Porto tradicional crónica v1

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CRÓNICAS

PORTO

TRADICIONAL Fevereiro 2014


CRÓNICAS

PORTO TRADICIONAL

Crónicas elaboradas pelos participantes no Workshop “ESCRITA DE VIAGENS” realizado no Porto nos dias 1,2 e 8 de Fevereiro de 2014 e orientado pelo Filipe Morato Gomes.


Daqui avista-se uma paisagem constituída por um vasto e velho casario que se estende até ao rio Douro e donde sobressaem os edifícios da Sé, Paço Episcopal, Serra do Pilar e as caves do Vinho do Porto.

À descoberta do conhecido •

Por Carlos Pinto (Texto e Fotos)

Naquele domingo de inverno em que o Sol tentava, mas não conseguia, atravessar as nuvens espessas e carregadas que, profeticamente, anunciavam a possibilidade de se transformarem em impertinente chuva, decidi ir ao encontro da cultura, da história e da natureza, num local onde estes atributos se conjugassem quase na perfeição - o Centro Histórico do Porto. 
 “Mas que raio esperas tu encontrar que já não conheças? Não vais ao Porto todos os dias?”- deparei a questionar-me! Sim, talvez fosse verdade. Mas a motivação era 2


outra. Despir todos os preconceitos, lugares comuns e estereótipos adquiridos pela rotina diária que não nos deixam contemplar de forma desinteressada o que nos rodeia.

azulejos, de temática histórica, exibem-se vaidosos perante as objetivas de uma ou outra máquina fotográfica e dos olhares atentos de alguns transeuntes.

Deixei a estação em direção ao jardim da Cordoaria onde se situa o edifício conhecido como “Cadeia da Relação”. Edifício robusto e austero adequado às funções para que fora erigido, está hoje adaptado a museu e salas para exposições, albergando o atual Centro Português de Fotografia. Como amante da fotografia não pude deixar de percorrer atentamente as exposições lá patentes.

Ainda envolto nestes pensamentos embarquei no primeiro comboio da tarde com destino à Estação de S. Bento. Não era aquela estação que eu conhecia aos dias de semana. Estava calma, sem o reboliço e o rodopiar habituais dos passageiros que embarcam e desembarcam num verdadeiro frenesim ininterrupto. Nas paredes do átrio, os painéis de

Deixei a estação em direção ao jardim da Cordoaria onde se situa o edifício conhecido como “Cadeia da Relação”.

A descida é feita através de um trajeto sinuoso em pedra moída pelo tempo e pelo uso, ladeado pelas velhas casas empoleiradas na encosta transmitindo-lhes uma singularidade digna de registo.

Após a visita ao edifício, dirigi-me à Rua de S. Bento da Vitória aproveitando para dar uma olhadela à Fonte da Porta 3


do Olival, adossada ao edifício da Cadeia da Relação. Descendo a rua, ladeada por um casario antigo com as suas varandas resguardadas com grades de ferro forjado e estendal de roupa a adejar, por entre tascos típicos repletos de clientes tomando as suas bebidas e pondo em dia a conversa de momento, alcancei um “miradouro” que se adivinha pois não passa do pátio de entrada de uma casa decrépita implantada num local privilegiado. Daqui avista-se uma paisagem constituída por um vasto e velho casario que se estende até ao rio Douro e donde sobressaem os edifícios da Sé, Paço Episcopal, Serra do Pilar e as caves do Vinho do Porto. Lá em baixo o Rio Douro corre lesto e encontra-se engalanado com os seus amigos de longa data, os barcos rabelos, relembrando os tempos em que transportavam o néctar divino nascido por entre as terras altas do Douro e que pelo leito traiçoeiro o faziam chegar até Gaia. Com a imagem deste cenário, impressa na minha

Descendo a rua, ladeada por um casario antigo com as suas varandas resguardadas com grades de ferro forjado e estendal de roupa a adejar...

retina, iniciei a descida das escadas da Vitória em direção à Ribeira. A descida é feita através de um trajeto sinuoso em pedra moída pelo tempo e pelo uso, ladeado pelas velhas casas empoleiradas na encosta transmitindo-lhes uma singularidade digna de registo. Uma ou outra pinga de chuva começou timidamente a cair. Acelerei o passo e em breve estava a desaguar no largo de S. Domingos, altura em que a chuva decidiu dar tréguas.

