A Ideia da Europa e a Dignidade Humana

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CARLOS CARRANCA PEDRO PEREIRA LEITE

A IDEIA DA EUROPA E A DIGNIDADE HUMANA

Informal Museology Studies nยบ 10 Summer 2015


Ficha Técnica: Informal Museology Studies Papers on Qualitative Research Issue 10 – summer /2015 Directory Pedro Pereira Leite ISSN – 2182-8962 Editor: Pedro Pereira Leite Publisher: Marca d’ Água: Publicações e Projetos Redaction: Casa Muss-amb-ike Ilha de Moçambique, 3098 Moçambique

Lisbon: Passeio dos Fenícios, Lt. 4.33.01.B 5º Esq. 1990-302 Lisbon –Portugal

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Conteúdo Apresentação ................................................................................ 4 A ideia de Europa no Diário XVI de Miguel Torga ............................... 5 A dignidade humana e a nova narrativa para a Europa ..................... 17

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Apresentação Neste número dos Informal Museology Studies apresentamos o texto do Professor Carlos Carranca que serviu de base à sua intervenção na Tertúlia “Café Europa” realizada no dia 6 de março de 2015 na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias. Segue-se um pequeno texto que acompanha a exposição sobre “Uma nova narrativa para a Europa” que realizamos para esse evento e que esteve patente ao público durante o mês de março na biblioteca Vítor de Sá, onde abordamos sinteticamente as novas narrativas e a ideia da dignidade humana. Este número sai numa altura em que a Europa enfrenta, enquanto projecto político, um dos seus maiores desafios. Curiosamente encontram-se já enunciados na Ideia de Europa de Miguel Torga, que aqui o Professor Carlos Carranca tão bem disseca. Neste mês de julho de 2015 os caminhos da Europa, da sua União e desunião estão uma vez mais na ordem do dia. A questão grega é sem dúvida uma questão política e económica. São sinais duma crise que eclodiu em 2008 e que mostrou diversos desenhos duma arquitectura imperfeita. Para além da crise financeira e da crise da moeda única a Europa, enfrenta agora, de forma clara, uma crise estrutural. Estará em condições de a superar, recriando-se numa arquitectura de povos solidários ou iniciou, mais uma, vez um caminho de conflitos? Uma resposta que está nas mãos dos cidadãos. Lisboa julho 2015 Pedro Pereira Leite .

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A ideia de Europa no Diário XVI de Miguel Torga1 Carlos Carranca2

Talvez toda a literatura tenha nascido de um golpe, de uma ferida que se torna cicatriz de um corpo, de uma pátria, de um continente. É sempre algo que nos dói e nos torna mais conscientes da nossa condição.

Cicatrizes

como

resultado

de

um

sem

número

de

deslumbramentos, de ganhos e de perdas. Cicatrizes como roteiro dessa viagem de exílio que é a do escritor. Porque escrever é estar sempre fora, ansiando por uma pátria ideal, feita de velhas raízes e novos ramos, sob os quais possamos pernoitar, habitar e conviver, à sombra da sua altura. A nossa literatura, a portuguesa, é, como se sabe, desde o início, uma literatura marcada pela errância. Errância pelo mundo, por todos os continentes do homem. Talvez Fernando Pessoa seja o exemplo mais universal dessa errância, sem sair do lugar. De uma errância feita pelo desdobramento da personalidade, pelo muito imaginar, por uma certa forma de navegação espiritual, que tão bem sintetiza a nossa História e o nosso Povo. 1

Publicado em Rua–L. Revista da Universidade de Aveiro, n.º 1, II (2012) http://revistaualetras.regiaocentro.net/ 2 Professor auxiliar convidado da Universidade Lusófona, docente da Escola Superior de Educação Almeida Garrett e da Escola Profissional de Teatro de Cascais. Foi presidente da Direcção da Sociedade de Língua Portuguesa e fundador e elemento da Direcção do Círculo Cultural Miguel Torga, e da Sociedade Africanóloga de Língua Portuguesa. Integra o Centro de Estudos de História Contemporânea e fundou o Centro de Iniciação Teatral, juntamente com Carlos Avilez e João Vasco

