EDIÇÃO - DEZEMB RO UNDA a F SEG EV I ER O EI AN RO
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TIC TAC ´ FABIOLA
A CIDADE
MOLINA
SEM TEMPO
UMA VIDA PElo MElHoR TEMPo
A RoTINA FRENÉTICA Do PAUlISTANo
CULTURA VINTAGE ADoRADoRES Do PASSADo
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INDICE editorial
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prólogo
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O TEMPO E A TELA - PT 1
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A CIDADE SEM TEMPO
IND
TEMPO EM ESSÊNCIA
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CALENDÁRIOS CURIOSOS
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INTERLÚDIO
EM BUSCA DO TEMPO VIVID0 O TEMPO E A TELA PT-2
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O AMANHÃ DE ONTEM É HOJE
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A ÚLTIMA HORA
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TIME
UMA VIDA PELO MELHOR TEMPO
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EPÍLOGO
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EXPEDIENTE
EDITOR DE ARTE PEDRO CAMARGO
EDITOR-CHEFE YAN RESENDE
DICE REPÓRTER GABRIELA MONTEIRO
REPÓRTER JULIANA ARREGUY
REPÓRTER JÚLIA MELLO
REPÓRTER GABRIELA BOCCACCIO
REPÓRTER MARINA PANIZZA
REPÓRTER VICTOR CIANCI
REPÓRTER GABRIEL ONETO
REPÓRTER JÉSSICA TABUTI
DIRETORA DE REDAÇÃO NATHÁLIA AGUIAR
REPÓRTER VICTOR PUIA
REPÓRTER LUCAS BRÊDA
REPÓRTER LUCAS HANASHIRO
POETA JÚLIA RAMOS CLARO
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EDITORIAL
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EDITORIAL
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DA UM
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s olhos observam os carros na luta para ganhar espaço entre as pistas, mas o barulho do trânsito, a inevitável poluição e a fina garoa que caracteriza a cidade, proporcionam certa sinestesia em uma rápida reflexão sobre uma cena rotineira de São Paulo, que se enquadra na vida metropolitana contemporânea. Parece até estranho tentar descrever qualquer coisa relacionada ao cotidiano paulistano, pois culmina em um paradoxo: uma pausa para devanear, em meio a um ritmo de vida que aprendeu a otimizar, de forma até cruel, o tempo. O brasão municipal informa que a cidade conduz, e nós, como parte dela, trabalhamos para que isso seja possível. Mas, afinal, existe uma linha de chegada? O questionamento é, no mínimo, instigante, e por isso serviu de base para a segunda edição de A Boba. A maior cidade do país oferece de tudo para a sua população, que, abarrotada de tarefas diárias, parece não ter tempo para usufruir das vantagens de São Paulo. Desta forma, nos ocupamos com as mais variadas preocupações e o prazer fica a mercê de minutos ou segundos. Aí, cabe outro questionamento: as ações, que fogem da rotina e nos causam certa sensação de ânimo, realmente tomam um tempo menor em nossas vidas atualmente, ou uma possível alteração de percepção nos faz acreditar que passam rapidamente? Como você pode perceber, meu caro leitor, o paradoxo de uma vida atribulada ao ritmo frenético das grandes metrópoles se sus-
POR YAN RESENDE FOTO ANA LAURA PADUA
tenta em uma palavra-chave: o tempo. Algo tão subjetivo em essência, mas que, ao longo da evolução do homem, sofreu significantes tentativas de ser mensurado, por meio dos mais variados calendários ou contagens feitas desde ampulhetas a modernos relógios. Sendo assim, a segunda edição de A Boba não vai abordar apenas essa falta de tempo que nos parece tão habitual em nossa rotina. As diferentes percepções ao longo de nosso desenvolvimento, assim como as necessidades de ter algum tipo de domínio do tempo também se tornaram pautas essenciais dentro de mais uma publicação. O discurso entre os saudosistas é afinado. O que é realmente bom vem ‘daquele tempo’, que, quase sempre, não pôde ser usufruído. Essa valorização de coisas do passado se tornou até um estilo de vida, e essa miscelânea de tempos, conhecida como ‘vintage’, também está presente na revista. Assim como o principal marcador de tempo na história do homem: o relógio de pulso, objeto que, atualmente, parece ter perdido sua principal utilidade. A edição também não se esquece daqueles que passam a vida em busca do melhor tempo. Uma realidade diferente do que estamos habituamos. Se segundos passam despercebidos aos nossos olhos, centésimos deles são disputados diariamente por atletas. Sendo assim, A Boba viajou a São José dos Campos e conversou com a nadadora Fabíola Molina, que participou de três Jogos Olímpicos em mais de 20 anos de carreira. Se estiver de bobeira e não achar que é uma perda de tempo, divirta-se. o
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O C A D E P UM 8
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A H L I V R E DE ário: n o i c u l revo o ã g r um ó ar sário é r r e o o i v i g m n ó e l a lar m m o u l e c O re e z s a c f n um apie unca s e n s d s n , e e i a ã l c élu o sap c é p m a o o h m d u o s de mas nte o t a n a e g he cim o nas o sempre c archa ré m vra at e a l p d a a p s i s a a o sd e as m t i r n é a t c o a ck a m log b e e as b v h pel r s a a a p fl e e á d r d e a hos n i u a lufad mina o que s q r a mb ilu e l ar h e r s v b a á fl r m t s e o i l reg pra é a c o a d ar r f n g é u l e t m o mu n u alg a me m e e u o q s pas tudo a c r a om marca RAMOS A I L U J R O P
CLARO
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arte
O TEMPO E O
tempo já foi nobre matéria-prima da tela de diversos artistas. À primeira vista vemos retratados sentimentos universais como a efemeridade, o desgaste e a passagem. Percebemos, por fim, que esta é somente a superfície da representação do tempo. É preciso deixar-se afogar na tormenta da incapacidade de capturar o presente, o passado ou o futuro para que possamos, exasperados, voltar à superfície e visualizar a existência do tempo. As obras escolhidas representam a tortura e a delícia dos artistas que se atreveram a transferir para suas telas, esculturas e instalações o breve momento em que recuperaram o ar após uma prolongada submersão.
O PRESENTE
Misturando percep��o e experiência física, suas obras são como uma chave para perceber um fenômeno abstrato. Em Descoberta por fraqueza, 303 pêndulos partindo do teto podem mover-se de acordo com o desejo de quem os empurra. A ilusão de poder sobre o tempo dura pouco: vendo os pesos direcionarem-se caoticamente, lembramos que um relógio de pêndulo precisa de regularidade de batidas para indicar a hora certa.
Quando paramos para ouvir os tique-taques do relógio, esperando que algo aconteça durante esses momentos, dividimos da mesma carga de curiosidade que nos leva à tentar olhar através das incisões de Lúcio Fontana. O invisível é transformado em visível - pelo menos por um segundo. A representação de uma tela e de um relógio não podem mais ser dissociados de seus antes escondidos significados.
Conceito Espacial - 1965 - Lucio Fontana Incisões sobre tela Rijksmuseum, Berlim
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arte
A TELA PARTE 1por julia mello
O FUTURO Os estudos de Julio le Parc sobre o movimento são mais do que ilusão de ótica ou representantes da cinese. Nada na imagem indica movimento real. Apesar disso, o nosso cérebro é condicionado à condensá-las e compor o futuro, criando então uma narrativa sobre a trajetória dos quadrados com os nossos olhos.
Pedras em forma de túmulos e colocadas como dominós formam a instalação Sem Título, de Kris Martin. Se a primeira peça cair, a última também cairá, destacando uma ligação profunda entre o agora e o depois. Mesmo assim, cada pedra tem uma tonalidade diferente da anterior, e o resultado é um tipo de degradê do tempo: não vemos sua passagem com pequenos intervalos, mas a diferença entre a primeira e a última é pálpavel. o
Sem título - 2013 - Kris Martin Arenito White Cube
1960 Acrílico transparente sobre fundo branco
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ESPECIAL
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A CIDADE
TEMPO A contradição de uma correria por uma melhor qualidade de vida em um desgastante, e até nocivo, cotidiano do paulistano
POR YAN RESENDE
JULIANA ARREGUY E VICTOR CIANCI imagens
lucas breda
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despertador toca, mas logo o dispositivo “soneca” é acionado. Paulo tenta ganhar mais tempo para dormir, o que deve custar caro nos minutos seguintes. Logo ele percebe que está atrasado, levanta-se para trocar de roupa rapidamente e sai pelo corredor da casa ainda se arrumando. Já na rua, entre os carros, Paulo corre para alcançar o ponto de ônibus mais próximo e tenta chegar à estação de metrô. A meta é a mesma que era traçada ainda na tranquilidade de seu sono há dez minutos, mas o objetivo é diferente: se transforma em uma correria diária para economizar tempo e realizar aquilo que é preciso. Paulo pode não ter saído atrasado, ainda chegaria a tempo do seu primeiro compromisso diário, mas logo percebe que está correndo. As informações chegam por todos os lados. Aos berros, um homem faz o convite para entrar no estabelecimento no centro da cidade, mas uma propaganda bem colorida já tira sua atenção na sequência. Ainda distraído, é surpreendido com o toque do celular. Um imprevisto na empresa o obriga a correr: precisa chegar mais cedo do que o normal. A rotina é estressante. Os problemas que podem ser acarretados com essa correria diária são diversos. O lado psicológico não deixa de ser afetado e o estresse toma conta de um corpo já cansado do caos vivido no cotidiano. Paulo passa a viver para ganhar tempo, mas a tarefa se torna mais complicada a cada dia. O personagem vira enredo de Zé Ramalho, e se mistura na “vida de gado” de uma sociedade. O problema não é individual. Todos são Paulo.
Sinal vermelho
A maior metrópole do país já é referência no assunto trânsito. Uma frota crescente de veículos circula as ruas da capital, entupindo as veias de asfalto do organismo de concreto. Com tanto movimento em um lugar cada vez menor, o tempo, eterno companheiro do espaço, também sofre. À medida que o local para que se transite vai diminuindo, o tempo
gasto no trânsito aumenta. Engarrafamentos, apesar de já transformarem em um cenário comum há algum tempo, vão se tornando mais corriqueiros na selva de pedra; a lentidão bate recorde. Buzinas ecoam, em sintonia com grunhidos e murmúrios de amargura daqueles que se colocaram, sem ou com culpa, nessa enrascada. O senso comum ainda dita, por ora, que ter um carro é melhor porque é mais rápido chegar aos lugares quando não há trânsito, e mesmo quando há pouco. Os motoristas se especializam em atalhos e rotas alternativas e estudam quais faixas andam mais ou menos para poderem continuar dirigindo seus automóveis. “Eu gosto de dirigir”, diz a assistente de advocacia Tamara Andrés, “Quando era estagiária, eu costumava ter alguns problemas por trabalhar em um lugar que não tinha metrô ou ponto de ônibus perto, e por isso, tinha que me programar para um monte de coisinhas, como acordar a tempo de não perder o ônibus ou não pegar metrô lotado, e ainda tinha que caminhar umas três ou quatro quadras até o escritório”. O pequeno relato de Tamara revela um dado interessante: o número de pessoas que se dispõem a buscar meios de locomoção diferentes, como bicicletas, ainda é menor. “Não acho que ia combinar comigo, nunca fui muito de pedalar e iria chegar toda suada no trabalho”, comenta a advogada. A maioria ainda prefere o carro, mesmo com a possibilidade de acabar perdendo um bom tempo no trânsito. Perguntada sobre isso, Tamara respondeu: “Quase nunca eu pego trânsito, porque acordo muito cedo. Peguei esse hábito da época em que eu não dirigia. Claro que por causa disso, eu tenho que dormir bem mais cedo pra aguentar acordar, ou acabo dormindo muito pouco e acordo estressada - já sofri muito com isso. Então, pra não ter esse problema, eu acabo sacrificando um pouco do meu tempo à noite”. O que Tamara nos mostra, com a sua resposta, é que ela, como motorista de carro, se policia com o seu tempo. Para acordar num horário em que possa fugir do trânsito, ela sacrifica algumas horas noturnas do seu dia.
É inevitável ter que fazer esse tipo de barganha consigo mesmo quando é preciso dirigir. Sendo assim, apesar de ainda tímido, vem crescendo cada vez mais o grupo de pessoas que optaram por deixar o carro na garagem durante a semana. Pessoas que preferem colocar o automóvel na rua apenas em dias específicos como o fim de semana, quer seja só para sair, quer seja para se dar um descanso do trânsito selvagem paulistano. As opções variam: há ciclistas, motociclistas e até pedestres, pessoas que escolheram usar como transporte apenas os próprios calcanhares. A escolha número um, porém, é o transporte público. Uma dessas pessoas que fez a escolha de trocar o carro próprio pelo metrô e pelo ônibus é Karolina Puin, estudante de Jornalismo da Faculdade Cásper Líbero. “Comecei a utilizar o transporte público porque eu estava ficando maluca. Andava sempre estressada, reclamando de tudo. Demorei a perceber que, na verdade, o meu problema eram as horas no trânsito. Depois que criaram o corredor norte-sul, na Avenida 23 de Maio, eu desisti. Larguei meu carro e comecei a usar o transporte público”, afirma. Karolina culpou o número de horas gastas no trânsito pelo seu estresse, e por isso, decidiu cortar o mal pela raiz. Segundo ela, “Passei a otimizar meu tempo”. E completa: “No carro eu não podia ler os textos da faculdade ou estudar. Quando o ônibus não está muito lotado, aproveito pra colocar algumas coisas da faculdade em dia. Também chego mais cedo em casa, janto com meus pais e vejo novela. Coisas pequenas que eu não fazia porque estava presa no trânsito, ou correndo contra um tempo que eu já tinha perdido”. As atitudes e decisões tomadas pela jovem refletem a razão pela qual muitas pessoas estão começando a mudar de transporte: aproveitamento. No transporte público, onde não é você o motorista, apenas o transportado, pode-se realizar muitas atividades que o carro não permite pelo fato de que constantemente pede a sua atenção. Terminar trabalhos, estudar para provas, ler, ouA B BA
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vir música, jogar games, dar aquela cochilada de cinco (ou mais!) minutos que o corpo pedia ao despertar... Tudo isso no mesmo tempo em que você é levado ao seu destino com todo o conforto possível. É, portanto, um uso muito mais racional do tempo e do espaço hábeis para um indivíduo. Mas, claro, nada é perfeito. “É claro que já fiquei com muita raiva por perder uma aula porque houve algum problema no corredor, ou porque aconteceu algum acidente. Mas é raro! No geral estou contente com a mudança, mas ainda quero mais qualidade no transporte [público]”, finaliza Karolina, deixando bem claro que a mudança fez bem a ela do mesmo modo que as alterações que ela propôs fariam bem ao transporte público. É evidente que ainda há uma divisão desigual entre os motoristas, os que usufruem do serviço público de transporte e os que preferem uma locomoção pessoal alternativa. Vem sendo assim por um bom tempo, especialmente com a atribuição de “status” ao automóvel. A tendência, porém, é de que com o tempo esse quadro mude. Basta que o metrô e o ônibus passem pelas melhorias que a Karolina quer que ocorram, para que não tenhamos tantas Tamaras jogando tempo fora para fugir do trânsito. Assim, as pessoas poderão se organizar melhor dentro do seu próprio espaço, com menos estresse.
