A BOBA - Arrepio

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A B BA O AN

IRA EDIÇÃO - MARÇO ERCE a M - T AIO I I

ARR

ENTREVISTA ~ ZE´ DO CAIXAO O MAIOR NOME DO TERROR BRASILEIRO

EP I

´ NA HISTORIA O 11 DE SETEMBRO E A DITADURA NO BRASIL

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BDSM DOR E PRAZER DE ARREPIAR




CHAPEU ´

INDICE EDITORIAL

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PRÓLOGO

RANGE, ARRANHA, ROÇA E ARREPIA

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HISTÓRIA QUE ARREPIA INTERLÚDIO

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ENTREVISTA: ZÉ DO CAIXÃO

NOS VEMOS DO OUTRO LADO

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ARREPIO DO ALÉM

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CRÔNICA: ODE A PARIS TOCANTE

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O QUE VEM DA ARQUIBANCADA

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EPÍLOGO


CHAPEU EXPEDIENTE

CONSELHO EDITORIAL WELINGTON ANDRADE EDITOR-CHEFE YAN RESENDE DIRETORA DE REDAÇÃO NATHÁLIA AGUIAR

REPÓRTERES JULIANA ARREGUY LUCAS BRÊDA GABRIELA BOCCACCIO GABRIELA MONTEIRO JÚLIA MELLO MARINA PANIZZA JÉSSICA TABUTI JÚLIA RAMOS CLARO GABRIEL ONETO VICTOR CIANCI

EDITOR DE ARTE PEDRO CAMARGO

DIAGRAMAÇÃO NATHALIE PROVOSTE THAÍS HELENA REIS

NOSSA CAPA: Robert Mapplethorpe A B BA

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EDITORIAL

desfile de

ARREPIAR Q

uando você menos espera, o racional é deixado de lado. Já não é preciso pensar, basta sentir, talvez venha de fora, ou sempre esteve dentro e apenas escolheu o momento certo para despertar. É di�ícil de explicar, não tem teoria, é prática. É um beijo no cangote, uma música que remete ao passado, uma cena que dá medo ou a simples ação de arranhar o giz na lousa. Faltam palavras para descrever, sobram ações involuntárias e pelos arrepiados. A ideia de falar sobre essa sensação peculiar surgiu, mais uma vez, de um samba-enredo. Como vocês devem ter percebido desde o primeiro editorial, este que assina o texto tem certa paixão pelo gênero. Em 2008, quando ainda era bastante criticado pelas inovações na avenida, o carnavalesco Paulo Barros escolheu o arrepio como tema da Unidos do Viradouro, e surpreendeu. Entre fantasias, alegorias e adereços, a escola de Niterói brincou com enorme maestria diante de mais um tema abstrato – característica do competente Paulo Barros. Seis anos mais tarde, o mesmo tema serviu de inspiração para A Boba. O objetivo era explorar os arrepios com a mesma irreve-

rência, falar sobre as mais diversas sensações que são despertadas pelo corpo, positiva ou negativamente. Nossa Comissão de Frente veio técnica, preocupada em explicar a síntese do enredo para não deixar dúvidas em nossos jurados, ou leitores. A preocupação era buscar explicações para as causas do arrepio em nosso corpo, já que a sensação é despertada por ações banais de nosso cotidiano, como um simples toque em uma bexiga ou o contato entre a ponta de um garfo e o interior de um prato. Assim como uma boa escola de semana, A Boba também precisa de muita história para enriquecer nossas edições. Desta forma, a nossa Ala das Baianas da terceira edição relembrou dois fatos que arrepiaram nossa sociedade. Considerado por alguns historiadores o marco do início da era pós-contemporânea, o dia 11 de setembro de 2001 foi relatado por quem esteve sob os escombros das Torres Gêmeas. No ano em que se completam 50 anos do início da Ditadura Militar, também entrevistamos aqueles que lutaram para derrubar o regime. Para despertar sua imaginação, meu caro leitor, como um bom carro alegórico consegue fazer ao atravessar a avenida, não deixamos de lado os arrepios ‘só para maio-

por yan resende

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res’. Desta forma, a reportagem foi além dos ‘beijos no cangote’ cantados pela Viradouro e visitou uma casa de sadomasoquismo. A dor desperta o prazer, que tem a missão de instigar as fantasias mais inusitadas em nossas mentes. Um des�ile, porém, faz sentido apenas se tiver uma música para acompanhá-lo. A terceira edição desta revista, portanto, tratou de trazer melodias, talvez longe de qualquer sincronia ideal. A�inal, não são apenas os surdos e tamborins da bateria que ditam o ritmo. Neste caso, os instrumentos carnavalescos dividem espaço com a música clássica, que não precisa da euforia do samba para provocar um arrepio semelhante. O grande destaque da publicação, por sua vez, é responsável por sensações não tão positivas. Maior nome do cinema de terror no Brasil, José Mojica Marins, mais conhecido como Zé do Caixão, recebeu a reportagem de A Boba para falar sobre sua carreira, contou como conseguiu arrepiar os seus fãs através das telas de cinema e não fugiu dos temas polêmicos que envolvem seu personagem. Se estiver com vontade de sentir alguns arrepios, portanto, não percam mais tempo, a�inal, desa�iar o cronômetro pode acarretar punições no dia da apuração. Boa leitura.



ÁGUA NA BOCA DOS OUTROS É REFRESCO

POR JULIA RAMOS CLARO

Quando você sus, eu quase piro Se arre, eu já vou e pio Dentro do teu peito vazio Você sorri e eu fico por um frio


SOMENTE O NECESSĂ RIO

POR JULIA RAMOS CLARO

A aranha arranha a jarra E a jarra arranha a aranha Arranha aqui minhas costas Pra ver se a gente emaranha


AFLICAO

RANGE, ARRANHA, ROCA E ARREPIA POR JULIA RAMOS CLARO & MARINA PANIZZA

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AFLICAO

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Quer ouvir algo arrepiante?

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Não, não se trata de uma sessão de histórias de fantasmas na BOBA. Até porque há certos sons e ações do cotidiano que podem perturbar bem mais do que filmes japoneses com crianças macabras. “Nossa, só de ouvir os pelinhos sobem”, diz o estudante de jornalismo Vinicius Rodrigues, ao escutar, na mesma frase, as palavras unha, lousa, faca e prato. O jovem de 19 anos ergue os ombros, fecha o rosto numa careta, comprime a cabeça raspada para trás e reclama: “Arrepia até a cabeça”. Ele faz parte de um grande grupo de pessoas que sentem arrepios ao presenciar certos estímulos: faca deslizando no prato, unha raspando em superfícies ásperas, giz na lousa, barulho de bexiga, ruído de isopor, som de gato afiando as unhas. Enfim, a lista é grande para aqueles que, só de pensar, já estremecem e sentem os pelos se levantarem. Helena Panizza também pertence ao grupo de pessoas sujeitas aos estremecimentos mais comuns. “Tenho arrepio de várias coisas”, conta a jovem de 24 anos. “Unha e giz na lousa. E sabe quando você passa a unha na parede?”, fecha os olhos castanhos e ergue as sobrancelhas. “Superfície lisa não me incomoda, tem que ser áspera”, explica a estudante de farmácia. Como muitas pessoas, Rafaela Alencar, 19 anos, também sente aflição quando vê uma faca sendo raspada num prato. Mas A B BA

não basta só o barulho, o que realmente lhe causa arrepios é ver a ação sendo feita. Com relação aos arranhões na lousa, no entanto, apenas o ruído já é suficiente para lhe deixar de cabelo em pé. A estudante de direito conta que sempre teve essas reações. Desde o tempo de colégio, se incomodava quando o professor riscava a lousa fortemente com giz. A aposentada Ana Ribeiro, 59 anos, é uma prova de que a sensação não se restringe aos jovens. Mesmo tendo sido professora, sofria toda vez que atritava a lousa. “E quando você vira a unha, então?” torce o rosto imaginando a cena. Faca raspando no prato é uma das maiores aflições de Ana, que também arrepia quando o garfo chega a bater nos dentes também no momento das refeições. “Tem muita coisa!”, conclui. Já Lucas Fernandes Marra se perturba com outras coisas. “Qualquer cena que se relacione com danos na coluna.” O jovem de 19 anos explica que vídeos ou filmes que mostrem algum acidente, batida ou machucado naquela região o afligem. “Qualquer cirurgia já me dá aflição”, completa o estudante de direito. Para Marra, o contato com a lousa só perturba se o som for muito alto. Faca raspando no prato não lhe causa nada. Som de bexiga irrita um pouco. Agora, quando alguém faz ruído, propositalmente, em um isopor, Marra se aflige. O engraçado é que ele nunca teve esses problemas quando era criança. “Comecei a ficar mais aflito com essas coisas depois de adulto” conta.

A estudante de biologia Júlia do Nascimento, 23 anos, que também não consegue ficar indiferente a experiências como atrito em superfícies lisas, tenta uma explicação: “Com certeza é uma reação fisiológica do seu corpo contra uma situação desagradável; uma aversão, uma coisa meio primitiva, algo que ele rejeita”.

SONS DESAGRADÁVEIS

Segundo artigo publicado no Jornal Americano de Neurociência, a orelha humana e parte do cérebro foram estruturados para recuar quando expostas a sons de frequências altas e incômodas. No estudo, foi descoberta uma interação complexa entre o córtex auditivo – área do cérebro que processa o som – e a amígdala, que acaba registrando uma resposta emocional de que a pessoa não pode aguentar aquele som. Outro trabalho – realizado pelos musicólogos Cristoph Reuter, da Universidade de Viena, e Michael Oehler, da Universidade Macromedia para Mídia e Comunicação, em Colônia, na Alemanha – mostra que o som de algo arranhando está entre 2000 e 4000 Hz, faixa a que o ouvido humano é mais sensível. O som ainda é ampliado por causa da estrutura do canal auditivo, tornando aquela sensação quase insuportável.

PELOS EM PÉ

Mas, e os arrepios? Segundo Klaus Tiede-


Fotos: Nathalie Provoste

mann, psicólogo e professor da Universidade de São Paulo (USP), especialista em psicologia da percepção, são contrações dos músculos que ficam próximos às raízes dos pelos, inervados pelo sistema vegetativo. Ele explica que essa sensação é um resquício da época em que os nossos antepassados tinham os corpos cobertos de pelo. Isso funcionava, como ainda acontece com os animais, como mecanismo de defesa. Os pelos se levantavam para segurar mais o calor quando estava frio, e também para que a pessoa parecesse maior e mais assustadora diante dos inimigos. Hoje em dia, a reação não faz mais tanto sentido, porque o ser humano não é mais tão peludo. “No entanto, como arrepiar não traz desvantagem alguma para nós, este processo não se perdeu com a perda dos pelos. O cérebro, utilizando a lei do menor esforço, permite ao corpo continuar se arrepiando, em vez de se esforçar para retirar dele este mecanismo”, ensina o professor. No caso específico dos estremecimentos causados pelos estímulos já citados, Klaus explica que podem ter origem em dois processos comportamentais. O primeiro é o condicionamento respondente ou pavloviano. “Ao longo de nossa vida, vamos nos condicionar a nos arrepiar frente a diversos estímulos que foram associados a alguma coisa que realmente dá medo ou assusta. Por exemplo, quando vemos uma aranha nos assustamos, pois temos naturalmente

medo de aranhas. Sempre que vemos, obviamente pensamos numa aranha. Posteriormente, só de pensar numa aranha, sem a presença dela, vamos ficar arrepiados (condicionamento).” O outro fator decorre dos neurônios-espelho que possuímos, que nos fazem reagir quando vemos uma ação que outra pessoa sofreu. “Se vemos alguém receber um tapa no rosto, vamos colocar nossa mão sobre o nosso para protegê-lo.” Então, quando alguém raspa giz na lousa, o seu cérebro, pelos neurônios-espelho, reage como se fossem as suas unhas que raspassem na lousa e causassem dor. “Aqui você tem a combinação do condicionamento (som do giz) e do neurônio-espelho (você sente como se a dor fosse sua). É claro que tudo isto ocorre de forma inconsciente”, conclui o especialista.