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Das duas profundas e dolorosas feridas – as Guerras Mundiais-, restam hoje as cicatrizes que ajudaram, até há pouco, a dividir a Europa e o mundo. Delidas essas marcas, hoje cumpre-nos, a nós, europeus, olhar sem paternalismo e conviver sem reserva. Mas será possível, neste momento, onde se erguem na Europa novos fantasmas herdeiros de velhos senhores e novos senhores herdeiros de velhos fantasmas, sossegar a nossa condição de humanos atentos ao nosso tempo, singular e difícil, num continente antigo que nos cumpre viver? No ano 2004, na Holanda, George Steiner terá afirmado, numa conferência realizada no Nexus Institute, e dedicada à Europa que a vida não reflectida não é efectivamente digna de ser vivida. É por esse caminho, já trilhado por Torga e por todos aqueles que procuram um sentido, individual ou colectivo, que vamos. Regressemos a Steiner para avivar o caminho já percorrido: «[…] ser

europeu

é

tentar

negociar,

moralmente,

intelectualmente

e

existencialmente, os ideais, afirmações, praxis rivais da cidade de Sócrates e da cidade de Isaías.» (Steiner, 2006: 36). E terá sido nessa combinação de herança helénica com a judaico-cristã que o império romano se forjou, dando sentido a uma Europa onde os particularismos ou identidades nacionais ou regionais contribuíram para o reforço da dimensão universal. A responsabilidade partilhada, ou a consciência dela é, no caso do tema que encima este artigo, a marca torguiana de um percurso de

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vida, que obriga os escritores a serem «[…] os mágicos de papel e tinta que, da claridade dos Parnasos ou da penumbra das mansardas, a enobrecem [a humanidade] com mensagens e obras de beleza, paz e concórdia.» (Torga, 1995: 126). Conhecer a ideia de Europa, na obra literária de Miguel Torga, as ideias políticas, a sua adaptação literária, assim como o seu discurso crítico e argumentativo, será tarefa própria para uma tese de doutoramento e impossível de concretizar num texto crítico limitado pelo número de páginas e pelo escasso tempo necessário a uma análise de grande fôlego. Sendo assim, optámos por uma breve abordagem ao derradeiro Diário do poeta transmontano e, a partir dessa leitura, encontrar alguns dos dados estruturantes do seu pensamento de europeu do extremo ocidental da Ibéria, da pátria de Camões. Que

imagem

de

Europa encontramos plasmada,

criticada ou

exaltada, no décimo sexto volume (de 11 de Janeiro de 1990 a 10 de Dezembro de 1993) do Diário? Talvez não seja de todo desajustado citar um excerto de uma carta datada de 7 de Maio de 1974 – já o poeta tinha encerrado definitivamente a sua obra, sete meses antes do seu falecimento, a 17 de Janeiro –, a Mário Soares, em que a dado passo, afirma: «Eu também sou, e com desvanecimento europeu. Mas disse um dia destes a um jornalista do ”Le Monde” que 2só o era com significação se continuasse a ser plenamente português.» (apud, Rocha, 2000: 180).

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Daqui se retira o elemento estruturante da sua ideia de Europa: uma Europa