...aproveitando para dar uma olhadela à Fonte da Porta do Olival, adossada ao edifício da Cadeia da Relação.

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Quase de imediato fui abordado por uma menina de sua graça Susana que, simpaticamente, me convidou a visitar o edifício pelo qual eu já havia passado milhentas vezes mas onde nunca ousara entrar. Fiquei a saber que se tratava do edifício denominado Palácio das Artes, o que resta do antigo Mosteiro de S. Domingos.

mercado, confeccionando os produtos em casa e fazendo as vendas através da internet. Fui convidado a provar uma das suas iguarias, à qual não pude dizer que não, sob pena de me tornar politicamente incorreto. Ainda com o sabor do chocolate a rodopiar nas minhas papilas gustativas, e porque já se fazia tarde, despedime e sem demora iniciei o regresso até à estação de S. Bento onde teria de embarcar para regressar a casa.

Nele decorria uma Feira Franca aonde estavam expostos vários artigos de artesanato. Detive-me numa banca onde se encontravam quatro simpáticos jovens licenciados e cujo objeto de produção era bolos e bombons com sabores originais. Aproveitando a sua formação base (uma das jovens era licenciada em Design), aventuraram-se a investir neste

Pelo caminho fui fazendo o balanço desta tarde bem passada em que a busca do lugar incerto e por descobrir estava envolta numa sensação ambígua do déjà vu e que se transformou numa realidade retemperadora e relaxante. 

A descida é feita através de um trajeto sinuoso em pedra moída pelo tempo e pelo uso, ladeado pelas velhas casas empoleiradas na encosta transmitindo-lhes uma singularidade digna de registo.

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Olhar o Porto •

Por Maria João (Texto) Fotos (Carlos Pinto)

Porto, cidade de todos os dias, das rotinas, dos dias de semana, até dos fins-desemana. Os mesmos locais, os mesmos restaurantes, os hábitos, que passam a sensação de conforto do já visto e vivido. O desafio do workshop de Escrita de Viagens que o Filipe lançou, permitiu-me ver o Porto de outra maneira. A história das pessoas faz a história dos lugares. Comecei o passeio pela cidade em grupo e terminei em solitário, perdida pelas ruas do Porto antigo. Na rua das Carmelitas soprava um vento frio e cinzento, Domingo pela tarde, quando começámos a descer em direção à Ribeira. O grupo dispersou-se e acabei sozinha, com o rio Douro, a ponte D Luís e o mosteiro da Serra do Pilar no meu horizonte. Anoitecia, as luzes começavam a cintilar no casario. Ao acaso, meti-me por uma rua interior, estreita, ladeada de casas antigas. Vi uma senhora de idade, cabelo grisalho, ar simpático e sereno à janela, a retirar a roupa seca do estendal. Cumprimentei e trocámos meia dúzia de palavras sobre o tempo, a roupa que nunca mais seca no inverno. Despedimo-nos desejando boa noite uma à outra. O grupo dispersou-se e acabei sozinha, com o rio Douro, a ponte D Luís e o mosteiro da Serra do Pilar no meu horizonte.

