CABELO

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CA BE LO Pedro Joao de Camargo


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CA BE LO Pedro Joao de Camargo

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Ă Juliana

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M Musculaturas de partes aleatórias de seu corpo e, até mesmo, algumas outras não conhecidas foram acionadas no intuito de puxar suas pálpebras para cima. Os cílios, anteriormente trançados entre si em um trabalho quase artesanal de tramas que durou toda a madrugada e boa parte da manhã enquanto dormia, finalmente se desatavam penosamente em resposta à agitação muscular que expressava um desejo poderoso pela lucidez do despertar. A circunferência de sua pupila, quando entrou em contato com a atmosfera, ainda escondia uma parte majoritária de sua íris intimidada pela escuridão de seu sono. Suas têmporas latejavam e guerreavam com as tentativas voluntárias de seu corpo em acordar. Empurravam as pálpebras para baixo, amarravam os nós dos cílios ainda mais, selavam essa combinação com a secreção ocular que escorre dali durante a noite. Uma luta entre os processos conscientes e inconscientes de si mesma. Ela guerreava contra si e girava lentamente. Girava lentamente, mas girava. Escorregava um de seus ombros para baixo de suas costas e projetava o corpo de modo a terminar a volta pondo-se de bruços em um processo interminável. Ao desistir dos rodopios, suas narinas estavam sufocadas entre a aspereza dos fios de seu cabelo e a maciez do algodão da fronha de seu travesseiro que serviu de campo de batalha para a noite insalubre que seus impulsos cerebrais lhe proporcionaram. Não conseguia respirar. Depois de alguns segundos nada angustiantes, a asfixia obrigou seu corpo a abrir violentamente a sua boca. Os lábios se desgrudaram e, por um espaço pequeno entre fios de cabelo, travesseiro e carne, uma grande quantidade de oxigênio foi sugada para brônquios desesperados com a inanição de

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uma consciência de si inconsequente, mas efetiva. A razão do despertar vencera. Seus olhos se abriram na completude do significado dessa ação. Mesmo assim, as têmporas ainda insistiam em latejar e tornar todo aquele processo que já era por si só difícil, ainda pior. Seu braço direito que estava debaixo de seu tronco, pressionado contra o estômago, conseguiu finalmente escorregar para fora da cama deixando as pontas dos dedos encostarem delicadamente no chão empoeirado de seu apartamento que, há tempos, não recebia uma faxina decente. A limpeza acontecia conforme a necessidade se apresentava. Sempre aos poucos e dolorosamente ela decidia deixar impecável algum dos pequenos cômodos de sua moradia. Esforçadamente a poeira se levantava de um lugar viajava atmosfericamente e pousava em algum canto menos perturbador. A possibilidade de uma faxina completa que revirasse a mobília e olhasse de perto as sujeiras encalacradas por entre pequenos espaços sem utilidade daquele apartamento minúsculo, simplesmente, não existia. Em nenhum momento, passou por sua cabeça, agora dolorida, que um dia sua casa pudesse estar purificada. Ela se confundia entre admirar-se por conseguir sobreviver no imundo ou enojada de si mesma pela falta de coragem de encarar a sujeira. Começou a jogar seu corpo na direção de seu braço que já tinha saído da cama. O peso de todo o corpo foi caindo por sobre os dedos que agora não mais tocavam o chão mas estavam sendo empurrados contra ele de modo a revitalizar os músculos do membro superior. Conforme o tronco se despejava em cima do braço, o esquerdo também teve que entrar abruptamente em ação para que ela não caísse de cabeça no chão. Com os dois braços contraídos e segurando a massa sem vida de seu corpo ainda adormecido, o pescoço foi automaticamente despejado do travesseiro e passou para uma posição em que os olhos abertos podiam enxergar por baixo da cama. Seu cabelo sentiu a força da gravidade e cedeu. Tocou também a poeira do chão e pareceu se amalgamar a ela. A poeira parecia ser pesada, de certa forma, puxava o cabelo e, até mesmo, o sangue dela para baixo. Subitamente, suas pernas nuas chegaram ao piso de tacos de madeira numa estrondosa e levemente dolorida queda. A perna direita emitiu um som de tambor ao bater no chão e, com alguns décimos de segundo atrasados, a perna esquerda caiu por sobre a direita no convencional estalo ardido que o contato entre dois corpos revestidos da derme humana costuma fazer. Não desistiu da batalha por estar deitada no chão. Alguns de seus músculos mais insistentes ainda lutavam para mantê-la minimamente firme. Seu tronco estava, agora, sustentado pelos braços. A camiseta de um antigo namorado – que já ficava grande nele – era a única peça de roupa que usava para dormir havia semanas. Gostava do cheiro de velho, de gente e de sujo daquilo. Aproximou seus joelhos e cotovelos como se eles tentassem se encontrar num ponto central que poderia estar alinhado a seu umbigo. Sentiu seus seios pendularem e depois comprimirem-se entre seus braços. Em um movimento brusco, seu pé renasceu e se jogou para frente. Fez-se um primeiro centro de