a inFluÊnCia do meio
De acordo com a psicóloga Nadime Haddad, apesar de São Paulo ter ficado marcada como o lugar onde as pessoas passam o dia ‘correndo’, esta não é uma característica exclusiva da cidade. Para a especialista na área de saúde, o ritmo da capital pode ser explicado pelas prioridades do paulistano. Sendo assim, o município que “não é conduzido, conduz”, acelera para melhor desenvolver, através, é claro, de muito trabalho. “É
consequência de uma cidade muito grande como São Paulo, mas principalmente porque as pessoas se reúnem aqui por causa de trabalho, buscando crescimento e desenvolvimento. Acho que o ritmo é muito mais em função do tipo de busca, do que almejam”, resumiu Nadime Haddad. A psicóloga também alerta para os problemas que podem ser desencadeados pela ansiedade presente em nosso cotidiano. Para Nadime, a ansiedade - busca por antecipar o futuro - não pode ser colocada como consequência do ritmo frenético, mas está presente na rotina. Com a pressão de um dia desgastante de trabalho, o paulistano está cercado de informações, úteis e inúteis, atropelando, por muitas vezes, a ordem de prioridades em suas tarefas. “A ansiedade é a necessidade de saber o que está por vir, é não saber esperar, querer antecipar o futuro. Isto gera um estado de tensão, e lança hormônios no organismo – como, por exemplo, o Cortisol - os quais desencadeiam uma série de sintomas orgânicos e psicológicos”. Estes sintomas, por sua vez, podem trazer sérios prejuízos não só para o indivíduo, pois afeta também as interações sociais de quem se torna vítima da ansiedade em um ritmo frenético que tende a ficar mais veloz a cada dia. O paulistano, cercado de pessoas a todo o momento, não tem dificuldades para se sentir sozinho em boa parte do tempo. “A qualidade de vida pode ser muito afetada, a começar pela saúde física. Do ponto de vista psicológico, penso que, em uma vida agitada, as pessoas podem ficar menos observadoras, práticas demais, ou materialistas. Sendo assim, temos muito pouco tempo para nós mesmos, para o silêncio, para os encontros pessoais e para o ócio”, concluiu a psicóloga. Para o Prof. Luís Mauro de Sá Martino, as interações superficiais do paulistano podem ser relacionadas ao volume de informações
que as pessoas costumam ser expostas atualmente. As propagandas de rua, em ônibus e estações de metrô, ou os vários tipos de mensagens veiculadas pelos meios de comunicação, tomam o nosso tempo ao longo do dia. Desta forma, o homem não vê a necessidade de romper com suas ações automáticas do cotidiano para estabelecer novos vínculos em sociedade. Se ‘tempo é dinheiro’, as tarefas precisam ser otimizadas para um melhor aproveitamento no dia-a-dia. “Informação custa tempo e custa dinheiro. A gente até tem uma forma de recuperar o dinheiro, mas o tempo não. Quanto mais informação eu tenho, mas demanda de atenção eu tenho. Então, quando eu vejo a placa de outdoor ou a telinha do ônibus, a minha atenção está sendo tomada, portanto, o meu tempo é capturado pela informação. Como tem muita coisa chamando atenção, o tempo todo eu estou ocupado. A ideia de tempo livre vai ficando cada vez mais restrita, pois, até quando eu estou almoçando com meus amigos ou no cinema, eu estou com o celular me dando informação. Estou ligado o tempo todo”, explicou Luís Mauro. O futuro, de acordo com o Doutor em Comunicação Social, aponta para uma perspectiva ainda mais cruel. As revoluções digitais dos últimos anos fizeram com que o ser humano se adaptasse para o novo volume de informações, do qual pouco conhecimento consegue ser produzido, justamente pela falta de tempo. A busca por um contato cada vez maior com o que está acontecendo pelo mundo deve aumentar também o ritmo de vida das pessoas: fazer mais de uma tarefa ao mesmo tempo, sem muita reflexão, deve se tornar comum nos próximos anos. “A tendência é que a gente se adapte, pois somos muito maleáveis. Você, cada vez tem mais coisas para controlar. Há 20 anos, você se conectava no computador, olhava seu e-
A informação custa tempo e custa dinheiro. A gente até recupera o dinheiro, mas o tempo não. LUÍS MAURO SÁ MARTINO, professor universitário 14
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o que presenciamos hoje é um excesso de estresse (...) o tempo é matéria-prima da vida MICHAEL YAARI, médico antroposófico
-mail e depois ia fazer outra coisa. Hoje, você faz tudo ao mesmo tempo. Você mistura os tempos: o tempo de trabalho está misturado com o tempo de passear ou de namorar. Além de ficar com menos tempo, a gente tem uma intersecção dos tempos. Se você separa, você perde o fluxo das informações, não sabe o que está acontecendo”, conclui Luís Mauro de Sá Martino.
Sem tempo para o eStreSSe?
O estresse nasceu junto da humanidade. Necessário na sobrevivência humana, ativa, no nosso sistema, hormônios capazes de nos manter mais atentos e despertos. Em certa medida, é saudável ao organismo. Sem ele, a vida seria calma demais, pacata demais, e mesmo um pouco sem sentido. No entanto, a palavra “estresse” adquiriu uma conotação negativa no nosso cotidiano. O médico antroposófico Michael Yaari, em entrevista para A Boba, explica o porquê. “O que presenciamos hoje é um excesso absurdo de estresse. Uma falta de tempo. O tempo é a matéria prima da vida. Então como as pessoas não têm tempo, ou pelo menos tem uma sensação, um sentimento de que não tem tempo pra nada, isso vai acarretando um monte de sintomas”. Irritabilidade, falta de foco, dificuldades de concentração e alguns momentos de falta de memória. São justamente esses os sintomas de um indivíduo estressado. O imediatismo torna o raciocínio diário mais acelerado. O cenário é fácil de ser imaginado: domingo, três horas da tarde, e um rapaz descendo desembestado pelas escadas rolantes do metrô. Ele não tem nenhum compromisso, nem mesmo nenhum horário a cumprir. Mas corre como se estivesse atrasado, sempre apressado. Isso é um dos sintomas do estresse. Para o Michael, a pessoa chega a um estado em que, se não tiver nenhuma obrigação 16
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a cumprir, acaba se sentindo mal a ponto de se irritar por coisas pequenas do cotidiano, como o latido de um cachorro ou mesmo o tom de voz das pessoas. Por outro lado, o oposto também pode ocorrer. Por estar tão cansado, o indivíduo mal percebe o barulho de uma obra. “Também é muito comum a pessoa estressada ter sinais de depressão. Por exemplo: sintomas de inadequação, de tendência ao isolamento. Fica tão acelerada que passa uma fase e ela fica mais lenta no raciocínio, mais lenta nas respostas, mais lenta nas ações, sensação de peso, dores pelo corpo. São todos os sintomas que têm a ver com depressão. Ela não está deprimida. Ela está estressada”. Em casos mais graves as pessoas podem desenvolver sintomas psicóticos ou mesmo chegar a óbito. A Síndrome de burnout (do inglês burn out, cujo significado literal é “apagar”) tem se tornado cada vez mais comum entre a população brasileira. “Ela [a pessoa] se exaure completamente”, explica o médico. “Profissionais de saúde e de segurança são os principais que têm Síndrome de burnout. E dentro da saúde, por exemplo, mais ainda os profissionais que estão ligados à atenção básica”. A explicação é que há uma inadequação do sistema imunológico por causa da alteração do ciclo circadiano, responsável por ditar o ritmo dos hormônios, das endorfinas e do metabolismo no geral. Com o ritmo totalmente alterado, o organismo acaba convivendo com alterações no sono, no raciocínio e mesmo na psique. Na visão de Michael, falta ao brasileiro iniciativa para realizar algumas tarefas que minimizam o efeito do estresse no cotidiano. “Essa coisa do trabalho diário também é o que nos falta, e isso também causa estresse, porque uma das coisas mais impressionantes para melhorar o estresse também é o trabalho físico. Simples: mexer o corpo, subir a escada ao invés de usar tanto o elevador, la-
var a louça, trocar o gás, arrumar a própria cama, pegar o ônibus, andar. Se cada vez mais a gente fizesse o serviço simples do dia-a-dia, menos estressados ficaríamos”. Outro cuidado que o brasileiro deve ter é com a ingestão de líquidos. “Há pessoas desidratadas crônicas cujo único problema é a falta de água. Toda a fisiologia depende da quantidade correta de água. Então, se eu fico desidratado, simplesmente todos os sistemas orgânicos pagam caro por isso, porque o organismo precisa se reequilibrar de uma maneira que gera esse estresse fisiológico”. Ele alerta, inclusive, que refrigerantes em geral contém pouca água, além de altas taxas de açúcar e ácido fosfórico e, portanto, não são adequados para a hidratação do corpo. É claro que, para nos livrarmos de vez dos estímulos que nos fazem mal, teríamos de viver numa sociedade bem diferente. Um minuto de estresse no dia-a-dia demora seis horas para ser processado pelo organismo, principalmente por conta da resposta inadequada dos hormônios relacionados à suprarrenal, como o Cortisol. Para este abaixar novamente e as respostas do organismo voltarem ao que eram – como batimentos cardíacos, gases do sangue e mesmo o nível de açúcar – exige certo tempo. “É muito fácil acender a suprarrenal, excitar a suprarrenal. E hoje em dia isso é cada vez mais fácil, porque, além da pressão própria psíquica do trabalho, tem a pressão, por exemplo, do meio eletrônico. O próprio meio eletrônico excita o Sistema Nervoso Central e excita a suprarrenal. Essa excitação neuronal e da suprarrenal causa por ela mesma um estresse. E boa parte dos trabalhadores hoje enfrenta trabalhos na frente de telas, sejam telas de computador, seja a tela da televisão, do celular, do laptop, dos iPads e tudo o mais”. O médico comenta, inclusive, sobre como os hábitos adquiridos em relação aos gadgets e demais plataformas eletrônicas estão rela-
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Sono é fundamental para a vida. E a pandemia de dormir mal é íntima da pandemia do estresse MICHAEL YAARI
cionados com noites de sono mal dormidas. “Os estudos em neurociência mostram que um meio eletrônico, as telas, altera as ondas cerebrais. Para dormir, para o sistema nervoso central entrar em estado de sono, ele precisa ter a arquitetura das ondas cerebrais de uma certa maneira. O meio eletrônico altera essa arquitetura. Eu demoro mais ou menos quatro a seis horas pra conquistar essa arquitetura que deveria ser a normal – e não a influenciada pelo meio eletrônico”. Por conta do estímulo das telas, o indivíduo acaba dormindo mal. Ainda que cumpra uma jornada de oito, nove horas seguidas dormindo, a qualidade do sono é baixa e a pessoa acorda se sentindo cansada. “Dentro da antroposofia a gente fala em um triângulo da saúde. Esse triângulo da saúde é composto de três pilares que produzem bem estar e saúde e nos mantém saudáveis. Primeiro deles: sono. Segundo deles: alimentação. Terceiro: atividade física, atividade artística e sexualidade”. Desse modo, com o pilar do sono desrespeitado, é impossível para o ser humano tentar manter um equilíbrio. “A gente tem quatro estágios
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do sono. E uma pandemia cada vez maior é que as pessoas não conseguem aprofundar o sono até as fases três e quatro. Isso, do ponto de vista da regeneração celular, do ponto de vista da imunologia, é muito sério”. É durante a noite que processamos tudo o que vivenciamos durante o dia. Isso inclui também o que o corpo adquire através da atividade física. Enquanto as fases um e dois do sono se relacionam com a manutenção do organismo, as fases três e quatro são as fases de regeneração celular e neurológica e consolidação da memória e do aprendizado. “Sono é fundamental para a vida. E a pandemia de dormir mal é íntima da pandemia do estresse”. O sono também tem de ser respeitado em seu devido horário, mesmo que a tarefa seja complicada. “O que a medicina descobriu é que dormir a noite faz diferença sim, do que dormir de dia. Exatamente por causa dessa cronobiologia, essa maneira de o organismo funcionar dentro de ritmos ligados a natureza. Nesse caso, dentro dos ritmos ligados à luz e à não luz”. Mas há formas eficazes de tratamento
para o estresse. O foco principal contra este mal corriqueiro de nosso cotidiano é justamente o de voltar ao ritmo natural do corpo humano. Sem o retorno de uma rotina que seja saudável ao organismo é muito difícil se livrar dos efeitos do estresse. A medicação pode ser uma boa aliada também. E o tratamento pode ser adequado ao que for de melhor conveniência ao paciente. Seja por meio de antidepressivos, calmantes, medicação antroposófica e homeopática, medicina tradicional chinesa e acupuntura. Também há muita busca por terapias corporais e novos campos de conhecimento do equilíbrio e da saúde, como microfisioterapia, terapia crâniosacral e osteopatia, todas ligadas ao cuidado com o corpo humano através de massagens em pontos estratégicos. Desta forma, chega a ser contraditório, mas o ser humano, na corriqueira falta de tempo, tenta reencontrar ritmos naturais de seu organismo, apesar de ainda parecer se tornar uma tarefa cada vez mais árdua. Na cidade sem tempo, nem mesmo o bem-estar ainda é prioridade. o
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ENTREVISTA
POR GABRIEL ONETO E MARINA PANIZZA
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EM ESSENCIA Professor explica como o homem adquiriu e desenvolveu a tão importante percepção do tempo
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história de qualquer sociedade pode ser entendida a partir do tempo. Isso acontece porque toda sociedade sempre teve sua forma de lidar com o tempo. Sempre existiram diferentes maneiras de formular, representar e contar o tempo. É o que explica João Paulo Pimenta, professor do Departamento de História da USP (Universidade de São Paulo) desde 2004 e autor de seis livros, incluindo Estado e nação no fim dos Impérios ibéricos (Hucitec, 2002), e A Corte e o Mundo (Alameda, 2008). Segundo o historiador de 40 anos, estudar o tempo das sociedades “nos permite olhar não apenas o passado, mas também para nossa própria realidade”. O educador conversou com A Boba sobre essas diferentes formas de lidar com o tempo na entrevista a seguir.