INEXPLICÁVEL

Apesar das explicações científicas de como o arrepio ocorre e porque essa sensação existe, as pessoas que experimentam essas aflições sentem dificuldade em descrevê-las. “É na coluna”, sentencia a futura bióloga Julia. “Começa na coluna, vem aquele negócio no começo da coluna e vai subindo. Os pelinhos sobem, você fica arrepiada, é algo meio central”, completa. Helena sente ainda mais dificuldades em explicar a experiência. “É uma coisa muito difícil de descrever”, reclama. “Só sei que

você sente um arrepio no corpo, os pelos se levantam e você fica com alguma sensação estranha, que não sei explicar onde ocorre exatamente, mas é muito incômoda”, descreve a estudante de farmácia. Já Vinicius Rodrigues é bem mais pontual na explicação: “Um calafrio, os pelos sobem, se arrepiam, no braço principalmente, uma dorzinha no fundo do ouvido”. Salienta que “é algo momentâneo, bem instantâneo, uma sensação estranha”. Lucas Marra, ao contrário dos outros, não sente os pelos se levantarem. Ao presenciar uma de suas aflições, sente todos os músculos das costas se contraírem. Rafaela tenta uma definição mais precisa, embora também seja uma tarefa difícil. “Não sei explicar o que sinto. Parece uma coisa ruim, mas não sei qual é a palavra certa. É um choque”, tenta a estudante de direito. O arrepio é mais antigo do que toda a sua árvore genealógica e provavelmente persistirá por diversas gerações. Faz parte da vida e marca certos momentos de aflição e sensibilidade a ruídos e texturas. Para o azar de Júlias, Helenas e Rafaelas, as pessoas sempre estarão sujeitas a momentos inesperados que causarão um friozinho interior e uma elevação dos pelos. O importante é tentar não fazer dessas sensibilidades uma obsessão. Afinal, constantemente vai existir algo que ranja, raspe, risque, lixe, bem como ruídos de faca, lousa, unha, bexiga, isopor, parede, entre outros desconfortos. O A B BA

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HISTORIA

QUE ARREPIA POR GABRIEL ONETO & NATHALIA AGUIAR MONTAGENS POR NATHALIE PROVOSTE

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RELATOS DE QUEM PRESENCIOU O ´ PERIODO MAIS ARREPIANTE DO BRASIL Há 50 anos, um golpe de Estado desencadearia uma série de medidas responsáveis por marcarem a história do Brasil por mais de duas décadas. Na madrugada do dia 31 de março de 1964, o então presidente da República, João Goulart, era deposto pelos militares sob a justi�icativa de que era preciso recompor a disciplina nas Forças Armadas e impedir a “ameaça comunista”, simbolizada nos discursos considerados esquerdistas de Jango. Marechal Castelo Branco tomou o poder em 15 de abril daquele ano e instaurou o primeiro dos cinco decretos que assegurariam as manobras políticas ditatoriais. Iniciou-se, assim, o trajeto que desembocaria nos anos de chumbo do país, caracterizados pela interrupção democrática cimentada na progressiva censura, repressão e perseguição política culminando em casos de tortura e mortes. Entretanto, em meio à truculência imposta, o sonho democrático não se esvaiu durante o período e foi primordial para o

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fim do regime. Entre os 300 mil reunidos na Praça da Sé no memorável aniversário de São Paulo de 1984 estava Rivaldo Novaes, reforçando o grito por liberdade entoado pela massa que reivindicava o direito de eleger de forma direta o presidente da República. “Inexplicável; não me peça para explicar que eu choro. Nunca existiu e talvez não vá existir nada igual”, sintetiza Rivaldo, professor universitário, ao relembrar dos comícios do movimento “Diretas Já”. Rivaldo Novaes leciona aulas de cidadania, ética e política há 18 anos na Universidade Santa Cecília, na Baixada Santista, e credita à participação o fato de ter se tornado professor aos anos em que participou ativamente da resistência à ditadura. Nascido em 1959, Rivaldo era apenas uma criança de cinco anos, morador da cidade de Santos, quando os militares tomaram o poder. “Nem percebi que teve golpe militar; conheci gente que o golpe mudou a vida delas de criança, pois os pais foram afetados, mas comigo nada aconteceu”, relata o professor cujos pais sustentavam opiniões

divergentes a respeito da ditadura. Enquanto o pai votava na Aliança Renovadora Nacional (Arena) e “se portava como a classe média” perante o regime, a mãe, embora condicionada a ser dona de casa, era contestadora e votava no Movimento Democrático Brasileiro (MDB). Entre as primeiras memórias do período, Rivaldo recorda-se de ouvir pelo rádio a notícia do acidente aéreo que matou o ex-presidente Castelo Branco e os comentários dos colegas mais velhos sobre o guerrilheiro Marighella. Foi somente no primeiro ano do ensino médio que Rivaldo começou a ter consciência do que estava acontecendo no país. “Uma colega avisou que o cara que alugava o apartamento da avó não aparecia mais. Depois de alguns meses, ela chamou o chaveiro e entrou lá; tinham vários livros de política, alguns deles ficaram comigo. Ou o cara foi capturado, mas não forneceu o endereço, ou teve que sumir e deixou tudo para trás”. Por meio do Jornal da Tarde, a notícia de que o jornalista Vladimir Herzog havia cometido suicídio após ser chamado ao DOI-CODI,


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órgão repressor do regime, chocou Rivaldo. “Percebi o que era uma ditadura e que na verdade era frágil, pois se um jornalista desarmado lhe provocava tanto medo é porque sua base era de isopor e não de rocha”, conclui o professor, na época aos 16 anos. As discussões políticas fomentadas no grupo de teatro do qual Rivaldo participava, as notícias veiculadas nos jornais e o debate em casa, impulsionado por sua mãe, tornou-o um diletante pró-democracia, como gosta de chamar. A militância, no entanto, surgiu em 1978 quando Rivaldo ingressou na faculdade. Calouro da Cásper Líbero, em São Paulo, ele conta que o clima estava pesado por causa do fechamento do Diretório Acadêmico pelo diretor: “a Cásper foi o lugar de maior concentração de politizados por metro quadrado que conheci”. Assim, Rivaldo foi se politizando através dos murais nas salas de aula, preenchidos com questões da sala, fotos de jornais e matérias da imprensa alternativa, e se aproximando dos grupos existentes na faculdade. Apesar de todo o engajamento e espaço para debate político no círculo acadêmico, a resistência ocorria nas ruas: “a luta contra o regime era fora da escola; em 1978 éramos chamados para movimentos de protesto no largo São Francisco, na Praça da Sé...”. Rivaldo revela o medo que sentia ao participar dos movimentos, principalmente do Movimento Contra a Carestia, com 20 mil em frente à Catedral da Sé, cercada de policiais.

“Eu estava na escadaria; a gente sabia que os caras iam invadir. Fugi para as laterais. As viaturas da polícia andavam a toda pelas ruas; quem estivesse na frente, passavam por cima”, relata o professor. Com o fim da censura, após dez anos vigorando o Ato Institucional Número 5, o mais opressor de todos, as torturas e os assassinatos, escondidos pelo regime, foram escancarados. “Sentia medo, muito medo. Atiravam, não com bala de borracha, mas com bala de verdade. Não [atiravam] para acertar, mas e se acertasse?”, questiona Rivaldo Novaes. Junto com amigos, ele relembra de ter produzido cola a partir de uma espécie de farinha em fogo alto com ácido para espalhar cartazes pela cidade convocando para a próxima manifestação. Enquanto colavam durante a madrugada foram abordados por uma viatura informando que a outra turma havia sido presa: “saíram apavorados do DOPS; diziam que iriam para o porão. O regime fazia muito isso: tortura psicológica. Muitos não participaram de mais nada depois daquilo”. Embora tenha sido fichado no Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), Rivaldo nunca foi preso ou agredido e, por isso, considera-se um homem de sorte. “Éramos vigiados, nem sabíamos que éramos fichados. Tomei um susto quando vi que tinha ficha”, conta. Mas nem por isso deixou a militância. Para ele, lutar contra a ditadura “era uma missão, um compromis-

so de vida, um caminho sem volta”. Apesar dos riscos que correu, seja participando dos grupos políticos e dos protestos da faculdade, seja nas ruas atravessando a censura e não se calando diante do regime, Rivaldo não se arrepende. “Tenho vários arrependimentos; todos por falta de iniciativa, não por ter participado. Faria tudo de novo bem melhor. Me arrependo por não ter tirado mais fotos, visto mais filmes, mais shows, mais peças de teatro, por não ter ido na reunião de fundação do PT no Colégio Sion”, explica o professor. Com pouco mais de 50 anos, Rivaldo Novaes se considera um defensor incansável da democracia, que acredita ser o menos pior dos regimes. Exalta-se quando alguém compara os dias atuais com os tempos de intensa censura e perseguição nos quais viveu: “quanto imbecil dizendo que vivemos numa ditadura! Não fazem ideia do que era aquilo. A juventude de hoje não viveu isso e não quer saber disso, de uma maneira geral. A juventude atual me parece com outras referências”. Questionado sobre a existência de instituições democráticas sólidas no país e sobre a possibilidade de um retorno do regime ditatorial, Rivaldo considera ser possível tudo se tratando de política. “Em 1978, achávamos que em 1979 iríamos dançar na porrada, e foi o ano de ruptura. Tudo é possível, por isso precisamos defender com unhas e dentes, sem vacilo, a democracia”, finaliza.

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O BRASILEIRO QUE FICOU SOTERRADO ENQUANTO O MUNDO SE ARREPIAVA Entre os momentos mais marcantes da ultima década, os atentados de 11 de setembro de 2001 continuam vivos na memória do povo americano. Os acontecimentos que marcam, para alguns historiadores, o início de uma era pós-moderna, também não saíram da cabeça do brasileiro Hélio dos Anjos, que participou do resgate às vitimas. No dia 11 de setembro de 2001, às 7:59, o voo 11 da American Airlines, saiu do Aeroporto Internacional de Boston com destino a Los Angeles. Às 8:14, também em Boston, o voo 175 da United Airlines partia para fazer a mesma rota. Dentre os passageiros havia terroristas da Al-Qaeda, comandada pelo saudita Osama Bin Laden, que foram responsáveis pelo maior e mais impactante atentado terrorista da história. Às 8:46, no horário local, o Boeing 767 da American United se chocou contra a torre norte do World Trade Center, então maior prédio de Nova York. O brasileiro Hélio dos Anjos, morador da cidade desde 1995 e proprietário da “Anjos Tour”, que faz o transporte de turistas brasileiros, realizava a manutenção do seu veículo quando presenciou o atentado: “No momento, tanto eu como o pessoal da oficina em que estava, pensávamos que era um avião pequeno, alguém bêbado ou um novato, que tinha batido no prédio”. Não era a primeira vez em que um prédio em Nova York era atingido por um avião. Em 1945, uma aeronave do exército americano se chocou contra o Empire States Building. Em 1946, outro avião, também do exército americano, se chocou com o Bank of Manhattan Trust Building. A partir destes acontecimentos, para evitar outros acidentes, o controle do tráfico aéreo sobre a cidade foi reforçado. Uma aeronave se chocando contra o maior prédio, da maior cidade, da maior potência, tanto econômica quanto militar, do mundo, logo chamou a atenção da imprensa mundial que começou a noticiar o, até então, bizarro acidente. Às 9:05, sob os olhos de toda a imprensa mundial, o voo 175, da United Airlines, se chocou contra a torre sul do World Trade Center.