Lá continuei e no fim da rua deparei-me com uma Tasca sem nome. O dono já entrado na idade, um casal jovem em pé, uma senhora de bata, aspeto humilde, 6


sentada à mesa. Todos conversavam e riam numa amena cavaqueira, de quem se conhece de uma vida inteira. Tive vontade de entrar, pedir qualquer coisa para beber e juntarme ao grupo. Acanhei-me e não o fiz. Fiquei com a imagem de um ambiente acolhedor e simples, que o calor humano traz.

abertos há sete meses, não fechavam ao Domingo e que ficava à espera que eu aparecesse com companhia. Voltei à rua, olhei á minha volta, vi a minha cidade iluminada como um presépio, o rio brilhante, algumas pessoas, alguns turistas passeavam ainda envoltos nos seus agasalhos. Fui ter com o grupo finalizando o dia com o pensamento na senhora da janela, na Tasca sem nome, na Francisca do restaurante Bacalhau, pessoas que me fizeram ver o Porto com outro olhar. 

Mais à frente, subi os degraus de granito e caminhei ao longo do Muro dos Bacalhoeiros, espécie de varanda sobre o rio. Vi uma tabuleta que indicava um restaurante de nome Bacalhau. Espreitei pela janela e deparei-me com uma atmosfera moderna, luminosa, de linhas simples. Entrei e estive a falar com a Francisca, que me explicou que estavam

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1º Postal – Da Antiga Cadeia da Relação à Ribeira- Uma valorização cultural

Postal do Porto •

A chuva de Fevereiro, a cair intermitente, convida a percursos de interior.

Por Maria José (Texto e Fotos)

Na antiga Cadeia da Relação, um “edifício indefinidamente pombalino” e “preciosamente triangular”, com traça de Eugénio dos Santos, onde sobre efemérides românticas da detenção de Camilo Castelo Branco, foi instalada a sede do Centro Português de Fotografia onde o núcleo museológico contem a enorme exposição permanente de material fotográfico de António Pedro Vicente. Actualmente exibe as impressionantes imagens a preto e branco de Gervásio Sanchez, o premiado fotógrafo e repórter de imagem dos genocídios, em vários continentes, ao longo de três décadas, que nos congelam por dentro com os horrores da barbárie humana : Serra Leoa, Ruanda, Bósnia, América Latina, Guerra do Golfo. Aguentar fazer tal registo é de uma coragem e resistência .psíquica quase sobre-humana. A barbárie e a desumanidade sem possibilidade de negação. Ao sair apetece seguir a lei do menor esforço para descarregar a tensão acumulada, vaguear sem pensar, deixar que a força da gravidade nos conduza até ao rio , sempre a descer.

Falando à Porto, e pensando bem, pensando em ti, Lisboa, acho que nos conhecemos pouco. Universalmente tão próximas e ambas tão dinâmicas, sob as atenções de outros países cada vez mais focadas em nós, sem nos confundirem, será que reparamos o suficiente uma na outra? Deste conta que eu também tenho a minha “Time Out” ? Que só 36 cidades no mundo inteiro são projectadas nessa janela de visibilidade e em Portugal, neste pequeno “far-west” da Europa, até somos duas? Será que usufruímos entre nós duas dessa mútua descoberta que outros fizeram por nós?

Apetece-me recuperar a tradição dos postais ilustrados, enviados por correio com os selos para colecionar! São agora raridades perdidas à superfície da terra, enquanto as mensagens e as fotos circulam em velocidade instantânea pelo ciber-espaço. Pois vou-te mandar apontamentos do que por aqui se passa em pequenos flashes e espero retorno...

No percurso sacudir os pensamentos do miradouro da Vitória: contemplar a serenidade da água do Douro ajuda a dissolver o peso dos pensamentos.

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Descendo sempre, passamos as antigas escadas da Esnoga (Sinagoga) e no Largo de S. Domingos aparece-nos o Palácio das Artes e a surpreendente loja criativa do designer de interiores Paulo Lobo e a Feira Franca dentro do próprio palácio cheia de criatividade e diversidade. Ficaram-me as imagens dos seus biscoitinhos verdes com alga Chlorella , seguramente um alimento do futuro.