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A tendência do ser humano é de acompanhar a luz; seu corpo repousa naturalmente quando a luz se põe
Qual é a de�inição de tempo? O tempo pode ser definido como o transcurso entre dois marcos. Se você adota arbitrariamente um marco qualquer e outro marco posterior, também arbitrário, o que transcorreu entre os dois pode ser definido como um tempo. Hoje, conseguimos medir o tempo através de relógios ou calendários, mas quando essa prática começou? Ora, quando o homem se deu conta de que havia uma diferença entre o dia e a noite. Portanto, o homem primitivo, o homem das cavernas, já desenvolvia noções de tempo – noções coletivas de tempo, e não individuais. Uma vez que você marque o tempo, aquela marcação passa a ter um impacto na sua vida. O homem passou a marcar o tempo, isto é, o transcurso entre dois marcos, e com isso passou a viver em função de algo que ele concebeu como sendo tempo.
Como nossos ancestrais passaram a perceber a diferença entre dia e noite? O homem das cavernas está deixando de ser primata, está se tornando inteligente. Nossos ancestrais, então, desde os primórdios, desenvolveram ferramentas na medida em que o mundo que eles viviam passou a oferecer certos desafios à vida cotidiana. Que desafio mais básico do que viver de noite? À noite, os primatas têm medo, então eles se recolhem em cavernas. A necessidade dele é de desenvolver, então, uma ferramenta de dominação, dominação não apenas do semelhante, mas também das feras, dos animais perigosos, do perigo da noite. Aí nós temos um começo de tudo: a percepção de que viver de dia não é a mesma coisa do que viver de noite. Quais são os resultados (disso)? A noite é mais perigosa que o dia, o dia tem luz, é propício à agricultura e à caça, a noite não,
a noite é o repouso. E biologicamente o homem foi se constituindo ao longo de milhões de anos com base num relógio biológico que todos nós temos. A tendência do ser humano é estar ligado de dia, é acompanhar a luz, e o corpo dele repousar naturalmente quando a luz se põe. Isso pode ser chamado de inicio do tempo para os homens. A partir daí, o desenvolvimento da inteligente permitiu então o desenvolvimento de instrumentos de mensuração do tempo. Quais são esses tipos de instrumentos? Os calendários são tradicionalmente os instrumentos por excelência de mensuração do tempo. O que os calendários mensuram? Mensuram a passagem do mundo natural por seus marcos. Os marcos que a natureza oferece, aqueles que impactam o homem, são traduzidos para os calendários.
Qual é a de�inição de um dia? É o intervalo entre um ponto qualquer em relação ao mundo natural e o mesmo ponto que ocorrerá um tempo depois. O sol a pino uma vez, o sol a pino outra vez. Uma estrela numa determinada posição uma vez, a repetição dela. A lua numa determinada posição, a repetição dela. A medida do dia é a medida essencial de tempo da humanidade. Só que com o passar do tempo a medida de dia tornou-se insuficiente.
O que tornou essas medidas insu�icientes? Com o advento da agricultura ocorre a necessidade de se mensurar intervalos de tempo maiores que o dia. Começa a divisão das estações do ano, que também variam a depender de onde está vivendo aquela sociedade. A partir daí, então, a divisão em anos é uma consequência quase que natural disso; ocorre uma conjugação entre ciclos da natureza. É assim que se desenvolvem os calendários.
Hoje em dia as horas e minutos tornaram-se medidas importantes também... É a partir dessa relação do homem com o mundo natural, que novas necessidades vão impondo subdivisões. Hoje nós nos importamos com horas e minutos. Uma hora faz toda diferença na nossa vida, mas um minuto também pode fazer. Observem Jogos Olímpicos, competições esportivas; a diferença entre o céu e o inferno. Nas Olimpíadas de Londres em 2012, aquele corredor jamaicano, Usain Bolt, foi novamente consagrado o homem mais rápido do mundo. Alguém lembra o nome do quarto colocado? Ninguém! Qual a diferença entre o primeiro e o quarto? São frações de segundo! No mundo em que nós vivemos, subdivisões desse tipo também importam. Então nós estamos falando primeiro de um tempo em decorrência da relação do homem com o mundo natural, mas nós demos um salto aqui do tempo em relação ao que poderíamos chamar de trabalho.
O que seria este tempo do trabalho? A subdivisão do dia, em horas, em períodos, foi uma decorrência da organização do trabalho que surge com a agricultura. A agricultura pede que determinados momentos sejam de trabalho e determinados momentos sejam de descanso. É a organização das tarefas, isto é, tempo do trabalho que se relaciona com o tempo da natureza. Desde muito cedo então essa relação entre mundo natural e mundo do trabalho articula essa divisão menor do tempo. O tempo do trabalho no século XVIII na era cristã, com a Revolução Industrial, adquiriu um peso gigantesco de modo a se sobrepor – em termos de importância - ao tempo da natureza. O homem conseguiu – ou precisou – submeter a natureza ao seu interesse. O tempo do trabalho é um tempo inventado, você pode inventar o turno
de trabalho que você quiser. É recomendável observar a natureza? Desde sempre foi recomendável, mas no século XVIII, as maquinas poderiam continuar trabalhando, então o que pôde ser feito foi ignorar o ciclo básico da natureza, o ciclo do dia. Para deixar mais claro, então existem dois tempos: o da natureza e o do trabalho? Sim, primeiro o tempo da natureza que está aí desde sempre e ainda existe hoje. Segundo, tempo do trabalho que existe desde que o homem começou a organizar suas tarefas de trabalho. Mas tem ainda um terceiro tempo que é o tempo religioso. O que é o tempo religioso? Ora, desde cedo o homem se perguntou sobre as coisas. As diferentes religiões sempre ofereceram respostas a perguntas que são muito radicais, muito essenciais a todos nós. As concepções religiosas de mundo carregam consigo formas de lidar com o tempo também. Por exemplo, o tempo da salvação, o tempo da purga dos pecados, do juízo final, o tempo da redenção, a recriação do mundo, a trajetória do homem em direção a alguma coisa. Todas as religiões oferecem, então, concepções de tempo, no mínimo, o tempo da eternidade, o tempo de Deus, esse tempo que transcende o homem, que não é um tempo específico do homem. Isso existe ainda hoje; foi existindo de diferentes formas ao longo da história, no Oriente com o desenvolvimento do hinduísmo, na Europa, com o desenvolvimento das religiosidades primitivas, como o cristianismo e o judaísmo, ou seja, cada religião tem uma forma de lidar com o tempo.
Esses três tempos acontecem simultaneamente? Hoje em dia, nós observamos a confluência dessas três grandes formas de viver o tempo: o tempo em relação a natureza, o tempo em
relação ao trabalho e o tempo em relação ao transcendente. Nós podemos resumir a história do tempo como a história das relações entre essas três formas, com ênfases distintas. O século XVIII não apenas trouxe para frente o tempo do trabalho, como jogou pra trás – sem eliminá-lo por completo – o tempo da natureza e também o tempo da religião. É no século XVIII que nós temos a generalização de formas não religiosas de ser no mundo. Relógios biológicos, relógios mecânicos e calendários são desdobramentos dessa história das três formas de viver o tempo.
De onde surgiu nossa atual maneira de contar o tempo? O calendário mais importante, isto é, daqueles que continuaram tendo vigência, foi o calendário romano, o juliano. O calendário juliano teve uma duração enorme. Hoje em dia, temos alguns poucos países que ainda usam, alguns monges ortodoxos que vivem no tempo juliano. O calendário juliano foi dotado de uma modernidade enorme, em termos assim de fazer uma divisão de anos, meses, dias, semanas, bastante eficiente. Dando conta, então, dos ciclos, isto é, do movimento de rotação da Terra, a Terra dando volta no seu próprio eixo, a Terra dando volta no Sol, e as relações da Terra com a Lua. Então o calendário juliano foi muito bom pra prever repetições. Foi a primeira grande organização do tempo feita pelos humanos com base na observação dos ciclos da natureza. O calendário juliano foi reformado e deu origem ao calendário gregoriano em 1582, aí teve inicio o calendário gregoriano, que é uma pequena adaptação. Aquela coisa de ano bissexto, de fevereiro que as vezes tem 28, as vezes tem 29 dias, essas são introduções do calendário gregoriano.
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O calendário gregoriano surgiu devido a desatualização do juliano? Isso! Claro, tinha que saber, por exemplo, quando comemorar o Natal, quando era a Páscoa, quando começava uma determina-
da estação do ano, e essas defasagens, as imprecisões do calendário juliano começaram a implicar em defasagens nessas festividades. Às vezes, o Natal caía em tal dia de dezembro e depois de alguns anos ia cair em janeiro. Isso não podia ser. Foi por isso, então, que a reforma foi encomendada por um papa, Gregório, e ficou conhecido como reforma gregoriana. Era necessidade da Igreja. Mas vejam que interessante: o calendário que nós vivemos hoje – que é o calendário gregoriano – teve origem, então, numa necessidade de organizar matematicamente o tempo das festividades religiosas, em função dos ciclos da natureza. Temos uma articulação desses três tempos que eu falei. Qual é o calendário mais antigo usado atualmente? O calendário judaico, muito provavelmente. É um calendário que faz com que a gente esteja no ano 5 mil e tanto. Esse é um bem antigo. E ainda algumas formas do oriente, que são usados no Japão e na China, na Tailândia, no Vietnã. Essas civilizações têm uma forma de lidar com o tempo muito peculiar. Os orientais desde cedo e por muito tempo consagraram formas duradouras de tempo, grandes intervalos de tempo. Por exemplo, uma mitologia hinduísta fala em ciclos de destruição do mundo, e de recriação. Os ciclos de criação e recriação da Terra duram, em escalas matemáticas ocidentais, milhões de anos. Então, o mundo ainda estaria vivendo sua primeira criação. Será destruído daqui alguns milhões de anos, para ser reconstruído. Isso é uma forma de calendário. A História sabe qual foi primeiro calendário? Os egípcios eram a mais antiga civilização da qual se tem notícia de que tem um calendário. Agora, não significa que eles tenham sido os inventores do que nós chamamos de calendário, porque o nosso calendário é derivado dos romanos.
Com o advento da agricultura ocorre a necessidade de mensurar intervalos de tempo menores que o dia
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o homem primitivo já desenvolvia noções de tempo - noções coletivas de tempo, e não individuais
O calendário surgiu em diferentes civilizações pela necessidade que elas tinham, certo? Perfeitamente. Vocês pensem que, até o século XV, o mundo vivia em unidades isoladas, o mundo não se comunicava inteiro. Claro que teve grandes expansões, como o império mongol de Gengis Khan e o império romano, que são impérios expansionistas, mas eles se expandiram até parte do mundo. Até os europeus resolverem se expandir pelo mundo todo, o mundo era então dividido em partes isoladas. De modo que, até então, era absolutamente normal que cada um desenvolvesse suas formas próprias de lidar com o tempo, isto é, com o transcurso entre um sol a pino e outro sol a pino, entre a época de uma colheita e a outra época da colheita. Então são desenvolvimentos simultâneos. Qual o papel do relógio na história do tempo? Os relógios mecânicos foram sendo inventados na medida em que se passou a ter necessidade de medidas mais exatas, por exemplo, nas grandes navegações, quando os europeus começaram a cruzar o oceano atlântico no final do século XV. Eles precisavam saber quanto tempo precisava pra chegar num determinado lugar, precisava calcular a quantidade de comida que teria em um determinado navio. Em 1350, mais ou menos, os relógios mecânicos apresentavam uma imprecisão de 1000 segundos por dia. Isso foi mudando até 1650, de modo a chegar mais ou menos na casa dos 500 segundos por dia. Isso já foi um movimento de precisão grande. Mas em 1650, com a invenção do primeiro relógio de pêndulo, a imprecisão salta de 500 segundos para 10 segundos. Isso é no bojo da Revolução Científica. O pioneirismo é atribuído a um artífice holandês, Christiaan Huygens. Com a invenção do cronômetro marítimo, medidas precisas pra grandes navegações, isso em meados do século XVIII, a imprecisão baixou, chegou a
cerca de 0,3 segundo, uma precisão incrível. Por que isso foi alcançado em meados do século XVIII? Porque houve necessidade disso. As grandes invenções são todas resultados de necessidades sociais. Nem sempre o relógio teve essa importância toda, não é? Nem sempre foi assim. Na Idade Média existiam relógios de sol, existiam relógios de areia, de água, mas era mais importante escutar as badaladas da igreja do que ficar vendo o relógio de sol. Então, as badaladas de uma igreja eram comumente instrumentos pra estabelecer os ritos da vida cotidiana. A gente modificou isso por outros ritos, o rito pode ser assistir a novela, acordar pra ir trabalhar, o horário do futebol, a sexta-feira, o fim de semana, temos outros ritos. Mas o relógio, desde que começou a se generalizar, tomou conta da nossa vida.
Como é calculada a hora o�icial do mundo hoje em dia? A hora no mundo hoje é mensurada por 40 relógios atômicos que estão posicionados em 20 países diferentes, de fusos horários diferentes. Em Greenwich, na Inglaterra, onde começa o meridiano de Greenwich, ali tem um que centraliza essas informações e tira a média delas. Então é a média de 40 relógios atômicos, que têm grau de precisão altíssimo. E precisamos dessa precisão toda? Precisamos. Pra quê? Isso faz sentido pro mundo de hoje, que é um mundo todo subdividido, todo matematizado e extremamente rápido. É um mundo onde a velocidade em si é um valor, onde a pressa é virtude, onde tempo é dinheiro. Vivemos correndo, vivemos com pressa; pressa é sinônimo de eficiência, enfim, fazer muita coisa em pouco tempo é sinônimo de eficiência, é sinônimo de algo valoroso. Além do tempo da natureza, do tempo do trabalho e do tempo religioso, existe al-
guma outra forma de viver o tempo? Existem tempos psíquicos. É o tempo da subjetividade do individuo; é você levantar um belo dia e falar “putz, hoje eu não tô a fim de fazer nada”, “nossa, hoje eu tô nostálgico”, ou “hoje eu tô depressivo”. Mas nenhum desses tempos, inclusive esse tempo subjetivo que varia de pessoa para pessoa, tem força para se sobrepor ao tempo do trabalho, que é um tempo que encontrou no relógio seu grande aliado, sua grande materialização.