No momento do segundo ataque, Hélio já se dirigia às torres gêmeas para ajudar no resgate das vítimas, como capelão voluntário da polícia de Nova York. “Tanto eu, como, creio, a maioria, só nos demos conta de que era um atentado terrorista depois do segundo impacto e, neste momento, a sensação era de que estávamos sendo atacados e que o pior podia acontecer”. Logo depois, outro avião sequestrado, se chocou contra o Pentágono, em Washington, capital dos Estados Unidos e um outro caiu no interior da Pensilvânia, após os passageiros discutirem com os terroristas. As forças armadas e as autoridades não tinham ideia de como agir nesta situação. Muitos dos caças da força aérea, com ordens de abater qualquer avião que penetrasse o espaço aéreo americano, voavam sem nenhum armamento, graças à pressa de colocá-los no ar. Todos os prédios públicos, aeroportos, portos, estações de trem e bolsas de valores foram fechadas. Corridas de NASCAR e jogos de beisebol foram cancelados, e os parques da Disney na Flórida, pela primeira vez na história, fecharam suas portas em pleno dia. O presidente do país, George W. Bush, foi levado para um local secreto, assim como o vice-presidente, os chefes das forças armadas e outras autoridades. Hélio dos Anjos, na condição de capelão, não teve nenhum impedimento para chegar ao local do atentado. E pode ver o desespero e as dificuldades: “Havia muitos curiosos atrapalhando tudo e as autoridades estavam com a adrenalina a mil por hora, os bombeiros, com problema de comunicação pelo congestionamento das frequências de rádio, e os policiais que queriam tirar todo mundo daquele local, então era só gritaria”. Hélio estava auxiliando no resgate mais próximo da torre sul do World Trade Center, a segunda torre atacada. Às 9:59, exatamente 54 minutos após o ataque, a torre sul começou a desmoronar. “Só lembro que estava há uns 10 metros, da torre, e ouvi um barulho de uma avalanche, como um ruído alto e progressivo. A minha reação foi correr e entrar na primeira porta que encontrei, a porta da

torre sul, entramos eu e mais umas 10 pessoas, neste momento, só tinha muita fumaça verde e um cheiro horrível de enxofre”. O local onde Hélio se escondeu, o saguão da torre sul, por sorte, conseguiu manter a integridade da estrutura: “A primeira reação foi correr para o elevador, mas alguém gritou que não adiantava, então corremos para um banheiro, mas como não tinha água, voltamos para aquele saguão, alguns em choque, chorando, outros dizendo que não queriam morrer. Foi quando entraram uns 3 bombeiros através de uma portinha e tiraram o pessoal de lá. Quando saímos havia poeira até os joelhos.”. Logo depois de ser resgatado, às 10:28, a torre norte também entrou em colapso. Hélio dos Anjos continuou a ajudar nos resgates durante toda a semana seguinte. No dia após os atentados, o exército isolou toda a área para a população comum: “A área toda ficou isolada, fizeram um perímetro bem grande. Eu me lembro de que, na hora de ir embora, as pessoas que ficavam nas barreiras aplaudiam o nosso trabalho, e dava pra sentir o ser humano unido, parecia que o amor estava próximo, sem barreiras.”. Os atentados de 11 de setembro fizeram os Estados Unidos declararem a “Guerra ao Terror”, que culminou na invasão do Afeganistão e Iraque. O controle nos aeroportos se tornou muito mais rigoroso. Outra mudança foi a aprovação de uma lei chamada “Patriot Act”, que possibilita às autoridades americanas: espionar, interrogar, invadir domicílios, prender e até torturar suspeitos de terrorismo sem julgamento ou provas. Muitos criticam esta mudança por suprimir os direitos civis, mas a maioria dos americanos na época apoiou a aprovação da lei sob o pretexto de defender a segurança do país. Para Hélio dos Anjos, a vida ficou mais difícil após os atentados, segundo ele, um dos objetivos dos terroristas era abalar a economia, que aconteceu. Ele diz que ainda teme um novo atentado, mas que ele, e todos de Nova York, tiveram que, infelizmente, aprender a viver com o medo. o

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Claustrofobia da percepção

POR JULIA RAMOS CLARO

Uma cobra com aracnofobia Passa fome todo dia Uma sociedade sem sociologia Passamos fome todo dia Eu sem tua companhia Passei fome o dia todo


GLACIAL

POR JULIA RAMOS CLARO

Sou o gato cantando a tua atenção Você a bota que desliza fria pelos bigodes Sou o sol esquentando a tua aparição Você a lua que acena pálida escondendo os raios Sou a calçada, você a bigorna Sou a pessoa vivendo cada sereno Você a foice fatal que me beija uma única vez


ENTREVISTA

ESTA BOBA VAI LEVAR SUA ALMA

Em um bar no centro de São Paulo, Zé do Caixão revela os arrepios que marcaram sua carreira POR YAN RESENDE & VICTOR PUIA

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ENTREVISTA


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simplicidade com que José Mojica Marins recebeu a reportagem de A Boba, em um bar ao lado de sua casa, na região de Santa Cecília, centro de São Paulo, impressionou bem mais do que suas unhas cumpridas – hoje bastante aparadas com relação a aquelas que marcaram uma geração. Principal nome do terror brasileiro, o cineasta de 77 anos não esbanja luxo, leva uma vida bastante modesta para os padrões de alguém que chegou a ser aclamado pela crítica internacional e passou a ser conhecido por todos com o seu personagem Zé do Caixão. Mojica, no entanto, não esconde as frustrações adquiridas em mais de 50 anos de carreira. Ao tentar arrepiar seu público com técnicas inovadoras, acredita que foi o diretor mais injustiçado pela crítica internacional. Entre os fundadores da Boca do Lixo, polo de cinema em São Paulo no século passado, Zé do Caixão falou sobre a sua vida profissional, também abriu as portas para algumas intimidades e não fugiu de perguntas polêmicas. O “mulherengo” personagem, para o espanto de alguns, diz ser religioso e acreditar em Deus. O diabo, porém, é invenção do homem.

Como surgiu este gosto por fazer filmes especifiamente de terror? Meu pai foi toureiro. ‘Toureou’ lá fora, depois veio ao Brasil. Inclusive, tentou montar uma praça de touro no (Largo do) Arouche, mas a protetora dos animas não deixou. Então, já de criança, seguia touradas, vendo todo o terror. Depois, aos meus três ou quatro anos, ele foi chamado para ser gerente e zelador de um cinema, na Vila Anastácio. Lá, eu costumava subir na cabine para olhar e fui me interessando. Como eu morava atrás do cinema, podia subir e ver qualquer fita, inclusive as de terror, diferente das outras crianças. Eu via aquelas cenas de impacto e o que me deixava satisfeito era ver que as mulheres pulavam nos homens, com medo. Percebi que esse era o caminho.

De onde veio a criação do personagem Zé do Caixão? O personagem veio de um pesadelo. Era Dia dos Mortos e eu assisti a algum filme de terror. Quando dormi, tive um pesadelo. Eu era sonâmbulo. Cheguei a ir até o centro da cidade, de bonde, comer pastel. Era uma época em que se falar em terror era mesmo terrível. Mas foi algo que me cativou. Entendi que poderia ter um domínio sobre as mulheres. Você pode ver em minhas fitas de terror o quanto o Zé está sempre cercado de mulher! Comecei a fazer os meus famosos testes de coragem, que ficaram famosos no Brasil. A pessoa tinha que entrar num poço com co-

bras, aranhas, escorpiões. Então, fui tendo uma fama em torno disso, aqui e no exterior. Sou muito mais respeitado lá fora que aqui. Só faltam estender um tapete vermelho. Mas aqui é como dizia Glauber Rocha: não há reconhecimento. Ele dizia que eu teria muito mais fama no exterior, e tenho. Por que o senhor acha que o terror não vingou no Brasil? Aqui é tudo levado em zombaria. O terror só é feito aqui por gozação. Fora, ele é levado muito mais a sério. Dão um valor muito grande. Se quisesse ficar lá fora, seria milionário. Eu recusei porque tenho sete filhos, não podia levá-los. Sua maior dificuldade foi mesmo querer bater de frente, inovar, ou tiveram outras? Queria fazer o que eu sentia. A partir do momento em que era proibido fazer isso, que era preciso seguir uma norma, fui obrigado a me revoltar. Com isso, tive muitos seguidores, como Persão (Luiz Sergio Person), Jairo Ferreira, jornalistas, diretores. Inclusive o Glauber. Estes me deram muita força. Passei a ser muito respeitado em outros países. Aqui não davam a mínima. A cultura era realmente apagada aqui. Ninguém dava atenção e não se preocupavam em manter algo mais preservado. Vivemos uma época de ignorância muito grande. Por isso não desenvolvemos um cinema que poderia estar se igualando ao de franceses, assim como

esmagando os ingleses. Os americanos não, sempre foram difíceis de bater.

Por causa da situação financeira? Sim. Eles gastam bilhões em uma fita. Querendo ou não, isso corre o mundo inteiro. Fazer uma fita nacional e exibi-la lá fora é a coisa mais difícil.

Naquele tempo, para conseguir fundos para produzir os filmes era complicado? Era complicadíssimo. Inventei um sistema de cotas, que dava direito, a quem fosse ao cinema ver um lançamento, de levar a família toda junto. Era a minha forma de arrumar dinheiro para fazer cinema. Não havia, como hoje, incentivo à cultura. Era tudo na raça. Se você perdesse tudo, não havia seguro.

O senhor classifica o seu cinema, no começo, como mais popular ou ele atingia as camadas da elite? Era um cinema marginal. Fui considerado um dos primeiros marginais, fugindo da normalidade. Eu achava a escola de cinema uma asneira. Ficava revoltado com o monte de regras que havia. Diziam que as minhas fitas não dariam montagem. Os outros eram acostumados a fazer um cinema todo em ordem cronológica. Eu começava, ia para o meio, voltava, ia para o fim... Quando estava gravando o meio e via um cenário que encaixava no fim, pulava o roteiro e fazia. Se o roteiro não dava força, fazia adaptações


e tudo passava a funcionar. Todos ficavam abobalhados, mas era apenas uma questão de ser mais atrevido, ir mais à frente e seguir sua vocação, respeitando a maneira do outro também. Uma vez estava eu em uma caixa d’agua gravando. Aí veio o Glauber e perguntou o que eu estava fazendo. Ele não acreditou no que via, me achou doido, falou que todos seguiam um homem que não tinha noção de nada. Ao assistir ao filme, ele foi o primeiro a se levantar e dizer que eu era um gênio. Eu tinha feito um rio dentro de uma caixa d’agua e isso, para eles, era uma inovação. Havia uma infinidade de lentes para serem usadas, mas muitos gravavam com apenas uma. Pra que então ter tanta lente? Uma vez fui fazer uma cena em que dava um telefonema em um orelhão. Levaram um carro inteiro, 30 técnicos, etc. Aquele mundo de aparelhos só pra me pegar no orelhão! “Mas o que é tudo isso, porra?”, pensava. Era tudo para aparecer.

Com relação ao Glauber Rocha, o senhor chegou a dizer, certa vez, que o ensinaria a fazer filmes, porque ele era aclamado pela crítica e você não tinha esse reconhecimento. Não tinha mesmo, porque eu fazia planos que ninguém ousava fazer, era um elemento criativo. Tudo tinha regras a seguir, e eu as quebrava. Diziam “Não, não pode fazer isso! Quebra o eixo, quebra não sei o que...”. Era muita “frescurite”. Era tudo seguido à risca.

Eu achava muito simples: direita e esquerda. Achavam que o que eu fazia era uma inovação, mas não era nada. Eu só usava a cabeça. Se fosse me levar só pelo que há nos livros, não chegaria a nenhum lugar. A censura olhava muito isso, era estranho.

Por falar em censura, o período da ditadura foi o pior de sua carreira? Sim, foi o pior período da minha carreira. Tive minha fita (O despertar da Besta) censurada por 20 anos. Se saísse, na época, eu tinha ficado milionário. O pessoal achava que, com a cabeça que tinha, poderia me tornar subversivo e todo mundo viria me ajudar. Era tido como uma ameaça. Era proibido ser inteligente. Um homem e uma mulher da censura, uma vez, vieram e começaram a pegar em minha carne, dizendo “Não, ele é humano”. É o fim da picada ter uma censura dessa, que achava que eu era um extraterrestre! Fui um cara que combati muito a censura. Fazia das coisas mais absurdas para desafiar mesmo. Eles censuravam sem saber o porquê, agiam pelo que a maioria pensava, não pelo certo e o errado. Qual produção foi o auge da sua carreira? “O Despertar da Besta” me projetou para toda parte do mundo. Mas “À meia-noite levarei sua alma” deixou o pessoal realmente impressionado. Ninguém acreditava na fita. Fiz o filme para a sessão da meia-noite, que estava começando. Eu não esperava que se-

ria exibido em um palácio para 50 mil pessoas. Abriu um caminho grande. Eu já vinha fazendo “Meu Destino Em Suas Mãos”, “Sina do Aventureiro”, então parti para o primeiro terror brasileiro. Eu pensei “é por aí que eu vou”. Aí não parei mais. Também fiz uma fita de sexo explícito, “24 Horas de Sexo Explícito”, que ficou um ano em cartaz. Todo mundo queria ver o sexo de cachorros com seres humanos. Eu descobri o que impressionava as pessoas, enquanto os outros não. Sabia como fazer algo que atraía público, que chamava a atenção, mas que não se esperava sucesso. Por exemplo, o “Exorcismo Negro”, uma fita de terror tremenda, foi lançada no Natal. Juntei dois ônibus de alunos na Escola de Arte Dramática. Eles ficavam no cinema tendo “frescurites”, o que dava uma boa divulgação. Algo proibido despertava mais a atenção das pessoas.