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sustentação para um corpo que parecia querer tornar-se um só com o chão. O outro pé veio logo em seguida e, assim, ela se levantou. Recuperou sua humanidade. Pelo menos, momentaneamente. Essa constatação arrepiou os pelos de todo o seu corpo. A consequência do despertar se tornou um renascer e ela se arrepiou. Sentia o eriçar de desde os delicados pelos da perna – passando pelos agressivos fios da virilha – até os grosseiros fios de cabelo. Seu cabelo. Da raiz as pontas, eles pareciam estar recheados de nervos. Vivia o cabelo, era o cabelo e o cabelo a amedrontava. O cabelo estava fora de controle. Ele tinha vida também. A bagunça que ele formou em sua cabeça, os incontroláveis nós que seus fios emaranhavam, tudo aquilo parecia não pertencer a ela mas, ao mesmo tempo, fazer parte dela. Olhava para ele e seu medo transformava-se gradativa e suavemente em raiva. Os conhecidos fios negros se tornavam estranhos para ela toda a manhã. Eles tinham sempre sido rebeldes. O arrepio que sentia naquele momento era erótico e pulsante, – mesmo naquele calor extasiante, ou talvez, até mesmo, por causa dele é que isso acontecia. Sentia no couro de sua cabeça ligações incontáveis com pequenos monstros conscientes e vivos. Tinha asco. Coisa que não costumava sentir com frequência. Pelo contrário, a sujeira, a imundice parecia fazer parte dela, mas aquele cabelo tinha se superado. Não chegava a estar feio, na realidade, ele a encantava. Seus nós eram quase invisíveis, mas eram táteis. Ela sentia o caos operar monstruosamente por debaixo de lustrosas mechas superficiais. Uma luta rotineira começava naquele momento. Diariamente, o desembaraço dos cabelos tomava um tempo considerável de sua manhã. Ela sentou num banquinho que mantinha no minúsculo banheiro de seu apartamento. Ele ficava de frente a um espelho que não era fixo, estava apenas apoiado na parede. Ela conseguia enxergar seu corpo todo. Suas pernas sedosas recobertas por uma camada sutil de curtos e macios pelos dourados, quase invisíveis, encostavam no algodão podre daquela camiseta malcheirosa. Com um pé em cima do assento e embaixo de sua outra perna, ela segurou uma escova antiga que pertencia ao seu avô. As cerdas eram pretas e brilhantes. Duras, elas ficavam cravadas numa superfície macia e bege sustentada por uma haste de plástico na cor de um vinho sangrento. Ela passeava pelas espaçosas ondas de suas madeixas e arrancava penosamente diversos fios nesse caminho. Era preciso segurar mechas vez ou outra para não fazer as raízes – que ainda sentiam, suavemente, aquele arrepio – doerem e darem a impressão de estarem vomitando comprimento para fios já muito longos. Os espasmos de dor percorriam o fio todo até a raiz onde ela se concentrava. Seu couro cabeludo latejava durante aquele processo. Sentia o coração pulsar onde os cabelos nasciam com tanta força que achava que o próprio cabelo é que era responsável pela circulação do sangue no corpo todo. De repente, a tarefa árdua do desembaraço tornou o cabelo o centro vital daquele ser. Toda a sua energia física e psíquica estava concentrada em pentear aquela selva fechada.