Qual foi a interferência dessa nova percepção de tempo em pro�issões que lidam diretamente com o cotidiano, como o jornalismo? Os jornalistas vivem o tempo da sociedade contemporânea. A gente vive a sensação de um encurtamento progressivo do tempo. Isso não para, está sempre se acelerando mais. Isso é um desastre do ponto de vista da informação. Porque nós nunca tivemos acesso a tanta informação. Então, o jornalista de hoje tem acesso a uma quantidade de fontes gigantesca num tempo cada vez mais rápido. O que significa que cada vez mais o tratamento qualitativo declina. Porque o jornalista não pode ser simplesmente um descritor da realidade, ele precisa ser intérprete também. Ou pelo menos criar as condições para a interpretação da realidade. Vivendo nesse mundo de progressiva aceleração dos ritmos de vida, jornalistas abdicam disso. Há 20 anos, os jornais eram muito melhores. Isso tem a ver, então, com o triunfo desse tempo matemático, desse tempo do trabalho, mas também do ritmo que ele se processa. Então o fato de ter informação muito rápida, ao invés de ser uma força para o trabalho do jornalista, acaba criando uma outra demanda: de que o trabalho dele seja igualmente rápido, seja no mesmo ritmo dessa informação. E alguma coisa se perde aí: justamente a interpretação, o sentido da coisa. O tempo do trabalho parece que acompanha o próprio tempo dessa informação. o
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CALENDARI CURIOSOS
Contar o tempo também é um fator relacionado a cultura de cada povo POR GABRIEL ONETO E MARINA PANIZZA
Qual foi o primeiro relógio? Os primeiros relógios de que se tem notícia são de mais de 5000 anos atrás. Os babilônios usavam blocos de pedra ou madeira como marcadores de tempo primitivos, através do ciclo do Sol. Durante séculos, os fenômenos naturais eram utilizados como marcos dos relógios. Os egípcios foram os primeiros a fazer relógios que podiam funcionar indiferentes às condições do tempo: os relógios de água. Os relógios mecânicos surgem no século XIII, utilizando pesos. No século XV, surge, graças ao motor a mola, o relógio portátil, tão importante para as grandes navegações.
muÇulmano O calendário mulçumano é lunar. Ele é composto de 12 meses divididos em 3554 ou 3555 dias. Ele não é utilizado como calendário civil, sendo usado como marco de eventos religiosos. Os países mulçumanos usam cotidianamente o calendário gregoriano e anteriormente utilizaram o calendário otomano (inspirado no juliano) ou o persa. O atual ano para os mulçumanos é o de 1434, que vai até o dia 4 de novembro de 2013, no nosso calendário. O marco do início é a Hégira, a fuga do profeta Maomé de Meca para Medina, na atual Arábia Saudita, que se deu no dia 16 de julho de 622, uma sexta-feira, segundo o calendário Juliano. A cada 30 anos, há 19 com 354 dias e 11 com 355. O por do sol, assim como no calendário hebraico, marcam as mudanças entre os dias.
ChinÊS O calendário chinês inspirou inúmeros outros no oriente, tais como o coreano, japonês, vietnamita e tibetano. Ele funciona com um conjunto de calendários solares e lunares, mais o horóscopo chinês. Ele tem duração de 12 ou 13 meses. O calendário chinês se encontra no ano 4711. Para se manter atualizado, a cada 8 anos são adicionados 90 dias. Por estarem em conjunto com o horóscopo, os anos são divididos em ciclos de 12 anos, cada representado por um animal. Para os chineses, o ano de nascimento é um importante aspecto para a identidade da pessoa, pelo poder do animal por ele representado.
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IOS JudaiCo No dia 5 de setembro de 2013, segundo o nosso calendário, o gregoriano, os judeus comemoraram um novo ano, o 5774. Para eles, o marco do início do calendário é a criação de Adão por Deus. Segundo esta contagem, o calendário começou em uma quinta-feira, 7 de outubro de 3.761 a.C (de acordo com o nosso calendário). Para conversão, basta acrescentar 3700 em nosso ano corrente para chegar à data hebraica. Atualmente, ele não é utilizado cotidianamente por Israel ou nenhum outro país. Ele se mantem como calendário religioso. Este calendário é lunissolar, isto é, a contagem dos meses é feita pelos ciclos lunares, enquanto que para contar os anos se usa o ciclo solar. Isto leva a se adicionar um mês a cada dois ou três anos, para corrigir imperfeições e diferenças entre os dois ciclos. O primeiro dia da lua nova é utilizado para marcar o começo de um novo mês. O tempo entre uma lua nova e outra é de, aproximadamente, 29, 5 dias. Os judeus alternam meses de 29 e 30 dias. Usam-se outros cálculos para evitar que o ano se inicie em uma quarta-feira, sexta-feira ou domingo. Também é acrescentado ou retirado um dia de algum mês (Heshvan ou Kislev) Para se contar o dia, é utilizado como marco o por do sol. Este método faz os dias não terem a mesma duração, visto que há variação nos ciclos solares. Já a semana é composta de 7 dias, usando como marco o que é dito no livro de Gênesis, os nomes dos dias são numerados e acabam no Shabat, o sétimo dia.
Juliano O calendário juliano é uma relíquia do Império Romano. Introduzido por Júlio César, em 44 A.C., foi feito para substituir o antigo calendário romano lunar, com dez meses e semanas de 8 dias. Este calendário tinha 304 dias, o que causava muitos problemas de imprecisão e que precisava de ajustes constantes. O novo mandato de um Cônsul marcava o início de um novo ano, que eram nomeados, não com números, mas com o nome do Cônsul. Pelas inúmeras mudanças em todo o seu tempo de uso, é, muito difícil, saber com exatidão de datas de eventos históricos marcados por este calendário. Este calendário durou mais de 700 anos, quando, em 46 a.C, o governante de Roma, Júlio Cesar, preocupado com o fato de as festas de primavera caírem no inverno, contratou o astrônomo Sosígenes, para consertar o calendário, segundo o historiador romano Plinio, o Velho. As mudanças no calendário foram radicais. Adicionaram-se dois novos meses, e os meses foram alternados entre 31 e 30 dias, com exceção de Fevereiro, que teria 29 dias e de 3 em 3 anos, 30. Com estas mudanças, o calendário passou a seguir o ciclo do sol e a ter 365 dias. Para os romanos o ano de 46 a.C., é chamado de “ O ano da confusão”, pois graças aos ajustes teve 445 dias. O calendário foi oficializado em 44 a.C., e o seu quinto mês, Quintilis, foi reno-
meado para Julho, em homenagem a Júlio César. Em 8 a.C., o 1º imperador romano, Augusto, ajustou o calendário, fazendo o ano bissexto passar de 3 em 3 anos, para de 4 em 4 anos. Em homenagem ao imperador, o senado romano renomeou o 8º mês, Sextiles, para Agosto. Um dia foi retirado de Fevereiro, que passou a ter 28, para ser adicionado em Agosto, que passou a ter 31. O calendário se manteve inalterado por mais de 1500 anos, mas um erro no cálculo no ano bissexto fazia o calendário começar a ficar defasado. Aconselhado por astrônomos, em 1582, o Papa Gregório XIII, decreta, através da bula Inter Gravissimas, que a quinta-feira, 4 de outubro de 1582, seria seguida pela sexta-feira, 15 de outubro. Onze dias foram simplesmente cortados para se ajustar o calendário. Países católicos, como Portugal, Espanha e França seguiram imediatamente as ordens papais, já em outros países a mudança foi mais lenta. O calendário Juliano só foi substituído na Rússia em 1918, após a revolução comunista. Igrejas Ortodoxas continuam utilizando o calendário Juliano, em suas celebrações. A falha de que, a cada 400 anos, havia um atraso de três dias foi corrigida com calendário juliano, assim passaram a ser considerados bissextos, os anos, de 4 em 4 anos, excetos os múltiplos de 100, não múltiplos de 400. Atualmente a diferença entre o calendário juliano e gregoriano é de 13 dias. o
por que o ano começa em 1º de janeiro? A explicação oficial da Igreja Católica, é que é esta a data da circuncisão de Jesus Cristo. Antes em 154 a.C, o Senado romano já havia substituído de Abril para janeiro o início do ano. No século IV, quando o cristianismo se tornou a religião oficial em Roma, foi necessário dar um significado cristão para esta data. Posteriormente, em razão do solstício de verão, o início do ano foi para o mês de Abril, só voltando a Janeiro com o calendário Gregoriano. por que 1º de abril é o dia da mentira? Quando houve a mudança no calendário Juliano para o Gregoriano na França, a data do ano novo foi de 1º de Abril para 1º de Janeiro. Alguns não aceitaram e continuaram a celebrar no dia 1º de Abril. Essas pessoas começaram a ser enganadas e ridicularizadas, sendo chamadas de tolos. O “dia dos tolos”, através dos anos, se tornou o “dia da mentira”.
tan Acordei por conta própria e havia só fumaça. A televisão tinha pifado e todos os eletroeletrônicos pareciam tê-la acompanhado. Com a exceção do relógio, cujo ponteiro girava 360 graus, indeciso. Lá fora o céu alternava entre claro e escuro, como se alguma criança travessa tivesse sido encarregada de manusear o botão de contraste e brilho do mundo. Me vesti, tentando lembrar se havia ingerido alguma droga na noite anterior, pois, além de tudo, meu corpo parecia adquirir vários formatos enquanto eu caminhava. Meu rosto enrugava e, de repente, eu era uma criança novamente. Tentei falar, mas saiu um choro bem fininho, sentei, desespero.
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tan Esfreguei meus olhos e procurei por alguém, foi então que notei que a própria casa era uma mistura de vários lugares que morara no passado, com meu apartamento atual e a casa da minha avó. Tentando encontrar alguma lógica, comecei a andar de costas e segui até a rua, que estava mais assustadora do que aquele pesadelo em que todos os monstros fazem um banquete e o prato principal é você. Cazuza me esperava no portão do prédio e acenou para mim. Quase perguntei se o fizera esperar muito, mas dadas às condições, qualquer classificação e convenção parecia fora da realidade. Caminhamos juntos até um bar na esquina, onde Elis parecia meio chateada por ter que can-
tar bossa nova. Tentei lembrar Cazuza de tomar seus coquetéis, tentando evitar o trágico destino do artista, mas ele me disse “o tempo finalmente parou, essas coisas não importam mais”. Me senti incomodada, tanta coisa programada, aula de yoga, levar o cachorro para passear e me aparece esta de o tempo ter parado? Oras, como isso era possível? Pensei nisso e resolvi que era impossível. Tudo foi se recompondo aos poucos, perdi toda uma eternidade efêmera ao me dar conta daquilo. O tempo voltou a existir assim que eu o coloquei ali. Cazuza se foi e a bossa nova ficou na vitrola. Voltei a usar despertador, taxi para ir até a esquina, com medo de me atrasar, e nem tive o privilégio de ter tempo para reclamar disso.
POR JULIA RAMOS CLARO A B BA
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“Somos tempo personificado, e também o são nossas sociedades, formadas pela história. Mas a simplicidade dessa afirmação esconde a complexidade do conceito de tempo, uma das categorias mais controversas em ciências naturais e também em ciências sociais” afirma Manuel Castells, sociólogo espanhol em seu livro “A sociedade em rede”. Conforme os séculos passam, a percepção de tempo de cada civilização é alterada. A sensação de que tudo corre mais rápido conforme os anos começou com a modernização do mundo. Olavo Bilac em seu artigo “Fotojornalismo”, publicado na Gazeta de Notícias no começo do século XX, já evidenciava esse processo. “A vida de hoje, vertiginosa e febril, não admite leituras demoradas, nem reflexões profundas. A onda humana galopa, numa espumarada bravia, sem descanso. Quem não se apressar com ela, será arrebatado, esmagado, exterminado. O século não tem tempo a perder.” Dada a complexidade do tema e a sua constante transformação, decidimos explorar a percepção do tempo a partir da perspectiva de pessoas em diferentes fases da vida: a infância das crianças abrigadas na Casa Ninho, a juventude de Daniela Moretti, uma estudante que tenta há muito tempo passar em medicina, e a velhice no interior do estado de São Paulo pelos olhos de Dona Zenita Klapper.
Filhos do imediato
As paredes recém-pintadas de roxo da Casa Ninho abrigam histórias de crianças que vieram de todos os cantos do Brasil para um único objetivo: fazer um tratamento contra o câncer. Em um domingo de setembro, brinquedos novos estavam espalhados pela casa, uma doação generosa reavivou o ânimo das crianças. Assim, elas descobriam todas as possibilidades da nova aquisição. Cada segundo era uma surpresa para elas e para quem as via. As teclas do telefone de Maria falavam e as luvas de boxe de Gabriel Henrique ganhavam vida. Logo, os brinquedos foram esquecidos para dar espaço aos voluntários que prepararam cachorro-quente para todos. Batata-palha no chão, catchup sujando a mesa branca e bocas com um pingo de maionese. As mães sentadas acompanhavam a cena de longe, discretamente, às vezes interferindo para conter a gula de seus filhos. A comida passeava pelo pátio e os bolsos se enchiam de balas. Samuel tem 5 anos e ainda usa fraldas. Seu estado de saúde o impede de comer comida salgada. Ver aquelas salsichas ainda quentes com uma camada de catchup era uma tortura sem tamanho para um pequeno garoto com um imenso apetite. As lágrimas jorravam de seus olhos quando sua mãe o
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proibiu de saborear aquele lanche. Minutos depois as lágrimas secaram e sua boca estava cheia de balas de morango. O acontecimento foi absorvido pelo tempo, esquecido nas lembranças instantâneas. Maria Julia, de 4 anos, interagia com as crianças, sempre com uma bolsa cor de rosa. A grande companheira foi deixada de lado quando Samuel decretou que os três degraus que levavam à casa eram na verdade um navio, e todos eram piratas. A pá transformou-se em remo e o tesouro perdido não era nada além de pó e ar. A imaginação transbordava e enchia baldes de inocente felicidade. Respostas desconexas, com um toque de carpe diem e a desconcertante constatação de que o tempo é o presente. Para os marujos Samuel e Maria Julia tempo era algo que não lhes pertencia, muito distante de sua realidade. O que era tempo para eles? Há quanto tempo estavam na Casa Ninho? O capitão respondeu “No navio? Há muitas horas”, sua companheira acrescentou “Ah, todos os dias”. Seja pelos novos brinquedos ou pela inocência, tudo é novidade, tudo se transforma. Aqueles pequenos príncipes vão descobrindo planetas todos os dias, e os veem em forma de barco. As pessoas grandes entram na brincadeira e conseguem enxergar o mar feito de asfalto, o tesouro sem consistência física.
