têm garantidos nem mesmo seus direitos básicos são forçados a se lançar a oportunidades de trabalho ainda mais precárias e instáveis. Entretanto, a instabilidade e precariedade das relações de trabalho não unificam os trabalhadores, mas sim os jogam uns contra os outros, numa eterna batalha por oportunidade. O tempo e o espaço nos quais ocorrem as relações de trabalho também deixam de seguir o modelo da sociedade industrial, e passam a se adaptar à demanda do contratante, muitas vezes invadindo ou até impedindo que o trabalhador usufrua de qualquer tempo para lazer ou descanso. A necessidade de diferenciação e visibilidade entre os trabalhadores faz com que a mentalidade individualista se torne recorrente. Nesse contexto, muitos trabalhadores se iludem ao acreditar que, rompendo os limites definidos pelos padrões institucionalizados de trabalho, eles se tornariam os donos da própria força de trabalho, e, por consequência, do sucesso pessoal nas suas atividades. O modelo se fundamenta na figura de um trabalhador que vira empresário de si mesmo, de um vendedor cujo produto é a sua própria força de trabalho, alcança escala social suficiente para ser reconhecida, veiculada e divulgada como modelo ideal do trabalhador na modernidade. Afinal, conforme pontua o seguinte trecho: No mundo tecnológico e midiático da “pós-verdade”, o núcleo duro da aposta (de fundo marxista e surrealista) de Benjamin, na emancipação humana através do avanço técnico, supondo a existência de um fundamento do real como base de tudo, se desvanece (WISNIK, 2008, p. 97).
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CONSTRUÇÃO GERACIONAL
1.2
O trabalho precário é um fenômeno da contemporaneidade, mas não apenas reservado a ela. Em um país como o Brasil, marcado pelos abismos sociais, econômicos e raciais; a precariedade afeta uns há pouquíssimas gerações, enquanto mantém outros constantemente distantes de quaisquer oportunidades de trabalho digno. Enquanto a conquista de direitos trabalhistas era vista como progresso para a sociedade, diversos trabalhadores foram mantidos à margem de qualquer avanço, enfrentando, até hoje, condições de trabalho análogas à escravidão. Neste país de passado colonial, onde parte da ¬¬¬força de trabalho foi cruelmente dominada e explorada (como os povos indígenas originários), e outra foi escravizada e importada para o país (sobretudo os povos de origem africana); muitas relações de trabalho, ainda mais para o trabalhador pobre e negro, mantiveram-se problemáticas por carregarem em si o pensamento colonial. Diversos trabalhadores do campo passaram gerações nas mesmas condições de trabalho precário, enquanto trabalhadores urbanos que desempenham funções residuais do país escravocrata também são alguns dos últimos a ter algum respaldo legal para a regularização de suas funções. Passando para o outro lado do passado colonial, atividades relacionadas ao cultivo da terra foram, por muito tempo, a principal ocupação dos trabalhadores do país. Até mesmo nos centros urbanos, aqueles que não eram proprietários de terras teriam suas atividades realizadas em condições precárias e muitas vezes não monetizadas. As funções comerciais também poderiam ser substituídas por outros serviços, ou trocas de favores. A não monetização das relações de trabalho dessa época também influencia a situação atual. O histórico de exploração sobre as atividades consideradas de menor importância é a base sobre a qual a desvalorização das ocupações não intelectuais se constrói. A distinção estabelecida entre os trabalhos artesanais e intelectuais vai se manter até muito tempo depois da criação das primeiras universidades brasileiras. Mesmo que os trabalhadores
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de carreiras tradicionais do Brasil pré-industrial exercessem suas funções como atividade principal, muitos deles mantinham sua posição social pela posse de terras, títulos e bens, e não pelas atividades que executavam, o que significa que os ofícios intelectuais estariam reservados apenas aos representantes das mais altas classes sociais. A educação formal no país também tem parte fundamental na construção das relações de trabalho. Enquanto a educação deixa de ser um privilégio e se torna acessível a parcelas cada vez maiores da sociedade, a diferenciação na educação transforma-se em algo inerente à formação em si. Ao mesmo tempo que o Brasil importa mão de obra para as indústrias que nascem no país, cursos de artes e ofícios também começam a ser oferecidos, na busca pela criação de um estoque de mão de obra a ser utilizado nas linhas de produção. Se, por um lado, a indústria começa a tomar escala nacional e passa a influenciar os ritmos das cidades; por outro, é perceptível que a dinâmica dos centros urbanos começa a se separar em função das jornadas de trabalho. Logo, demandas internacionais também passam a se tornar reivindicações dos trabalhadores brasileiros: tais como diminuição das jornadas de trabalho, pausas para refeição, dias de folga nos fins de semana e proibição de menores nas linhas de produção. Após a instauração da República no Brasil, em 1889, apresenta-se o primeiro modelo de educação pública do país, dividida em Ensino Primário (equivalente aos primeiros anos do Ensino Fundamental); Ensino Secundário, composto por Ginásio (correspondente aos anos que seguem o Ensino Fundamental) e Colégio (atualmente, o Ensino Médio); e Ensino Superior. O modelo escolar brasileiro, assim como no restante do mundo, é um reflexo da lógica industrial: constitui um treinamento visando à inserção do indivíduo no mercado de trabalho. E, quanto maior o acesso à educação, maior sua especialização. A educação no Brasil ilustra bem a condição desigual do desenvolvimento das relações de trabalho no país. Enquanto proprietários de terras e membros das classes mais altas recebiam educação exemplar e podiam realizar atividades intelectuais, muitos dos filhos de operários e comerciantes seguiam em cursos profissionalizantes ou técnicos, e os trabalhadores já precarizados das classes mais baixas mal teriam a possibilidade de educar seus filhos. Mesmo que entrassem no sistema educacional, muitos não teriam
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condições de acompanhar o curso, abandonando-o recorrentemente para auxiliar nas atividades da casa ou trabalhar para prover o sustento de suas famílias, mantendo uma parcela considerável da população em atividades precarizadas e em condições desumanas. Essa conjuntura da educação brasileira passou a diminuir gradativamente com os avanços sociais do país. Entretanto, nunca se encerrou de fato, o que simboliza que muitas das atividades profissionais da população não foram capazes de dar condições de uma vida digna e igualitária a todos os cidadãos. A partir da industrialização brasileira, entretanto, iniciou-se a formação sindical no país, na tentativa de garantir aos trabalhadores equidade nas relações de trabalho industrial. Em decorrência da ação sindical, algumas conquistas de direitos passaram a se institucionalizar. Durante o período do Estado Novo, na era Vargas, nasceu a Justiça do Trabalho, em 1° de maio de 1941; e, posteriormente, a Consolidação das Leis de Trabalho (CLT) em 1° de maio de 1943. O dia 1° de maio foi instituído oficialmente como o Dia do Trabalho em homenagem à greve em Chicago, em 1886, que marcou o início das movimentações sindicais por todo o mundo. A CLT não estabeleceu apenas leis de trabalho sobre a indústria, como também sobre quase todas as atividades profissionais, marcando a história do trabalho no país com a possibilidade de maior estabilidade nas relações trabalhistas, representação legal e equidade nas relações entre trabalhador e empresa. Esse modelo almeja o equilíbrio das relações de trabalho, pautado principalmente pela regulação através dos sindicatos e do respaldo legal pela justiça do trabalho, que depende especialmente da constante luta e articulação dos sindicatos, que se instituem para recolher as demandas dos trabalhadores, discutir e negociar com as indústrias e empresas, além de representar o conjunto de trabalhadores perante o Estado e as leis, informando sua categoria das decisões tomadas, que afetam a todos. Esse modelo funcionou relativamente bem até a instauração da ditadura militar, instituída num contexto de polarização mundial entre o modelo capitalista e o comunista. Antecipando-se a qualquer possibilidade de que os trabalhadores do país se revoltassem e tomassem os meios de produção; elite econômica, segmentos da mídia e parte da população apoiaram a intervenção militar. Durante esse momento, os sindicatos se tornaram alvos diretos da estrutura
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militar, obstruindo os processos de construção histórica da luta dos trabalhadores, que se alinhariam aos ideais comunistas. Desde esse momento, a atuação do Estado Militar não se voltou mais para a fiscalização das condições de trabalho, e sim para a organização dos sindicatos, destituindo a estrutura sindical da articulação das relações trabalhistas e ampliando consideravelmente a precariedade das condições de trabalho. Com a finalidade de aumentar a capacidade produtiva do país através da exploração da mão de obra, o governo militar diminuiu o salário do trabalhador e ofereceu a possibilidade de financiamento, junto ao banco, do capital necessário para realizar suas funções. Com isso, dois problemas são consolidados durante a ditadura militar: a falta de credibilidade sobre as instituições sindicais devido ao isolamento do trabalhador durante o período de maior crescimento da indústria nacional e o vício econômico da crescente financeirização das relações econômicas, principalmente no que diz respeito à criação das linhas de crédito e financiamento habitacional. Esse sistema faz com que o trabalhador se endivide sistematicamente, forçando-o a aceitar condições cada vez mais insatisfatórias de trabalho em troca da continuidade das suas atividades geradoras de renda. Com o fim da ditadura militar e a reabertura política e econômica, a glória da volta da representatividade é subitamente interrompida com políticas econômicas experimentais ineficazes na função de estabilizar o país. A democracia brasileira é uma conquista constantemente questionada sobre sua eficácia na garantia de direitos básicos e regularização da economia, tornando-se um modelo governamental muito mais interessado em sua própria manutenção do que no equilíbrio das condições sociais e econômicas. O Estado, na jovem democracia brasileira, não se reinsere como instituição responsável pela estabilidade e desenvolvimento do país, mas sim como jogador entre outros poderes atuantes na própria estrutura de poder, definido políticas públicas e agendas oficiais que garantam sua manutenção no poder e sua elegibilidade futura, tornando dúbias as decisões desta instituição, que inicialmente deveria garantir a manutenção do bem comum. Em meio a isso, o trabalhador, descrente das instituições criadas para representar a sua categoria, e sujeito às decisões incertas do Estado, tenta encontrar meios de se estabelecer no novo cenário produtivo do país. Com o encolhimento da indústria nacional, as
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atividades econômicas voltam-se ao setor terciário, dominado pelos serviços e comércios, para encontrar sua fonte de sustento. O mercado de trabalho, por assim dizer, torna-se um ambiente competitivo, incerto e sujeito a constantes negociações. O trabalhador educado no modelo industrial, acostumado pela estabilidade das relações de trabalho e a grandes períodos contínuos de atividade econômica, passa a ter que decidir entre mudar de atividade produtiva, ou abrir um negócio próprio, baseado apenas na construção contínua de sua riqueza através da exploração da sua força de trabalho, e de quem mais puder comportar financeiramente, para a realização de suas atividades. Pode-se compreender que o capitalismo pósindustrial se orienta para a nova modalidade de trabalhadores, que não decorrem das condições de esforço próprio, do trabalho árduo ou do mérito e determinação do sujeito. Os fatores determinantes dependem da sorte de o indivíduo ocupar a função adequada no momento certo, de manter as relações mais convenientes, da organização geracional ter capacidade para criar uma rede de privilégios e bens possíveis de gerar renda, ou da possibilidade de conversão do capital a ser investido em novas atividades econômicas; que, novamente, estarão sujeitas às constantes mudanças do mercado. Se o trabalho não mais estrutura as promessas de progresso social, se os coletivos “de classe” foram desfeitos sob as injunções do trabalho precário, se direitos e sindicatos não mais operam como referências para as maiorias, se tudo isso mostra que os “tempos fordistas” já se foram, o trabalho não deixa de ser uma dimensão estruturante da vida social. Mas é isso também que abre a interrogação sobre as novas configurações sociais nas quais essa experiência se processa. Não se trata tão somente da ampliação do mercado informal e do aumento das hostes dos excluídos do mercado de trabalho. Como mostra Francisco de Oliveira (2003), a chamada flexibilização do contrato de trabalho significa que o trabalho “sem forma” se expande no núcleo do que antes era chamado de “mercado organizado”. Na base desse processo, diz o autor, está o salto nas alturas da produtividade do trabalho em época de revolução tecnológica e financeirização da economia, de tal modo que o processo de valorização se descola dos dispositivos do trabalho concreto e termina por implodir as distinções entre tempo do trabalho e tempo do não-trabalho, entre emprego e desemprego
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(TELLES, 2006, p. 2).
E é neste cenário que as gerações mais novas vão construir suas próprias relações de trabalho precárias, sobre as ruínas de um mundo imaginado à luz da racionalidade e, invariavelmente, trilhando a história em direção ao progresso. Com a desmaterialização das estruturas sociais – que, em teoria, seriam responsáveis por garantir a estabilidade da realidade, o desenvolvimento tecnológico e os direitos universais para usufruto de toda a população; o progresso deixa de ser uma construção coletiva e parte para a esfera individual. Sabe-se que sobre os mais jovens recai todo o peso do desemprego e do trabalho precário. Em torno de suas figuras, entrecruzamse os fios de um mundo social que se vem desenhando nas dobras do “mundo fordista” em dissolução (cf. BEAUD e PIALOUX, 2003). Justamente por isso, são as novas gerações as que abrem uma senda para compreender as mutações do trabalho e de seus significados (TELLES, 2006, p. 4).