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O ar entrava por suas narinas e estufava seus pulmões com oxigênio. Ela inspirava fundo e com força vez ou outra, como quem está praticando uma atividade física e só lembra que precisa respirar quando está prestes a desmaiar. Conforme o pente explorava a brutalidade de seu cabelo, ela sentia que a tarefa se tornava lentamente menos difícil, porém, não menos embriagante. Ela estava completamente hipnotizada pela atividade. Não sabia que horas eram, tinha perdido a noção de espaço e tempo. O pé que tinha colocado embaixo de sua perna estava sem receber nenhum fluxo sanguíneo há tanto tempo que não conseguia mais senti-lo. Era um peso morto e desequilibrado quando saiu da posição em que estava. Ela decidiu trocar de posição de forma a catapultar com mais eficácia o seu movimento braçal em cima de seu cabelo. Abriu as pernas em frente aquele espelho e nem por um segundo prestou atenção a outra parte de seu corpo que não fossem os fios embaraçados. O último impulso foi tão forte que a escova se escapou de suas mãos e caiu no chão. Aproveitou que teria que levantar do banquinho de qualquer forma e foi até o guarda-roupa do quarto devolver aquela camiseta que só estava atrapalhando e ficando cada vez mais suja. Estava nua. Nua e sozinha, ela recomeçou aquele processo. Pegou a escova do chão e iniciou os movimentos bruscos contra seu cabelo que agora já não mais oferecia nenhuma resistência. As cerdas simplesmente dançavam por entre fios de cabelo que continuavam vivos, ou talvez até mais vivos que antes, mas desembaraçados como nunca. A sensação era que depois daquilo tudo, seu cabelo nunca mais voltaria a formar nós. A escova caiu novamente no chão, mas, dessa vez, a perplexidade que enfraqueceu suas mãos. Não conseguia acreditar que aquela batalha tinha sido vencida. Sentou-se no banquinho e olhou para seus próprios olhos no espelho. Entornados pela sua moldura capilar, eles a consumiam. Olhou profundamente para seus olhos e encontrou no fundo deles um nada. Estava tão cansada que se escaparam não só os nós, mas também as forças e a vitalidade. Morreu de olhos abertos por alguns momentos em que seus dedos se entrelaçavam nos seus fios de cabelo que pareciam mais grossos, lisos e brilhantes do que nunca. Mesmo tendo parado de pentear, as raízes ainda latejavam fortemente. Na realidade, agora que parara, a dor intensificara-se. Ela tentava se anestesiar com aquele olhar profundo, mas não aguentou mais de trinta segundos fazendo aquilo. Inconscientemente seus olhos se desviaram para as raízes de seu cabelo refletidas no espelho. Elas pareciam estranhamente agitadas. Aquelas ondas de calor que distorcem a imagem de desertos escaldantes pareciam estar concentradas naquela região de sua cabeça. Não só sentia a dor, que já estava se tornando, de certa forma, prazerosa, mas também via o inexplicável: seu cabelo crescia diante de seus olhos. Dentro do seu peito sentiu alguém ficar assustado com aquele fenômeno. Contudo, esse alguém ou essa parte de seu ser não se manifestou externamente. Sua