As mãos ficaram quase paralisadas. Valeu o recurso a um fogareiro a gás num pequeno café debaixo das arcadas , a olhar o rio já de noite, as luzes da outra margem reflectidas na água escura, brilhando mais à medida que o lusco-fusco se foi adensando, a beber um chá verde tão quente como a atmosfera de hospitalidade. As luzes dos bares foram-se acendendo a anunciar o acolhimento para a noite fria . Esplanadas com as suas chamas de calor, novos hotéis ribeirinhos, a respeitar inteiramente as características desta zona, agora Património Mundial da Unesco, dão vida a uma área privilegiada pela sua paisagem cheia de recantos a explorar. De dia ou de noite...

A descida acaba junto à água. O Douro. Mergulhamos o olhar na Ribeira cheia de cor, de recantos, de pequenos bares e esplanadas, de barcos atracados, a ponte centenária de ferro de Eiffel, um metro a passar por cima. Os olhos prendem-se nos reflexos na água. ...distrai-nos o olhar. O frio de Fevereiro, o mês que “mata a mãe”, agora ao pôr do sol gela as mãos e a cabeça. Uma cabine telefónica vermelha, à inglesa, serve de abrigo momentâneo para tentar um sketch da ponte.

... a olhar o rio já de noite, as luzes da outra margem reflectidas na água escura...

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4 SECÇÃO

Era imediato. Quando me falavam desta cidade, era isto que me vinha à cabeça: cinzento. As poucas vezes que passei as pontes sobre o Douro parecia ver um véu espesso a impedir a passagem de luz, mergulhando a cidade numa escuridão leve. Desta vez, sacudi as ideias feitas e coloquei o meu olhar mais atento. Cinzento? Nada disso. O Porto vibra de cor.

Em busca das cores •

Por Sandra Oliveira (Texto e Fotos)

O céu nublado e os chuviscos intermitentes não auguravam um dia fácil. A ideia da atmosfera cinzenta colava-se na minha mente. E por ser a terceira vez que percorria o centro do Porto em busca de um lugar para estacionar, o cinza adensava-se cada vez mais. Decidida a não me deixar vencer pelo mau-humor meteorológico, dou 10


mais uma volta ao quarteirão e tenho sorte. O Sr. Fernando, de barba grisalha e ar maltrapilho, mas de certeza enviado pelos anjos, tinha um lugar reservado para mim. Agradeceu amavelmente a gorjeta, enquanto apontava para a fachada branca da reitoria da Universidade, sobranceira à rua das Carmelitas, onde ele costumava cirandar.

desbotados pelo tempo, retratam momentos de vida centenários. Os rebordos enfeitados de amarelo e lilás dão um toque vivaz à parede do edifício, classificado de interesse público. Na verdade, nem precisava do estatuto para merecer uma visita, bastava a arte do desenho e da cor. E estar tão próximo da Ribeira também lhe vale alguns pontos. É para aí que vou, em busca de outros tons.

Foi nesta rua que comecei a volta pela cidade, seguindo em direcção à Cadeia da Relação. De soslaio reparo na brancura da Igreja dos Clérigos, debruada de pedra, antes de atravessar as abóbadas da cadeia, actualmente a morada do Centro Português de Fotografia. Também aqui me deparo com o Branco, castigado por um amor de perdição. Camilo (Castelo Branco) abraçou estas paredes roídas pelo tempo, enquanto criava o destino de Simão e Teresa. Respiro as últimas partículas das memórias que por ali flutuam e sigo por um destino diferente, em direcção à Vitória.