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CONSTRUÇÃO TERRITORIAL
1.2
Enquanto a precariedade das relações de trabalho se desenvolve no âmbito social, o espaço urbano é simultaneamente construído e reconstruído, refletindo diretamente as relações sociais que se desenrolam em paralelo. Enquanto o pensamento do urbanismo moderno, racional e mecânico pretendia criar um plano geral para a cidade, definindo seus usos em torno da funcionalidade e composição estética, a cidade na contemporaneidade se reafirmou como um espaço dinâmico e complexo, fruto de uma multiplicidade de redes e dinâmicas sociais em constante interação e transformação. Diante desse contexto, qualquer tentativa de controle sobre as suas dinâmicas pode causar resultados inesperados. Retomamos, então, a ideia da cidade contemporânea como um Palimpsesto, onde o espaço urbano é constantemente apagado e reconstruído, formando-se a partir de uma colagem de diferentes momentos históricos justapostos, muitas vezes na mesma rua. Nesse sentido, o controle da “forma” urbana a partir da perspectiva modernista se torna impossível e os agentes sociais que constroem o tecido urbano o fazem como resultado de uma rede de diferentes ações e interesses, em constante tensão. Em São Paulo, ao visitar o centro da cidade, é perceptível a irregularidade do tecido urbano da colonização portuguesa. No entanto, os edifícios da região apresentam características muito mais próximas do ideal de Belle Époque europeia, do modernismo brasileiro ou da contemporaneidade da “cidade caipira” feita com taipa de pilão, madeira e cal. A linguagem da cidade se transformou com os anos, e as intenções que motivaram as decisões estéticas, formais e utilitárias, também. Está enganado quem imagina que o interesse em manter os edifícios históricos se baseia unicamente em preservar a memória da cidade, uma vez que o próprio desejo da elite de habitar novos ares fez com que a cidade constantemente alterasse a distribuição dos seus eixos econômicos e polos de atividades. O centro da cidade de São Paulo é
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um dos lugares onde se percebe melhor a mudança de significado do território urbano durante as transformações da cidade. Da elite cafeeira à cidade industrial, a cidade de barro se torna cidade de tijolo e pedra, aos modelos europeus. Logo, alguns membros da elite se interessaram com a possibilidade de trazer a indústria e parte da infraestrutura que mobilizava os avanços na Europa. Pelo fato de o centro histórico estar praticamente todo ocupado, a ferrovia se estabeleceu nos limites da cidade e as indústrias em seu entorno, já fora da colina histórica. A elite, consciente de sua acumulação de riquezas, decidiu que então podia, além de modernizar o espaço urbano, ser capaz de construir uma cidade a partir dos seus ideais de progresso. Seguiu, portanto, na direção oeste para buscar espaços mais dignos de serem habitados. O centro histórico, com a infraestrutura deixada tanto pela elite, quanto pelas instituições consolidadas no território, passa a adquirir caráter comercial e institucional, enquanto a periferia se torna o espaço da população trabalhadora, da indústria e das classes médias. Entretanto, já é notável que a parte pobre da população mora em condições ainda mais precárias, no não-espaço dos limites da cidade. Como não-espaço, compreende-se o espaço não habitável, situado na várzea do rio, no vazio entre as chácaras, nas franjas da cidade, onde couber. As áreas de várzea são as primeiras fronteiras da cidade, justamente pela impossibilidade, na época, de se controlar o fluxo do rio até sua retificação. Quando a cidade passa a se estender para além da colina do centro histórico, apenas os grandes rios servem de barreira para sua expansão. E, enquanto essa barreira se mantém, a várzea dos rios continua sendo ocupada pela população mais pobre da cidade. Ao analisarmos a relação da habitação precária às margens dos rios, nesse primeiro momento de expansão da cidade, fica claro que a ideia de “periferia” não está necessariamente relacionada com o limite geográfico do município, mas sim com o limite urbanizável da cidade e, por consequência, com a precariedade de se habitar nessas frestas sem infraestrutura. Indo para além da condição precária na proximidade dos rios, a situação das famílias de trabalhadores também se mostra precarizada. Enquanto as indústrias crescem, as famílias de trabalhadores passam a habitar em locais próximos ao trabalho, em moradias pequenas e amontoadas, como em prédios de apartamento, a exemplo da região central, mas sem nenhum dos luxos das habitações
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nos edifícios de inspiração europeia. As habitações encortiçadas podem pertencer a vários integrantes de uma única família ou de várias famílias, dividindo áreas de serviço, banheiro, cozinha e acesso ao saneamento básico. A situação da população que habitava fora do centro histórico ou dos bairros dotados de infraestrutura seria uma constante; até que a elite e a administração pública da cidade identificassem a perspectiva da venda de terras na cidade, para a população, como uma alternativa lucrativa para realizar melhorias no espaço urbano. Com novos projetos de modernização e a possibilidade de mercantilização da terra, os rios Anhangabaú e Tamanduateí puderam ser canalizados e retificados, suas várzeas drenadas e suas margens se converteram em exuberantes parques da cidade. A mercantilização das terras também possibilitou a venda de lotes para a população com capacidade de compra. Para os industriários, nasceram as vilas operárias. Para boa parte da população, a situação se tornou um tanto mais estável, mas as habitações precárias dos indivíduos mais pobres continuaram sujeitas à vontade do poder público e das elites. Quando necessário, a população carente seria removida ou apenas expropriada de suas habitações. Como exemplo, podemos citar o caso da grande enchente de 1929, em que o rio Tamanduateí inundou e danificou boa parte das habitações dos moradores, comerciantes e trabalhadores industriais na proximidade de suas margens, no bairro do Bom Retiro. Nessa ocasião, a empresa São Paulo Tramway, Light and Power Company se aproveitou do desastre para tomar posse dos imóveis danificados, implantar nova infraestrutura e revender os mesmos lotes para a população. Durante a década de 1930, a cidade de São Paulo começou a ser foco de novos projetos urbanísticos, justamente pelo crescimento econômico, em decorrência do desenvolvimento industrial e do avanço comercial da região. Os rios que separavam o centro histórico das demais vilas já não eram mais impedimentos físicos para a expansão e consolidação da cidade. Discussões sobre que modelos de crescimento e desenvolvimento urbano a cidade deveria tomar tornaram-se urgentes, virando um embate entre os acadêmicos da época. O plano de Avenidas de Prestes Maia (1896-1965), que se tornou prefeito em 1938, ofereceu o projeto que mais se assemelhou ao implantado na cidade. Seu projeto
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utilizava as várzeas dos rios como eixos de transporte, propondo bulevares arborizados que circundavam os limites da cidade, enquanto avenidas radiais conectavam o centro aos bairros mais distantes. A Plano de Avenidas emulava o modelo de crescimento europeu, que utilizava as hidrovias e ferrovias existentes como eixos de circulação e abria avenidas em continuidade a esses elementos de transporte, para completar a malha viária urbana. Entretanto, São Paulo não possuía nenhuma das duas outras alternativas de transporte consolidadas. Dessa maneira, atribuiu-se ao automóvel individual a tarefa de realizar o transporte de pessoas e cargas por toda a cidade. Mesmo durante o mandato de Prestes Maia, partes do seu projeto inicial não foram construídas conforme projetadas, mas sim como eram viáveis e rentáveis para sua construção. No lugar dos bulevares amplamente arborizados, os novos loteamentos acompanhavam os limites das vias que margeavam os córregos, quando não os sobrepunham por completo. Os loteamentos eram vendidos para custearem as obras de melhoramento e infraestrutura da cidade, angariando significativo lucro para as empresas que se responsabilizaram por essas operações. Com as classes médias trilhando em direção às zonas perimetrais de São Paulo, as elites em direção à zona oeste e a população pobre se acomodando nas brechas urbanas que restavam, o centro consolidava sua função comercial, enquanto as empresas que acompanham as novas dinâmicas econômicas passaram a ocupar os novos eixos comerciais da cidade. Os mercados de rua continuaram a ocorrer e se especializaram gradualmente. Enquanto isso, mercados municipais foram abertos ou reestruturados pelo Estado e se tornaram elementos essenciais para o abastecimento da população, bem como para a fiscalização e registro das operações comerciais. Os lotes que passaram a se espalhar pela cidade não são tão extensos quanto as propriedades das elites, mas abrigavam mais de uma geração familiar de uma vez, dividindo áreas comuns da casa como banheiro e cozinha. Esses ambientes começavam se integrar aos espaços interiores, conforme o sistema de abastecimento de água e esgoto se tornava mais comum. Além disso, popularizavamse os novos equipamentos domésticos, como o fogão e o chuveiro elétrico ou a gás, que passavam a adentrar os espaços residenciais. Os
1. Imagem: Enchente no Rio Tamanduateí. 1929. Fonte: Secretaria Municipal de Cultura. Disponível em: <https:// fotografia.folha. uol.com.br/ galerias/ 1658160 787541484-vejaenchenteshistoricas-nacidade-de-saopaulo>. Acesso em: 06 jul. 2020.
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equipamentos domésticos se tornaram cada vez mais essenciais para o ambiente doméstico. Enquanto as infraestruturas urbanas foram se ampliando, a relação da cidade com os seus rios se distanciou cada vez mais. Assim como os equipamentos domésticos, os carros começaram a se popularizar na cidade, disputando espaço com os pedestres e os bondes. O transporte via bonde contabilizava 160km de extensão pela cidade, mas viria a ser substituídos gradualmente pelo sistema de ônibus, por conta de crises na distribuição elétrica da cidade e pela maior facilidade de operar na cidade em constante crescimento sem a necessidade de se implantar a infraestrutura de cabeamento elétrico. Na década de 1940, favelas começaram a se espalhar pelos vazios urbanos da cidade, sobretudo ocupando áreas de chácaras. As favelas do Oratório, Ordem e Progresso, Vergueiro e Ibirapuera são alguns exemplos reconhecidos no Censo de São Paulo de 1950 (TASCHNER, 2001), e que hoje já não existem mais. Suas características mais marcantes eram construção precária, inexistência de infraestrutura básica, carência de abastecimento de água e esgotamento sanitário, pouquíssimas instalações sanitárias existentes (muitas vezes desproporcionais ao número de habitantes) e implantação em terrenos invadidos ou de propriedade desconhecida. A Favela e o Cortiço se espalharam pela cidade acompanhando seu crescimento e suas existências são possibilitadas pela existência de vazios urbanos e pela fiscalização ineficiente. A violência e a exclusão foram as principais medidas tomadas pelo Estado e pelo poder privado para o controle ou retomada dessas áreas. A partir de certo momento, o Estado passou a integrar os dados dessas zonas como parte de sua documentação e reconhecimento. Apesar disso, as condições apresentadas por essas zonas, assim como projetos de integração, melhoramentos, documentação, planejamento urbanístico e desenvolvimento urbano sempre se mostraram claramente em descompasso com o crescimento das áreas urbanas. A partir de 1970, a população favelizada cresceu explosivamente e o Estado começou a apresentar constantemente novos projetos de moradia popular, na tentativa de remanejar a população pobre e precarizada para novos conjuntos habitacionais. Esses conjuntos eram geralmente localizados longe dos centros urbanos e possuíam difícil acesso, principalmente por pertencerem ao poder público ou por
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serem áreas consideravelmente mais baratas para adquirir, justamente por deterem pouca ou nenhuma infraestrutura (TASCHNER, 2001). Apesar de as dinâmicas sociais dessas formações urbanas precárias se construírem inicialmente sobre o vácuo do Estado e do domínio privado, seu crescimento e consolidação depende da constante interação com ambos, execução de acordos, implementação de infraestrutura, realização de serviços e representação política. Tanto o Estado quanto o poder privado agem de maneira dúbia e, para manter a permanência da população nessas zonas urbanas, mostrou-se necessário que as comunidades instituíssem uma espécie de estrutura de poder social para além do Estado, um gerenciamento próprio, que se encarregasse de realizar essas relações e interações. Com isso, é possível perceber que as zonas precarizadas da cidade apresentam centralidades próprias – ou seja, centros comerciais, serviços e muitas outras facilidades da vida urbana; mas em condições precárias e em constante risco de sofrerem intervenções e repressões tanto do Estado, quanto do poder privado. Em 1993, grande parte das favelas paulistanas apresentava alguma infraestrutura urbana, como luz (82,2% das moradias), água potável (71% das moradias), coleta de lixo e mesmo esgoto (TASCHNER, 2001). Além disso, serviços como telefonia, internet, televisão a cabo, entre outros, colocavam-se à disposição da população, mas muitas vezes através de um “facilitador” ou “prestador de serviços” para a comunidade. Na questão do trabalho, microempresas e serviços são maioria dos contratantes, que muitas vezem empregam os moradores das redondezas que são debilmente integrados à estrutura governamental e ao fornecimento direto dos produtores formais da cidade. Porém, interconectam-se diretamente com a economia global, oferecendo produtos semelhantes àqueles encontrados nos comércios formais, assim como algumas alternativas a valores mais acessíveis, de procedência indefinida ou constituída de partes sobressalentes e reparos gerais. Os comércios dessas zonas muitas vezes dependem da circulação de produtos através de mercados informais, que geralmente são adquiridos no centro da cidade, nos mercados informais. Na década de 1960, a zona central da cidade passou por um duro processo de degradação, em parte pelas obras de infraestrutura viária que desvalorizaram significativamente o centro, como pela vinda de
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populações em situação de risco, usuários de drogas, profissionais do sexo, homossexuais marginalizados e outros grupos em constante repressão tanto por parte do Estado e da sociedade em geral. Com a repressão militar, a vida social da cidade se desmanchou gradualmente e, com ela, o gosto pelo uso do espaço público. Neste momento, a monotonia da movimentação pendular da cidade se consolidou e o carro se tornou a figura central da circulação, demandando constantemente o alargamento de vias, a construção de viadutos e túneis, ocupando gradualmente os espaços públicos da cidade. A necessidade de alternativas de transporte na cidade fez com que os governos estadual e municipal buscassem novas formas de movimentar a população urbana, que tomou forma, em 1974, com o novo sistema de metrô da cidade, partindo do centro nos eixos leste oeste e norte sul. No eixo sul, o sistema de metrô foi concebido a partir de uma grande trincheira por quase toda a sua extensão, que partiam no subsolo dos bairros mais antigos e vinham se projetando como viadutos em uma estrutura sobreposta à cidade e às vias radiais que a acompanhavam. Esse novo sistema de transporte não apenas mudou parte da cultura urbana da cidade, como também se irradiou, a partir das suas linhas, novas centralidades comerciais, fomentando os pequenos centros comerciais que ocorriam nas imediações das mais importantes avenidas. Esses centros comerciais também se configuraram, muitas vezes, como pequenas e médias empresas que vão se aproveitar da mão de obra local para oferecer seus serviços aos trabalhadores que utilizam a rede de transporte ou moram pela região, ao passo que a rede de transporte se expande pela cidade. Com a década de 1980 e a crise econômica que destruiu a indústria nacional, diversos trabalhadores urbanos passaram a recorrer aos centros comerciais e às empresas prestadoras de serviços como fonte alternativa de emprego. As pequenas centralidades comerciais da cidade se consolidaram e começaram a diversificar seus serviços, mesmo sem dispor da infraestrutura urbana necessária para isso. Os usos da cidade dormitório começaram a se variar dentro de edifícios concebidos inicialmente como habitação. O Estado passou a necessitar de mais mecanismos para regulamentar a atividade econômica da cidade e da população, que busca desesperadamente alternativas de trabalho para sobreviver.