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expressão manteve-se estática. Observava aquele horror e encarava-o como uma manifestação natural. A sua natureza a assustava, mas ela continuou quieta. Aos poucos o terror foi se esvaindo e dando lugar a um conformismo alienante. Ela não se importava mais, foi se entregando aquele cabelo que crescia involuntária e vagarosamente de seu couro cabeludo. Seus fios nunca pareceram tão fortes. Ela decidiu tocar os cabelos novamente pela primeira vez. Tocou a virgindade dos novos folículos próximos à cabeça. Sentiu-se exposta, auto-flagelada, mas sentiu prazer. Todo o arrepio que poderia se espalhar deliciosamente por todo seu corpo concentrava-se nos fios de cabelo que, certamente, agora tinham terminações nervosas fervorosas. Ela sentia as pontas dos seus fios, era como se todo o cabelo tivesse adquirido tato. Ao mesmo o seu corpo foi perdendo esse sentido: amolecia e formigava das extremidades até os órgãos em uma cadência rítmica e intensa, apesar de demorada e insistente. Em um ímpeto de coragem decidiu levantar-se. Rapidamente, colocou os pés no chão e impulsionou seu corpo contra eles para que se colocasse ereta, dona de si. Uma fortíssima tontura a fez lembrar de inalar o ar rarefeito de seu banheiro desorganizado porém limpo e se lembrou também da ilusão que é tentar domar a si mesma. Novamente, ela se punha submissa a uma força interior maior que seu próprio ser. Seus cabelos não embaraçavam mais, as mechas tornaram-se aglomerações escorregadias de fios e dançavam entre si desde o tango até a valsa. Essa movimentação intensificava a tontura. Apesar de alguns espasmos de equilíbrio, seu labirinto parecia querer tomar cada uma das mechas individualmente como um ponto de sustentação. Essa enganação cognitiva que seu corpo desistido de si a impunha fez com que ela racionalmente se segurasse na porcelana branca da pia do banheiro. Concentrou seus esforços para fazer com que seu corpo entendesse que a mão era agora o centro desejado. Conseguiu se manter em pé finalmente. Conseguiu até mesmo andar, mas tudo ainda continuava girando. Ela não sabia mais para onde ia, mas foi. Sem pensar, foi. Andou pelos caminhos tortos e desequilibrados do interior de si ao seu redor. Queria desesperadamente chegar a algum lugar, e enquanto perdia tempo desejando, sentia dois pontos nervosos e altamente sensitivos de seu corpo de tocarem. O bico dos seus seios encostava a ponta de seus cabelos que, ao crescer, já estavam chegando naquela região. Cambaleava ao andar por seu minúsculo apartamento que parecia enorme agora. Cada passo eram quilômetros e esses quilômetros eram cansativos e insuperáveis. Cada passo era uma derrota vitoriosa, uma interiorização aberta, uma dor latente e prazerosa. Caiu no chão, e de novo a gravidade foi impiedosa. Seu cabelo pendia de sua cabeça e pesava muitos quilos. Como se seu corpo estivesse em chamas, ela se permitiu esparramar seu corpo no chão e rolar naquela poeira como se essa entrega ainda maior a tontura que sentia fosse derrotá-la em uma contradição de causa e efeito. O to-

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que das mechas de seu cabelo deslizava por seu corpo agora entornado por ele até pouco abaixo do seio. Começava ali um processo metamórfico em que o tempo passava cada vez mais devagar. Ela tocava as horas, sentia os minutos e ouvia o estalar dos segundos no crepitar vagaroso que se dá quando fios de cabelo são pressionados entre si. Encostou a nuca no chão e arqueou as costas, separando seus seios e deixando que o cabelo saísse de cima de si e se deitasse ao redor de sua cabeça como uma aura. Suas vértebras estalaram nesse movimento e no exato momento do estalo, ela se virou e ficou de bruços. Sem muito controle do que fazia, bateu com o queixo nos tacos de madeira que cobriam o chão de seu apartamento. Sentiu a dor mas a ignorou. Anestesiou-se com o arrepio que seus cabelos estavam lhe causando. Deixou-se dominar por ele de tal forma que o próprio cabelo escolheu auxiliá-la. Concentrou seus esforços nervosos para deixar de sentir o queixo que sangrava delicadamente em gotas manchadas e pesadas. O cabelo agora tocava sua cintura, e se movimentava ao redor dela. Enroscava-se em seu corpo como se quisesse prendê-la. Ela decidiu que iria tentar dormir ali mesmo, deitada no chão sujo daquele apartamento. Sugou toda a ignorância que cabia dentro de seus pulmões. Inspirou e expirou a alienação em um bocejo doentio no qual seu maxilar se abriu como que para abocanhar alguma presa viva e desprevenida. Inalou uma dose dupla de silêncio pelas suas narinas delicadas, mas barulhentas. Destacou um pedaço de sua lógica. Quebrou um detalhe do vitral da racionalidade que aos poucos foi cedendo espaço a uma luz. Uma luz roxa, tensa e inebriante que cercou sua consciência enquanto ela pôde, misticamente, se ausentar de si.

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