A primeira tonalidade que encontro não é nova; no muro da Rua da Vitória, estende-se um graffiti azul, delineando uma mulher sem rosto envolta num manto. Ou um monstro marinho saindo das ondas, não posso garantir. Do azul estimulante, desse não tenho dúvidas, e isso já me deixa feliz. Pelo menos o suficiente para deslizar pelas pedras

Na rua de São Bento da Vitória, paro num miradouro maltratado, onde o lixo se acumula nos cantos. É pena, porque a vista encanta. Com o rio aos pés, os telhados vermelhos amontoam-se como degraus gigantes. Abrigam as paredes amarelas, brancas ou vermelhas das casas que rodeiam a bucólica Igreja dos Grilos. Nas varandas destas casas, entre a tinta gasta pelo uso, crescem flores e esvoaçam roupas, acompanhando as gaivotas que grasnam por cima dos telhados. Como elas, abro as minhas asas e continuo até à rua de São Miguel, atraída pela silhueta ténue das figuras azuis. Cravados na parede, estes painéis de azulejo,

Abrigam as paredes amarelas, brancas ou vermelhas das casas que rodeiam a bucólica Igreja dos Grilos.

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escorregadias até à Ribeira, na margem do rio, sem me importar com ameaça de chuva.

Peter’s, ícone açoriano, pensando por que raio tinha deixado o véu cinzento tapar-me a cabeça e esconder as cores incríveis desta cidade. De cinzento, para além da distinta Ponte D. Luís, vi apenas a barba grisalha do Sr. Fernando, e o seu sorriso amável acabou por me oferecer a cor mais viva de todas. 

O rio Douro esperava, tranquilo. Nas suas margens, salpicadas de cadeiras dos cafés, partilham-se histórias e bebem-se cervejas. O frio cortante de Inverno começava a atacar e também eu, com o resto do grupo, me rendi à indolência. Olhando para as águas calmas, ouvi a voz forte de Maurício, um filho da terra espadaúdo, a contar a razão do nome Douro. Aí percebi porque esperava o rio. À medida que a noite avança de mansinho, os últimos raios de sol dissolvem-se no rio e imprimem um brilho dourado que se mistura com as moléculas de água, criando a imagem de “rio de ouro”. Enriquecida com esta história, entrei no famoso

Cravados na parede, estes painéis de azulejo, desbotados pelo tempo, retratam momentos de vida centenários.

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Invocando Shakespeare e o título Sonho de uma Noite de Verão, propícia aos amores e às paixões assolapadas e, entrando no dia alusivo ao Dia dos Namorados, saindo da habitual e confortável “ida ao cinema” ou mesmo o simples e monótono “jantar a dois”procurei, de alguma forma, esboçar um guia do improviso dedicado ao inesperado e ao romantismo de bolso, do momento, tirando partido da surpresa que estimula tão bem o amor, trazendo sempre mais-valias. Este deveria ser um guia para os evitam a rotina.

∏ Sonho de uma tarde de inverno •

Por Pedro Novo (Texto) Fotos (Carlos Pinto)

Optei inicialmente por almoçar pelas redondezas, tentando encontrar o local ideal para uma história de amor. Sem ter nada pré concebido, deparo-me com o afamado restaurante “Galerias de Paris”. O local era perfeito. Um local de referência, maioritariamente frequentado pela mocidade portuense nos seus encontros boémios nocturnos da cidade, tornando-se único dentro da zona Moulin Rouge da noite portuense. De dia, o mesmo convidava à intimidade entre amigos, e mesmo namorados. Ao entrar, era impossível ficar indiferente. Cada objecto sugeria uma história distinta, de um tempo também ele distinto. Os carros antigos, as máquinas de costura Singer, os quadros e posters antigos de publicidade, o busto e imagens de Salazar, as canetas, os brinquedos vários, enfim. Objectos, objectos e mais objectos. Todos eles criam no primeiro olhar um sorriso pensativo, como se tentássemos 13


desvendar um antigo mistério. Mas o meu mistério seria encontrar uma história perfeita de amor que me ajudasse a construir este guia.

oferecer à minha mãe. Ele gostava muito dela, sabia?". Sorri ao seu comentário e recolhi-me. Ao afastar-me, João ainda deixa o seu ar de graça gritando: "…e tal como antigamente, esta rua continua na modisse. Não falha!", afastando-se em gargalhadas.