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As pequenas e médias empresas começaram a compor, cada vez mais, o cenário econômico urbano. Entretanto, a ruptura abrupta responsável por sua ascensão também condicionou sua formação precária e, por conta disso, o Estado teve que buscar constantemente maneiras de fiscalizar e regular as atividades econômicas exercidas por essas empresas. Enquanto a economia ia se tornando cada vez mais global e abstrata, a financeirização das operações econômicas possibilitava tanto a fiscalização pelo Estado, como a possibilidade de auxílio ao crescimento das pequenas e médias empresas. Isso interessa aos bancos, que lucram com os juros sobre as operações. Então, as linhas de crédito, empréstimos, financiamentos e outras operações bancárias passaram a se interligar, cada vez mais, à regularização perante o Estado. Com isso, a necessidade de se regulamentar as relações de trabalho se tornou essencial para manter as transações econômicas da população. Entretanto, como é possível regularizar a enorme gama de atividades econômicas enquanto a tecnologia, globalização e crescimento do setor terciário vem se complexificando a cada instante? Ao passo que as atividades se diversificam e o mercado de trabalho demanda novas formas de qualificação, novos regimes de trabalho e novas infraestruturas; a regularização por parte do Estado dessas atividades exige constante revisão e, enquanto não se estabelecem, a informalidade das relações de trabalho cria constantemente novas brechas, novos vazios e novas formas de precariedade. Essa situação adquire contornos mais alarmantes para as atividades de baixa remuneração, baixo conhecimento técnico ou para as atividades temporárias, desempenhadas geralmente pela população historicamente precarizada. O encolhimento da indústria brasileira, aliado à globalização da economia e da cultura, assim como o crescimento do setor comercial de pequeno porte e a consolidação dos mercados informais do centro da cidade contribuíram significativamente para a desestruturação das relações de trabalho. Outros efeitos podem ser vislumbrados, como a criação do mercado de produtos informais e a expropriação da população da capacidade de produzir e consumir de maneira digna e regularizada. Como alternativa à incapacidade das instituições de acompanharem as transformações do trabalho e a facilitação das
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atividades econômicas financeirizadas, as novas leis voltadas ao Microempreendedor Individual (MEI) possibilitaram a regularização do irregularizável, normalizando o trabalhador como o vendedor da sua própria força de trabalho. Para as empresas, isso não apenas livra a necessidade de abrigar o trabalhador sob a sua estrutura financeira e tributável, mas também torna esse trabalhador um componente dispensável, substituível e temporário no desenvolvimento produtivo. As relações de trabalho, que anteriormente se constituíam semelhantemente a um sistema mecânico, ou a um “Hardware”, em que o trabalhador era um componente essencial para a continuidade do funcionamento da empresa; agora configuram-se como uma alternativa digital, um “Software”, que é ativado conforme a demanda. O trabalhador se torna uma espécie de apêndice da empresa, podendo ser “plugado” ou “desplugado” de acordo com a necessidade. Quanto ao trabalhador, resta a ele estar constantemente disponível a oferecer seus serviços, mas sem nenhum compromisso em relação à estabilidade ou continuidade das suas atividades. Muitas vezes, o próprio trabalhador é responsável por garantir a infraestrutura necessária para a realização de suas atividades, e ele mesmo é culpabilizado caso sua função não seja desempenhada corretamente, mesmo que dependa de incontáveis outras interações com trabalhadores na mesma situação. As relações de trabalho na atualidade se caracterizam por esse modelo digital, efêmero, instável e de consumo rápido. Entretanto, tanto a cidade, como as instituições reguladoras, não são capazes de acompanhar essa dinâmica a ponto de produzir infraestrutura urbana necessária a viabilizar essas atividades. Além disso, a produção da cidade, em geral, não se interessa em produzir a infraestrutura necessária para a nova configuração das relações de trabalho, principalmente porque o desempenho do trabalho se volta para o ganho individual do trabalhador. A produção contemporânea da cidade já não se baseia no projeto urbanístico modernista, cuja estética e volumetria da cidade é preestabelecida. Hoje, a produção da cidade é definida pelo Estado como um conjunto de fórmulas a serem calculadas a partir dos dados existentes e dos parâmetros legais. Enquanto essa produção paramétrica se desenvolve, o resultado gráfico é uma cidade abstrata,
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que se distancia das infraestruturas necessárias para sua utilização final. O mercado imobiliário, que tomou o lugar da autoconstrução e agora multiplica o valor da terra, produz novas formas de urbanidade. Através de fórmulas legais e da popularidade das características mais lucrativas de suas últimas vendas, define-se o novo padrão de habitação e uso da cidade, muitas vezes evocando o espaço público, o comércio, o serviço local ou até infraestruturas de lazer coletivo para serem experienciadas no âmbito individual. Para a multiplicação do valor da terra, já não é mais rentável criar grandes unidades habitacionais ou comerciais, de modo que se pulverizam as infraestruturas prediais como emuladores da vida urbana. Essa produção abstrata da cidade, quase como um subproduto de uma inteligência artificial que ainda não foi capaz de compreender a finalidade dos dados que processa, começou a identificar a necessidade do espaço de trabalho como uma demanda lucrativa o suficiente para ser incorporada entre os outros espaços emuladores da vida urbana. Espaços voltados para a realização das atividades profissionais começaram a se espalhar pela cidade. O escritório domiciliar, que só seria encontrado anteriormente em residências luxuosas, passa a se popularizar como o chamado “Home Office”, aparecendo em unidades eventualmente menores que 40m². No ambiente urbano, o “Cibercafé” evolui para o “Coworking” e começou a virar uma alternativa ao escritório tradicional, abrigando o profissional conforme a demanda, podendo oferecer um computador ou apenas uma superfície para o trabalhador locar o seu equipamento. Pela necessidade de oficinas e espaços de produção na cidade, o “Fab Lab” é oferecido pelo Estado como uma alternativa à oficina, uma vez que os trabalhadores manuais muitas vezes não têm capacidade de estruturar um espaço adequado para a realização de suas atividades. Estruturas pop-up como restaurantes, cafés, lojas, bares e cafés se popularizam, transformando essas atividades comerciais em um evento efêmero. Até mesmo os trabalhadores manuais se veem dependentes das feiras livres para que seus produtos artesanais possam ganhar visibilidade, uma vez que o universo digital se encontra tão labiríntico que o algoritmo de publicidade online já não consegue alcançar compradores o suficiente para manter suas atividades.
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Para os mais jovens, as circunstâncias atuais do mercado de trabalho não significam uma degradação de condições melhores ou mais promissoras em outros tempos. Eles entraram num mundo já revirado, em que o trabalho precário e o desemprego já compõem um estado de coisas com o qual têm que lidar, e estruturam o solo de uma experiência em tudo diferente da geração anterior (TELLES, 2006, p. 4).
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II.
transformações do capital e das relações de trabalho no brasil e em são paulo
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MILAGRE ECONÔMICO E INDUSTRIALIZAÇÃO
2.1
Enquanto o modelo brasileiro de protecionismo econômico e de fomento da industrialização brasileira se manteve, durante o período da Ditadura Militar, a economia brasileira experimentou grande crescimento e, por conta disso, muitos brasileiros também migraram para os centros urbanos do país em busca de melhores oportunidades de trabalho e maior estabilidade econômica. O êxodo rural tomou força com a intensa mecanização da produção agrícola. O crescimento industrial e as grandes obras de construção civil realizadas durante o período militar contribuíram para que muitos trabalhadores pudessem adentrar nesse novo ritmo da produção e da economia nacional. Nesse período, também é notável a perseguição política, principalmente em relação às forças sindicalistas e a trabalhadores mobilizados por questões políticas. Esse contexto contribuiu consideravelmente para o enfraquecimento da organização sindical no país. Além disso, o governo militar passou a investir em indústria de base, justamente para fortalecer a produção nacional e permitir a execução de seus projetos dispendiosos – sobre os quais, até os dias de hoje, não há informações claras a respeito dos custos de tais operações. Contudo, ainda assim, o país apresenta grande crescimento econômico, desenvolvimento dos centros urbanos, ampliação das vias de transporte e sentimento de modernização dos meios de produção nacionais. A população em geral experiencia uma situação econômica diferente da indústria do país, com a considerável redução do poder aquisitivo das classes mais baixas e maior precarização das relações de trabalho, fazendo com que demandas básicas como moradia, saúde e educação se tornassem inacessíveis às famílias que chegavam aos centros urbanos. Para assegurar que a produção do espaço urbano se mantivesse como um gerador constante de renda, houve a criação de bancos com oferecimento de linhas de crédito para a população, a partir do modelo de financeirização da economia, no qual o consumo não se baseia no montante de capital existente, mas sim no potencial
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gerador de capital do trabalhador. A estabilidade das relações trabalhistas assume um papel ainda mais importante para o trabalhador dependente da sua força de trabalho como única geradora de renda para sua existência. Se, anteriormente, o rendimento gerado pela força de trabalho mal conseguia sustentar todos os custos de vida; agora, com o auxílio imediato por meio das linhas de crédito, tornava-se possível antecipar o montante de rendimento de anos de trabalho, desde que o trabalhador garantisse ao banco que seria capaz de pagar esse mesmo montante, acrescido de juros, com anos de trabalho. A financeirização da economia tem papel fundamental no contexto brasileiro, pois ela possibilita que a população consiga ter acesso facilitado aos bens de consumo. Porém, com isso, são consideravelmente comprometidos os rendimentos subsequentes à aquisição de uma dívida. Além disso, a população passa a se tornar dependente desse tipo de operação econômica para sustentar seu padrão de consumo, deixando de ser um trabalhador que acumula rendimentos provenientes da sua força de trabalho e tornando-se um trabalhador quitador de dívidas. Os gastos da manutenção da própria vida do trabalhador são gerados muito antes dele mesmo ser capaz de oferecer sua força de trabalho. Essa condição do indivíduo endividado, que tomará cada vez mais força na modernidade, altera as relações de trabalho a ponto de o trabalhador se tornar novamente o elo mais frágil da cadeia, uma vez que sua existência depende da continuidade perpétua das relações de trabalho estabelecidas. Em caso de rompimento, o trabalhador se torna incapaz de manter qualquer continuidade em seu padrão de consumo. E a fragilidade econômica desse sistema é colocada à prova sempre que se deflagra qualquer crise no sistema econômico, fazendo com que diferentes mercados de trabalho operem em movimento pendular, entre crise e crescimento. No Brasil, o milagre econômico se encerra justamente com a interferência do mercado internacional sobre o capital nacional. Com a crise do petróleo, em 1973, terminam os empréstimos internacionais e a dívida externa do país acumula-se com o crescimento das taxas de juros dos bancos internacionais. A partir de então, o Estado já não é mais capaz de manter as injeções de capital na indústria nacional e o empresariado tampouco tem a possibilidade de gerar rendimentos
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suficientes para manter sua linha de produção e garantir a modernização da indústria. Isso se deve ao próprio modelo econômico de proteção da indústria nacional, pautado pelas altas taxas aplicadas sobre os produtos importados. Se o trabalhador, anteriormente, já sofria com a precarização de suas relações de trabalho pela interferência do governo militar sobre os sindicatos; a desvalorização de sua mão de obra vai fazer com que seu poder aquisitivo se torne ainda menor, o que obriga o trabalhador a encontrar alternativas viáveis para possibilitar seu consumo e sobrevivência na modernidade, mesmo que através de maneiras alternativas à legalidade.