Como foi esta experiência com os filmes eróticos, quais eram as diferenças? Eu diria que senti um prazer muito grande. Nós tínhamos a famosa Boca do lixo aqui em São Paulo e diziam que eu não sabia fazer fita de sexo, que só fazia cinema de terror. Aí eu fiz 24 horas de sexo explícito e ficou um ano em cartaz, com filas enormes. Eu cheguei a ver Jô Soares, Chico Anysio e outros grandes artistas que queriam ver um filme de sexo explícito. Eu resolvi ousar e mostrei uma coisa que todo mundo sabe que acontece, mas não tem coragem de mostrar: um


cachorro fazendo sexo com uma mulher. Eu simplesmente mostrei aquilo que existe, mostrei na tela, não criei nada. Achavam a coisa mais forte, mas não vi nada de forte. Eu fiz porque sei que tinha casos assim. Conheci uma menina rica que o noivo ficava esperando na sala e ela ficava transando com cachorro no banheiro.

Qual foi sua relação com a Boca do Lixo (nos arredores da Estação da Luz), considerada o principal polo do cinema nacional até a década de 70? Eu diria que fui um dos primeiros a montar a Boca do Lixo. Nasceu porque nós tínhamos a Estação da Luz e o pessoal se reunia na Rua Sete de Setembro, já que não tinha outro lugar. Como todos os exibidores do Brasil vinham à Rua do Triunfo para pegar os filmes, eu achei que ali tinha que ser a sede do cinema. Eu montei a minha produtora ali e chegamos à conclusão que seria mais fácil para todos. Os exibidores já chegavam a Boca do Lixo e levavam as fitas sem precisar correr pelo Brasil todo. Eu fui um dos montadores da boca e, quando eu saí, fui um dos responsáveis pelo fechamento. Era uma Hollywood brasileira. Todos que estavam desesperados para entrar no cinema chegavam à Boca do Lixo. Muitas pessoas foram projetadas pelos diretores dali. Mas só Deus sabe o que eles passaram.

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Era uma região também conhecido pela prostituição. Existia uma relação entre prostituição e cinema? Não tinha uma relação. Eu fui amigos de algumas donas de casas de prostituição e elas fecharam o caminho. Havia um espaço destiA B BA

nado a prostituição nas proximidades da Estação da Luz e outro que era destinado ao cinema. As prostitutas ajudaram a montar um mundo diferente na Boca. Tinham casos de atrizes que eram prostitutas, mas, quando se descobria que a fulana era prostituta, a gente cortava do cinema. Havia uma irmandade entre nós. Se um pegava uma atriz para trabalhar, o outro não pegava. Um ajudava o outro dentro do cinema. Com o fechamento da Boca, porém, tudo se acabou. Ninguém sabe mais nada sobre o que acontece no cinema. A Boca era o caminho de tudo. Você tem um filme ou uma cena que você acredita ter mais arrepiado os seus fãs? É tanta cena que eu não sei definir, mas, de arrepiar, eu acho que foi colocar as meninas com aranhas caranguejeiras em uma banheira, elas subiam pelos seios, pelo rosto e paravam nos olhos. Também tem no ‘Meia-noite’ (À meia-noite levarei sua alma), que foi o meu primeiro filme de terrore, no qual eu tenho um cadáver e, quando abro o túmulo, uma aranha sobe pelo corpo do cara e para bem no olho dele. Foi uma coisa de arrepiar, inclusive o autor, que fez a cena, morreu vendo aranha, ele disse que sentia aquela pata da aranha no olho sempre que ia dormir. A mulher dele me disse que toda noite ele estava vendo aranha.

Qual cena ou filme de sua autoria mais te arrepiou? Todos os filmes que eu fiz me arrepiaram demais, mas, principalmente, o Encarnação (do Demônio), pois foi quando eu resolvi me deitar em plena Estação da luz e pedi para colocarem aranhas caranguejeiras so-

bre mim. Não foi fácil, mas senti o que meus atores sentiam. Uma coisa é mandar fazer, outra é passar por aquilo. Passei a ver meus filmes com mais atenção e pensei: “Pqp! Aquela mulher foi corajosa demais ou aquele ator foi corajoso demais”. Eu tive um caso em que a mulher estava com uma cobra enrolada no pescoço, eu pedia mais expressão e ela estava morrendo sem eu notar. O produtor teve que interferir e tirar a mulher, senão eu teria matado a atriz sem perceber. Você tem prazer em ver que as pessoas têm medo do Zé do Caixão? Eu não sinto prazer, mas é o objetivo. É gratificante porque é realmente o meu objetivo, não só artístico, mas também financeiro. Eu me sinto bem, pois, se eu consigo causar medo, surge o interesse de outros produtores que pensam: “esse é o homem certo”. Foi assim que eu consegui muitos elementos para produzirem comigo. Muitas vezes, pegavam minhas fitas, passavam para as pessoas e, de acordo coma reação delas, me escolhiam para os filmes. Então não é o prazer, mas uma necessidade que tenho, pois aquilo vai me ajudar no meu trabalho, não só artístico como financeiro. Você afirmou que começou a fazer filmes de terror depois que viu a reação das mulheres nas cenas de medo. Você acredita que conseguiu aumentar o seu prestígio com as mulheres após as produções? Com certeza aumentou. Inspirado naquilo que eu fazia, eu sempre consegui, dentro do cinema, conquistar a mulher mais difícil. Muitas vezes, eu estava filmando e, se tinha o interesse em alguma atriz, eu pensa-


va que, como diretor, se eu fosse cantar ela, eu estava forçando uma situação. Então, eu precisava que ela me contasse que estava querendo algo e fazia de tudo para que ela se sentisse com força a ponto de começar a me cantar. Se ele não se sentisse superior, ela não vinha. O mais gostoso é a mulher vir falar com você, pois cantar uma mulher e ela não te dar atenção é muito frustrante. Depois de sete mulheres diferentes ao longo da vida, você se considera ‘mulherengo’? Eu não diria que fui mulherengo pelas sete mulheres, mas eu diria que, entre o final dos anos 60 até os anos 80, eu fui bastante mulherengo. Cheguei a ter uma escola de artes com mil alunos, sendo 700 mulheres, mas alguém que é professor e diretor não pode sair com uma aluna. Aí, eu marcava o negócio bem longe com a fulana e dava minhas escapadas. Em boa parte de seus filmes, você explorava cenas com mulheres e bichos peçonhentos. Isso te dava prazer? Por incrível que pareça, isso me deixava triste. Religioso como sou, pedia perdão depois a Deus e à minha própria mãe. Porque eu me deixava levar por coisas que não podiam ser, ou seja, uma mulher torturada dentro da fita, quanto mais sofria, mais eu achava legal. Eu cheguei até a duvidar de mim, mas percebi que estava achando legal não pelo sofrimento dela, mas pelo o que ela poderia me trazer na fita. É muito interessante você ter uma cena que comova o povo, para que todos olhem e comentem que é real. No Encarnação (do Demônio), por exemplo, eu

Sou um dos caras mais injustiçados do cinema

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usei a minha própria companheira, porque eu não consegui nenhuma mulher que entrasse em um barril com três mil baratas. Só minha companheira sabia o que eu queria e disse que faria. Ela tem medo de uma baratinha, aí eu até questionei: “você vai fazer isso”? Ela disse que sim, pois se era o que me satisfazia, ela iria fazer. Isso deixou todo mundo surpreso. Olha que a gente colocou anúncio em todos os locais, mas não surgiu mulher com coragem para entrar no barril.

O senhor é religioso? Eu diria que sou católico, peço a Deus as coisas que quero, respeito a Igreja, frequentava a Missa do Galo antigamente, também comparecia no Dia dos Mortos, mas tive umas desavenças com um padre em uma igreja no Brás (bairro da zona leste de São Paulo). Havia uma procissão para ir, cheguei atrasado e entrei na igreja para rezar, pedir perdão que não tinha chegado a tempo. De repente, o padre entra e começa a falar palavrões, perguntando o motivo pelo qual eu não tinha ido à procissão. Aí larguei o respeito, parti para a ignorância, falei para os meus companheiros largarem o padre lá e cada um seguir seu caminho. Naquele momento, o padre tirou toda minha fé na Igreja. Não tirou toda minha fé, pois eu acredito em uma força superior que está por trás da natureza. Essa força superior que comanda todos nós é Deus.

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E o diabo? Isso é invenção do homem. O diabo já está aqui na Terra, somos todos nós. Esse negócio de dizer que tem um inferno é ‘furada’. O cara ser obrigado a passar por aqui, enfrentar esse sofrimento de nossa sociedade, com todos os nossos políticos corruptos, já é terrível. Nós sofremos demais nas mãos desses caras. Temos que seguir um outro caminho. Eu já cheguei a uma idade que já passei por isso tudo, mas os mais novos vão enfrentar muitos problemas por aí para


O diabo é invenção do homem

conseguir chegar aos 80 e dizer que está numa boa.

Você crê em vida após a morte? Eu continuo estudando isso e estou doido para saber se tem vida após a morte. Eu acho que existem as pessoas iluminadas, que nascem com um astral mais elevado e realmente vieram para ficar. Outros são meros acompanhantes e servem apenas de cerco para mentes mais elevadas. Essas mentes mais elevadas ultrapassam a fronteira do natural e devem ter uma dimensão tão elevada que vamos saber apenas após a morte. Eu acho que a morte não é o fim, mas apenas o início. Quando vem a morte, inicia um mundo completamente diferente do que a mente humana imaginou. Um mundo de coisas estranhas, paranormais, que fogem da realidade.

Você se considera o maior cineasta brasileiro? Do gênero, sim, entre os cineastas de terror eu me coloco como o melhor, até porque tem poucos. Está começando agora o Rodrigo Aragão, mas tem apenas três filmes feitos. Eu me considero não só no Brasil, mas também na América Latina. Já vi muito filme da América Latina, mas não tem condição, o Brasil bate de dez. E com relação a todos os gêneros? Seria difícil eu me considerar o maior cineasta pegando os gêneros policiais, românticos, não dá para ser considerado. Eu sou um cineasta mais elevado, que foge do normal, mas não sou o melhor cineasta. Eu me considero, dentro da precariedade, o melhor, como na América Latina, por exemplo. Mas não vou colocar a Europa em questão, pois lá tenho muita gente que tenho que abaixar a cabeça. Após mais de 50 anos de profissão, você fez tudo o que queria na carreira?

Não, eu ainda pretendo fazer uma coisa bem absurda, mexendo com forças terrestres, mentes elevadas, seitas realmente místicas. Pretendo juntar isso tudo e fazer um trabalho que mexa com todos. Estou tentando encaminhar o roteiro devagarzinho, mas ainda não terminei. Cada coisa nova que vejo vou acrescentando nesse roteiro. Eu acredito que tudo tem uma razão para existir e nada é um segredo que você não vai descobrir nunca. Uma hora você vai ter um esclarecimento através de sonhos, pesadelos ou intuição mesmo. Assim você vai chegar a um caminho certo. Você tem alguma frustração na carreira? Sempre tem algo que nos frustra. Eu gostaria de agradar gregos e troianos, como não consigo, eu fico frustrado, mesmo sabendo que isso é quase impossível. Cada um tem sua maneira de pensar e faz aquilo que acredita estar certo.

Você acredita ter sido injustiçado pela crítica de cinema? ‘Puts’, eu fui o cara mais perseguido pela crítica. Nestas últimas semanas mesmo, eu estava lendo jornais e críticos do passado estavam falando sobre mim. Fui injustiçado por pessoas que ‘desciam o pau’ há 40 anos e, com o passar do tempo, hoje diz que sou um gênio. Eu acho errado, eles deveriam reconhecer isso quando eu fiz um trabalho que nunca tinha feito. Já deveria ser considerado gênio naquela época não depois de 50 anos. Com uma mudança de percepção sobre suas produções, um filme do Zé do Caixão, que hoje é considerado ‘cult’ dá um certo status ao público que o assiste? Há uma divisão de pensamentos. Entre intelectuais e médio intelectuais, dá um certo status. Os imbecis, que não têm nada na cabeça, te colocam lá embaixo, são críticas de pessoas que não estão à altura de criticar

e criticam mesmo assim. No passado, quando tínhamos críticas em jornais e revistas, você ficava esperando as publicações para saber o resultado. Hoje, você não está em aí. O que interessa éo que o povo gosta. Se você fez algo que o povo gostou, até mesmo os grandes críticos que são contra você vão te elogiar. Se você não conseguir convencer o povo, você pode ser o maior intelectual do mundo e ainda não vai ter valor, como diria um grande amigo meu, Jânio Quadros, que era um homem muito inteligente e foi tirado da presidência por isso.