de

povos

independentes,

de

nações

autónomas,

mas

colaborantes para um ideal comum. Daqui à ideia de Europa anterior a Roma, a de Hesíodo, no poema ”Teogonia”, onde pela primeira vez se terá referido expressamente o vocábulo Europa, jovem formosíssima, princesa fenícia, raptada por Zeus e transformada em rainha e mãe da futura dinastia de Minos, “fica-nos” o mito e o sentido inicial da sua evolução como comunidade cultural, que Roma tão bem soube incorporar. A ideia de Europa terá evoluído para a pluralidade dos Estados Soberanos, de uma Europa da Cristandade (desde a Idade Média), para uma Europa da Humanidade (século XVIII) que consolida a filosofia crítica, a da Revolução Francesa e da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, a da secularização da sociedade, para a de um século XIX, onde serão consagrados o direito dos povos e o princípio da nacionalidade, respeitando a individualidade de cada nação, construída sobre a Língua, a História e a Religião. É esta a herança que Torga sabe receber e de que não está disposto a abdicar. Quer ”deixá-la” aos vindouros, num acto de consciência cívica, patriótica e europeia, sempre atento às novas realidades e sempre de sobreaviso perante os falsos profetas, os novos patrões ideológicos do velho continente.

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A carta de Torga a Mário Soares é um grito de desespero de alguém que, sem deixar de assumir a sua dupla identidade de português e de europeu, não deixa, contudo, de se afirmar radicalmente português, como

marca

de

água

da

sua

visão

de

europeu

da

Ibéria,

inequivocamente orgulhoso da Língua que, ganhando carácter ao longo da sua longa História, se universalizou, construindo esse património variado que a confirma. Assentando os seus princípios de homem e de artista na «tríade bendita» (Torga, 1995: 200) que jurou defender e que, galhardamente e obstinadamente cumpriu vida fora – «o amor, a verdade e a liberdade» (ibid.)–, é na procura desses valores que o poeta sente a Europa

como

um

todo,

um

corpo

com

alma,

e

“dói-lhe”

a

irresponsabilidade daqueles que, em seu nome, a traem na qualidade de representantes eleitos. E é nessa linha que Torga vai verberar o Tratado de Maastricht, na Holanda, a 7 de Fevereiro de 1992. Livre quanto possível, refractário às autoridades teológica e política, como Espinosa, Torga zurzirá no tratado que, segundo o poeta, virá a ser «[…] uma nódoa indelével na memória da Europa, envergonhada de, no curso da sua gloriosa história, ter trocado neste triste momento o calor do seu génio criador pela febre usurária.» (1995: 140). Assim se iniciava o que hoje se tornou por demais evidente: o poder criminoso da especulação financeira, substituindo o idealismo do projecto humanista de uma Europa social, unida pelas artes, pela

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ciência, pela cultura e pelo trabalho, respeitando e compreendendo um património erigido pelo génio dos seus filhos. O poeta de S. Martinho de Anta condena a dependência de Portugal e a sua «subserviência às mãos de uma Europa sem valores» (1995: 144), porque cresceu a acreditar «[n]um Portugal que serve o mundo em vez de o dominar, que regressa antes de ser expulso.» (2001: 192). Em que Europa crê o poeta? Não é, por certo, «numa Europa que dia a dia masoquistamente se desfigura, como que envergonhada da sua nova identidade.» (1995: 140). Nem na Europa que percorreu e sofreu no início da guerra civil de Espanha, a de «[um] povo espanhol, atraiçoado em 36 pela conivência de algumas nações e pelo egoísmo de outras.» (1976: 112). Nem na Itália que visitou na mesma época e onde «cada italiano que interpelava, culto ou inculto, dava-me sempre a impressão de que faiscava, em vez de raciocinar.» (1971: 93). Mais tarde percorrerá a pátria de Verdi, visitando Pisa, Veneza, Florença,

Roma,

Nápoles,

Capri,

Pompeia

e

Sicília,

na

procura

angustiada de um sentido colectivo, fraterno, para um futuro pelo qual se batia como cidadão e como artista de uma Europa idealizada. Torga teima em acreditar numa Europa não comandada pela «batuta de um novo Bismark» (1971: 121), mas pelo génio criador de um Goethe, de um Hölderlin, de um Rilke, de um Kafka, de um Thomas Mann, que tanto admirava.