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REABERTURA ECONÔMICA E UMA NOVA FORMA DE CONSUMIR
2.2
No início da década de 1980, torna-se perceptível o encolhimento da indústria nacional, enquanto a demanda por bens de consumo seguiu como uma necessidade da modernidade. A indústria nacional tentava encontrar meios para manter sua existência, mesmo que isso significasse deixar os centros urbanos e migrar em direção ao interior do país, onde os custos para a manutenção de suas atividades seriam menores, ou até mesmo deixar o país, em busca de mão de obra barata e melhores condições para se adequar ao mercado internacional. Enquanto os núcleos urbanos de produção fechavam as portas, a dívida internacional e nacional encerrava a possibilidade de continuidade do modelo de crescimento econômico. Esse contexto afetou principalmente o trabalhador, que já se encontrava em situação delicada, desesperando-se em busca de qualquer oportunidade que amenizasse as dívidas criadas a partir das linhas de financiamento e crédito que possibilitaram a sua existência nos anos anteriores. O Brasil adentrou um novo universo econômico: a economia globalizada e a desindustrialização. Diante desse cenário, o território nacional já não retinha em seu interior a infinidade de transações econômicas que possibilitaram o consumo da modernidade. A situação se tornou tão crítica que o governo militar não suportou a pressão e o país seguiu em direção à restauração do modelo de representatividade popular e de reabertura democrática da política brasileira e, consequentemente, de reabertura da economia frente ao mercado internacional. A reabertura econômica da década de 1990 foi consideravelmente importante para o cenário do capitalismo pós-industrial que se constrói nos dias de hoje. Enquanto o protecionismo econômico e o fechamento do consumo do país permaneceu durante a ditadura militar e conseguiu assegurar que as indústrias se mantivessem nas regiões mais ativas economicamente do país, por meio da retro injeção massiva de produtos nacionais e assegurando a circulação de
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capital no âmbito nacional; a abertura econômica trouxe à tona uma indústria desatualizada e pouco competitiva no cenário internacional. As políticas do pós-guerra criaram polos industriais tecnológicos em território americano, europeu e asiático. Os massivos investimentos em tecnologia e educação começaram a fabricar, como resultado, muitos dos produtos eletroeletrônicos consumidos mundialmente. Além disso, a própria indústria nacional começava a enfrentar altos custos de manutenção nos centros urbanos que as forçavam a buscar novas frentes em outros municípios – ou até mesmo fora do país – em locais onde a mão de obra seria mais barata. Dessa maneira, com os custos de produção reduzidos, haveria maior facilidade de manterem sua operacionalidade. Iniciou-se, então, o processo de desindustrialização dos grandes centros urbanos, marcando o fim do modelo de crescimento industrial e a entrada massiva da população no setor terciário. A emergência de um período de crise afetou não somente a indústria nacional, como todas as escalas econômicas do país, gerando grande evasão do capital nacional e aumento da inflação. Esse cenário também afetou as relações de trabalho. Tanto a estrutura industrial, quanto a estabilidade econômica se desfizeram conforme o brasileiro médio se tornou urbano, passou a consumir serviços e a desejar produtos importados. Nesse momento, as gerações economicamente mais consolidadas se viram forçadas a buscar alternativas para manter o próprio consumo, assim como as novas gerações de jovens passaram a encontrar cada vez menos possibilidades de trabalho, devido à maior necessidade de capacitação técnica e intelectual, que começou a inundar o mercado de trabalho, forçando o trabalhador desqualificado ou com poucas oportunidades a depender de opções que vão desde o trabalho temporário, até os nichos de serviço; e que se apropriarão das condições adversas para oferecer oportunidade de trabalho com baixa remuneração e sem a possibilidade de estabilidade econômica ou ascensão no mercado de trabalho. A desindustrialização do país e a migração para um setor terciário baseado em pequenas e médias empresas – com alta acumulação de renda e evasão de capital econômico – criam uma situação delicada no país para o trabalhador, que se torna sobrante de um sistema em transformação. Mesmo com todo o histórico de lutas sindicais e
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direitos trabalhistas, o modelo capitalista opta sempre pela diminuição do custo de produção e pela não manutenção de empregos para a população. O capitalismo, em si, tem uma relação destrutiva com o valor do trabalho, como explica Marx em “O Capital”: O capital tem a tendência a reduzir ao necessário o trabalho vivo diretamente empregado, a encurtar sempre o trabalho requerido para fabricar um produto — explorando as forças produtivas sociais do trabalho — e, portanto, a economizar o mais possível o trabalho vivo diretamente aplicado. Se observamos de perto a produção capitalista, abstraindo do processo de circulação e da hipertrofia da concorrência, verificamos que procede de maneira extremamente parcimoniosa com o trabalho efetuado, corporificado em mercadorias. Entretanto, mais do que qualquer outro modo de produção, esbanja seres humanos, desperdiça carne e sangue, dilapida nervos e cérebro. Na realidade, só malbaratando monstruosamente o desenvolvimento individual assegura se e realiza se o desenvolvimento da humanidade na época histórica que precede a fase em que se reconstituirá conscientemente a sociedade humana. Todas as parcimônias de que estamos tratando decorrem do caráter social do trabalho, e é de fato esse caráter diretamente social do trabalho a causa geradora desse desperdício de vida e da saúde dos trabalhadores (MARX, 1974, p. 97 e 99).
Por assim dizer, os trabalhadores excluídos por conta da crise gerada pela evasão industrial perderam tanto sua fonte de capital, como sua estabilidade social e financeira, sendo forçados a encontrar alternativas muitas vezes pautadas pela informalidade e pelas más condições de trabalho. Em geral, encontram-se opções temporárias ou com grande rotatividade, a fim de impossibilitar qualquer ascensão ou estrutura mobilizada pela força de trabalho. E, com esse novo modelo de trabalho, gerações mais novas, em busca de caminhos estáveis no mercado de trabalho, terão de se deparar com uma realidade completamente oposta: a da falta de opções e possibilidades ainda mais deformadas das configurações de trabalho que as gerações anteriores vivenciaram. Já não é de hoje que se discutem os efeitos excludentes das atuais mutações do trabalho, sob o impacto da reestruturação produtiva em tempos de revolução tecnológica e globalização da economia. No entanto, ainda pouco se sabe sobre as configurações societárias
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que vêm sendo urdidas nas dobras dessas transformações. Entre, de um lado, os artefatos da “cidade global” sob o foco dos debates entre urbanistas e pesquisadores da economia urbana e, de outro, os “pobres” e “excluídos” tipificados como público-alvo das políticas ditas de inserção social, há todo um entramado social que resta conhecer. E é isso justamente que situa o terreno em que ganha pertinência relançar a discussão sobre os sentidos e os lugares do trabalho na tessitura do mundo social. Se o trabalho não mais estrutura as promessas de progresso social, se os coletivos “de classe” foram desfeitos sob as injunções do trabalho precário, se direitos e sindicatos não mais operam como referências para as maiorias, se tudo isso mostra que os “tempos fordistas” já se foram, o trabalho não deixa de ser uma dimensão estruturante da vida social (TELLES, 2006, p. 174).
Nesse momento, em que a industrialização deixou de ser edificante no espaço urbano, os serviços e a terceirização passaram a dominar a estrutura econômica das grandes metrópoles. Isso influenciou na estrutura social e urbana da cidade. Os espaços industriais começaram a perder significado. Consequentemente, seu uso passou a se desvalorizar. Enquanto isso, o comércio também sofreu, já que as pessoas sem emprego deixam de consumir em massa os produtos do dia a dia, e passam a movimentar menos a economia. Por fim, temos uma crise também em relação à renda dos que usufruem do valor da terra, tanto pela desvalorização de regiões inteiras da cidade, como também pela falta de dinheiro suficiente para o pagamento de alugueis, forçando muitas pessoas a buscarem outras vertentes mais precárias de habitação ou de locação para as atividades comerciais. Entretanto, é por meio do trabalho informal que muitas pessoas pertencentes às classes mais baixas vão conseguir ingressar no mercado de trabalho e participar mais ativamente das atividades econômicas do país. Essa aproximação das classes mais baixas a partir de atividades comerciais e de serviços junto ao crescimento do setor terciário serão benéficos por propiciar o acesso ao consumo das classes mais baixas aos bens industrializados e tecnológicos que revolucionarão a vida das pessoas nas próximas décadas. Como uma tentativa de aumentar a circulação econômica no país, o reajuste do salário mínimo e a concessão de programas sociais auxiliarão que as classes mais baixas possam ter acesso aos bens de consumo e serviços,
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não apenas com a intenção de dignificar a vida da população, como também de fortalecer a economia e expandir a financeirização das suas atividades econômicas. Apesar da baixa reincidência dos produtos nacionais no país, o desejo de consumir produtos importados muitas vezes faria com que outra modalidade de produtos fosse distribuída no mercado brasileiro: os produtos pirateados e falsificados. Muitas vezes adquiridos por meio do contrabando ou da produção de cópias não autorizadas, a ausência de tributação favorecia que as classes mais baixas pudessem ter acesso aos mesmos. A comercialização de produtos ilegais não é novidade dos mercados populares; mas, com a deterioração da indústria nacional e a alta demanda de produtos industrializados, os mercados informais começavam a explorar essa demanda e os comerciantes da região passaram a ter consciência das possibilidades que essa nova modalidade de mercado propiciava. Logo, vendedores de rua e pequenas lojas começaram a aparecer nessas ruas, em busca de ocupar um espaço junto à movimentação e ter acesso tanto ao público quanto aos fornecedores desses bens, aumentando a rede de trabalhadores informais que abastecerão, em pouco tempo, mercados populares e de rua por toda a cidade. Esse momento econômico acaba por trazer, também, mais trabalhadores informais para a região central, deteriorada e descaracterizada, com muitos espaços para se realizar negócios, possibilitando a abertura de uma nova modalidade de comércio diferente daquela regulamentada e controlada pelo poder governamental. A região central, desde cedo, apresentava mercados de rua, e parte da comercialização desses mercados se pautava na presença de vendedores ambulantes que distribuíam mercadorias de todos os tipos. Junto a esse modelo, a conivência do Estado à não regularização do comércio ambulante possibilitou que brechas legais fossem aproveitadas para viabilizar que mais comerciantes pudessem realizar, ali, suas atividades. Utilizando as infraestruturas desse outrora importante centro comercial, o comércio informal tendeu a aumentar na região. Aproveitou-se, também, do grande fluxo de pedestres do centro histórico, da proximidade de edifícios comerciais que se mantiveram na região, da presença bancos e serviços governamentais e da oferta de infraestruturas de transporte que conectam toda a cidade.
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Três grandes mercados populares se consolidaram como importantes na região central: a rua 25 de março, a rua de Santa Ifigênia, e a rua do Brás. As duas primeiras, no centro histórico, se caracterizam por comercializar todo o tipo de bens de consumo, sobretudo bens industrializados e eletrônicos. A informalidade é uma característica marcante desses mercados. Ao contrário de uma suposta ausência do Estado, este está presente por meio de ações de controle e fiscalização de diferentes instâncias de governo: federal, estadual e municipal. [...] As transformações em curso não devem ser compreendidas apenas à luz das dinâmicas internas do país. Esses mercados populares são, cada vez mais, espaços globalizados, atravessados por dinâmicas globalizadas. Embora a maioria dos comerciantes seja composta por brasileiros, há uma notável concentração de imigrantes. Alguns trabalham com a distribuição de produtos locais, principalmente vestuário – como bolivianos, coreanos e, em menor medida, paraguaios e peruanos. Outros atravessam o Atlântico em busca de roupas confeccionadas no Brasil para revendê-las em seu país, como os Angolanos. Libaneses e chineses, situados no centro da cidade e em seu entorno imediato, são pontos de articulação de circuitos comerciais, de escalas variadas, que indicam o crescimento de troca entre países do Sul, não apenas em termos de investimento de capital e demanda de matérias primas, mas também em termos de modalidade de pessoas e circulação de mercadorias. Esses tradicionais centros de comércio passam por profundas transformações em razão dos fluxos econômicos que os atravessam, sendo atualmente foco de intervenções do poder público e campo de disputas entre diferentes grupos (FREIRE, 2015, p. 288).
O espaço público como espaço de disputa é uma constante da construção das cidades. Porém, no caso de São Paulo, a construção das dinâmicas informais de comércio, trabalho e habitação – sobretudo para as classes mais baixas – não se baseia inteiramente na ausência do Estado, mas sim na construção de um território parcialmente reconhecido pela estrutura do Estado e construído sobre uma dinâmica local, que apresenta apreensões complexas entre o que é legal e institucionalizado – e o que não é.
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É claro que os estados latino-americanos são Estados Modernos,
com uma maioria de instituições democráticas, sistemas legais e representação internacional, mas, pelo menos metade das transações ocorre em sistemas de registro não estatais. Se uma cidade formal pressupusesse um padrão regular para o seu interior e um exterior amorfo e irregular, a cidade latino-americana poderia ser descrita a partir de outra geometria: a de nós, por exemplo, onde não houvesse interior nem exterior, onde diferentes tipos de transações e de sistemas de registro pudessem ser ligados, desligados ou permanecer indiferentes, conforme as circunstâncias. Poderíamos dizer, generalizando, que a cidade latino-americana é uma cidade debilmente governada e que a cidade europeia é uma cidade intensamente governada. Ou para sermos mais precisos, as cidades latino-americanas convivem com zonas debilmente governadas e as cidades europeias encontram-se num processo de intensificação de regulamentos (TORROJA, 2008, p. 64).