Ao longo de sua carreira, você sempre teve uma participação política muito grande. Fui até candidato no passado, na época do Jânio, mas não fui um político por se interessar por política, acabei sendo um político que gostava do trabalho do Jânio e ele realmente me convenceu na época. Se ele fosse reeleito, eu conseguiria me eleger, mas como ele não foi, eu não entrei. Foi só naquela época. Hoje eu sou bajulado por políticos que querem ajuda nas campanhas, mas eles são falsos ‘pra cacete’. Depois que entram, te dão um pontapé. Eu ajudei muita gente no passado esperando uma recompensa, mas, se o cara entra lá, ele só pensa nele e na família, dá um ‘pé na bunda’ de quem ajudou. Para fechar a entrevista: o que mais te faz arrepiar? Só uma palavra: o que arrepia é a injustiça. Você vê um cara legal, que pega um mendigo, ajuda e depois é roubado pelo próprio mendigo. Você ajuda e, de repente, leva aquela ferroada. Uma mulher que o pessoal começa a desprezar, você vê o sofrimento, tenta ajudar porque ela é muito mais frágil do que o homem, aí ela se ergue e você, que foi o bem feitor, é crucificado. Isso dói e dói muito. É o não reconhecimento daqueles que te prestaram favor. o A B BA

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SEXO

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NOSVEMOS NOS VEMOS DO OUTRO

LADO Uma visita ao mundo BDSM POR JULIA MELLO

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“A pequena morte”, do francês La petite mort, é um eufemismo utilizado para falar sobre o orgasmo. Mais do que a idealizada transcendentalidade que acreditamos sentir após uma gozada, esse termo fala, na verdade, sobre a melancolia e solidão que vêm depois do prazer intenso. Na “grande morte” não partimos para perambular em outros mundos e depois voltarmos. Apenas partimos, e o mundo que, melancolicamente, siga em frente sem a nossa presença. “Você tem medo de morrer?” “Não... tenho medo da dor, mas de morrer, não”. Durante um mês, fiz essa pergunta para amigos, conhecidos, familiares e estranhos. A resposta era sempre negativa, com a qual meu cérebro, acostumado, fazia a língua engatar: “Não tem medo de deixar pra trás sua família, seus amigos, sua vida?”. O não mantinha-se firme. Mas se não temos medo de morrer, porque temos velórios, funerais e visitas à cemitérios para chorar por algo que já se foi, algo que já não mais é? Todas as culturas tem uma forma de honrar a morte. Mas, em algumas, a morte é apenas uma passagem, sendo assim um rito de celebração. Día de los Muertos, México. Bon Odori, Japão. Ambos com música, cores, flores, festa. No Tibet celebra-se a morte com o Funeral do Céu, uma tradição budista. O cadáver é depositado no alto de uma montanha, para que as aves comam sua carne e levem a alma até o céu. Foi com esse pensamento que saí de casa em uma noite de janeiro: se podemos celebrar a grande morte, vê-la e compreendê-la de uma forma diferente, porque não podemos fazer isso com a pequena morte?

NARRATIVA SEXUAL

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O dia se arrastou. Não sei, mas desconfio que em noites grandemente aguardadas, o dia se arrasta. Olhava pela janela e lá embaixo via o asfalto crepitar. As folhas não balançavam, os cachorros não gritavam, as pessoas guardaram-se em casa. Era um dia estranho. Desde sempre aprendi que a melhor forma de se preparar pra uma grande noite é dormir. Então é isso, dormir. Dormi um sono pesado e acordei assustada. Olhei A B BA

no relógio e tinha perdido o horário. Tinha perdido a festa, a entrevista, o encontro, a experiência, não tinha matéria, a matéria tinha acabado, ia passar vergonha. Minha casa estava muito quente, um calor no corpo, um ardor inexplicável, fui até a cozinha e tudo estava em chamas. Gritei em vão e, dessa vez, acordei de verdade. Estava molhada de suor dos pés à cabeça. No quarto escuro, chutei os malditos cobertores e pulei da cama. Cheguei. A rua lotada de tipos que eu não veria em outro lugar. Anos de pornografia e toda a playlist sexual do mundo não são capazes de te preparar para um momento desses. Take a walk on the wild side with shiny boots of leather, dizia Lou Reed. Não antes de uma vodka, respondi. O chapeiro do boteco do outro lado da rua fazia um hambúrguer para alguém, porém não perdeu seu tempo em me insultar. “Já é halloween?” Sorte do dia: ninguém me viu saindo de casa. Batom preto, um corset de cetim barato, fishnets. Como o preço da entrada da festa era baseado na roupa que estava vestindo, imaginei que pagaria me-

nos de 10 reais. A hostess me olhou e riu. “Hahahaha, menores de 15 anos não pagam. Pode entrar, gracinha”. Entrei. Imaginei que seria uma cara cena de filme, com lustres de vidro, sofás de veludo vermelho, piso encerado. Ou então que seria um cena trash de festival de horrores, com muito sangue pelas paredes e pessoas enlouquecidamente frenéticas. É claro que não era nada disso. Estava tão escuro que só conseguia ver vultos. Meu olhar foi se acostumado com a penumbra e meus ouvidos com a música estridente. Como Dorothy perdida no mundo, saí perguntando em busca do Mágico de Oz: oi, onde posso encontrar o Heitor Werneck? Como quem procura acha, encontrei-o numa outra parte da festa, mais privativa. O cabelo loiro clareado com água oxigenada e sua altura seriam imponentes e assustadores se ele não estivesse pendurado pelo teto, com pinças perfurando suas costas e sangue escorrendo. Quando a apresentação terminou, apenas perguntei: você tem medo de morrer? “Tinha medo da dor, mas hoje nem dor sinto mais. Só prazer”.


Fotos: Robert Mapplethorpe Foundation

TRAJETÓRIA SEXUAL

“O que você sentiu?” “Mas como foi?” “Mas...?” Não. Ser amarrada, perfurada, arranhada, não é o que as pessoas pensam. Longe de 50 tons de cinza. Longe de qualquer lenda urbana ou misticismo. Longe de qualquer relação à possíveis problemas psicológicos. Com quem conversei, quem vi, o que presenciei, demonstrou-se ser apenas uma premissa pra celebrar o gozo de outra forma. Uma forma clara e até bela, mesmo que brutal. “Conheci mulheres de todas as formas. Fortes, seguras, inseguras, solitárias, as que procuravam diversão e as que só procuravam sair do tédio. BDSM não é escapismo, não é só a troca de papéis. Não é porque você é o dono de uma empresa que quer ser submisso aqui, ou porque é a submissa em casa que busca ser dominatrix”. Essa frase foi dita pelo dono de um site que cadastra mulheres que querem se tornar escravas sexuais. “O BDSM tem suas regras próprias. Primeiramente você tem que jogar os tradicionais papeis sexuais fora, aqui eles não servem pra nada. Se você acha que as mu-

lheres que querem ser escravas são umas coitadas, você realmente não sabe nada”. Amarrada, pensei sobre mil coisas, mas principalmente sobre como todas aquelas pessoas ali, naquele pequeno corredor, eram vulneráveis. Sobre como era necessário uma entrega não convencional, uma entrega que não acontece normalmente num mundo viciado em descobrir quem tem mais poder. Alguns eram apenas curiosos enquanto outros estavam tentando se encontrar. Não é algo legítimo isso, tentar descobrir o mundo ou tentar se encontrar através do sexo? Qualquer história dessas pessoas que eu escolhesse contar seria cheia de sentido. Não é possível resumir o mundo BDSM em um texto, em um análise, em algumas perguntas ou entrevistas. Aliás, poucas coisas são assim, tão facilmente redutíveis. Sendo assim, percebi: eu estava fazendo a pergunta errada. Não quero saber se você tem medo de morrer. Quero saber se você tem medo da morte. Quando não tiver, me avise. Nos vemos do outro lado. o

BDSM: Bondage e Disciplina (BD), Dominação e Submissão (DS), Sadismo e Masoquismo (SM). Todos esses são grupos de padrões de comportamento sexual.

São, seguro e consensual. De acordo com as regras de boa conduta bdsm, a sessão bdsm deve obedecer a essas três regras básicas. É necessário distinguir a prática da violência, tanto física quanto psicológica, e alertar para fatores que diminuem a capacidade de escolha, como álcool e drogas.

SAFEWORD: Cada um tem um limite pessoal, e caso este seja ultrapassado,

diz-se uma palavra de segurança previamente combinada, para que a sessão acabe.

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ˆ CRONICA

a cidade arrepiante:

ODE A PARIS ´

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POR

GABRIELA BOCCACCIO

di�ícil colocar no papel o que eu sinto por Paris. O cinema já mostrou suas diversas facetas, os grandes escritores já descreveram os momentos mágicos que viveram nela, mas nenhuma daquelas Paris é a minha Paris. Minha Paris não é a Cidade Luz, minha Paris é aquela do imenso portão azul da Avenue Duquesne que me serviu de escola, é aquela portinha de vidro que me levava às aulas de ballet, é aquela da feira aos sábados de manhã, regados a Coca Cola e raviólis de presunto do David. Paris não é sempre a mesma. Por trás das fachadas clássicas dos prédios eu a A B BA

ILUSTRACAO POR THAIS HELENA REIS

encontrei de todos os jeitos possíveis. Descubro-a toda vez que atravesso o oceano e por ela me apaixono mais ainda. As duas primeiras semanas de Janeiro que o digam. Vi Paris através dos olhos dos que me acompanharam na viagem: Caio e Luísa, o casal dos queijos e vinhos, Lucas, meu irmão tão francês quanto eu, Alice, sua namorada que conhecia somente os cartões postais da cidade, e Rafaella, a prima francó�ila. Cada um trazia uma nova visão sobre a Paris deles. Paris é aquela cidade que se perde nas ruas estreitas para depois encontrar-se na sorveteria Bertilhon. Paris é aquela que se descobre a qualquer momento, que surpreende pelo inesperado, pelo casamento inti-

mista de um casal no jardin du Palais Royal, pela carruagem que os espera em frente à Comédie Française e que deixa todos imersos naquele sonho acordado. Paris não é sempre aquela do luxo, da Champs-Élysées e das vitrines na Rue du Faubourg Saint Honoré. Ela é também aquela dos metrôs lotados de livros, smartphones e músicos frustrados. Da periferia, dos vendedores ambulantes do mercado de pulgas que negociam a última versão do Iphone enquanto jaz numa galeria perto uma reprodução de Rodin. O frio parisiense encolhe nativos e turistas dentro de seus casacos escuros. As rajadas de vento que chicoteiam a pele dos tran-


Fotos: Rafaella Basile

ˆ CRONICA

seuntes da estação Ségur arrepiam e desviam seus olhares. Aqueles olhares que se dirigem para os corredores tortuosos do metrô com o cheiro característico que só ele tem. A fonte do calor encontra-se nos bistrôs e restaurantes. Neles todos se despem de suas roupas de sobra em frente a uma sopa de cebola ou diante do aligot do La Petite Périgourdine. Na �ila para entrar no Angelina e na expectativa de tomar o famoso chocolate quente, as mãos apressadas abrem os botões do casaco. Não é pelo mille-feuille, nem pelo chocolate espesso, mas pelo local que o Angelina fascinou Alice. Rue de Rivoli, em frente ao Tuileries. Esse e todos outros locais �izeram sua Paris a Paris da Torre Eiffel, do passeio romântico de barco, do sorvete Bertilhon de framboesa e dos quadros do Van Gogh. “É incrível ver o quadro do pintor na sua frente” diria a parisiense de primeira viagem ao se deparar com os painéis do Monet, no l’Orangerie. Um frisson em nome da arte percorre seu corpo, o de Luiza, o meu e de tantos outros. Muitos estão nos museus parisienses para tirar fotos, outros se

emocionam e alguns se encontram naqueles quadros icônicos. Frida Kahlo e Diego Rivera calaram o pequeno espaço do museu. Os visitantes amontados em frente aos quadros mais famosos do casal pareciam desaparecer na sala dedicada à pintora. Entre aquela estética mexicana e os adesivos dos murais de Diego nasceu a promessa de um mochilão no país nativo dos artistas. Quem sabe lá as ruas e praias não tenham a plasticidade da pintura? No Musée D’Orsay, estudantes se juntam em volta de um quadro de Renoir para discutir o impressionismo, uma apreciadora desenha uma das bailarinas de Degas, nesse mesmo momento uma mulher diz em voz alta que a tal da bailarina é feia. Enquanto isso na sala do Van Gogh, Caio se impressiona com os autorretratos do pintor e suas pinceladas perturbadas. Um ar festivo acompanha a cidade e tem como trilha sonora as melodias de Amélie Poulain no piano da Shakespeare & Co. Tem como mote “quero a minha carona do Hemingway” quando o mundo está girando

em volta daquele escadão. Tem como sabor o queijo de cabra com trufas, o vinho rosé do supermercado e os sanduíches de parma. Tem como cheiro o vento do metrô quando chega à estação. Tem como barulho o último sucesso do funk carioca. Tem como lembrança o frio do Natal para Caio, o reencontro do amor para Rafaella e a magia das ruas de Luíza. Paris é um arrepio constante, quando os pelos do braço deixam de se erriçar por causa do frio a cidade lhes dá outro motivo para repetirem a mesma ação. A passarela mórbida para atravessar as margens do Rio Sena, a mulher caindo em você no metrô, os esboços dos personagens da Pixar, a torre Eiffel vista de baixo, o carrossel de Montmartre, do piquenique clandestino no Buttes- Chaumont. Paris é uma cidade calcada no imaginário das pessoas, estando lá, sonhando com ela, ou vendo-a nos �ilmes do Godard. Cada pessoa se apropria dela à sua maneira. A cidade fotogênica, a cidade de camiseta listrada e boina, a Cidade Luz, a cidade, uma cidade, uma cidade qualquer. o A B BA

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sxc.hu/Graham Kingsley

sxc.hu/Victor Iglesias

sxc.hu/dsidwell

sxc.hu/Ash Conner

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Todas as fotos da Vai-Vai tiradas por Lucas Brêda

´ MUSICA


´ MUSICA

TOCANTE Parecem opostos, mas o samba e a música clássica têm algo em comum: o arrepio POR YAN RESENDE & PEDRO CAMARGO

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ordas do violão vibram e emitem sons que através de relações rítmicas e harmoniosas tornam-se música. Eles são percebidos por ouvintes que, inicialmente displicentes, não prestam atenção àquilo, até se deixarem levar, depois de um temo, por aquela cadência sonora. A música que inebria, entontece e arrepia tem um papel crucial na vida de dois personagens que mesmo tendo diferenças de predileção, são profundamente tocados pelo poder da melodia.