O garoto Samuel, em meio a brincadeiras, vive sem se preocupar com o tempo
O passado parece não ter relevância, os dias que se sucederam não são armazenados. O tempo é vivido em sua totalidade, sem a preocupação com horas ou minutos. Os pequenos acontecimentos do cotidiano facilmente se tornam fantasias na imaginação das crianças - toda escada é um navio pirata. Nenhum minuto pode ser contado, pode ser apenas vivido.
O estudo dos dias
Irônico escrever sobre a relação com o tempo quando não se tem tempo para fazer a entrevista. Entre os livros de química e as horas passadas com o namorado, Daniela Moretti se dedica ao cursinho na tentativa de ser aprovada em medicina. Oficialmente seu terceiro ano, mas tecnicamente o quarto. O primeiro deles foi levado com o curso de letras que fomentava seu interesse por novos idiomas, principalmente pelo alemão. A paixão pela medicina falou mais alto e hoje ocupa a maior parte de seu dia. Seus olhos sempre delineados e sorridentes contam, com animação, sobre o dia muitas vezes cansativo. O despertador a tira do sono às 5 da manhã para que possa chegar tranquilamente às 6 horas no cursinho situado na Vila Mariana. O grande culpado desse despertar prematuro é o trânsito que
congestiona o caminho entre o Morumbi e o Poliedro. Uma hora, sessenta minutos cronometrados para estudar, ou, nos momentos de vulnerabilidade, dormir. Na sua mesmice os dias variam conforme o horário do final das aulas, seja às 16h, às 18h ou até mesmo às 12h30, Daniela foca nos estudos. A perfeita relatividade do tempo é vista através de suas matérias de predileção. A lentidão por excelência se dá quando tem que travar a batalha contra o sono, ou mesmo quando a matéria não é de extrema importância para ela. O esforço não é em vão. Para começar o oficial segundo ano de cursinho, Daniela migrou para o Poliedro. O tempo imerso nas salas de aula e nos livros lhe trouxe confiança para encarar as longas provas de vestibular. A ansiedade aumenta conforme a maratona de vestibulares se aproxima a passos largos. A tão almejada faculdade de medicina parece cada vez mais perto. As provas de vestibular propiciam diferentes sensações de tempo, que oscilam entre o apressado e o lento. A rapidez das questões que são do domínio de Daniela são sua predileção e lhe dão espaço para as matérias em desvantagem. O grande panorama de possibilidades de temas avaliados são uma fonte de preocupação. Esses assombrosos pequenos detalhes atrasam a rotina
e fazem os exercícios se acumularem, entre as cinquenta questões passadas pelo professor e a matéria longe de estar em dia; as horas se atropelam. Quando os olhos da estudante param de ler fórmulas químicas, eles se concentram nos de seu namorado, Yuri Bunduki. A dedicação e o comprometimento de Daniela com o cursinho animam, mas também chega a preocupá-lo. As longas horas impregnadas de estudo a deixam estressada e podem “fazer mal a sua saúde mental”. Contudo, os dois conseguem compartilhar algumas horas juntos durante o dia. Aos 21 anos, Daniela não se assusta com a perspectiva de começar a faculdade com essa idade. Mais maturidade e consciência são qualidades essenciais para cursar medicina. Os anos de cursinho lhe trouxeram muitas aprendizagens que transcendem o que foi visto na escola ou no curso de letras. Yuri cita o exemplo de seu pai, obstetra, que trancou a faculdade de medicina aos 18 anos para morar na Europa por dois anos. A formação humana que adquiriu lhe trouxe mais maturidade para encarar a carreira. Independentemente da época e da situação, é necessário desafiar o tempo e dar-lhe tempo. Talvez dessa maneira ele possa demonstrar seu verdadeiro potencial: o da aprendizagem.
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Acostumada com um ritmo de vida mais bucólico, Dona Zenita se difere dos seus netos com relação à percepção de tempo
Artesanato da alma
As calçadas daquela rua são feitas de blocos de cimento que no vão entre uns e outros, deixam brotar algumas plantas insistentes em sobreviver no meio urbano. Mato selvagem e bruto que, com muito esforço, se impõe nos espaços que o concreto desgastado e mal asfaltado não preenche. A rua é silenciosa aos sábados de um bairro familiar da pacata cidade interiorana de Itapetininga, São Paulo. Algumas crianças displicentes brincam correndo de um lado pelo outro sendo as protagonistas sonoras de um raio de, no mínimo, uns duzentos metros de calmaria. O portão verde era a única coisa que fazia com que a casa de Dona Zenita Klapper se diferenciasse de todas as outras tão simples e discretas quanto a dela. Seus olhos azuis continham histórias da maravilhosa era do “antigamente”. Seu olhar, cerceado pelas cicatrizes do tempo, projetava a trajetória de sua vida enraizada em lembranças e saudades. O “antigamente” figurou diversas vezes nos lábios nostálgicos de Dona Zenita que desejavam compartilhar experiências praticamente intransmissíveis. A coleção de “antigamentes” é grande: “Antigamente, o fogo era a lenha”, “Antigamente, a televisão era em preto e branco”, “Antigamente, brincávamos muito na rua, fazíamos muitos piqueniques”, “Antigamente, 34
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as pessoas escreviam muito umas às outras”. Essa coleção está lotada de coisas analógicas e de anacronismos saudáveis: artesanato da alma. Cheia de coisas que nossa vida automatizada e robótica já perdeu há muito tempo. Sua percepção do passar da vida – composta por suas metas, objetivos, vitórias, fracassos, divertimentos, alegrias, tristezas – foi construída de uma maneira totalmente diferente do que acontece com alguém que nasce nos velozes dias do “atualmente”. Dona Zenita entende que a facilidade que a tecnologia proporciona e a velocidade com que ela se torna obsoleta dissipam o verdadeiro valor de uma conquista: a vida está repleta de pequenos triunfos que se vão em muito pouco tempo. Para ela, essa máxima cerca todos os âmbitos da vida: de cozinhar – que ela diz fazer desde que se conhece por gente – até aos relacionamentos amorosos que não mais se sustentam como em outros tempos. A própria velocidade com a qual o tempo passava era muito menor. O Natal demorava muito tempo, as pessoas se preparavam com antecedência. “A gente sonhava com a data do Natal, sonhava com a roupa que a gente ia por, o sapato que combinasse com a roupa, o que íamos fazer com o cabelo. (...) Agora a turma se arruma muito pra agradar os outros. Não é tanto pra uma alegria pessoal, né? É mais pra saber, ‘Ah, como será que a Maria vai?’” brinca Dona Zenita.
“A gente cultivava o amor”. Talvez essa frase resuma a entrevista de Dona Zenita. Talvez ela sintetize até mesmo os valores dela. O emprego da palavra cultivar não é arbitrário. Cultivar é trabalhar a terra para torná-la fértil: fazer nascer uma planta. Cultivar o amor é um exercício demorado que exige paciência e dedicação, mas que traz resultados frutíferos. O ato de cultivar um sentimento, um relacionamento, uma sensação ou um momento específico se perdeu com o passar do tempo. Sempre que possível, Dona Zenita reúne todos os familiares em sua casa. Contando com os namorados e adjacências são quase quarenta pessoas. “A gente vai esparramando todo mundo pela casa: mesa na sala, mesa na cozinha... É muito bom, não sei até quando vai isso, mas enquanto estiverem todos aqui eu vou continuar” afirma. Os blocos agressivos das calçadas daquela rua podem ser interpretados como uma metáfora para a maneira como nós vivemos. Só deixamos brotar o mato mais selvagem e bruto sufocado por um cimento abstrato chamado ansiedade. Seguindo a teoria de Dona Zenita, nossa alma não tem mais jardim, não cultivamos flores coloridas e vistosas, só deixamos crescer aquilo que consegue sobreviver a nossa rotina atribulada e violenta. “Faltam horas”. o
O TEMPO NO CINEMA O Tempo que Resta – François Ozon - 2005 Romain descobre que tem um câncer avançado e repensa seus valores e sua vida. Afastando-se de todos, ele não procura prolongar sua existência, e sim tentar dar a ela um significado. Através de uma linguagem poética, o diretor mostra que nós somos apenas uma pequena parcela do mundo: nós morremos, mas o mundo permanece.
Morangos Silvestres – Ingmar Bergman - 1957 Isak Borg é um médico que vai receber um prêmio em Lund por sua dedicação à carreira. Em uma viagem de carro, ele se depara com lembranças de sua juventude ao visitar sua casa de férias. O filme é imerso em nostalgia e reflexões sobre a vida. Isak revive suas paixões juvenis e encontra em sua jornada pessoas que incorporam dilemas de diversas épocas. Dramas pessoais e conflitos internos são retratados de maneira onírica por Bergman.
2046 – Wong Kar Wai - 2004 O diretor chinês sabe capturar a efemeridade dos acontecimentos na nossa trajetória de vida. Em 2046, continuação de Amor à Flor da Pele, o senhor Chow se envolve de maneira fugaz com diversas mulheres. Ela também escreve o romance 2046, em que um trem leva as pessoas para um futuro repleto de androides e construções exóticas. Nele, o autor projeta sua história pessoal. Através pequenas sutilezas, Wong Kar Wai mostra como nossas relações são passageiras e como nossas relações interpessoais podem ser momentâneas. A B BA
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O TEMPO E o passado Saturno, também conhecido na mitologia grega como Cronos, Deus do tempo, comeu seus filhos, um por um ao nascer, depois de descobrir que algum deles o destronaria. Na realidade, nós somos seus filhos: o tempo invariavelmente dilacera e destrói os homens, engolindo-os. Estamos eternamente presos ao impalpável momento que se foi.
A infinidade já foi explorada por Yayoi em trabalhos anteriores, como em Infinity Mirror Room. Colocando o rosto em uma pequena janela da instalação, o observador pode presenciar por alguns instantes como é estar imerso no mundo da obsessão plena e incessante da artista, internada em uma clínica psiquiátrica por vontade própria desde 1977. Em Fireflies on the Water, é possível não apenas visualizar como também vivenciar a aparente imutabilidade do tempo em que ela vive.
Yayoi Kusama, Vaga-lumes na água, 2002. Espelho, vidro, 150 luzes e água. Whitney Museum of American Art. © Yayoi Kusama.
Saturno devorando um filho (1819-1823) Francisco de Goya Óleo sobre reboco trasladado a tela Museu do Prado, Madrid 36
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arte
A TELA PARTE 2 por julia mello ´ eternamente impalpavel É impossível falar sobre arte e tempo e não lembrar de A persistência da memória. Até mesmo porque as suas cores e representações foram feitas para, realmente, persistirem em nosso imaginário simbólico. Antes de toda interpretação das figuras do quadro, a maleabilidade do espaço e do tempo são a principal preocupação do artista, que viveu a comprovação da relatividade de Einstein.