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A sua Europa renasce sempre que folheia a “Odisseia” de Homero, ou se confronta com as aventuras do ”D. Quixote” de Cervantes ou do de Miguel de Unamuno; ou embarca em “Os Lusíadas” e se afunda no “Diário” de Amiel, ou se redescobre mais europeu e mais moderno numa tela de Picasso; ou se revifica,”sentindo-se” mais ibérico, numa composição musical de Falla; ou reencontrando-“ –se” com o Homem nos “Ensaios” de Montaigne, ou navegando nesse mar chão de uma «Grécia velha, milenária, de fatalidades e maldições cristalizadas na memória.» (1995: 187). A Europa de Torga está no génio versátil de Erasmo, na fraterna comunhão entre os homens e a natureza de S. Francisco de Assis, essa «realidade de um santo com santidade para todos os tempos» (1995: 143), no Horácio do carpe diem, numa «Europa […] a soletrar a custo Fernão Lopes, Gil Vicente […] e o padre António Vieira.» (1995: 183, 184). O poeta ”deixa-nos,” contudo, a triste realidade adivinhada de uma Europa a morrer como sonho, como projecto, e negligente quanto ao seu passado. Uma Europa poluída em Roma, sua capital espiritual, e a desfazer-se em Atenas, seu berço e sua tumba. Crítico feroz da União Europeia, da abolição das nossas fronteiras e consequente livre circulação de pessoas e de bens, deixa registado no seu Diário, com data de 2 de Janeiro de 1993:

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[…] ocupados sem resistência e sem dor. Anestesiados previamente pelos invasores e seus cúmplices, somos agora oficialmente europeus de primeira, espanhóis de segunda e portugueses de terceira (1995: 189-190). A 31 de Agosto do ano de 1993, na cidade de Chaves, a notícia de que o primeiro-ministro britânico se encontrava a passar férias em Portugal, mereceu-“-lhe” o seguinte comentário: […] tem comido bem, bebido melhor e passeado. Até figos vindimos provou e saboreou, dizem os jornais. Os nossos velhos donos dão, como sempre, sinal na hora própria. […] Este barão actual espaireceu num rabelo motorizado, sem risco e sem passaporte restritivo, apenas com licença magnânima da C. E. E., que lhe disse que sim, que aproveitasse, que isto agora é baldio, comunitário, multinacional, e deles, ingleses, com particular direito”. (1995: 149). Homem de grande frontalidade, Torga nunca transigirá na defesa dos valores e dos ideais pelos quais se bate permanentemente: “Ninguém me encomendou o sermão, mas precisava de desabafar publicamente. Não posso mais com tanta lição de economia, tanta megalomania, tão curta visão do que fomos, podemos e devemos ser ainda, e tanta subserviência às mãos de uma Europa sem valores”. (1995: 173). Torga,

«orfeu

rebelde»,

nunca

deixará

de,

em

todas

as

circunstâncias, colocar o seu génio ao serviço do cumprimento de uma Informal Museology Studies, 10, summer 2015

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sociedade mais justa, onde os princípios e valores do socialismo democrático – entendidos à escala planetária –, caminhariam no sentido do Homem Universal. E assim sonhava um destino para a Europa, nesse combate espiritual, intelectual, moral e social. Agindo

sempre

por

sentido

do

dever,

Torga

sabia

que

em

democracia o poder reside, efectivamente, no povo e que os caminhos que estavam a ser trilhados pela União Europeia não eram o da aproximação dos povos, de um aprofundamento da cidadania, mas uma via para o domínio dos mais ricos. Torga sabia que a defesa da liberdade, da independência, passa, primeiro que tudo, pela garantia de mecanismos de intervenção contra a agressão exterior à nossa individualidade e pelos limites da acção individual no espaço que é de todos. Combatente da liberdade contra todas as formas de totalitarismo, resistente

à

ditadura,

socialista

humanista

[…]

cidadão

livre,

inconformista e, por vezes, incómodo, que sempre lutou contra o medo, a subserviência e o indiferentismo cívico. (Amado, 1996: 3), assim o caracterizou Jorge Amado. Mais do que europeu, Torga ”sentia-se” cidadão do mundo, ainda que, primeiro que tudo, português e português fiel às suas origens rurais, eterno cavador do espírito, castiço por dentro e por fora, nunca renegando as suas origens sociais, geográficas e cívicas, ampliando