SAMBA NOSSO DE CADA DIA

Final de semana significa descanso para a

grande parte dos trabalhadores, mas está longe de representar algo semelhante a um jornalista esportivo. Domingo é tradicionalmente dia de futebol, logo, a missão desses profissionais é encarar mais uma jornada, muitas vezes até maior do que a rotina do meio de semana. Marcos Guedes sabe bem disso. Ele é setorista do Corinthians na GazetaEsportiva.Net e também tem trabalho dobrado no dia reservado para descansar. O repórter, no entanto, tem um modo peculiar de relaxar após bater o ponto – com horas avançadas na noite de domingo. Beneficiado pela proximidade entre o prédio da Fundação Cásper Líbero e a Rua São Vicente, Caju, como é conhecido pelos companheiros de trabalho, deixa a redação e, em dez minutos, já está nas imediações

da quadra da Vai-Vai. Fã da escola do Bixiga, principalmente pela tradição no carnaval paulistano, o repórter não demora a se sentir em casa. Compra uma lata de cerveja e já começa a cantar os sambas entoados pelo intérprete Márcio Alexandre. A bateria ‘Pegada de Macaco’ contagia, mas há algo mais peculiar que arrepia Marcos Guedes. “Se há uma coisa que arrepia mesmo em um ensaio, é o olhar cúmplice entre o mestre-sala e a porta-bandeira. Estou muito longe de ser um entendido em dança, mas é difícil não ficar impressionado com aquele ritual, a proteção dada pelo mestre-sala à porta-bandeira e, em última instância, à própria bandeira, um objeto extremamente simbólico. Só me irrita quando o mestre-sala é muito vaidoso e está mais preocupado A B BA

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consigo mesmo do que em olhar no olho da porta-bandeira e cumprir o seu papel protetor”, explica o jornalista. A escola do Bixiga, no entanto, não é a única em que Caju marca presença. Amante do carnaval paulistano, o repórter tenta comparecer a ensaios diferentes a cada semana, apesar da curta distância entre sua casa e a Vai-Vai. Corintiano, conhece todos os sambas da Gaviões da Fiel, apesar de ver a escola muito mais como um pedaço importante na história de seu time de futebol. “Já até desfilei pela Gaviões, mas, quando vou lá, canto mais meu amor pelo Corinthians do que propriamente pela Gaviões. Posso dizer que é mais puro o sentimento que tenho em relação à Mangueira. Mas, com as duas, acompanho desde a escolha do enredo, passando pelas eliminatórias do samba, até a apuração”. A relação com a Estação Primeira de Mangueira é peculiar. A distância não parece problema para Marcos Guedes, que, quando vê a oportunidade, comparece à quadra da escola no Rio de Janeiro para acompanhar um ensaio. O fanatismo pelo Corinthians, aliás, não permite que o repórter use a cor A B BA

verde. Desta forma, quando tem que passar por essa obrigação, a alternativa é explorar sua paixão pela agremiação de Cartola. No final de 2013, participou de um campeonato entre os jornalistas e seu uniforme era verde e branco. Caju não teve dúvidas. Vestiu uma camisa da Mangueira por baixo, deixou o rosa aparecer na gola e assim pôde se sentir menos desconfortável. A identificação com a Estação Primeira e também com a Vai-Vai evidencia um pensamento do repórter: escola de samba tem que ter história para contar. Apesar de tentar comparecer a ensaios diversificados, Caju não esconde sua preferência por agremiações de tradição em São Paulo, como a Camisa Verde e Branco ou a Peruche. “Simpatizo mais com algumas escolas do que com outras, mas até mesmo naquelas das quais não sou o maior fã - como na Rosas, que às vezes se parece mais com uma balada, para usar o termo moderninho, do que com uma escola de samba - acabo me divertindo bastante e aproveitando o ensaio”. A falta de conhecimento sobre a localização de uma quadra também não é problema para Marcos Guedes. O amor pelo sam-

ba faz o jornalista se aventurar pelas ruas paulistanas em busca de um bom batuque. Em algumas ocasiões, ainda consegue aliar o seu trabalho com a sua diversão. Em 2014, a Leandro de Itaquera falará sobre a realização da Copa do Mundo no Brasil e, claro, a abertura do evento no bairro. Desta forma, a visita de Caju ao ensaio da escola na Zona Leste logo virou reportagem para a GazetaEsportiva.Net. Questionado sobre alguma loucura que tenha feito por causa do amor ao samba, o repórter reconhece: “Acho que o máximo foi mesmo ir a quadras que não sabia bem onde eram e sem saber como faria para voltar de madrugada. E, mesmo com minha enorme resistência a táxis, sempre se dá um jeito”. Essa resistência a táxis proporciona longas caminhadas durante as madrugadas em São Paulo e a reportagem pôde acompanhar um desses trajetos, desde a Vila Madalena até a Rua Manoel da Nóbrega, na região dos Jardins, culminando em um exercício físico de pouco mais de uma hora. Em uma das regiões mais badaladas de São Paulo, Marcos Guedes se identificou com um pequeno bar. Acanhado, ao lado de


Alessandra Fratus

um posto de gasolina, o Pau Brasil se destaca pela simplicidade e pelo bom samba tocado. Para o jornalista, que se classifica como “nada eclético”, o local é perfeito, também pelo horário que é frequentado. A música do estabelecimento começa a ser executada após as 23h, o que possibilita acompanhar o ensaio técnico da Vai-Vai no inicio da noite para depois se dirigir à Vila Madalena. O caminho feito por Marcos Guedes nas noites de domingo, aliás, representa um pouco do que foi sua paixão por esse ritmo musical. O repórter se encantou primeiro com samba de enredo e depois se identificou com o restante do gênero. “Acho que me interessei pelo samba de enredo antes mesmo de conhecer os sambas antigos de que gosto muito hoje ou o samba de uma maneira mais abrangente. Sou caçula e sempre fui influenciado pelo meu irmão, que é nove anos mais velho. As primeiras lembranças que tenho nesse sentido são de assistir à apuração do Carnaval com ele e ouvir as fitas cassete do sambas de enredo que ele tinha. Mas o negócio obviamente foi bem além de qualquer puxa-saquismo, e hoje o samba tem muito mais importância para mim do que jamais teve para ele”. A dificuldade, no entanto, é explicar os motivos que faz esse apaixonado por samba se arrepiar a cada contato com um batuque.

“É difícil explicar por que um ritmo mexe com você, mas vou usar um exemplo. Não faz muito tempo, fui a um aniversário em que tocaram uma banda de rock e uma de samba. Terminou a primeira apresentação, começou o batuque, e as pessoas passaram imediatamente a se mexer de maneira diferente. E não estou nem falando de dança, até porque não tenho a menor capacidade para isso nem faço questão de ter. Estou falando da linguagem corporal das pessoas conversando mesmo, o samba parece aproximar todo mundo”.

O CLÁSSICO REFÚGIO

Já Eduardo Lobato, 23 anos, apesar da pouca idade decidiu viver da música, para alcançar seu sonho de ser maestro. Atualmente, ele é bolsista da Universidade de São Paulo. Enquanto para Caju, o samba é capaz de fazer com que ele se desconecte de si, para Eduardo é a música erudita que tem esse poder. A relação de cada um deles com a música é totalmente diferente, mas o arrepio se mantém o mesmo. A corporalidade do samba movimenta as pessoas e causa em Caju o mesmo êxtase que a audição de uma longa e complexa sinfonia pode provocar em Eduardo. Ele se sentou em uma das mesas da Reserva Cultural para conversar com a repor-

tagem de A Boba, e com a postura correta na qual se acomodou, manteve-se por toda nossa conversa que durou pouco mais de uma hora. A conversa fluía naturalmente até o momento em que falamos de sua infância. Mantendo um tom sereno, em contraposição a suas mãos agitadas – ele respondeu. “Minha infância foi bem difícil. Eu era rebelde, odiava a escola e fui expulso de quatro escolas quando criança”. Então, conversamos sobre sua mãe. Ele batia os dedos, vez ou outra, na mesa como quem quer sistematizar didaticamente para seu ouvinte uma série de informações complexas. “Na época dos meus quatorze ou quinze anos, era um momento muito complicado – meus pais estavam se separando e minha mãe estava ‘para morrer’ – então a música se tornou um refúgio, ainda é” conta com calma, mas sensibilizado. Eduardo teve que lidar com a morte muito cedo. Quando tudo aconteceu, ele não soube olhar diretamente para a sua dor e a suprimiu. Ainda hoje, ele resgata, de vez em quando, um pedaço desse luto que não se fechou totalmente e o utiliza como matéria-prima para o desenvolvimento do seu trabalho artístico. “Foi muito difícil, mas eu ocupava minha cabeça com outras coisas, entre elas a música (...) Na vida artística você tem que resgatar essas coisas, A B BA

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Esse arrepio é a melhor coisa que pode acontecer na vida. Eu vivo na música pra tentar sempre alcançar esse patamar

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para usar de verdade, se não, sua produção se torna burocrática”, explica. Ele acredita que o alcance do arrepio através da contemplação da música está diretamente ligado a essa entrega emocional do artista em relação a sua obra. Quando criança, ele passou pelo violão, piano, e até um pouco de flauta, mas o momento crucial, no qual ele se interessou profundamente por música erudita foi quando seu pai, engenheiro, inocentemente mostrou para Eduardo, no carro, uma abertura do compositor e maestro alemão Wilhelm Richard Wagner. “Foi uma coisa muito simples, fomos deixar alguém no aeroporto. Ele nunca me mostra nada de música e me mostrou isso, e aí foi meu despertar (...) O Wagner tem uma coisa muito arrebatadora com a música, ele olha pra você com ela e você fica com medo, preso dentro dela”. Mesmo assim, ele confessa que antes da idade dos catorze ou quinze anos, até ouvia música pop. Contudo, sua aproximação com a música erudita reresentou uma mudança em seu convício social. “Chegou um momento em que era difícil ter assunto com o pessoal. [Nessa época] Eu saí de uma escola católica e fui pra outra melhor, na qual as pessoas estudavam mais. Mas, esse último ano nessa escola foi de uma solidão intensa” relembra. “Eu não saía com ninguém, eu não saía no final de semana porque não tinha mais nada a ver”. A B BA

Eduardo Lobato

Mesmo o tempo já tendo se passado, no ambiente da universidade, ele ainda parece não se encaixar perfeitamente. Quase desistiu no primeiro ano, tamanha a decepção com o curso. “A universidade de música é extremamente técnica (...) Você entra lá com aquele sentimento artístico pulsante e eles te mostram que música não é isso. Música é matemática” conta, decepcionado. “Segurou a barra”, não desistiu e mantém-se lá até então, talvez, pela sua necessidade de estar sempre aprendendo. “Eu sou até meio calvinista nesse sentido: ‘O trabalho enobrece’, eu acredito nisso. Não consigo ficar muito tempo sem aprender nada”, explica Eduardo. Entretanto, a outra possível razão pela qual ele se mantém na música até hoje é, muito provavelmente, aquilo que fez com que ele se direcionasse a ela desde o princípio: o arrepio que ela lhe proporciona. O exercício da sensibilidade que viabiliza algo próximo a um transe ao ouvir música é o grande mote da relação de Eduardo com Vivaldi, Wagner ou Bach... “Quando você percebe que já se passaram três horas, você ainda está ali e nem se deu conta, é maravilhoso. Esse arrepio, esse transe é a melhor coisa que pode acontecer na vida. Eu vivo na música pra tentar sempre alcançar esse patamar”, disse, esticando os braços e torcendo o pescoço como se remontasse à experiência arrepiante pela qual costuma passar ao se entregar à catarse musical. o


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religiao

ARREPIO ´ DO ALEM POR GABRIELA MONTEIRO & JESSICA TABUTI MONTAGENS POR NATHALIE PROVOSTE

O

s três jovens veem o dia amanhecer do mesmo jeito: pequenos raios de luz no horizonte que aparecem radiantes em meio ao azul infinito, característico de um céu em pleno verão. Poderiam até ser amigos e compartilhar os mesmos gostos, as mesmas atividades, as mesmas crenças; mas eles não se conhecem. Um espírita, um umbandista e uma evangélica. O que eles têm em comum? A sensação de sentir seus pelos arrepiarem ao participarem de rituais religiosos.