A persistência da memória - 1931 - Salvador Dalí Óleo sobre tela Museu de Arte Moderna, Nova Iorque
O limiar entre design e arte é explorado com o relógio Is This Time? do Studio Like This. Quando encarado de frente, é possível ver os seus ponteiros. Mas ao mover-se para os lados, o observador não consegue mais visualizar o horário. Uma metáfora perfeita para a dificuldade de perceber o tempo como ele é. o
David Grandorge
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cultura
O AMANHA D´E ONTEM ~
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cultura
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“A cultura é sempre constituída de resíduos das anteriores. Toda manifestação cultural é marcada por um lastro de história”, diz Eugênio Menezes, professor da Faculdade Cásper Líbero. Ao longo da história, tudo o que foi sendo desenvolvido prossegue com o legado dos antepassados. Novas ideias sempre surgem e vão sendo adaptadas, incrementadas, aperfeiçoadas e reelaboradas de acordo com o novo cenário que o mundo apresenta. Segundo Eugênio, para falar das coisas, estamos sempre reduzindo. O filósofo tcheco-brasileiro Vilém Flusser tenta esquematizar a transformação cultural como uma escalada constante de abstração. Nos últimos anos, chegamos ao último degrau. Todas as nossas manifestações culturais circulam hoje em inscrições digitais. Ao longo do desenvolvimento em sociedade, adotamos primeiramente a comunicação tridimensional, que envolve o corpo, o contato, as relações de afeto; em outro momento, passamos ao bidimensional, das imagens; posteriormen-
te, ao unidimensional, colocando tudo o que pensamos na forma escrita; e, por último na escalada, chegamos ao nulodimensional. Aí, nos perguntamos: para onde vamos? O que vem agora? “Não tem pra onde ir mais. Podemos ler de duas formas: voltamos atrás ou compreendemos que temos todos os tipos a nossa disposição”, explica Eugênio. É nesse contexto que surge o resgate de valores, peças e elementos antigos – em oposição aos práticos objetos contemporâneos. Esse velho novo hábito ganhou espaço na mentalidade social vigente: o que chamamos de vintage ou “retrô”. Sejam coisas realmente velhas ou apenas em cópias de modelos antigos, é inegável que esta moda nostálgica está em alta entre os jovens. O ritual propiciado por roupas de brechó, feiras de antiguidade e vinis, mesmo não sendo contemporâneas desta juventude, tem exercido grande influência e marcado presença no cotidiano. A B BA
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A feira reúne os mais variados objetos antigos
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Na Benedito
Estação Clínicas do metrô. Descendo a Rua Teodoro Sampaio, em meio às diversas lojas de instrumentos musicais, chegamos à praça mais famosa do bairro de Pinheiros, a Benedito Calixto. Um público bem diversificado - de grupos de amigos a famílias, jovens descolados a idosos, locais a estrangeiros - tomava conta das ruas à sua volta. Alguns apenas conversavam, outros consumiam nos bares adjacentes, enquanto observávamos as várias barracas que formam a intrigante feira da Benedito Calixto. Numa bandeja que parecia ser de prata, um adesivo continha a inscrição: França – séc XIX. A dona da banca era uma senhora que não parecia ter mais de 50 anos. Ela conversava com um homem - que estava sentado em uma cadeira ao lado de sua barraca, à esquerda - comparando a geração nascida nos anos 1970 com as novas gerações. “Eu falo porque vejo minha filha. O comportamento dela é bem diferente do meu quando tinha a mesma idade”. O vendedor só escutou, balançou a cabeça duas vezes para frente, concordando, e olhou para o chão. Em algum momento seu olhar dirigiu-se a mim, que agora observava algumas armações de óculos, dispostas em uma caixa de madeira e mais alguns dos itens de sua barraca. Mais à frente, uma mulher segurava o filho pela mão. O menino olhava intrigado para o que parecia ser uma vitrola. Ele, então, voltou-se para mãe, que facilmente identificou o objeto. “É uma vitrola portátil”, declarou, segura, “tipo um walkman, só que
mais antigo”. Pude imaginar um grupo de jovens entusiasmados com suas novas aquisições musicais em mãos, seguindo para um parque ou algo assim, segurando aquele aparelho - o tataravô de nosso tão difundido Ipod. Era impossível que as imagens de uma época distante não viessem à mente, colorindo o passeio pela praça. Tudo na feira da Benedito Calixto respira a antigo. Joias de famílias importantes do século XIX misturam-se com capacetes e máscaras usados durante a Segunda Guerra Mundial, instrumentos cortantes, microfones dos anos 1950 (os famosos utilizados pelo Rei do Rock, Elvis Presley) e vestimentas recuperadas de armários dos contemporâneos a grupos como hippies e punks. A maioria dos vendedores tem mais de 40 anos. Com cabelos e barba compridos, Jayme, um deles, está na feira há quinze anos. Desde criança cultiva o gosto pelas antiguidades, compra para colecionar, e assim tornou-se comerciante das peças. “Sou formado em Direito e, por trinta anos, trabalhei com colchões. Mas percebi que é o que sei fazer, minha especialidade”, diz, com sua voz rouca, enquanto ajeita a mesa. Em sua barraca, havia objetos como abajures, ou microfone do Elvis e acessórios. “Mas qual o motivo disso?”, indaguei a respeito do fascínio que as antiguidades despertam nas pessoas. “Não há”, disse, sorrindo, “isso é muito pessoal. Alguns vêm em busca de objetos que os pais usavam, outros pela curiosidade. Pra mim, é apenas um gosto próprio. Sempre gostei de ter coisas diferentes”. Nesse ponto, um amigo chegou
oferecendo um relógio a Jayme, que deixou de dar atenção a nós. Os vendedores negociam peças entre si. Jayme explica que muitos vendem certas raridades, pois ele é um dos únicos que possui clientes fiéis. “Tenho clientes que gostam de determinadas marcas de caneta ou relógio, coisas especificas. Sempre tem alguém que coleciona certo tipo de artigo”, revela, apontando para uma caixa aberta com canetas refinadas. Um bebê chora, enquanto algumas adolescentes passam conversando alto. Um casal de namorados está entretido numa barraca de vinis e um senhor sentado num banquinho de madeira observa o movimento. Ao fundo, ouve-se um grupo de chorinho. Um cliente chega e Jayme nos interrompe para atendê-lo. “Quanto é o microfone?”, pergunta o jovem, curioso. “800 reais a cabeça e 450 o restante”. Arregalando os olhos, o comprador pergunta, surpreso, o porquê daquele exorbitante preço. Jayme explica, tranquilamente, que era uma peça rara, bem difícil de ser encontrada. Essencialmente, a Praça Benedito Calixto sustenta uma feira de cultura, não apenas de comércio de antiguidades. Os vendedores das peças antigas convivem com artistas que expõem seu trabalho, como pinturas, roupas feitas artesanalmente, assim como pulseiras e colares. É possível encontrar obras bastante peculiares, como desenhos retratando a cidade das primeiras décadas do século XX, assim como pinturas inspiradas em imagens clássicas como a Santa Ceia e outras passagens bíblicas, por exemplo. O espaço para alimentação reforça a veia
cultural da feira. Isolado do restante - no centro da praça - o espaço possui barracas das mais variadas comidas típicas do Brasil. Logo na entrada, as especialidades baianas atraíam uma enorme quantidade de visitantes, que consumiam o vatapá ou o acarajé. Ao lado, uma barraca de comida árabe. Em frente, uma de pastel e, à direita, uma de doces caseiros. Sentado, comendo cocada com doce de abóbora, reparei que o movimento ali era frenético. Ao som de um grupo de chorinho, o ambiente remetia a outros momentos da história paulistana, transportando-nos ao passado. Feira adentro, chegamos ao espaço onde se reúnem os colecionadores de discos de vinil. Esse é um dos grandes atrativos da feira da Benedito Calixto. Colecionadores, músicos, amantes da música, todos estão ali para garimpar, à procura de raridades, preços mais razoáveis e uma boa conversa sobre cultura pop. Por entre as barracas, podia-se ouvir o que parecia ser uma marcha militar vindo de um toca discos antigo, que estava embaixo de uma cadeira, na qual um idoso - com a mão cobrindo os olhos - deixava transparecer tédio. Uma senhora revirava vinis da sessão “nacional”. Tímida, ela apenas disse que havia comprado quatro vinis, em sua primeira visita à feira. Wagner Xavier, 46, é frequentador da feira há quinze anos e ouve vinil assiduamente. Ele explica que, por ser da época dos “bolachões”, nunca parou de escutar. “Mas não sou purista. Não escuto por achar que a qualidade é melhor, apenas por ter crescido ouvindo discos. Vocês já são da época do CD
e do mp3”, declara, quando perguntamos o motivo de sua escolha. Wagner vê nos vinis uma valorização da arte, pela capa e o encarte bem elaborados, além do “ritual” que envolve o ato de escutar o disco. Na parede oposta de onde estávamos, um livro com capa bem colorida chamava a atenção. O titulo era “Rock Raro”. Escrito por Wagner, ele consiste num apanhado de 352 discos raros com pequenas análises, e notas de acordo com a opinião do autor. A menor nota é “três estrelas”, enquanto os melhores discos levam um diamante. “Eu procurei muito por um livro que falasse sobre discos raros quando comecei a, de fato, conhecer mais. Como não achei, escrevi um”, diz Wagner, que trabalha com tecnologia da informação. Muito do que se conhece sobre música é dos anos 1990 para cá. O que deve ser a situação dos amantes das “bolachas”, pois, antes dessa década, o Brasil praticamente não tinha discos importados. “Se quisesse um disco importado tinha que ir ao Museu do Disco, pagar uma p* grana. Era inviável”, lembra Wagner, “o Brasil foi descoberto nos anos 1990, não em 1500”. Com a redemocratização e com a abertura da economia ao mercado exterior, o país abriu-se ao mundo, o que elevou a facilidade em adquirir muitos produtos que se conhecia, mas não se podia ter. Hoje, o crescimento do consumo de vinis - apesar do declínio com a introdução do CD e do mp3, ainda na década de 1990 e nos anos 2000 - tem superado as outras mídias. A B BA
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Há um charme na dificuldade que faz com que a pessoa valorize aquilo que é mais difícil obter
entre uma BolaCha e outra
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Transportamo-nos para outra localização, no próprio bairro de Pinheiros. Caixas lotadas de vinis dominavam todos os cantos daquele espaço, que não era tão amplo. Na entrada, algumas vitrolas expostas por vendedores ou apenas funcionando como ornamento. Alguns poucos CD’s ocupavam pequenas prateleiras espalhadas por ali. Ao fundo um jovem de braços tatuados, vestindo uma camiseta do Pearl Jam e um par de tênis surrados, manejava um toca-discos. Em pouco tempo, o ambiente foi tomado pelo som pesado do Black Sabbath. Ele pegou o encarte do álbum Master of Reality, da banda inglesa, e examinava-o meticulosamente, enquanto outros jovens corriam os dedos por suas pilhas de vinis de artistas nacionais e internacionais. Esta cena fez parte de uma feira de discos promovida pela loja Locomotiva Discos. O evento é organizado bimestralmente, em bairros diversos da capital. “São 50 expositores no total; entre vendedores, sebos e outras lojas”, afirmou Marcio Custodio, proprietário da loja e organizador da feira, que ocorre desde junho de 2011. Apesar de ser uma feira de, na maioria, discos antigos e usados, era, no mínimo, curiosa a faixa etária predominante: jovens, na faixa dos 18 aos 25, adolescentes e mesmo crianças. Feiras como esta vêm ocorrendo com maior frequência na cidade e, apesar de não serem novas, chamam a atenção para um fato: os discos de vinil estão voltando. Os dados dos últimos anos provam. Em 2012, 4.6 milhões de unidades foram vendidas nos EUA. As vendas subiram 17.7% desde 1993, segundo a agência Nielsen Soundscan, sendo que o maior salto foi de 2007 para 2008. Já no Reino Unido, 15.3% mais LP’s foram venA B BA
MARCELO COSTA, jornalista e colecionador
didos de 2011 para 2012, segundo a Entertainment Retailers Association (ERA). No Brasil, a procura por discos não é tão alta, porém, desde 2008, as vendas têm sustentado uma decadência significativa de CD’s nas lojas especializadas. Carlos Calanca, vendedor da loja Baratos Afins, localizada no centro de São Paulo, diz que seu grande acervo de vinis foi fundamental. “Vendo muito mais vinil do que CD. E a maioria dos clientes é jovem.” O que muitos devem se perguntar é por que um formato tão antigo, que requer tanto espaço, cuidado e equipamento pesado ainda conquista tantas pessoas em uma era na qual o compartilhamento de arquivos é algo tão comum. “Eu acho que a mídia, quanto mais tangível, mais é respeitável. Vendo a agulha extrair o som do vinil faz com que aquilo pareça mais genuíno. O mp3, por exemplo, não segue um padrão, as informações são desencontradas. E o som do vinil, com uma aparelhagem boa, é algo muito bonito”, diz Fabio Marques, 24, mineiro. Já Felipe Martins, 23, carioca, estudante de Cinema, declara sua paixão pelos vinis destacando três motivos principais. “A arte das capas; o som, que considero mais “denso”; e toda a jornada que você passa para encontrar um disco e conseguir comprá-lo. Até o cheiro me atrai”. A questão é que os vinis estão de volta, mas não apenas pela juventude estar comprando. Existem tipos diferentes de consumidores de vinil. Muitas pessoas que, hoje estão na meia idade, conservaram seu gosto pelos discos desde sua juventude. São aqueles que nunca pararam de comprar ou compravam e, agora, com a alta, voltaram a investir. Há os jovens que passaram a comprar vinis depois do boom, incitados pela mídia e pelas redes sociais. E, por último, existem os
que prezam pelo melhor áudio, sempre, sendo assim, é mais provável que o encontre no vinil. Porém, não é possível generalizar. “Os vinis, antes dos anos 1990, eram gravados analogicamente, mas depois passaram a ser digitais. Ficou só o formato”, explica Wagner. Marcelo Costa, jornalista, editor do site de cultura pop Scream&Yell e colecionador, discorda que o fato de a juventude colecionar LP’s tenha aumentado o valor dado à música, pois nunca foi perdido, seja qual for o formato. “O período da história da humanidade em que mais se ouve música é hoje, porque o transporte, o acesso, está mais fácil. Há um charme na dificuldade que faz com que a pessoa valorize aquilo que é mais difícil obter”. “90% do que eu ouço é nas mídias tradicionais. O vinil especificamente tem um ritual: em todas as sextas feiras à noite, eu os ouço, sozinho. Isso é algo que eu sigo sempre”, revela Ricardo Marques, aficionado por k-7 e vinil. Aos 15 anos, ele começou a garimpar à procura de amplificadores, mesas de som e outros elementos que compõem a aparelhagem necessária para rodar essas mídias mais antigas. Depois de conseguir sua tape-desk, um bom toca discos e caixas de som de qualidade, deu início à coleção de vinis. Sua reserva em mp3 está no computador, mas nunca mais baixou música nesse tipo de formato. “Tem sido um grande exercício de personalidade também, porque o bullying é forte”, brinca Ricardo. O rapaz diz que os amigos acham seu hobby interessante, mas não concordam com o uso contínuo que ele faz de mídias que consideram ultrapassadas. “O fato da busca pela música ser mais complicada e do armazenamento ser limitado são os pontos que eles mais questionam. Mas também há dias em que eu os recebo em casa e automaticamente, ao chegar, eles veem o pick up na sala e pedem pra colocar algum disco”.
Os amantes da cultura vintage se perdem entre os discos oferecidos pelos feirantes na Benedito Calixto
Só garimpando! São incontáveis as excelentes bandas que surgiram ao longo da historia do rock e que não alcançaram o êxito merecido devido à falta de espaço no mercado. Em Rock Raro, Wagner Xavier explora o universo das raridades, a partir de sua coleção, classificando-as a seu gosto. Veja alguns desses discos:
Chicken Bones - Hard Rock in Concert (1973)
Único álbum da banda alemã que surgiu no início da década de 1970, amplamente influenciada pelo hard rock britânico e o blues. Alguns a consideram umas das percursoras do heavy metal, porém não alcançou grande sucesso, tendo encerrado suas atividades em pouco tempo. O disco demonstra um som que, apesar de ter bebido nas fontes das principais bandas da época, foi bem original. Ganhou um diamante na classificação de Wagner em Rock Raro.
Jericho – Jericho (1972)
Originalmente chamada The Churchills, a banda surgiu na cena israelita dos anos 1960. Sua sonoridade vai do rock psicodélico ao hard rock. Wagner diz que, para os amantes dos discos raros, é um clássico. No fim da década de 1960, a banda mudou-se para a Inglaterra, onde chegou a tocar com Led Zeppelin e Jimi Hendrix, mas devido a problemas com empresários não conquistou grande sucesso.
C.A. Quintet – Trip Thru Hell
Em meio à efervescência psicodélica da década de 1960, surge o C.A. Quintet, banda de Mineapollis, EUA. Praticamente o único disco lançado na carreira da banda, que durou pouco, Trip Thru Hell é um dos álbuns raros de que Wagner fala no livro. Ele destaca a faixa Put A Spell On You, que também fez parte do primeiro LP da banda Cream. Sua sonoridade lembra um pouco The Doors e, como a grande maioria das bandas que surgiram nessa época, tem influências de Deep Purple e Led Zeppelin.