Em volta da minha mesa, um casal de asiáticos comentava atentamente cada ingrediente visível no prato, sorrindo para o garfo como se tivessem encontrado algo de inóspito na nossa cultura gastronómica. Mais à frente, um outro casal sério de espanhóis que evitava o olhar um do outro, como se algo de desconfortável estivesse eminente entre eles. No centro, um rapaz encontrava-se sentado lado a lado com sua amada, de forma a conseguirem estudar e trabalhar em conjunto, trocando carícias sempre que mudavam de página, como se de um intervalo se tratasse. Mas pouco mais que isso, nada parecia se passar.

Decidi então sair do ambiente confortável e dirigi-me em direcção à Ribeira do Porto, pela zona da Cadeia da Relação. Assim que me aproximo, deparo com uma exposição de fotografia do famoso fotógrafo jornalístico Gervasio Sánchez. Não seria bem o que procurava naquele momento, mas decidira fazer um interregno na minha busca. Quem sabe, até poderia encontrar naquelas imagens algo que fosse sugestionável para a história que procurava.

Sem ainda nenhuma história fulminante, decidi então fumar no alpendre do emblemático restaurante. Ao sair, um homem abrandou o passo e decidiu aproximar-se. Começou imediatamente a falar comigo, sem qualquer barreira social. João Melo, o seu nome, partilhou e recordou o tempo em que este restaurante era um antigo armazém de tecidos a metro, hoje em dia situado num dos locais mais frequentados da cidade do Porto. Com o seu carregado sotaque portuense comentava, enquanto admirava o edifício continuamente como se estivesse a ler um grande livro: "ainda me recordo bem. Era frequente, no primeiro sábado do mês depois do passeio matinal com o meu pai que ele tanto apreciava, visitava este antigo armazém para comprar um tecido, para

Neste fotojornalismo sem embelezamentos nem adjectivos, Sanchez conta em imagens, cronologicamente expostas, o seu extenso 14


percurso, repartindo tematicamente pela sua presença na América Latina, nos Balcãs, e em África, relevando no final os temas “Vidas minadas” e “Desaparecidos”. Um percurso intensamente forte e doloroso para quem observa, onde as emoções estavam evidentes no olhar dos visitantes.

consegui observar a cela que tinha acabado de deixar - mas nada de casais. Ao sair das Escadas da Vitória, inesperadamente sou chamado por uma guia que me convida a entrar no edifício do Palácio das Artes. A chamada “Feira Franca” abria as suas portas a alguns artesões, criadores e artistas, para exporem e venderem as suas obras. Aceitei o convite e entrei, deixando-me levar pelo inesperado. Da culinária à cerâmica, passando pelo design, pela pintura e pela arte de costura, todos eles se concentravam e se identificavam num tema comum: o Amor. E como seria de esperar, o objecto do coração apaixonado era o mais evidente. Ali, encontrávamos

Ao percorrer o edifício, aproveitei para dar uma olhada à exposição permanente dos raros exemplares de máquinas fotográficas, onde pretendi encontrar o afamado Escopetter de Darier, ou a Câmara Carabina como chegaram a intitular. Esta máquina sempre me chamara grande atenção não só por ser a nº1 da Kodak mas, essencialmente, por a mesma não ter visor, para o fotógrafo. Assim que a observo milimetricamente, denoto uma indicação para uma das celas que me chamou toda a atenção. A cela onde Camilo Castelo Branco teria ficado, na cognominada acima da porta como sala de S. João. Aqui fora, o local onde Camilo escrevera o tão afamado “Amor de Perdição”. Durante vários minutos, observei a cela e imaginei todos os seus passos na altura em que esteve preso, tentando assim encontrar o fio condutor de toda a sua inspiração para uma obra tão ilustre e completa como aquela. Mas essa inspiração parecia não aparecer. Olhei pela janela, vislumbrando uma vista magnífica da cidade do Porto, e decidi seguir caminho. Contornei o edifício da cadeia, descendo pela ruela de S. Bento da Vitória em direcção à Ribeira. Parei pelo miradouro da Vitória, local propício a uma casal de namorados, onde

Olhei pela janela, vislumbrando uma vista magnífica da cidade do Porto, e decidi seguir caminho.