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O ENCONTRO DO FÍSICO COM O ESPIRITUAL

Bruno Afonso nunca foi, de fato, compreendido pelos seus amigos, sendo taxado de “o viajado da turma”. O que os demais parecem ignorar é que, na verdade, tudo é questão de ponto de vista. Determinados acontecimentos são encarados das mais diversas formas por diferentes pessoas. O que para uns pode ser um simples arrepio, manifestação corriqueira do corpo humano, para nosso personagem espírita pode ser um possível contato do além, como uma forma que o nosso físico encontra para responder a algo distante de nossa compreensão. A conversa com Bruno não foi linear. Se o ponto inicial foi o tema religião, ao final, já tínhamos discorrido até sobre substâncias entorpecentes e suas (possíveis) funções espirituais. Ao ser indagado sobre sua posição religiosa, “Brunão” – como é conhecido entre os amigos – prefere se denominar “espiritualista”, e não espírita. Apesar de ser a diretriz com a qual mais se identifica, ele escolheu não pertencer a nenhuma religião por achar a necessidade que ela tem de impor suas verdades, muito autoritária e até desnecessária. “Sempre acaba caindo naquela coisa de eu estou certo e você não, sendo que todas estão tentando compreender a mesma coisa: a espiritualidade. De onde viemos, pra onde vamos, entre outros mistérios humanos”. Sua mediunidade e sua sensitividade estão começando a ser desenvolvidas, mas diante de muita observação. Na verdade, Bruno afirma que elas sempre estiveram lá, mas eram “bloqueadas por serem incompreendidas”. Agora, pouco a pouco ele vem dando vazão a essas manifestações que o mundo exterior lhe causa, pra que assim possa

Foram usadas nas montagens fotos de: Velas: Andrew Lewis Orixá: Daniel Veiga Homem: Upslon Vitral: John Loo Rosas: T. Kiya

compreender de uma melhor forma em seu interior. Questionamos sobre sua idade: se seria um fator de peso para todas essas mudanças. Afinal, nosso entrevistado tem apenas dezenove anos. “Acaba sendo meio referente à perspectiva, porque de certa forma o que eu descobri é que eu sou novo aqui, nesse plano, mas talvez não em outros”. A mediunidade é uma cruz que se carrega e não há como voltar atrás depois de aperfeiçoada. Além disso, ela traz consigo responsabilidades e privações. O próprio Bruno reconhece: em locais onde há muitas pessoas aglomeradas contam, instantaneamente, com todo tipo de energia. “Não tem como controlar. Você sente um peso, é uma coisa que te deixa bem mal, por isso que eu nunca gostei de lugar muito cheio.” Vibrações, aos seus olhos, existem e não dependem apenas de nós. Chegamos a comentar sobre determinadas substâncias entorpecentes que fazem com que ele atinja outros patamares. “A espiritualidade faz parte da natureza e ela possui ferramentas pra você alcançar esses estados diferentes. É realmente como se fosse uma coisa que ela deu pra gente lembrar um pouco, se conectar com ela”. De fato, especula-se muito sobre o nascimento das doutrinas religiosas. Ele acredita que as substâncias enteógenas (na tradução “alcançar o Deus que há dentro de você”) estão entre os responsáveis por esse surgimento. “Todos os povos antigos do mundo inteiro, sem conhecerem uns aos outros, tiveram contato com esses elementos, cogumelo sagrado e cactos, santo daime... Sempre houve coisas vindas da natureza. Inclusive, às vezes, manipulavam-nas mesmo sendo bem complexas em suas químicas para criarem combinações

específicas, e sabiam isso sem ter nenhuma ferramenta, afirmando que os espíritos que tinham lhes falado”. Entrevistá-lo foi como uma longa viagem para dentro de mundos em que ele cria e vive submerso. As sensações eram tantas e, em meio a tudo isso, tratamos a questão central: como a religião, ou, no caso dele, a espiritualidade, pode se relacionar com uma manifestação física e primordial do nosso corpo: o arrepio. Simples. Bruno, que afirma ter sentido com certa frequência os tais arrepios, seja por medo de desconhecido (pois somos criados para estarmos sempre amedrontado, segundo o próprio), ou por estar sendo acompanhado por algo/ alguém muito maior do que essa dimensão, conclui: “Acho que é meio que uma tradução do nosso corpo, de uma energia interagindo com a gente”. É uma forma que o ser físico encontra com o ser espiritual de se mostrar. E faz sentido. Pelo menos dentro de seus universos, ele encontrou sua resposta para essa sensação que “toma conta de minha espinha dorsal e vai subindo até que se apodera de todo o meu corpo como um formigamento – às vezes positivo, outras vezes não”.

UM COPO DE ÁGUA FRIA

Quando o assunto é “do além”, a imaginação - em geral muito fértil - dos seres humanos viaja. Logo imaginamos fantasmas ou coisas da mesma natureza e automaticamente criamos uma visão negativa sobre o assunto. Mas por que encaramos dessa forma se há tantos estudos e credores ao redor dessas “polêmicas”? Não só o Bruno que pende para o espiritismo, falamos também com Lucas Vaz, iniciante na Umbanda. Tranquilo, sorridente e capaz de variar


o seu comportamento conforme a circunstância – ora canta para multidões com assumida maestria, ora fala baixinho em plena Avenida Paulista sobre suas crenças com uma simplicidade notória, o estudante de publicidade possui a mesma idade que Bruno: dezenove anos muito bem vividos. Mas deu início ao seu processo religioso há pouquíssimo tempo, se comparado à segurança e afinidade que já demonstra ter com o assunto: “Há dois anos, num trabalho de faculdade, a professora de antropologia dividiu a sala em grupos e sorteou diferentes religiões pra cada um. O meu ficou responsável pela Umbanda e, ao colocar meus pés no templo, eu falei ‘pronto, cheguei em casa’”. Religião sempre foi uma temática bem presente na sua vida: sua família por parte de pai é composta por evangélicos fervorosos. Já por parte de mãe, por católicos igualmente dedicados, porém todos o apoiam em sua nova decisão e, acima de tudo, respeitam. Isso na verdade só evidencia a sua sensação de pertencimento na Umbanda, visto que Lucas teve oportunidades de conhecer outras religiões. Seu primeiro contato com os rituais foi numa “gira aberta”, como é chamada a apresentação deles. Lá eles abrem para pessoas de fora e apresentam um pouco de seus ritos, entre outros atos, bem similar ao espírita. Desde que Luquinhas – apelido quase que universal para nosso entrevistado – começou a frequentar o centro, sua presença é quase garantida a cada domingo. “Eu sinto falta quando eu não vou. Quando eu viajo, eu fico um mês sem ir, em outras situações também... mas começo a sentir falta”. A intensidade é tanta que Lucas afirma ser sempre uma emoção diferente, a cada


ritual. Mas destaca um em especial, que foi quando uma médium visitou sua casa para “defumar” – como é chamada a limpeza espiritual para eles – e, durante a incorporação, tratou com cada familiar seu de forma particular, demonstrando um conhecimento muito íntimo para quem acabava de conhecê-los. “Ela fala coisas que só você sabe e sente. E tipo... mexe bastante com a pessoa.” Assim como Bruno, Lucas pretende desenvolver sua mediunidade. Diz ele que todos a possuem, uns mais aflorados e outros menos, mas é uma porta que todo ser humano tem dentro de si e cabe a ele decidir se vai abri-la ou não. O seu caso, no entanto, é peculliar. Por trabalhar como músico, está sempre em ambientes aglomerados de pessoas de todos os tipos. Seu maior medo era não saber lidar com as diferentes energias que ele passaria a “puxar” (como ele próprio diz), mas estabeleceu como meta para o ano de 2014 encarar esse desafio. É claro que o desconhecido implica em preconceitos. Lucas contou um pouco também de como a Umbanda é confundido frequentemente com o Candomblé. E é aí que entra o que já foi falado: para quem possui apenas dois anos de casa, o “pretinho” (como foi também apelidado carinhosamente por seus amigos) não deixa a desejar e descreve com uma nitidez assustadora duas religiões que, se prestar muita atenção, não são lá tão parecidas. “O candomblé tem mais ação, diferente da Umbanda que é, na verdade, uma junção do candomblé, do espiritismo e do catolicismo. É uma religião brasileira mesmo, enquanto a outra é mais africana”. Há também duas giras: a de esquerda e a da direita. Enquanto a pri-


meira é chamada de “parte branca” e conta com oferendas, por exemplo, a segunda é a “parte negra” e não possui os mesmos rituais. O que eles buscam é que haja um equilíbrio entre as duas: “É como se fosse um ímã, você tem que deixar médio. Não fazer muito a energia esquerda nem a de direita, mas equilibrar. Ai quem incorpora o caboclo tem que incorporar a pomba gira pra equilibrar as energias. Mas nada é ruim, na umbanda nunca tem nada ruim”. O arrepio para Lucas é constante. Apesar de ser uma manifestação física, ele atrela ao espiritual instantaneamente. “Minha forma de descrever é como se eu estivesse de barriga vazia e, ao entrar lá, tomasse um copo de água bem gelado. É isso que acontece no meu corpo”.

A RESPOSTA DE DEUS

Assim como Bruno e Lucas, Stephany Pires, evangélica desde que se entende por gente, vive situação parecida. Os cabelos longos, lisos e bem arrumados, as unhas sempre desenhadas e a nécessaire de maquiagem sempre acompanhando a bolsa logo denunciam que a vaidade é sua companheira de longa data. O conjunto formado pelas delicadas pulseiras, a saia até o joelho e o leve sorriso dá a Stephany um ar meigo que disfarça a sua personalidade extrovertida. A estudante de arquitetura tem uma ligação muito forte com sua religião. “Sempre fui evangélica, pois meus pais já eram evangélicos quando eu nasci e me criaram na igreja. E nunca tive interesses em outras religiões, por respeito e por achar que, depois de frequentar por muitos anos a Congregação, esse é realmente o caminho certo a seguir”.