A manutenção das “zonas debilmente governadas” muitas vezes envolve uma série de conflitos entre Estado e população, que tendem a favorecer principalmente os interesses dos agentes envolvidos no direcionamento do Estado, ou na estrutura alternativa ao próprio Estado. Esse contexto acaba criando situações de perseguição à população, que sobrevive desse sistema complexo estabelecido na zona debilmente governada para sobreviver e realizar, ali, suas atividades. Por exemplo, o mercado informal da rua 25 de Março se inicia como um mercado baseado em vendedores ambulantes, e passa gradualmente a ocupar espaço nas galerias comerciais da região – tanto por serem inicialmente alugueis baratos, quanto por se manterem seguros da repressão policial e da fiscalização que passa a ocorrer na região. A partir daí, o mercado de rua se desenvolve e as galerias passam a se valorizar e a se multiplicar. O aluguel se torna mais alto e as lojas passam a ocupar cubículos com apenas um balcão, que exibem todos os itens a venda e escondem as sacolas de estoque. Dentro das galerias, espaços privados por excelência, torna-se mais difícil que a fiscalização impeça a venda e revenda desses produtos. Então, o Estado reforça a fiscalização e repressão sobre os vendedores ambulantes, criando um regime periódico – porém imprevisível – de repressão. Enquanto isso, mesmo que um lojista seja forçado a encerrar suas atividades, logo outro toma o seu lugar, oferecendo o mesmo tipo de produto que boa parte dos outros comerciantes, muitas vezes até
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dividindo estoque e oferecendo produtos de outras lojas, de maneira a criar uma rede complexa de mercado informal na qual não seria possível encerrar suas atividades. Enquanto essa teia de relações se desenrola, o Estado busca encontrar alternativas para controlar e fiscalizar esse mercado, tanto por demanda do comércio formal, que é diretamente afetado, como também dos próprios comerciantes em busca por segurança e reconhecimento de suas atividades. Para além dos mercados populares informais, pequenas e microempresas também demandam reconhecimento e formalização das suas atividades, por caracterizarem uma parcela considerável das atividades econômicas do setor terciário no país. Por um lado, essa nova modalidade de empresa começa a se instituir e a se regularizar, de modo a auxiliar o trabalhador autônomo do comércio e o pequeno empresário em questões legais, auxílios, benefícios, facilitação de crédito e acesso a direitos trabalhistas. Por outro, também emerge uma nova alternativa de precarização do trabalhador, desvencilhando-o das relações formais de trabalho e realocando-o como prestador de serviços às empresas. A partir desse momento, passa-se a considerar a pequena e microempresa no mesmo patamar que o trabalhador. De fato, seria benéfico para o trabalhador autônomo de baixa renda deixar de ser um indivíduo precarizado, invisibilizado e expropriado das facilitações econômicas que dispõe uma empresa de maior porte. Porém, essa estrutura também desloca muitos trabalhadores para fora da estrutura empresarial, desconectando setores inteiros da criação de relações unilaterais de prestação de serviços, nas quais o trabalhador pode ser contratado pela demanda de uma atividade e não pela atividade em si. Dessa maneira, torna-se completamente instável qualquer relação do trabalhador com a empresa e, ainda mais, transfere-se toda a responsabilidade sobre a atividade exercida e a infraestrutura necessária para o próprio trabalhador. Essa nova modalidade de relações afeta não apenas o trabalhador do comércio, como também o trabalhador manual e intelectual. Essa nova categoria de trabalho, o microempreendedor, vai além da função do Estado de regulamentar as relações informais, ou da necessidade de o trabalhador formalizar suas atividades. Justamente a complexidade de relações que se constroem e se destroem mutuamente, envolvendo-se em simbologias dúbias e significados
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fetichizados, permite que diversos trabalhadores percam seus direitos e se isolem em suas atividades, na esperança de serem reconhecidos pelo desempenho e gestão da sua força de trabalho, sem perceber que a atomização das suas atividades movimenta a economia para a concentração de capital enquanto reduz significativamente os direitos trabalhistas e a equidade nas relações entre empresa e trabalhador.
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III.
a deriva
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DERIVA COMO RECONHECIMENTO DO TERRITÓRIO E DO INDIVÍDUO
3.1
Ao tentar compreender a cidade contemporânea, é necessária a sobreposição das diversas camadas que a compõem; seja no tempo, no espaço, ou no que diz respeito aos diferentes agentes que a constroem e que dão aos seus espaços significado e uso. Como uma sobreposição de diversas colchas de retalhos, a cidade não possui uma imagem uniforme e nem é passível de ser visualizada em sua totalidade de forma única pelo observador. Cada pessoa irá experienciar a cidade de maneira diferente, e atribuir significados distintos a ela, mesmo que sejam indivíduos de uma mesma classe, gênero, grupo ou tribo urbana. Até porque um mesmo indivíduo consegue, muitas vezes, transitar entre essas categorias que o identificam como integrante da sociedade. A cidade, assim como os indivíduos que nela habitam, também possui a mesma capacidade de se transformar, muitas vezes mudando completamente o uso de alguns de seus espaços pelas mais diferentes questões. Rituais, procissões, festas, eventos, performances, protestos, embates, desastres. Todos são acontecimentos que interrompem o uso quotidiano da cidade e transformam seu significado, mudando até mesmo algumas normas sociais, permitindo ou inibindo seus agentes de agir conforme a normalidade. É interessante pensar que, no mesmo espaço onde se construiu uma espécie de “código de conduta” para todos os indivíduos que ali atuam, pode se instituir uma normativa completamente diferente, caso esteja instituída uma espécie de “brecha” temporal na qual um evento acontece e todos podem se transformar de sua naturalidade passiva para um agente atuante no espaço público. Essa possibilidade de transformação das normas de conduta, no uso e no significado do espaço urbano acompanha as cidades desde os tempos mais antigos. Muitas estruturas da cidade são, na verdade, a consolidação desses espaços de constante transformação, que se separam do espaço público e se tornam instituições. Por vezes, essas
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instituições, originalmente, ocorriam no espaço público. Muitas vezes, esses “eventos” voltavam a transbordar para as ruas, praças, largos e outros domínios públicos da cidade. Locais como igrejas, teatros, fóruns, arenas – e até mesmo estruturas muito específicas, como o nosso sambódromo – são locais onde institucionalizamos eventos que nasceram do espaço público, mas que foram separados. Por um lado, esse afastamento garantia seu reconhecimento; por outro, garantia que não fosse interrompido o ritmo quotidiano da cidade, ou ainda que os eventos pudessem ser realizados com exclusividade para alguns indivíduos ou grupos na cidade. De qualquer maneira, quando esses eventos, institucionalizados ou não, transbordam para o público, a cidade transita entre seus significados, ganha novas leituras e se transforma. Pensar que, desde os tempos primordiais, nós, humanos, nos reunimos para criar essas movimentações, transformações e eventos, de formas cíclicas ou pontuais; nos faz acreditar que esses eventos institucionalizados sejam uma questão natural da cidade, mas que, por serem bem definidos, não tiram do espaço público o seu significado quotidiano. Entretanto, o que acontece quando ocorrem eventos não institucionalizados? Revoltas, greves, manifestações e conflitos armados são momentos em que normas instituídas são quebradas, subvertidas, reinterpretadas e, muitas vezes, acabam por dar ao espaço urbano uma camada permanente de significado, mesmo que lembrado de maneira simbólica. Nos momentos de conflitos, também são feitas negociações de grande importância sobre o espaço público, ou sobre a sociedade que ali habita. Unindo essas duas faces dos eventos urbanos, é possível compreender que a cidade é um espaço de constante atrito entre os grupos que ali habitam, e que está sempre sujeita a mudanças. Sobretudo nesses breves momentos de “brechas” da normalidade, abre-se espaço para a construção de significados potentes para a cidade e seus espaços comuns. Voltando dessa análise geral, é preciso posicionar a cidade contemporânea em seu tempo. Se lembrarmos que, durante a era moderna, atribuíamos significados e compreendíamos questões pela razão e pela estabilidade, podemos compreender que tanto os indivíduos, quanto a cidade, representavam uma espécie de “constante”. Grupos se fixavam em locais definidos, separavam-se
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conforme classe e gênero, enquanto outros grupos estabeleciam instituições específicas e normas que deveriam reger a todos os indivíduos. Não à toa, durante a era moderna se estabeleceu o conceito de Estado, que deve ser a instituição que regula, governa e pune toda a sociedade, conformando assim a estrutura que orienta a sociedade ocidental e que está diretamente ligada ao espaço urbano. Porém, quando observamos a era pós-moderna, é perceptível como a estabilidade está muito mais próxima de um ideal do que da realidade. Instituições clássicas começam a perder significado e poder, ao passo que os grupos começam a se tornar mais híbridos e as relações se transformam com maior intensidade. O mesmo, também, ocorre no espaço público: locais simbólicos passam a ser ressignificados, questionados e ocupados de maneiras distinta; espaços institucionalizados passam a ser usados de novos modos; símbolos e significados atribuídos aos espaços públicos são criados e destruídos tão rapidamente que é quase impossível constituir uma leitura uníssona pela sociedade. E é nessa realidade instável – e muitas vezes distópica – que as transformações deixam de ser apenas “brechas” na continuidade urbana e passam a se tornar estruturas móveis, fluidas e passageiras pela cidade. Para que, então, se compreenda minimamente a cidade – não em sua totalidade, mas fenomenologicamente; é necessário que se faça não apenas um estudo histórico, mas também que se observe o que de fato está presente em seu território, buscando estabelecer comparações que permitam a atribuição de significados próprios e individuais sobre o lugar. O pertencimento na pós-modernidade não é mais intrínseco do indivíduo, e sim uma construção. Para que seja constituído o senso de pertencimento, é preciso superar estruturas e conceitos preestabelecidos, aproveitando-se da ingenuidade e do questionamento crítico para ressignificar o espaço público. A partir disso, o experimento situacionista passa a ser uma estratégia interessante para adentrar o espaço urbano com novos olhares e construir significados únicos pelos agentes que circulam e ocupam os espaços públicos e, a partir disso, instituir nos indivíduos um sentimento de pertencimento ao território que já vivenciam. O movimento da Internacional Situacionista buscava a construção de uma nova territorialidade por meio da vivência nômade do espaço,
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como uma negação da passividade do percurso moderno e maniqueista de vivenciar a cidade. Por meio da criação de situações, jogos e percursos no meio urbano, a deriva na cidade se torna ferramenta para a construção de um conhecimento sobre a própria sociedade, um instrumento de mapeamento de significados visíveis e invisíveis no território, uma possibilidade de apropriação do espaço público e de transgressão à segregação instituída nos espaços urbanos. Como um combate à espetaculização passiva da modernidade, encontra-se o estímulo à deriva ativa dos indivíduos, incentivando que conheçam e compreendam a cidade, participando politicamente das decisões de seu território. [O urbanismo unitário] opõe-se ao espetáculo passivo, típico de nossa cultura, na qual a organização do espetáculo se estende de forma tanto mais escandalosa, visto que o homem pode, cada vez mais, interferir de novas maneiras. Enquanto hoje as próprias cidades oferecem como um lamentável espetáculo, um anexo de museu urbano para turistas que passeiam em ônibus envidraçados, o urbanismo unitário vê o meio urbano como terreno de um jogo do qual se participa. O urbanismo unitário não está idealmente separado do atual terreno das cidades. É formado a partir da experiência desse terreno e a partir das construções existentes. Deve tanto explorar os cenários atuais, pela afirmação de um espaço urbano lúdico, tal como a deriva o reconhece, quanto construir outros, totalmente inéditos. Essa interpretação (uso da cidade atual, construção da cidade futura) implica o manejo do desvio arquitetônico. O urbanismo unitário não aceita a fixação das cidades no tempo (JACQUES, 2003, p. 13).
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Compreender a cidade como uma sobreposição de significados e tempos sobre um mesmo território físico permite que possamos transitar erraticamente como se caminhássemos entre dimensões infinitamente distintas, mas justapostas. Guiar-se por um mapa de outro tempo revelaria, escondida entre ruas e prédios, uma cidade perdida... Quase como transitar pelo mapa de outra cidade, mas de estrutura semelhante, permitindo a crítica e a comparação ativa sobre o território conhecido. Portanto, a mudança de perspectiva possibilita com que a cidade quotidiana se transforme frente aos olhos e crie nos atores presentes uma camada completamente distinta de significado. Porém, como estratégia metodológica, é quase impossível convidar um
indivíduo, na sua experiência quotidiana banal do espaço público, a desbravar a cidade de forma errática, perdendo a linearidade de sua trajetória. Assim sendo, a melhor estratégia é fazer com que o espaço quotidiano se torne um espaço legível, interessante e interativo, ativando indivíduos passivos e tornando-os atores de seu próprio território. Como solução a essa questão, utiliza-se o território como ferramenta que instigue o observador passivo a se tornar agente da descoberta do espaço público. Uma possibilidade efetiva é a utilização da linguagem do seu próprio território – resultado dessa perda ou esvaziamento de significado – e a amplificação de certas características que o tornam um espaço de conflito para que seja lido de forma crítica. Pode-se pensar na utilização de estruturas temporárias que possibilitem essas leituras, assim como a vida informal que ocorre nesse mesmo território, a fim de conferir protagonismo aos indivíduos e participação aos transeuntes que perpassam realidades díspares, porém justapostas.