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Velha Roupa Colorida
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Caroline Ricca Lee formou-se em moda, na Faculdade Santa Marcelina, em São Paulo. O calor que fazia e a correria em seus trabalhos não deixaram que a jovem exibisse um grande sorriso quando nos encontrou para a entrevista, numa quarta-feira à tarde, enquanto dizia ter sido muito gratificante o convite. A oriental de cerca de 1,50m de altura chama atenção pelas vestimentas, assim como pela armação dos óculos e o corte de cabelo, bem curto. Ela se destaca em meio a alguns engravatados que tomavam seus cafés, no agradável e acolhedor ambiente da cafeteria em que estávamos. “Me considero uma pessoa bem contemporânea. Gosto do hoje”, diz Caroline, criticando as pessoas que dizem que viver em outras épocas seria melhor, apesar do gosto pelo estilo vintage de se vestir. Ela explica que, na década de 1980, sua mãe era muito ligada à moda, tendo acumulado um guarda-roupa rico. “Grande parte do que eu uso vem do ‘brechó-mãe’. Outras coisas foram da minha avó e também tem muito que eu comprei em brechó”. Caroline levantou animada e desembalou algumas peças que tinha trazido. Tirou primeiro um cachecol que pertencia a seu avô. “Carrega a história dele, assim como esse cardigan, que era da minha avó”, e o mostrou. Ainda, destacou a bota que vestia no momento, uma das mais usadas por sua mãe. Identidade, história e durabilidade são os principais aspectos das vestimentas vintage que particularmente levaram Caroline a usá-las. Ainda, completou que a maioria das pesA B BA
soas, atualmente, não valoriza tanto o que estão vestindo ou sentem preguiça de selecionar roupas que imprimam certa personalidade. “A cultura de usar roupas que já terminaram seu ciclo no mercado começa com os hippies. Depois, os grunges retomam de novo o ‘vintage’ pelo lado ‘não tô nem aí’ da coisa. Talvez seja por causa do estilo deles que a gente tenha associado, por um bom tempo, o consumo em brechó com desleixo” explica a mestre em ciência da informação e professora de cursos de graduação e pós-graduação em moda, Astrid Façanha. Contudo, ela também acredita que, com a popularização dos brechós, o sentido do termo “vintage” banalizou-se. “Se emprestarmos a terminologia da enogastronomia – que compreende os vinhos – a gente percebe que ‘vintage’ é uma safra especial, então ‘vintage’ na moda seria uma época marcante, uma escola de um estilista que foi realmente importante para história. Por exemplo: uma peça Chanel, da fase russa, é ‘vintage’, uma peça Yves Saint Laurent, da fase andrógena, também”. O conceito de “vintage” se alterou quase completamente, e está muito comum entre os ditos “fashionistas” (aficionados por moda). Marina Duarte, 24 anos, era publicitária em Goiânia, mas, infeliz com sua vida profissional, jogou tudo para o alto e veio para São Paulo tentar a sorte no mundo da moda. Foi só depois da mudança que ela começou a se interessar por comprar em brechós. Sua intenção ao fazer isso é encontrar roupas que representem o casamento entre o alternativo e o exclusivo. “Comprar coisas novas com exclusividade é um luxo que eu não posso bancar, portanto (comprar em
brechó) é a possibilidade de ter algo que é exclusivo e que nem por isso é caro, se você souber onde procurar”, justificou. O novo significado da palavra “vintage” está, hoje em dia, associado à originalidade de estilo e às opções diferentes de se vestir, encontradas nas roupas de outras épocas. “Há um tempo, existia um certo preconceito por ser usado, velho, cafona... Mas, quando se passa por cima desse preconceito, você encontra verdadeiros tesouros” conta a ex-publicitária, fã de Duran Duran, que acredita que o “bom gosto” é algo extremamente limitador. Astrid Façanha explica que, no Brasil, os brechós se tornaram uma alternativa para o jovem consumidor de classe média, antes fadado à falta de estilo das propostas de moda em lojas mais populares ou aos preços impraticáveis das lojas luxuosas.
O tempo à la carte
A cultura vintage reforça a individualidade do ser humano. Assim, alguns têm a necessidade de examinar uma capa de um disco em seus mínimos detalhes para sentir a música; outros veem no passado um modo de criar uma autenticidade maior no mundo contemporâneo; e ainda existem os mais “radicais”, que mergulham num oásis do tempo como os frequentadores da Benedito Calixto. A grande gama de possibilidades que o mundo pós-moderno nos oferece permite dizer que talvez façamos parte da melhor época da historia, pois podemos escolher elementos de qualquer uma delas, aqueles que mais nos interessem, e incorporá-los a nossa contemporaneidade. o
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A cultura de usar roupas que já terminaram seu ciclo no mercado começa com os hippies
ASTRID FAÇANHA, jornalista de moda e professora universitária
Foto do Editorial “EfêmeRealidade” de Carolina Ricca Lee, Ronaldo Polo e Thaís Curvolo, feito inteiramente com roupas de brechó e fotografado analogicamente.
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HORA
Mais do que mostrar as horas, o relógio de pulso se tornou um acessório usado para atribuir status POR JESSICA TABUTI
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entre as ruas de São Paulo, com o movimento de pedestres esbarrando-se nas calçadas apertadas e batendo seus braços uns contra os outros, existe uma coisa em comum: a pressa. Pressa para chegar ao trabalho, pressa para voltar para casa, pressa para não fazer nada. Muito importante para ser perdido, o tempo vive escapando por causa da correria e do mau planejamento do dia a dia. Numa tentativa (muitas vezes frustrada) de driblar o atraso, alguns olham as horas em seus celulares, outros nos relógios de rua e uma pequena maioria, em seus relógios de pulso. Menor ainda é a parte que olha em seu relógio de pulso analógico e realmente entende o que significa aquele sistema de ponteiros e números que se entrelaçam a cada hora. Entre algumas risadas constrangidas, Ana Beatriz de Barros Mendes, 20 anos, confessa que já tentou aprender a ver as horas, mas nunca conseguiu. “Acho um pouco complexo”, afirma a estudante que, mesmo assim, usa relógio normalmente. Segundo
Lula Rodrigues, consultor de moda masculina, “desde os anos 70, relógio, óculos e carro têm valor de joia” e são acessórios masculinos cobiçados pelas mulheres. Enquanto o relógio é uma peça valorizada a partir do século XVII no mundo masculino, no campo feminino, ele ganhou força após o aumento do espaço da mulher na sociedade, a conquista dos seus direitos e, principalmente, após sua inserção no mercado de trabalho. Competindo no mesmo ambiente que os homens e, muitas vezes, em cargos superiores, a mulher passa a usar relógio por dois motivos, Lula explica: para ver as horas de forma prática e para ostentar o seu poder sobre o sexo oposto. Apesar de não se importar muito com a questão, Jade T. Gimenez sabe que o relógio é fundamental para representar status social. “Tenho certeza que aumenta [status]. Não gosto de reparar nisso e geralmente não costumo, mas acho que muita gente repara sim e faz alguma diferença”, afirma Jade. Apesar de não usarem relógio para aumentar o status, tanto Jade como Ana Beatriz gostam de estar dentro da moda. As
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Desde os anos 70, relógio, óculos e carro têm valor de joia
estudantes leem blogs, revistas e acompanham as últimas tendências, sempre se mantendo antenadas no assunto. Para elas, o relógio é um acessório bonito e necessário para acrescentar ao visual. “Acho que, muitas vezes ele compõe uma roupa, dá um toque a mais”, afirma Ana Beatriz. Quando pergunto por que não usam pulseira, que também acrescenta um charme no visual, as duas respondem que usam o conjunto relógio-pulseira juntos, mas Jade fica em dúvida. “Uso pulseiras também. Agora, não faço ideia por que não deixo de usar o relógio”, reflete a estudante. Lula Rodrigues explica que a pulseira incrementa o relógio, mas nunca terá o mesmo valor do acessório principal. No caso dos homens, “eles perderam a vergonha de se enfeitar, o que antes era considerado bichisse, virou tribal”. Apesar de o relógio digital ter surgido nos anos 80, sua popularidade não chega nem perto do seu complexo concorrente. A moda também é o motivo pelo qual as meninas não optam por usar um relógio digital. Segundo elas, os relógios “mais fáceis de ver” nunca são mais bonitos que os analógicos. Para Jade, outro fator influencia na sua escolha, além da estética. “Nunca me interessei por um relógio digital. E acho que, mesmo que achasse um modelo bonito, não usaria. Sei lá, ia me sentir usando um relógio do Ben 10 que ganhei no Sucrilhos”, brinca a estudante. E o que elas fazem quando alguém na rua pergunta as horas? “Geralmente eu estou com o celular, então olho as horas nele e respondo, mas quando isso não acontece eu digo que está sem bateria e peço desculpas”, conta Ana Beatriz. Em uma conversa sobre a história do relógio, Lula Rodrigues aborda que “através do século XX, o relógio de pulso foi se democratizando e sendo cada vez mais necessário”, mas parece que bastou passar um século para transformar o modo como as pessoas veem as horas e, muito mais do que isso, cem anos foram suficientes para mudar a percepção de tempo na sociedade e eliminar a principal função do relógio de pulso: informar com praticidade que horas são. o
LULA RODRIGUES, especialista em moda masculina
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A epifania de Roger Waters destrinchada na épica canção do pink Floyd POR LUCAS BREDA
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“Percebi que a vida não começaria mais tarde, mas que já havia começado, e acontece o tempo todo”
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oger Waters descreve como uma epifania o momento em que teve a ideia do que viria a ser a letra de Time, canção épica do disco “The Dark Side Of The Moon”, lançado pelo Pink Floyd em 1973. Em pouco mais de sete minutos, o baixista – com ajuda providencial nos arranjos, acordes e batidas de David Gilmour, Nick Mason e Richard Wright – destrincha medos e percepções acerca do tema da segunda edição desta revista, que, como é próprio do tempo, já começou e continua acontecendo. A canção é aberta com um despertar de relógios, gravados em processo manual, no qual o produtor do disco, Alan Parsons, teve de achar o momento exato em cada fita em que os relógios tocavam. Atitude trabalhosa e inovadora, que precede a chegada de um “tic-tac” realizado por Waters abafando as cordas do baixo. Aos poucos, surge a guitarra entoando, em progressão, as notas que permeiam a base da música, junto a batucadas descontínuas e à divagação eletrônica – também inovadora. Tudo para, em pouco mais de dois minutos, dar a tensão que casa com o desespero sereno da letra, e, principalmente, para anunciar a entrada dos vocais sutilmente rasgados de Gilmour. Nada é em excesso. A espera ansiosa dos primeiros minutos subverte-se em uma leve euforia, calcada nos versos: “ticking away the moments that make up a dull day/ ‘Tiquetaquendo’ os momentos que marcam um dia morto/ Fritter and waste the ours in a half-hand way/ Você gasta à toa, e joga no
lixo as horas, descontroladamente”. Em um dia entediante, o tempo parece sobrar, passando lentamente. Entretanto, é o mesmo tempo que fará falta nos momentos de gozo. Waters revela seu pessimismo, num misto de decepção e medo, comparando a vida a uma corrida – “ninguém lhe disse quando correr, você perdeu o tiro de partida”. Se Waters é direto em explicitar sua angústia, Gilmour, logo após o refrão, parece berrar à guitarra, numa execução marcante, melancólica, decorada de reverberação, desembocando nos vocais femininos, que aparecem como uma marca de todo o álbum. O solo – pouco técnico, muito melódico - foi criado em uma apresentação ao vivo, e depois reproduzido em estúdio. Para Gilmour, os primeiros takes são os melhores. O resto é repetição e reajuste. Desacelerando conforme a música, o solo de guitarra traz a melodia de volta ao verso. Como num ciclo, imagem que surge logo em seguida na letra, falando dos movimentos da Terra com o sol, e tendo o homem em relação a isso tudo: “you run and you run to catch up with the sun but it’s sinking/ Você corre e corre para alcançar o sol, mas ele está se pondo/ Racing around to come up behind you again/ Fazendo a volta para nascer atrás de você outra vez”. No verso, passado, presente e futuro se confundem, de maneira que se tornam inatingíveis, afinal, basta se alcançar um determinado momento para ele, instantaneamente, já ter passado. “De repente, naquele ano, percebi que a vida estava acontecendo. Talvez porque minha mãe fosse obcecada por educação, pela ideia de infância e adolescência, e tudo que se resume em se preparar para a vida adulta... Em qualquer ponto, você pode agarrar as rédeas do destino, e isso veio como uma re-
velação, foi um choque”. Roger Waters tinha 29 anos quando aconteceram as sessões de gravação de “The Dark Side Of The Moon”, e àquela altura colocava para fora este anseio que faz parte da vida de todas as pessoas no mundo, tenham elas consciência ou não. Desacreditado, Waters chega ao ápice do pessimismo – como em todo disco, ressaltando o lado mais negro do homem - com o verso que encerra a segunda parte da letra: “the sun is the same in a relative way, but you’re older/ O sol é o mesmo, relativamente, mas você está mais velho/ Shorter of breath and one day closer to death/ Com menos fôlego e um dia mais próximo da morte”. As revelações do baixista parecem ser atiradas, levando ao segundo refrão, conduzido pela redução na velocidade da música e na suavidade da voz do tecladista Richard Wright, causando um “desespero quieto”, citado no fim da canção. Na letra, esse desespero é próprio do “jeito inglês”, contudo, ao citar o cidadão inglês, Waters alcança o ponto principal da canção, como se descrevesse tudo aquilo que Time representa, tanto em palavra, quanto em som: um desespero quieto e sutil. O tempo que “tique-taqueia” no tédio ou na pressa é o mesmo tempo que acelera nos momentos de prazer e satisfação, por mais que os relógios continuem a rodar, sempre, na mesma velocidade. E o tempo que falta no fim da vida é o mesmo tempo que sobra na espera por ela, afinal, não é possível ouvir o tiro que anuncia a partida, mas apenas a consciência de que o tempo já está correndo, na raia ao lado, e não avisa quando alcançará a linha de chegada. E antes que eu pense que ainda tenho algo a dizer, o tempo se foi, a canção terminou, e o relógio, como a Terra e a lua, continua a girar. o A B BA
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hor A carreira de FabĂola Molina, nadadora olĂmpica que, durante 20 anos, figurou entre os principais nomes do esporte brasileiro. POR LUCAS BREDA
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egundos, milésimos, centésimos. Frações quase irredutíveis da sexagésima parte do minuto. Tempo que, para quem vive por ele, pode representar uma eternidade de preparação e suor. Momentos não tão velozes quanto um piscar de olhos, mas quase imperceptíveis à visão. O tempo que dá a vitória é o mesmo da derrota. Os centésimos separam o choro – ou a alegria – de anos. O tempo que leva para treinar, e o tempo que leva para perder. Buscar uma marca: ser o mais rápido, percorrer mais espaço em menos tempo. Trinta centésimos colocaram no peito de Fabíola Molina a medalha de prata nos jogos Pan-Americanos de 2007, no Rio de Janeiro, enquanto quatro centésimos tiraram dela o pódio em Guadalajara – 2011.