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desde corações bordados, pintados, cozinhados e até mesmo engarrafados. E no final até uma poção de amor fora criada, um licor baseado em cerveja preta em que o “enfeitiçado” iria com certeza ficar eternamente enamorado. Não hesitei em experimentar tamanha faceta e apreciei o momento do feitiço. Ao sair, optei por percorrer um pouco da Ribeira do Porto e observar assim o fim da tarde com a bela paisagem urbana com que o Porto tanto é reconhecido a partir daquele ponto. Decidira então voltar, sem qualquer inspiração e sem guia à vista. Ao voltar para o carro, um casal interpelou-me pedindo-me informações sobre uma curta visita a zonas românticas do Porto e que não fosse muito longe da zona dos Clérigos, ponto onde eu me encontrava e onde tinha começado a minha senda em busca do mesmo. Sorri em silêncio e para os meus botões, e indiquei-lhes todo o trajecto que tinha passado. No final, uma expressão de contentamento saiu da rapariga que me escutava atentamente. Sem ter esperado por este momento, afinal, o passeio turístico de uma história de amor ainda se iria passar…

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WORKSHOP ESCRITA DE VIAGENS Filipe Morato Gomes O antes da Viagem Planeamento de uma viagem de trabalho

- Tipo de viagem (trabalho, lazer, etc.)

- Viagem independente ou organizada?

- Planear e reservar tudo ou não planear nada ?

- O que levar?

- Precauções

Para onde ir ? – temas para reportagens - Procurar lugares sobre os quais pouco se tenha escrito

- Ser específico e não genérico no tema.

- Encontrar novos olhares sobre os lugares.

- Efemérides e eventos – bons pretextos para reportagens. - Preocupação de ser vendável.

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No terreno…

A primeira linha;

Do bloco de notas à edição.

Definir o rumo da narrativa

* Anotações

* Fazer “entrada”

* Planeamento

* O “embrulho” ou fio condutor

* Escrever “Guia” (se houver)

* Importância de um bom início

* Definir um fio condutor

* Colocar pessoas na história

* Ideias chave – blocos de texto

* Escrever com emoção

* Dar coerência

* Ser original e criativo na abordagem

* Editar – ler, reler, reler …

* Técnica: citar escritores

O estilo

Progressão e a importância do desenlace

Tempo verbal

* Interligação entre as distintas partes da história (“ganchos”)

* Presente versus passado

* Um bom final

* Narrador presente ou ausente

Exemplos de:

Técnica: construir histórias circulares

- Presente, narrador ausente

Problemas e erros comuns

- Passado, narrador ausente

(com análise de material publicado e recusado)

- Presente, narrador presente

* Escrever mal (no coments) * Não interligar corretamente os parágrafo/temas

- Passado, narrador presente

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“ganchos”


Entretítulos

Resultado Final

Ser criativo

(controlo sobre o que é impresso nas revistas)

* Falta de ritmo ou quebras de ritmo na narrativa

O mercado

* Ser demasiado pessoal

- Como funciona

* Abordar o óbvio

- Apostar no online como porta de entrada (não estará o presente/futuro na internet ?)

* Ignorar a atualidade * Não terminar bem * Abusar dos clichés * Adjetivar demasiado * Sobranceria * Concordância * Abusar das reticências * “Pintar” tudo muito cor-de-rosa * Tentar meter tudo no mesmo texto

Reportagem vs Crónica Crónica – descreve o “ambiente” de uma dada situação

Sempre na primeira pessoa

Mais livre/mais curta

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