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DERIVA NO TERRITÓRIO À PARTIR DO EDIFÍCIO
3.2
Localizado sobre a antiga várzea alagável do Tamanduateí, o edifício proposto se relaciona diretamente com a colina histórica e com um conjunto de prédios de caráter simbólico situados no entorno. O principal deles marca a cidade como sendo sua primeira construção: o Pátio do Colégio. A primeira igreja erguida em São Paulo foi, posteriormente, convertida em Palácio do Governo, quando recebeu uma grande reforma e ornamentos clássicos, depois demolida e reconstruída como se imaginava ter sido em sua forma colonial original. A partir deste edifício, tem-se a mais ampla vista para a várzea do rio Tamanduateí. Dessa localidade, é possível sobrepor à cidade a mesma vista pintada por Benedito Calixto, conhecida como “Inundação da Várzea do Carmo” (1892). Na pintura, já era possível visualizar as pontes que levavam à rua do Gasômetro e à rua do Brás, além da primeira construção do Mercado Municipal, em 1860. A partir dessa vista, também era possível reconhecer o complexo do Gasômetro, atualmente reconhecido como Casa das Retortas, e a estrutura metálica circular. Ironicamente, nos dias de hoje, essa vista é interrompida por um edifício-estacionamento de aproximadamente 34 andares – que junto com outros estacionamentos menores na mesma quadra, desempenham a função de abrigar os veículos daqueles que passam pela região. Para além do Pátio do Colégio, é possível seguir pela rua Roberto Símonsen e encontrar o Beco do Pinto, entre os edifícios do Museu da Cidade e o Solar da Marquesa. Esses edifícios preservam exemplares marcantes da arquitetura colonial paulista, contemporânea à cidade de taipa. A via de pedestres, marcada por um belo pórtico, é a primeira conexão da cidade com o rio Tamanduateí – local onde passavam viajantes, escravos, animais, cargas e mercadorias para serem transportadas pelo rio a partir do Porto Geral. Em sua extensão, recortes distribuídos pelo piso sinalizam a constituição de um importante sítio arqueológico para a cidade. Além disso, é possível que a visita também seja mediada por intervenções artísticas, uma vez que o Museu da
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Cidade utiliza o Beco como espaço para instalações Site Specific, projetadas especialmente para dialogar com a cidade. Descendo um pouco mais, no fim do Beco, é possível ver a altura da encosta da colina histórica em um dos seus principais acessos. A partir desse ponto, adentramos a antiga várzea do rio, que hoje encontrase a algumas quadras, tendo cedido seu espaço a alguns edifícios residenciais que, junto com o bairro do Glicério, servem de residência a boa parte dos trabalhadores de etnia chinesa que circulam pela região, sobretudo da rua 25 de Março. Até o início do século XX, o Beco do Pinto dava de encontro com a antiga “Ilha dos Amores”, que fora substituída pelo parque Dom Pedro II e, hoje, tem seu acesso direto ao rio interrompido pelo terminal de ônibus de mesmo nome. Seguindo para a próxima localização histórica, temos a Ladeira do Carmo, atual avenida Rangel Pestana, tida como estrada histórica que leva até a cidade do Rio de Janeiro, outrora capital do país. Esse outro acesso histórico foi, por muito tempo, a entrada principal de São Paulo, tendo recebido a primeira ponte de ferro da cidade. Sua extensão é marcada pelo grande edifício da Secretaria da Fazenda e do Poupa Tempo da Sé, com um caráter de quase arranha-céu, que hoje lhe confere a função de marcar a paisagem, antes delimitada pela construção vizinha à sua, a igreja do antigo Mosteiro do Carmo. Junto com o Mosteiro de São Bento e o Mosteiro de São Francisco, a Igreja do Carmo formava uma das três pontas que delimitavam o triângulo histórico da cidade, entre as ruas Direita, São Bento e 15 de Novembro. Essa vista é essencial para se compreender a relação da cidade histórica com o rio e com a sua posição estratégica no território como entroncamento de estradas utilizadas desde o Brasil pré-colonial, pelos povos indígenas originários, até ser consolidada na era militar como estrada federal, conhecida como BR116, que ainda segue diretamente ao Rio de Janeiro. Outro acesso ao edifício parte do Mosteiro de São Bento, onde a linha 1 Azul ocupa o largo de São Bento com uma estação em frente ao mosteiro de mesmo nome, e se espalha por esse ponto que marca o vértice norte do triângulo histórico. A partir dele, é possível descer para ambos os lados da colina histórica. Vamos, então, seguir em direção à Ladeira Porto Geral, cujo nome remete à sua função inicial. O rio Tamanduateí, diferentemente do rio Anhangabaú, era calmo
1. Imagem: Cartão Postal do Mercado dos Caipiras. Fonte: Secretaria Municipal de Cultura. Disponível em: <https:// ribeiraopreto culturaljaf. blogspot. com/2018/03/ mercado-doscaipiras-1904-saopaulo.html>. Acesso em: 06 jul. 2020.
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1. Nas margens do que chamavam de Porto Geral, desembarcavam viajantes, escravos, animais e mercadorias que circulavam pelo interior a partir das conexões fluviais desempenhadas na região do Rio Tietê. Muitos de seus produtos não esperavam ser transportados até a acrópole, subindo pelo Beco do Pinto até os mercados nos largos da cidade e, sim, eram comercializados ali mesmo, nas margens do rio. Esse espaço acabaria por ficar conhecido como Mercado Caipira.
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e navegável. Mesmo com a mudança de seus meandros durante os períodos de cheia, quando era conhecido como 7 voltas, era muito utilizado como hidrovia na cidade. O nome “ladeira” não é gratuito, uma vez que este percurso atravessa diretamente a colina histórica em direção ao rio, que tinha suas margens logo ao pé do declive. A rua que alcançamos, a partir daqui, é a 25 de Março, anteriormente chamada de “Rua do Mercado”. Não por acaso, nessa rua se localiza um dos primeiros mercados importantes da cidade, o “Mercado Caipira1”, que abasteceria as feiras dos largos na colina histórica. Sua posição, ao pé da encosta da colina, demonstra como a função comercial nasceu antes mesmo de o local se configurar como rua. O lado oposto ao da colina costumava ser o limite do Rio Tamanduateí. Hoje, é difícil perceber como a posição do rio mudou; mas o contraste da inclinação das Ladeiras de acesso em relação à planície que a rua dispõe demonstra como a antiga várzea alagável do rio foi tomada pela cidade em expansão. A rua 25 de Março marca não apenas o uso comercial dessa área, como também a história do trabalho da cidade, remontando à São Paulo de 1930. A área, que concentrava a função de mercado popular, atraiu muitos imigrantes sírios, libaneses e árabes, que introduziram na região lojas de fábrica, principalmente de tecidos. Muitos dos edifícios que ocupam a zona ainda têm seu uso voltado para a comercialização de tecidos, bijuterias e materiais relacionados à confecção. Nomes como Chohfi, Jafet, Azem e Schahin, pertencentes a famílias imigrantes do Oriente Médio que enriqueceram no ramo de tecidos após imigrarem para o país, estão presentes na região. Para além dos milhares de lojas e galerias que a 25 de Março abriga, também é possível visitar o edifício do Mercado Municipal, em estilo neoclássico, que foi reconstruído na margem oposta à colina histórica, marcando o início do processo de retificação do rio Tamanduateí. Além disso, a Avenida Mercúrio, que forma a esquina do Mercado Municipal, cruza o rio Tamanduateí em direção ao Largo do Pari, dando acesso à zona cerealista, notória pelo abastecimento de produtos a granel para toda a cidade. A Avenida Mercúrio também se conecta ao mercado do Pari, uma das primeiras estruturas que compunham o CEASA, responsável pelo recebimento, fiscalização e distribuição de alimentos por todo o país, e a Feira da Madrugada, que abastece os comerciantes formais e informais
da região e de toda a cidade com os mais diversos produtos. A função de mercado da rua 25 de março foi capaz de transbordar a várzea do rio e hoje concentra uma das maiores zonas comerciais da América Latina, além de acomodar em suas ruas enorme mercado informal. Funciona, também, como estrutura temporária, uma vez que operações policiais costumam interferir regularmente na dinâmica da região, fechando boa parte das galerias e dispersando os vendedores ambulantes. Outro percurso importante é a Rua General Carneiro, outrora chamada de Rua Municipal, que liga atualmente a rua 15 de novembro – um dos limites da cidade histórica – à praça Fernando Costa, também limítrofe à rua 25 de Março e responsável pelo acesso ao atual terminal de ônibus Parque Dom Pedro II. Essa rua se inicia dentro do centro histórico, como parte das ruas tortuosas remanescentes da cidade de taipa, e vai de encontro ao parque Dom Pedro II, atravessando a ponte de pedestres. Essa ponte é oriunda da continuidade com a rua do Gasômetro, que conecta o centro histórico com o começo da zona leste da cidade. Essa região foi essencial para o desenvolvimento industrial da cidade. Marcos como o Palácio das Indústrias, que abrigou a prefeitura de São Paulo até 2004 – hoje ocupado pelo Museu Catavento – mostram a importância da região. Na margem oposta ao rio Tamanduateí, temos a casa das Retortas e o complexo do gasômetro, planejado para ser base do Museu do Estado de São Paulo e, mais à frente, encontra-se a estação Brás, que une a linha Turquesa da CPTM com a linha 3 Vermelha (sentido leste oeste). A linha Turquesa da CPTM, remanescente da São Paulo Railway Company e da estrutura ferroviária que ligava a Cidade de Jundiaí ao porto de Santos, é o berço da atividade industrial da cidade que cresceu em volta das vias férreas. Seu percurso também atravessa o grande ABC paulista, que acomodou boa parte da estrutura industrial do Estado e está fortemente ligada aos movimentos sindicalistas que possibilitaram a criação da justiça do trabalho e da CLT. Por último, mas não menos importante, temos o percurso partindo do Terminal de Ônibus Parque Dom Pedro II, cujas linhas de ônibus percorrem as principais avenidas da cidade, seguindo o modelo do Plano de Avenidas de Prestes Maia. Esse terminal é essencial para o funcionamento da cidade, apesar de ter sido concebido como estrutura temporária. Sua localização, junto ao anel central de distribuição
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das vias, possibilita que o passageiro circule por quase toda a região. Além disso, esse terminal também tem seu acesso através de uma passarela elevada, que parte da margem do leito atual do Tamanduateí e passa sobre o espaço que era ocupado pelo rio anteriormente. Desse ponto, pode-se observar a colina histórica, quase reproduzindo uma vista oposta àquela do Pátio do Colégio. A Avenida dos Estados, que margeia o terminal e o Rio Tamanduateí, segue seu percurso quase ininterruptamente, a partir do momento em que seu leito toma forma no município de Mauá, até o encontro com o Rio Tietê. Esses são alguns dos percursos possíveis até o edifício, que tomam proveito das diversas camadas de história urbana para tornar o território legível enquanto se deriva pela cidade. Entretanto, muitas outras derivas podem ser propostas. A partir da retomada de legibilidade da cidade Palimpsesto, a retomada do exercício de reconhecer a história é inevitável. Justamente esse aspecto busca ser explorado pelo edifício. Como um edifício-âncora, de onde partem as jornadas derivativas pela cidade, espera-se que seu usuário possa continuamente construir mais e mais relações com a cidade, sempre retomando suas leituras sobre a cidade no próprio edifício, para depois desbravá-la, ou utilizar o próprio edifício como observatório do espaço urbano. Ao compreender a função do edifício como centro de memórias, é essencial que o aprendizado a partir do espaço urbano se torne inerente a qualquer jornada do indivíduo pela cidade, de modo que o sujeito seja capaz de se reconectar com o espaço urbano edificado, assim como se sinta apto a compreender sua posição na estrutura urbana como digna e de direito; para que isso, também, possa se refletir nos outros espaços urbanos que o mesmo indivíduo ocupa.