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A tímida presença de algumas rugas no rosto não deixa esconder seus 38 anos de idade. O aquecimento na piscina semiolímpica, anos atrás, poderia representar a preparação para uma grande competição. Mas, neste caso, Fabíola se aquecia para um ensaio fotográfico para a divulgação da sua loja de roupas para natação. O frio que permeara a quarta-feira anterior deu trégua, e, no dia seguinte, o sol resolveu aparecer. Graças a ele, a temperatura da água subiu e a nadadora pôde “cair” na piscina. A busca pela velocidade, a pressa e o suor são substituídos por uma conversa tranquila, entre “mama” – como chama sua mãe -, fotógrafo e nadadora. Na pauta, uma decisão difícil: de qual lado ser fotografada para estampar o banner de sua loja? Apesar de ter ficado conhecida pela marcante habilidade no nado de costas, Fabíola escolheu nadar de frente mesmo, com detalhe para a touca onde se localizava a bandeira do Brasil, à qual ela foi fiel durante seus mais de 20 anos de carreira. Foram seis medalhas em Pan-Americanos, além das três participações em Jogos Olímpicos, 11 em Mundiais, 39 em Copas do Mundo – pelas quais faturou 49 medalhas –, sete recordes sul-americanos (e um mundial-militar) e as 110 vezes em que foi campeã brasileira absoluta (Troféu Brasil e Troféu José Finkel). Segundo suas contas, somadas outras medalhas de menores proporções, são mais de mil no total. Um currículo que começou a ser construído aos quatro anos de idade, quando foi à piscina pela primeira vez, e se mostrou promissor quando, aos 16 anos, ela já fazia A B BA
parte da Seleção Brasileira que foi ao Pan de Havana, em Cuba, 1991. “Quando eu era adolescente, eu não conseguia imaginar que ia ser uma atleta olímpica. A gente só quer melhorar mais e mais e... as coisas vão acontecendo naturalmente”, confessa Fabíola. O sonho de crescer na natação se consolidou em 1992, nos Jogos Olímpicos de Barcelona – dos qual ela não participou –, quando pôde ver a geração de Gustavo Borges ter um desempenho histórico. “Eu queria fazer parte daquilo”, conta. Para completar, na sua especialidade, não havia muita competitividade no Brasil. Aos 18 anos veio a opção derradeira: ao conseguir uma bolsa nos Estados Unidos (onde se formou em Artes Cênicas pela Universidade do Tenessee), Fabíola pôde unir a vontade de estudar com a possibilidade de melhorar nas piscinas. “Quando você faz uma opção dessas, é uma decisão: quero ser atleta. Vou deixar tudo aqui no Brasil para me dedicar como atleta e também conseguir o diploma”.
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A Associação Esportiva São José, em São José dos Campos, no estado de São Paulo, é seu local de treinamento. Duas piscinas constituem o local destinado à natação, decoradas com bandeirinhas e raias em vermelho e branco, e margeadas por uma arquibancada pequena, mas bem acabada e coberta – aconchego para os que se protegiam do sol quase paradoxal com a temperatura da noite anterior. Em volta, crianças jogavam futebol na quadra ali perto, enquanto Fabíola chegava para cumprimentar
todos por onde passava. Referia-se a eles por apelidos, mostrando uma familiaridade que só é possível para quem tem a mesma identificação da atleta com o clube e, principalmente, com a cidade. Para os são-joseenses, ela é motivo de orgulho. Marcelo, jovem treinador das categorias de base do clube exalta, com um sorriso no rosto, sua dedicação nos treinamentos. O taxista que me levou até o local, ao saber o motivo do meu deslocamento, se apressa em dizer: “minha filha conhece a sobrinha dela”. Admiração, entretanto, que não é em vão: em vias de encerrar a carreira, Fabíola tem como única motivação para passar as manhãs na piscina da AESJ, a possibilidade de representar a cidade nas competições do interior paulista. Foi das bordas daquelas piscinas que ela ouviu os gritos de incentivo e os conselhos fundamentais para seguir nadando. Fabíola se coloca em posição de gratidão aos técnicos que teve. Conta: “Teve uma competição – era 400m medley - que meu treinador falou: ‘Fabíola, teu melhor tempo é 5’14’’, você vai fazer 5’04’’’. Eu falei: ‘abaixar 10 segundos? Imagina, você está louco? Eu não consigo’”. Ajustadas as parciais de borboleta, costas, peito e livre, veio o resultado: recorde brasileiro. “Tem pessoas que nos ajudam a almejar algo mais. Eu nunca imaginei que eu conseguiria abaixar 10 segundos”. Inquieta, Kelse Molina – a “mama” – se aproxima, acena, mas segue preocupada ao telefone. Anderson (o fotógrafo) ainda não chegou, e era preciso fazer as fotos hoje. Além dos treinadores, ela é uma das responsáveis pelo sucesso da nadadora. Presente
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nas maiores conquistas de Fabíola, dona Kelse foi quem colocou a menina na água, e suportou a mudança continental para que a filha seguisse nadando em alto nível. A dedicação à filha parece não ter largado a mãe, que mostra um cuidado essencialmente materno em busca do fotógrafo atrasado e, mais tarde, dando conselhos certeiros acerca da melhor foto para a recente empreitada da filha: a loja de roupas. Na natação, instabilidade emocional, preparação, estratégia, problemas com equipamento, concentração, são convertidos em duras perdas de um intervalo de tempo, que, na vida de qualquer ser humano, é sinônimo de nada. No Pan de Guadalajara, em 2011, Fabíola fez 1m02s04, e ficou em quarto lugar. Logo à frente, a medalhista de bronze, Maria Fernanda Gonzales, atingiu 1m02s00. Quatro centésimos que custaram a medalha para a brasileira. Para aquela competição, Fabíola havia trocado de treinador de última hora – o ex-namorado de sua melhor amiga, também nadadora -, foi treinar nos Estados Unidos às pressas, acusou problemas com o placar eletrônico – “estava escorregadio” -, e foi para a prova “no desespero”. O peso de não ter feito o tempo que poderia na eliminatória, somado a tudo que envolvia o momento, abalou o psicológico da nadadora, levando à insegurança. Resultado: “eu tinha tudo para nadar pelo ouro. Eu piorei bastante meu
tempo. A menina que ganhou fez 1m00s, no ano anterior, eu já tinha feito 1m00s. Foi bem decepcionante, mas tem coisas que acontecem assim, né?”. Na ocasião, Fabíola foi a última a deixar a piscina. “Eu fui pro tudo ou nada. Se eu cansar no final eu cansei, eu fui pro desespero mesmo. Tava tudo longe do ideal”. Curioso, perguntei: “Você já parou para pensar no que são quatro centésimos?”, e ela, desconversando, respondeu: “É muito pouco, mas isso é normal na natação. Eu já ganhei por 1 centésimo, já cheguei a empatar com outras três meninas em 2010. Isso acontece na natação, faz parte”. Com uma uma carreira vitoriosa e consolidada, Fabíola se sente desconfortável ao falar das derrotas, principalmente de uma que, se mal interpretada, pode manchar a carreira de qualquer atleta: o doping. Na ocasião, em abril de 2011, ela havia conseguido o suposto – ainda não oficial – índice para os Jogos Olímpicos de 2012 (provavelmente a última de sua carreira), contudo, foi pega no antidoping e punida por seis meses – no total – de inatividade. Junto à punição, veio a perda do tempo olímpico. Fabíola utilizou metilhexanamina, da classe de estimulantes, substância que obrigou a nadadora, na época, a se defender dizendo ter ingerido em um sachê de suplemento alimentar, sem intenção de ganhar rendimento. O Painel de Controle da CBDA
considerou que ela não teve a intenção de melhorar a performance. Mesmo com tudo esclarecido, Fabíola ainda se sente incomodada com o assunto: “Eu nunca faria algo dessa maneira (para melhorar o desempenho). O problema da minha substância é que era um estimulante, como uma cafeína. Existem diferentes tipo de doping, se você toma uma neosaldina, já é pega no doping. Não é porque você toma uma neolsaldina que você quer trapacear os outros”. E, sem ter sido julgada, ela usa o histórico como escudo: “Eu tenho toda uma carreira para comprovar. Não queria nem ficar falando disso”. Se a carreira de Fabíola fosse como as piscinas genuinamente azuladas, límpidas e claras – como as da AESJ –, o exame antidoping positivo seria uma mancha de tinta, que, por menor que fosse, seguiria presente, destoando da imensa transparência de litros e litros de água. E apesar de uma triste lembrança, de concreto, o doping só atrapalha a consciência da são-joseense, afinal, na primeira competição após a volta da suspensão, ela conseguiu recuperar o índice para os Jogos Olímpicos, batendo, inclusive, o recorde brasileiro da época. Se houve motivação extra para a conquista, ela desmente, ainda com a expressão fechada: “Não. Eu sentia que eu merecia estar lá pela dedicação que eu tenho e pela atleta que eu sou. Eu não preciso provar nada para nin-
guém. A minha grande prova foi em 2000, há 13 anos”. Há 13 anos, Fabíola participou da primeira Olimpíada, em Sidney, Austrália. “É aquele teu sonho, você tem aquela responsabilidade. Eu fui para os Estados Unidos para conseguir o índice”. Em 1996, ela havia batido na trave. Para 2000, foram necessárias cinco tentativas - em quatro delas, passou raspando - e na última, enfim, a marca. “O índice era 1m02m90, eu fazia 1m3s10, 1s3m15 1s3m07, mas não chegava no 1m02s90. Cheguei muitas vezes perto, antes de conseguir”. Foi necessário persistência para alçar o nível da atleta - a partir dali, era nadadora olímpica. “Foi o mais difícil”, confessa. Pelas circustâncias, não conseguir o tempo para estar em Sidney, poderia ter o efeito inverso na vida de Fabíola. A decepção de chegar muito, muito perto, e não alcançar, pode ser forte a ponto de desanimar toda uma carreira. Mais que uma prova, a realização foi um dos componentes para fazer de Fabíola a nadadora experiente que se tornou. Foi a Londres com 37 anos. Em 2012, não passou da semifinal. Se pouco tempo é muito na natação - a participação de Fabíola em sua última Olimpíada durou pouco mais de 1 min. Ficou na 24a posição, eliminada. 1s15 separou a nadadora das finais. Tempo que ela, inclusive, havia conseguido em abril do mesmo ano, no
Troféu Maria Lenk, quando venceu a prova com 1m00s74. Fabíola tinha se preparado para mais. Não deu, “a natação tem dessas coisas”. A atletla sentiu na pele como representar todo o Brasil, ao mesmo tempo, orgulhou a todos com medalhas e conquistas. Não curiosamente, sua marca mais valiosa veio no Brasil. Data especial: Pan-Americano no Rio de Janeiro, em 2007. Além do bronze que compartilhou no revezamento dos 400m medley, Fabíola alcançou a segunda posição mais alta do pódio na sua prova mais forte: os 100m costas. Foram 1m02s18. Recorde brasileiro e medalha de prata no peito. Ali, do lado da torcida. Já era, com 32 anos, a atleta mais experiente da equipe feminina de natação. Fabíola teve o privilégio de receber, logo ao lado direito da norte-americana (vencedora), a medalha de prata. Visivelmente emocionada, ela foi ovacionada pelos brasileiros presentes no Parque Aquático Maria Lenk, quando teve seu nome anunciado - em português - pelo mestre de cerimônias. No ano passado, Fabíola foi a brasileira mais bem sucedida no mundial de Istambul – ficou em sétimo. Sobre o que vem pela frente, entretanto, pode-se estabelecer uma certeza: o fim está próximo. Exemplo de carreira duradoura, ela agora nada pela cidade que tanto ama, e pensa em, enfim, ter filhos. Um dos maiores sonhos de Fabíola, a maternidade quase foi motivo para interromper a dedicação às piscinas, mais de uma vez. Livre da preocupação com a alta performance, o caminho está aberto, e a tão temida aposentadoria parece o destino natural e tranquilo da nadadora. - Qual é seu objetivo atual como atleta? - Encerrar minha carreira.
E com a fala acompanhada de uma risada sincera, Fabíola revela que tem o próximo passo da vida calculado. Serenidade em uma resposta que só é possível pela sensação de dever cumprido. O desejo de servir como exemplo para uma outra geração de atletas já é realidade. E com a nova coleção de verão já lançada - “Fabíola Molina - nada mais bonito” -, daqui para frente, nada é muito difícil de prever. “Isso a gente conserta no photoshop”, alerta Anderson apontando para o iPad nas mãos da “mama”. É para lá que as fotos vão, instantaneamente, direto da sua câmera. De retratos frontais, já basta. Fabíola concorda, e sugere a sombra das arquibancadas, apontando o local. Alcançado o destino, propõe um novo desafio: “vamos tentar agora de costas?”. A entrevista com Fabíola Molina foi feita durante sua preparação para os Jogos Abertos do Interior, nos quais representaria a cidade de São José dos Campos. Após a competição, no dia 25 de outubro, como já era planejado, a nadadora anunciou a sua aposentadoria. o A B BA
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Líquido e fatal, como o chumbo nos ouvidos Ele chega na festa, mas só é notado quando vai embora Falta dele, tem quem já passou de certa idade É menino levado, gosta de correr e escorrer Meio saci, brinca com aparências, desfaz laços Mas é o único amigo que nunca esquece do teu aniversário Um incompreendido, que só é valorizado quando é tarde demais
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COSM
POR JULIA RAMOS CLARO
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K O O A B B E O B FAC TAA S I V RE / M O C . K