A Congregação, da qual participa, tem sedes em outros países além do Brasil, pois os irmãos procuram espalhar o evangelho ao redor do mundo. Stephany explicou que “a igreja que fica no bairro onde cada pessoa mora é chamada de Comum Congregação, onde ela vai procurar congregar sempre, estar sempre nos cultos”. E sua rotina de cultos é bem intensa. Enquanto ajeitava o cabelo, a estudante de 21 anos contou quantas vezes por semana vai à congregação do seu bairro. “Os cultos são de quinta-feira à noite, sábado à noite, domingo de manhã e domingo à noite. Eu procuro congregar todos os dias de culto e nos outros dias da semana, às vezes, vou aos cultos de outros bairros”. O órgão logo na entrada de sua casa revela que a família toda sabe tocar o instrumento musical e dedica-se para as apresentações na igreja. Além dos cultos, Stephany procura manter-se conectada aos ensinamentos por meio das suas orações durante o dia e antes de dormir. “Oro sempre que acordo e vou dormir e, às vezes, antes de sair de casa pra me sentir protegida. Eu sempre tenho vontade de fazer orações, antes das refeições, antes de sair, mas por causa da rotina movimentada acabo me esquecendo. Antes de dormir tenho que orar, porque é nessa oração que vou agradecer a Deus pelo dia que Ele me deu”. Essa devoção é marcada por um momento muito especial para Stephany: o batismo, que pode ser considerado como um divisor para os seguidores da religião. “Só se batiza uma vez na vida. Na nossa doutrina, se diz que todos os nossos pecados anteriores ao batismo ficam nas águas que nos batizou. Nossa alma sai renovada, purificada e

depois de batizados, devemos ter cuidado redobrado para não pecarmos diante de Deus”. Os evangélicos só podem ser batizados após 12 anos, quando já são considerados capazes de decidir suas crenças e, consequentemente, sua religião. “O batismo é um compromisso muito sério com a igreja. Você só se batiza quando percebe que é aquilo que realmente quer”, conta Stephany. E a força é tanta que atinge até quem não está sendo batizado. “Nós vamos assistir e sentimos ‘Deus nos chamar’. É muito diferente, o seu coração acelera, você sente uma coisa que não se consegue explicar, mas que só passa quando você se batiza”. Para Stephany, o arrepio aparece sempre quando ouve a resposta de Deus para alguma situação complicada que está enfrentando. Segundo a estudante, Deus fala sobre as necessidades da igreja através do irmão que está atendendo o culto, “Quando vou à igreja pensando em algo que está se passando em minha vida, alguma situação em que eu preciso de uma resposta, Deus, na hora da palavra, fala exatamente aquilo que eu precisava ouvir. As palavras não são estudadas antes, são reveladas na hora e isso sempre me faz sentir arrepiada”. Esse arrepio não é único, é constante para todos que se permitem sentir algo a mais que o plano físico possa oferecer, e se doam de corpo e alma. Não é um caminho fácil para se trilhar, certamente. Mas o caso é que, não importa a doutrina que você escolhe para chamar de sua, tampouco sua idade, é fato que nosso corpo responde à nossa mente, e uma de suas possíveis traduções é o arrepio. o


ESPORTE

O QUE

VEMDA


ESPORTE

N

o dia 4 de dezembro de 2013, às 21h50, a equipe da Ponte Preta se concentrava no gramado, aflita, à espera do apito que iniciaria sua primeira decisão internacional. Os jogadores do time campineiro estavam cercados pela leal torcida que deixou para trás o conforto emocional do Moisés Lucarelli e os acompanhou até o Pacaembu – o qual transformaram, ainda que temporariamente, em sua própria casa. Uma vez lá dentro, as mais diferentes personalidades inundavam o local e traziam vida à torcida. Desde a moça que berrava ordens e comandos aos jogadores, uma substituta à altura do técnico Jorginho, até uma mãe que, despreocupada, conversava alegremente com outros torcedores sobre a partida enquanto os filhos iam se fazendo reconhecer por entre tantos rostos amigos. A estrutura de uma torcida em si é complexa. O jogador, no gramado, sente a pulsação das arquibancadas como uma coisa única e homogênea. Mas ali se encontram diversas histórias que, entrecruzadas, formam o elo que torna do futebol um espetáculo à parte. Fellipe Bastos, autor do gol da Macaca naquela quarta-feira, talvez não imaginasse que por trás das arquibancadas do Pacaembu, à beira de uma das escadas que dá acesso ao Tobogã, um garotinho de seis anos abraçava o pai e soluçava em seu colo. Desolado por ainda não conseguir se impor em meio à multidão que se acotovelada para subir e enxergar o gramado, tentava conter o choro sem, contudo, deixar de transparecer sua frustração. Como se, no íntimo, a cantoria da torcida a poucos metros parecesse infinitamente distante e, ainda assim, tão pró-

xima. O desespero de não conseguir subir, o medo de tamanha aglomeração e, sobretudo, a paixão pelo clube adorado se fundiam em um coração disparado que transbordava através do olhar desamparado. O estádio é palco de um festim de reações exacerbadas, pulsantes e vibrantes que deixam o sentimento predominante à flor da pele, transformando a agitação interior em frio na espinha. Ovacionados ao entrar no gramado, os jogadores se sentem acolhidos. Ao ouvirem os colegas apoiando o clube, os torcedores se inflamam. E mesmo os profissionais do meio, no desafio diário de se controlar emocionalmente, acabam movidos pela paixão das arquibancadas. “A sensação de assistir ao jogo no estádio começa muito antes do início da partida. A expectativa toma conta desde a hora de acordar e o dia se resume em uma contagem regressiva coletiva”, explica Ana Luiza Mcauchar, 23 anos, torcedora do Flamengo. No ano de 2013, Ana protagonizou a festa rubro-negra da final da Copa do Brasil diretamente do Maracanã. Para ela, ao assistir a partida pela televisão o espectador admira a festa, e no estádio é ele quem a faz. “Pode passar o tempo que for, nunca vou me esquecer dos arrepios e da energia que senti naquele 27 de novembro”. Para quem assiste de fora, a cantoria das torcidas é um espetáculo à parte. E o torcedor se envolve de tal forma com o jogo que se esquece até mesmo do cansaço. Não se trata apenas da paixão pelo esporte, mas também do amor ao clube. “Temos uma convicção muito grande de que nós fazemos a diferença. E sentir que seu grito e seu canto tem poder sobre os jogadores é a realização de qualquer torcedor”. Se as torcidas parecem, em determinado momento, um corpo só, boa parte deste

movimento se deve ao objetivo em comum: apoiar o clube. Cláudio Abraão, 73 anos, relata um pouco do companheirismo recém-adquirido nas arquibancas. “Gritar gol num estádio lotado como foi quando eu estive no Pacaembu na semifinal de 1990 [Corinthians 2x1 Bahia]... Eu já não era dos mais jovens, e mesmo assim quando o Neto empatou e depois virou o jogo pra gente, eu pulava igual a um menino. Nessa hora o cara do seu lado pode ter batido na sua esposa que você abraça ele do mesmo jeito”. Mas nem sempre as arquibancadas prezam apenas o bom desempenho dos jogadores. Inúmeras vezes o contexto da partida se torna tão significativo para os torcedores quanto o gol da vitória. Foi o caso relatado por Ana Luiza sobre o jogador Elias, cujo filho Davi, de apenas um ano e seis meses, teve sérios problemas de saúde. Na partida contra o Goiás, pela Copa do Brasil, a torcida gritou o nome de Davi - o que levou Ana às lágrimas. “Quando ele fez o gol foi um momento muito marcante, como se todo o apoio vindo das arquibancadas tivesse uma resposta. É difícil não arrepiar me lembrando da cena”. A torcida é necessária na identificação do indivíduo com o próprio clube. Sentir-se parte de algo que move o time e que atrai tanta atenção quanto o jogo em si é o que contagia as pessoas presentes. “A energia da torcida do Flamengo no Maracanã é algo impossível de descrever com palavras”, completa Ana que, como torcedora, é mais uma peça fundamental de um grande amontoado de sentimentos que faz o estádio ecoar em uníssono como um verdadeiro gigante.

OUTRO OLHAR DA ARQUIBANCADA

A festa pode até ser da torcida, mas se engana quem acredita que apenas o torcedor se emociona durante as partidas. O profissio-

POR JULIANA ARREGUY & VICTOR CIANCI

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Todas elas [torcidas] têm o seu modo peculiar, mas todas são empolgantes Rogério Assis


nal que trabalha no meio, embora carregue consigo o desafio de blindar os sentimentos, também se impressiona quando se trata do “arrepio” das arquibancadas. Por esse motivo, Rogério Assis, narrador da rádio Jovem Pan, defende sempre a transmissão de jogos feita no estádio – e não apenas do estúdio. “Você está no clima, independente do time. Não é que você esteja torcendo por aquele time, mas aquele ambiente te inflama”, e completa: “Aquilo serve de combustível”. Estimulado pelo efeito do ambiente, a qualidade de trabalho do narrador esportivo só aumenta. “Eu já fiz essa medição. Ouvindo gravações de jogos dos dois jeitos [dentro e fora do estúdio], então eu sei te dizer que isso influencia muito”. “Se isso contagia quem está na arquibancada, imaginem vocês como é para a gente. Porque você não é robô, você tem que estar lá pra transmitir aquilo”. “Eu sou completamente contrário ao offtube, que é a transmissão pela TV. Para o narrador é péssimo, porque há uma limitação muito grande. A sua visão periférica é de no máximo vinte, trinta polegadas. Isso é horrível. Mas no estádio não, no estádio você tem a visão periférica gigantesca, você tem esse ambiental que é a torcida e tem a empolgação. E não é só o ouvir a torcida, é você ver a reação das pessoas. Você está vendo, você está no clima. Então aquilo te ajuda, aquilo te empolga. Aquela manifestação, ela meio que te inflama a continuar ou não”. Mas, apesar da beleza que existe em poder acompanhar de perto toda essa exibição, o jornalista esportivo, no geral, sempre tem de se policiar para não acabar se tornando mais um membro das arquibancadas – e não apenas o contador de histórias.

Em 2012, durante uma transmissão da Copa Libertadores da América, em uma partida entre Santos e Internacional, Rogério Assis não conseguiu se conter com o futebol exibido por Neymar. “Naquele dia eu torci. Eu usei o microfone pra torcer como se estivesse na arquibancada”. O jogador arrancou do meio de campo e saiu driblando metade do time colorado até conseguir balançar as redes, no jogo que terminou em 3 a 1 para a equipe alvinegra. “Eu não narrei mais. Ouvindo o lance é um negócio estranho porque eu não descrevo, eu não consigo descrever o lance. Não tem descrição - o que é a pior coisa do mundo para o narrador, porque você não tem imagem. Tem que fazer a imagem para quem está ouvindo. E eu não fiz isso”. A narração foi tão comentada que acabou rendendo fama no exterior: uma matéria de uma emissora de televisão japonesa e outra de uma TV norte-americana. No entanto, Rogério é bem rígido quando fala de seu trabalho. “A empolgação tem que existir, mas essa torcida e essa empolgação são coisas do torcedor. O profissional de imprensa esportiva tem que saber que o limite dele existe pra isso, para uma análise. Não pode ser tão fervoroso, tão radical”. Mas para quem se pergunta sobre a narração de um jogo de Seleção Brasileira, Rogério já trata o assunto como exceção. “Quando é Seleção Brasileira, não. Aí você pode extrapolar, porque aí você fala em nome de todo mundo. Você fala por todo mundo que torce pela Seleção”. E o experiente narrador, que já teve até a oportunidade de participar da cobertura da Copa do Mundo de 2006, na Alemanha, presenciou grandes espetáculos promovidos

pelas torcidas. “São várias torcidas, e todas elas têm um modo diferente. Todas elas têm o seu modo peculiar, mas todas são empolgantes mesmo”. É claro que algumas receberam destaque. A torcida corintiana foi mencionada como uma das mais diferenciadas. Rogério, no entanto, fez questão de frisar que não falava das torcidas organizadas – as quais abomina – mas sim da torcida em si. O sul do Brasil, representado, na visão do locutor, por Grêmio e Inter, e a torcida palmeirense durante a série B de 2003 também foram lembradas. A grande admiração, porém, foi despertada entre os vizinhos argentinos. “Fora do Brasil, a torcida do Boca é um negócio... Eu fiz um jogo uma vez na Bombonera e vou dizer a você, é contagiante. Realmente, é a caixinha de bombom mesmo. Eles não param, e lá não tem essa de só torcedor organizado, é o estádio todo”. Há muito mais por trás das arquibancadas. Profissionais como Rogério e torcedores como Ana e Cláudio são personagens que, juntos, têm em comum mais do que o amor pelo esporte. Seja com uma criança chorando por não enxergar o jogo, ou por uma torcedora frenética despejando palavrões sobre o juiz, até o jornalista descrevendo, na cabine, o jogador prestes a bater uma falta, os pequenos retratos do cotidiano de uma partida são o que trazem alma ao futebol. E no caso do dia 4 de dezembro, no encontro de Fellipe Bastos com a bola, o chute que em milésimos de segundo conseguiria unir o Pacaembu inteiro através de um sentimento único: a sensação universal do arrepio. o


INQUISIÇÃO

POR JULIA RAMOS CLARO

Esse carrasco não dá asco E essa dor não é o horror “Esse sexo não tem nexo” Só se for para o senhor Masoquismo ou sadismo É viver sem se dar conta


QUE PORCARIA

POR JULIA RAMOS CLARO Meu olhar lança uma interrogação Mas o teu quer conversar sobre política Minhas mãos tentam uma intenção Mas as tuas têm, que coincidência, outras ocupações Aquele frio na barriga virou o polo norte Os ursos polares sobrevivem às duras penas O aquecimento global acabou com o nosso amor



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