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VISIBILIDADE E RECONHECIMENTO
3.3
A ideia da deriva como nova forma de ler a cidade também se alinha com a proposta de uso do edifício. Enquanto o edifício privilegia seus acessos como reaproximação com a história do espaço urbano, o programa arquitetônico permite seu uso como estrutura pop-up, disponível aos trabalhadores desprovidos de espaço físico para a realização de suas atividades. Compreendendo a cidade como produto das relações sociais e, em decorrência da desmaterialização das relações de trabalho tradicionais, o reposicionamento das estruturas de trabalho na cidade acabou sendo negligenciado como uma demanda válida e necessária para a continuidade da própria cidade. Enquanto isso, o trabalhador expropriado da infraestrutura básica se encarrega de adquirir para si as condições mínimas para a continuidade de sua produção, multiplicando inúmeras vezes o custo para a realização de suas atividades e gerando um consumo desnecessário de produtos que poderiam ser utilizados em conjunto. Por essa razão, imagina-se a criação de um edifício que disponibilize infraestrutura para vários trabalhadores realizarem suas atividades e, junto a isso, também aprimorem suas habilidades e adquiram novos conhecimentos. O Centro de Ideias do Tamanduateí tenta criar uma ponte entre a memória das relações de trabalho na São Paulo de outrora e as potenciais relações de trabalho da São Paulo que virá a se constituir. O principal papel de conectar essas realidades é através da reconstituição da dignidade do trabalhador por meio de sua visibilidade como indivíduo e como categoria. O Centro de Ideias busca dar condições para o trabalhador exercer suas funções, enquanto também tenta compreender suas necessidades, além de buscar conectá-los entre si. Para isso, imagina-se a criação de um centro de cadastramento dos trabalhadores, para coletar dados socioeconômicos, histórias pessoais e mapear suas condições de trabalho. Dessa maneira, pretende-se tornar possível a compreensão sobre qual a real demanda de espaços de trabalho para a população
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na cidade e, a partir desses dados, traçar políticas públicas que ajudem na produção da cidade, de modo a integrar o trabalhador precarizado como parte da sociedade, reivindicando seu direito de uso sobre a cidade e de trabalhar com condições justas e dignas. Compreende-se, então, que o Centro de Memórias e Ideias do Tamanduateí busca não apenas ser um espaço usado por toda a população, mas também um projeto que possa se expandir e se multiplicar pela cidade, na tentativa de ampliar uma rede de ambientes de trabalho que auxiliem o trabalhador precarizado e, também, torne-o consciente das necessidades e potencialidades de suas próprias regiões.
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O ESPAÇO DE TRABALHO COMO DIREITO À CIDADE
3.3
As chamadas cidades “globais” do capitalismo avançado são divididas socialmente entre as elites financeiras e as grandes porções de trabalhadores de baixa renda, que, por sua vez, se fundem aos marginalizados e desempregados. [...] As cidades sempre foram lugares de desenvolvimentos geográficos desiguais (às vezes de um tipo totalmente benevolente e entusiasmante), mas as diferenças agora proliferam e se intensificam de maneiras negativas, até mesmo patológicas, que inevitavelmente semeiam tensão civil. A luta contemporânea de absorver o mais-valor durante a fase frenética de construção da cidade (basta observar o horizonte das cidades de Xangai, Mumbai, São Paulo, Cidade do México) contrasta dramaticamente com um planeta onde as favelas proliferam. Tais desenvolvimentos urbanos desiguais traçam o cenário para o conflito social. As cidades nunca foram, é verdade, lugares harmoniosos, sem confusão, conflito ou violência. Basta nos lembrarmos das histórias da Comuna de Paris, de 1871, ou das revoltas de 1864 contra o alistamento, para ver o quão longe chegamos. [...] Fluxos migratórios em toda parte: elites empresariais, em movimento; acadêmicos e consultores na estrada; diásporas tecendo (muitas vezes clandestinamente) redes através de fronteiras; ilegais e clandestinos; os despossuídos que dormem às margens e mendicam nas ruas, rodeados de grande afluência; as limpezas étnicas e religiosas; as estranhas misturas e confrontos improváveis – tudo isso é parte integral do turbilhão da cena urbana, tornando as questões de cidadania daí derivados cada vez mais difíceis de definir, no exato momento em que eles se tornam mais vitais de estabelecer frente às forças hostis de mercado e a progressiva vigilância estatal. A luta pelo direito à cidade merece ser realizada. Deve ser considerada inalienável. A liberdade da cidadania ainda precisa
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ser alcançada. A tarefa é difícil e pode tomar muitos anos de luta (HARVEY, 2013).
As contradições da contemporaneidade, entre o real e o virtual, criam essa dicotomia sobre a real projeção das ações individuais no público e seu contrário: a condição de isolamento e fragmentação da população trabalhadora dos centros urbanos. A retomada do real é uma necessidade. Nada melhor para isso que a reaproximação do meio urbano, uma vez que os centros urbanos nascem da necessidade das trocas sociais e da proximidade da comunidade. Entretanto, não é mais possível resgatar os princípios do velho humanismo sobre as cidades, pois a cidade já não se constrói a partir dessa ideologia. É necessário criar uma nova forma de humanismo que se alinhe com as demandas da contemporaneidade e as dificuldades daqueles que habitam o meio urbano. Enquanto tratamos os direitos como questões individuais, o mesmo pensamento se prolonga para as relações sociais, para a construção da cidade e para a gestão do público. É preciso que adentremos nas funções antropológicas dos espaços na cidade para que, a partir dessas funções, possamos repensar as necessidades do nosso tempo e daqueles que também habitam a cidade ao nosso redor. As necessidades sociais têm fundamento antropológico; opostas e complementares, compreendem a necessidade de segurança e a de abertura, a necessidade de certeza e a necessidade de aventura, a da organização do trabalho e a do jogo, as necessidades de previsibilidade e do imprevisto, de unidade e de diferença, de isolamento e de encontro, de trocas e de investimentos, de independência (e mesmo de solidão) e de comunicação, de imediaticidade e de perspectiva a longo prazo. O ser humano tem também a necessidade de acumular energias e a necessidade de gastá-las, e mesmo desperdiçá-las no jogo. Tem necessidade de ver, ouvir, de tocar, de degustar, e a necessidade de reunir essas percepções num “mundo”. A essas necessidades antropológicas socialmente elaboradas (isto é, ora separadas, ora reunidas, aqui comprimidas e ali hipertrofiadas) acrescentam-se necessidades específicas, que não satisfazem os equipamentos comerciais e culturais que são mais ou menos parcimoniosamente levados em consideração pelos urbanistas (LEFEBVRE, 2011, p. 105).
Sob a perspectiva do trabalho, é possível compreender que a
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construção de um espaço que reconhece a existência do trabalhador precarizado e lhe garante a possibilidade de oferecer seus serviços de forma digna e com equidade perante a sua categoria – além de oferecer um espaço de união e reunião – retoma a ideia de unir os trabalhadores para que tenham voz e discutam com aqueles que usufruem de seus serviços, com os mecanismos do capital e do mercado de trabalho, que encontram sempre novas formas de tornar suas relações de trabalho ainda mais precárias. A construção deste espaço que informa, educa, reúne e abraça o trabalhador precarizado no coração da cidade, na proximidade da ampla distribuição das redes de transporte e de um grande mercado consumidor latente, é a forma que acredita-se ser a mais eficaz para integrar esse trabalhador aos seus colegas, aos consumidores e à cidade, fazendo com que o espaço urbano tenha um impacto positivo sobre a sua experiência individual, a ponto de o indivíduo tornar-se capaz de valorizar as condições do espaço e questionar que condições faltam na sua própria realidade individual e nas suas relações de trabalho. Ao dignificar e valorizar as atividades daqueles que operam ao seu lado, e identificar que é possível e necessário melhorar as condições dos espaços urbanos nos quais se habita, torna-se mais provável que o indivíduo busque melhorar as condições do mundo que o cerca. A cidade é um produto do trabalho humano e é o espaço onde se projetam as condições vividas pelo próprio homem. Se o indivíduo não se enxerga como pertencente e necessário para a construção de seu próprio mundo, como poderia se valorizar e se sentir digno de pertencer à sua própria realidade? É dentro da perspectiva de pertencimento que se espera que o sujeito possa se reconectar com a realidade, com a cidade, com o seu próprio ofício, com a sua história e com a sua perspectiva de desenvolvimento pessoal.
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1. Militão Augusto de Azevedo, “Vista de São Paulo desde o caminho que vem do Rio de Janeiro”, 1862 1 - pátio do colégio 2 - igreja de n. s. do carmo 3 - catedral da sé 4 - rua tabatinguera
“não tá mais para a frente, 3
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4
2
1
2. Tuca Vieira, “Vista do centro de São Paulo a partir da Rua da Mooca”, 2017
5 - ed. da secretaria da fazenda 6 - ed. altino arantes (banespa) 7 - av. dos estados 8 - viaduto leste-oeste (glicério)
é o rio que mudou de lugar...” 8
7
4 3
2
5
1
6
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94
IV.
o edifĂcio
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ESCOLHA DO LOTE
4.1
O Centro de Memórias e Ideias do Tamanduateí se localiza num ponto muito privilegiado da cidade, entre o Terminal de Ônibus do Parque Dom Pedro II e a Rua 25 de Março, alcançando o final do trajeto do Beco do Pinto, margeando a Praça Fernando Costa e com vista tanto para o Pátio do Colégio, na colina histórica, como para o Parque Dom Pedro II e bairro do Brás, do outro lado do Tamanduateí. A escolha deste lote que ocupa toda a quadra foi definida pelo desejo de recuperar a vista do vale do Tamanduateí a partir do Pátio do Colégio, que hoje é interrompida pelo edifício garagem de 35 andares que ocupa exatamente o meio da vista. O restante dos edifícios, na mesma quadra, varia seus usos como estacionamento, pequenas lojas “balcão” ou lanchonetes que se aproveitam do restante do fluxo de pessoas provenientes da rua 25 de Março, ou dos passageiros do terminal, ou daqueles que sobem em direção à colina histórica. A praça Fernando Costa, assim como a rua 25 de Março também possui muitos vendedores, que ocupam em uma espécie de mercado de rua, popularmente conhecido como “camelódromo” funcionando como espaço onde vendedores ocupam tendas fixas para vender toda a sorte de produtos. A partir desta configuração, compreende-se que as dinâmicas de uso desta região não são voltadas apenas à quem frequenta apenas a 25 de março, mas também quem trabalha no centro da cidade, ou faz uso da rede de transporte que conecta toda cidade, além de estar entre a estação São Bento e Parque Dom Pedro. Portanto essa quadra subutilizada poderia abrigar o novo edifício, desde que este também suprisse a demanda de usos que já ocorre na região. Contabilizando cerca de 7 bares, 17 lojas e 6 estacionamentos, além de serviços como salões de beleza e farmácia, é notável que o uso da quadra seja estritamente comercial, mas relativamente precário e voltado em geral para os vendedores ambulantes da região, mais que para seus compradores ou moradores do bairro do Glicério e redondezas.
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Nesta mesma quadra também se contabiliza 6 edificações tombadas pelo CONPRESP, na categoria Bens e Imóveis Representativos da ZEPEC-2291, na resolução de 17/07, entretanto apenas uma mantém a integridade da edificação, enquanto as demais tem até mesmo as fachadas comprometidas. Como a edificação de esquina, de frente para a praça é o edifício menos descaracterizado, além de contribuir para o conjunto de edifícios históricos tombados do entorno da praça Ragueb Chohfi e a ladeira da rua General Carneiro. Os demais edifícios, utilizados em geral como estacionamento estão em tal nível de deterioração que se mostra inviável a sua recuperação, portanto foram desconsiderados.
1. Lei nº 13.885-04, Seção II:
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Dos imóveis enquadrados como ZEPEC Art. 229. Nos imóveis enquadrados como ZEPEC, constatada a paralisação da obra ou sua desconformidade com o projeto aprovado, esgotado o prazo da correspondente intimação, a isenção dos tributos e o certificado, de que trata o artigo 121 desta lei, serão cancelados, expedindo-se Auto de Intimação e cientificando-se a Secretaria Municipal de Finanças e Desenvolvimento Econômico para a cobrança equivalente ao benefício, exercício a exercício, atualizada monetariamente e acrescida de juros de mora, desde as datas originalmente assinaladas para o pagamento integral do imposto, sendo: I. com imposição de multa e sem prejuízo das medidas penais cabíveis, nos casos de dolo, fraude ou simulação do interessado ou de terceiro em benefício dele; II. sem imposição de multa, nos demais casos.
PROGRAMA DO EDIFÍCIO
4.2
Refletindo sobre a região da Várzea do Tamanduateí e da Rua 25 de Março, percebe-se a relação simbiótica da sobrevivência da região com o comércio. Entretanto, o uso dessa região se constrói sobre um sistema informal sem dignidade e visibilidade de seus trabalhadores. Coincidentemente, a situação de diversos trabalhadores da cidade segue pelo mesmo caminho, sem espaço, sem registro, sem crítica e sem consciência. É possível pensar um projeto público que una memória e trabalho para dignificar e dar visibilidade ao trabalhador informal? A partir da escolha deste espaço que se encaixa no tecido urbano, utiliza-se o vasto conteúdo histórico para dar significado aos volumes e aberturas do edifício, assim como seus usos e necessidades. Se apoiando sobre a leitura das “Cidades Post-it”, e os desdobramentos das relações de trabalho na contemporaneidade que se reflete na estrutura nômade da 25 de março, imagina-se um espaço de aprendizado, trabalho e estudo, que seja simultaneamente educativo, cultural e inventivo para ser utilizado de forma efêmera e retirante. Um local que abrigue conforme o necessário aqueles que não possuem local físico e que são nômades na execução de seu ofício, para que a cidade não crie mais uma fronteira invisível daqueles que necessitam de um espaço na cidade. O Centro de Memórias e ideias do Tamanduateí transforma a quadra em praça pública permeada por 3 edifícios principais interligados: A praça de uso público serve de abrigo para quem vem da movimentada região, independentemente de seu propósito. Possuindo dois espaços gramados e um calçadão interno e coberto, ela pode abrigar atividades culturais, feiras livres, comerciantes ambulantes da região, ou até como espaço pop-up de vendas para os produtores que utilizam este edifício para a realização de suas atividades. O manejo das atividades aqui realizadas fica a cargo da administração do edifício e serve não apenas como espaço de uso misto, entre lazer, cultura e comércio, mas também serve para dar visibilidade aos trabalhadores do comercio, simbolizados pelos comerciantes ambulantes da região,
99
100
historicamente precarizados, invisibilizados e muitas vezes privados de exercerem suas atividades. O primeiro edifício é visto a partir da praça Fernando Costa, que usa a pele em aço corten e a cobertura de domos metálicos para abraçar a fachada histórica preservada da esquina, simbolicamente representando a conexão entre o passado da região e o presente, além de abrir a sua parte superior para ser utilizada como mirante. O programa deste primeiro volume é voltado à educação e o trabalho manual, nele encontramos cinco salas de oficinas variadas, duas salas de aula, café pop-up de uso rotativo, sala voltada para o educativo do espaço museológico, o acervo, além dos espaços administrativos e controle dos registros dos trabalhadores que passam pelo edifício. O segundo edifício, sobre duas torres de concreto que acomodam os serviços hídricos e a circulação vertical, acomoda o auditório, um café pop-up de uso rotativo e o foyer suspenso sobre a estrutura que liga as duas paredes do pórtico e sustenta a caixa flutuante, que serve de sombra para a praça central e a entrada do espaço expositivo. Este edifício abriga os espaços voltados para o trabalho cultural, que sofrem nos últimos anos perdas consideráveis tanto aos seus direitos como trabalhadores, como a subsequente perda de espaços para a realização de suas atividades. O terceiro edifício, que encerra a quadra e recebe os visitantes vindos do Beco do Pinto, concentra os usos de espaços de trabalho coletivos, espaços de reunião, arquibancada para palestras e apresentações, biblioteca, mesas de estudo, café pop-up de uso rotativo e uma praça coberta para descompressão. A intensão de se criar um volume dinâmico, cuja circulação pode ser realizada de forma circular instiga a movimentação e o encontro daqueles que fazem uso do edifício, reafirmando seu caráter coletivo e ampliando a visibilidade e o encontro dos trabalhadores que utilizam esse espaço. Conectando todos estes espaços temos uma passarela que abre vistas tanto para o rio Tamanduateí, como para a colina histórica e o edifício do Pátio do Colégio. Em seu interior, somos recebidos por um espaço de informações e bilheteria para os eventos, um espaço de guarda volumes, e uma loja voltada para os usos dos andares expositivos: um coberto e outro ao ar livre, servindo de mirante e ponte entre o primeiro e o terceiro edifício, metaforicamente unindo
passado e presente, teoria e prática, interligados pela cultura e pela memória da cidade de dos trabalhadores de outrora, criando relações que despertem a curiosidade e o interesse das pessoas sobre esses espaços, e que sobretudo questionem se não há outras alternativas que não somente as que já estão dadas, motivando as pessoas a conhecerem aqueles espaços que permanecem inexplorados e sem significado por quem transita por lá. Por fim, o subsolo do edifício possui dois níveis de garagem para quem faz uso da região, justamente pelo reconhecimento de que a cidade foi construída a partir da perspectiva rodoviarista e seu legado ainda é parte dos conflitos da cidade. Ao lembrar que esta região funciona como um pulsante mercado à céu aberto, movimentando milhares de mercadorias todos os dias, que são transportadas por meio de automóveis. Entende-se a necessidade deste uso enquanto não são apresentadas alternativas ou intensões para solucionar o problema do transporte em São Paulo. Portanto, ao remodelar esta quadra que por décadas foi coroada com um triste e irônico edifício garagem de 35 andares, reinauguramos a mais ampla vista da área central da várzea do Tamanduateí, ocultando brevemente aquele que teve como protagonista de sua transformação: o automóvel.
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IMPLANTAÇÃO
legenda rotas do trabalhador rotas históricas rotas dos rios rotas das elites edifícios notáveis praças e parques
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DIAGRAMAS
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PLANTA - PISO TÉRREO 7 - coworking 8 - oficina 9 - depósito 10 - área técnica 11 - área expositiva 1 12 - área expositiva 2
1 - praça / feira livre 2 - informações 3 - átrio / recepção 4 - café pop-up 5 - loja pop-up 6 - guarda volumes
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7 6
5
1
3
4
23
2 10
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5
3
19 - foyer 20 - auditório 21 - camarim 22 - sala de projeção 23 - acesso garagem 24 - garagem
5
6
8
13 - biblioteca 14 - mirante 15 - administração 16 - sala de aula 17 - educativo / acervo 18 - sala de reunião
4
3 23 10
10
8
6
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PLANTA - 1° PAVIMENTO 7 - coworking 8 - oficina 9 - depósito 10 - área técnica 11 - área expositiva 1 12 - área expositiva 2
1 - praça / feira livre 2 - informações 3 - átrio / recepção 4 - café pop-up 5 - loja pop-up 6 - guarda volumes
10
7 7
7
11 9
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19 - foyer 20 - auditório 21 - camarim 22 - sala de projeção 23 - acesso garagem 24 - garagem
13 - biblioteca 14 - mirante 15 - administração 16 - sala de aula 17 - educativo / acervo 18 - sala de reunião
9 8
8 7
12 16
16
8
9
10
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PLANTA - 2° PAVIMENTO 7 - coworking 8 - oficina 9 - depósito 10 - área técnica 11 - área expositiva 1 12 - área expositiva 2
1 - praça / feira livre 2 - informações 3 - átrio / recepção 4 - café pop-up 5 - loja pop-up 6 - guarda volumes
10
7
13
3
7
7
4
14 10
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19 - foyer 20 - auditório 21 - camarim 22 - sala de projeção 23 - acesso garagem 24 - garagem
13 - biblioteca 14 - mirante 15 - administração 16 - sala de aula 17 - educativo / acervo 18 - sala de reunião
15
15
15
3 14 10
10
18
18
17
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PLANTA - 3° PAVIMENTO 1 - praça / feira livre 2 - informações 3 - átrio / recepção 4 - café pop-up 5 - loja pop-up 6 - guarda volumes
7 - coworking 8 - oficina 9 - depósito 10 - área técnica 11 - área expositiva 1 12 - área expositiva 2
21
10
21
112
13 - biblioteca 14 - mirante 15 - administração 16 - sala de aula 17 - educativo / acervo 18 - sala de reunião
19 - foyer 20 - auditório 21 - camarim 22 - sala de projeção 23 - acesso garagem 24 - garagem
10
14
4
19 3
10
14
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PLANTA - 4° PAVIMENTO 1 - praça / feira livre 2 - informações 3 - átrio / recepção 4 - café pop-up 5 - loja pop-up 6 - guarda volumes
7 - coworking 8 - oficina 9 - depósito 10 - área técnica 11 - área expositiva 1 12 - área expositiva 2
21
20
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13 - biblioteca 14 - mirante 15 - administração 16 - sala de aula 17 - educativo / acervo 18 - sala de reunião
19 - foyer 20 - auditório 21 - camarim 22 - sala de projeção 23 - acesso garagem 24 - garagem
10
10
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PLANTA - 5° PAVIMENTO 1 - praça / feira livre 2 - informações 3 - átrio / recepção 4 - café pop-up 5 - loja pop-up 6 - guarda volumes
7 - coworking 8 - oficina 9 - depósito 10 - área técnica 11 - área expositiva 1 12 - área expositiva 2
10
20
10
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13 - biblioteca 14 - mirante 15 - administração 16 - sala de aula 17 - educativo / acervo 18 - sala de reunião
19 - foyer 20 - auditório 21 - camarim 22 - sala de projeção 23 - acesso garagem 24 - garagem
10
22
10
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PLANTA - COBERTURA 1 - praça / feira livre 2 - informações 3 - átrio / recepção 4 - café pop-up 5 - loja pop-up 6 - guarda volumes
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7 - coworking 8 - oficina 9 - depósito 10 - área técnica 11 - área expositiva 1 12 - área expositiva 2
13 - biblioteca 14 - mirante 15 - administração 16 - sala de aula 17 - educativo / acervo 18 - sala de reunião
19 - foyer 20 - auditório 21 - camarim 22 - sala de projeção 23 - acesso garagem 24 - garagem
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PLANTA - SUBSOLO 7 - coworking 8 - oficina 9 - depósito 10 - área técnica 11 - área expositiva 1 12 - área expositiva 2
1 - praça | feira livre 2 - informações 3 - átrio | recepção 4 - café pop-up 5 - loja pop-up 6 - guarda volumes
24
24
23 10
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19 - foyer 20 - auditório 21 - camarim 22 - sala de projeção 23 - acesso garagem 24 - garagem
13 - biblioteca 14 - mirante 15 - administração 16 - sala de aula 17 - educativo / acervo 18 - sala de reunião
24
23 10
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ELEVAÇÃO - VISTA 01
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123
ELEVAÇÃO - VISTA 02
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ELEVAÇÃO - VISTA 03
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ELEVAÇÃO - VISTA 04
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CORTE - VISTA 05
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CORTE - VISTA 06
130
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CORTE - VISTA 07
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CORTE - VISTA 08
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CORTE - VISTA 09
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CORTE - VISTA 10
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PRAÃ&#x2021;A E FEIRA LIVRE
136
137
138
139
COWORKING
140
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142
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OFICINAS
144
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146
147
EXPOSIÇÃO
148
149
150
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AUDITÃ&#x201C;RIO
152
153
154
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MIRANTE
156
157
158
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VISTAS EXTERNAS
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161
162
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165
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conclusĂŁo
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CONCLUSÃO
O Centro de Memórias e Ideias do Tamanduateí procura ser a união do exercício teórico e projetual como metodologia de compreender o espaço urbano, as relações sociais e o mundo que habitamos. Partimos da premissa de que o trabalho do arquiteto é compreender o mundo que o cerca e repensar suas possibilidades, em diálogo com a cidade real, a cidade anterior e a cidade que espera-se construir no futuro, utilizando sua capacidade de ler as questões sociais que permeiam o espaço urbano e traduzir suas interpretações por meio da atividade projetual. Assim, este trabalho se coloca como resultado do processo contínuo de crítica e proposição. O edifício pretende se configurar como uma resposta às questões levantadas ao ler a história da cidade, do trabalho e da condição dos trabalhadores na contemporaneidade. Desenvolvemos nosso percurso a partir da leitura das camadas históricas da cidade, revelando os elementos faltantes da cidade palimpsesto. Imaginamos esses períodos históricos como mapas dos espaços urbanos irreconhecíveis pelos seus artefatos. Posteriormente, tentamos compreender como as relações de trabalho se construíram nesses espaços urbanos até alcançarem a contemporaneidade; compreendendo, também, que artefatos sociais ainda estão presentes nas relações atuais e onde esses artefatos também são condicionantes para as questões atuais. Em seguida, retomamos a construção territorial específica da zona da 25 de Março e dos mercados populares da região central, para compreender as origens do trabalho precário dos vendedores ambulantes e porque esses indivíduos são significativos para compreender a precarização das relações de trabalho em todas as suas esferas. Sob a perspectiva da sociologia e da filosofia, tentamos localizar o trabalhador precarizado e compreender sua posição na atualidade, para aprofundar o entendimento sobre que ações tomar frente à sua condição no mundo contemporâneo e na cidade de São Paulo. Por fim, a partir da atividade projetual, espera-se criar uma possível solução,
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por meio do espaço urbano e do programa arquitetônico, para suprir suas necessidades, garantindo-lhe seus direitos básicos e oferecendo uma nova experiência sobre o uso da cidade. No decorrer deste estudo, percebemos que a precarização do trabalho é uma condição inerente à vida na contemporaneidade e, portanto, inescapável a todos nós; sejamos trabalhadores manuais, intelectuais, artistas, comerciantes, pesquisadores ou atuantes nas áreas da saúde, ciências e política. Claramente, algumas atividades sofrem menos que outras, ou desfrutam de privilégios; mas, mesmo essas condições paliativas e específicas não alteram o cenário geral, e a ilusão de segurança individual só tende a ampliar a degradação das relações de trabalho. É necessário e urgente que o indivíduo possa se reconectar à cidade e usufruir de suas potencialidades e infraestrutura coletivamente se quisermos diminuir a desigualdade e a degradação do mundo em que vivemos. Este edifício pretende responder às questões sociais elencadas e às inquietações pessoais de um indivíduo em movimento, que observa sua condição e a condição dos demais, imaginando ser possível repensar a cidade como uma exaltação de sua própria população; não como evento, mas como experiência quotidiana, fazendo com que o uso do espaço urbano seja o exercício do direito à cidade, onde as nossas movimentações pelo território possam educar o indivíduo e humanizar sua percepção do outro. Enquanto experienciamos a realidade mediada pelo mundo virtual, discutimos sobre as questões sociais, mas não colocamos em prática as ações cabidas a nós no âmbito individual. Se durante a modernidade, o homem foi capaz de criar infraestrutura suficiente para mudar as dinâmicas de todo o planeta; hoje, torna-se quase impossível reverter as duras condições da sociedade em que habitamos. A cidade, como espaço de encontro e circulação do indivíduo, deve ser repensada em favor daqueles que a habitam e, a partir disso, suscitar a reflexão em conjunto sobre que ideal de progresso esperamos alcançar; não mais como indivíduos, mas como sociedade.
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