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essas raízes ao extremo da Ibéria, no simbólico uso da boina basca da pátria pequena de Unamuno. David Mourão Ferreira afirmará que o poeta representa «quanto há de viril, vertical, insubornável, no homem português contemporâneo.» (Mourão Ferreira, 1978: 1094). Daqui se conclui que quanto mais local, mais enraizado no solo pátrio, mais europeu, mais universal. É nessa afirmação de virilidade que Torga entende a liberdade como plenitude e como direito. Torga sabia que «a única maneira de ser livre diante do poder, é ter a dignidade de o não servir» (1995: 76), e reconhecendo a nossa incapacidade, como já o havia afirmado o etnólogo Jorge Dias em Os Elementos Fundamentais da Cultura Portuguesa, de agir dentro da lógica capitalista, só uma profunda consciência de nós mesmos poderia salvaguardar a independência arduamente conquistada através dos séculos. Será dentro desta lógica que o poeta exige patriotismo e maldiz o Tratado de Maastricht, alertando para os seus malefícios, que trariam consigo a dependência dos estados de menores dimensões: […] só que as grandes potências podem ”dar-se” ao luxo de todos os jogos malabares e safadezas, e assim assinar até tratados ardilosos com abdicações aparentes da sua identidade. E as pequenas, não. Se, por leviandade ou megalomania, arriscam um mau passo no caminho da independência, perdem-se de vez. (1995: 121).

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Entre o mito e a realidade ”fica-nos” a tragédia de uma Europa incapaz de revelar uma vontade na sua pluralidade cultural, que se deixou raptar por um Zeus que tudo pode e a subjuga e que, ao invés do mito, não a transforma em rainha e mãe da futura dinastia de Minos, mas em servente da prepotência financeira, incapaz de compreender e sentir a unidade espiritual que ela comporta, e que lhe foi conferida pela “tradição eterna” dos seus povos, como gostaria de afirmar Miguel de Unamuno, ou pelas cafetarias de Lisboa ou de Copenhaga onde, no dizer de Steiner, Pessoa, Kierkegaard e outros, se sentavam a desenhar o mapa da Europa. A ideia de Europa no “Diário XVI” de Miguel Torga resume-se à lucidez de quem, do seu tempo, e observando-lhe” as profundas mudanças, adivinha o futuro comprometido na vulgaridade massificante de um “shopping-center” enorme, gerido por agentes de um poder sem rosto, e onde alguns humanos, como formigas, sem lugar nem tempo para ocuparem a mesa de um café ausente, nervosos, inseguros e sós, bebem um cafezinho apressado, e onde outros, sem vida para esse tempo, fumam um cigarrinho triste.

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Bibliografia AMADO, Jorge «Prefácio», in: T., M., (1996), Portugal, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, p. 3. MOURÃO FERREIRA, David (1978), «Miguel Torga», in: COELHO, Jacinto do Prado (dir.), Dicionário da Literatura, vol. IV, 3.ª ed., Porto, Figueirinhas, p. 1094. ROCHA, Clara (2000), Miguel Torga. Fotobiografia, Lisboa, Dom Quixote. STEINER, George (2006), A Ideia da Europa, Lisboa, Gradiva, 3.ª ed. TORGA, Miguel (1971), Criação do Mundo, O Quarto Dia, Coimbra, Ed. de Autor, 2.ª ed. —(1995), Diário XVI, Coimbra, Ed. de Autor. —(1976), Fogo Preso, Coimbra, Ed. de Autor. —(1996), Portugal, Rio de Janeiro, Nova Fronteira. —(2001), «Traço de União», in: T., M., Ensaios e Discursos, Lisboa, Dom Quixote.

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A Dignidade Humana e a Nova Narrativa para a Europa Pedro Pereira Leite3

O projecto “Uma Nova Narrativa para a Europa” foi uma iniciativa da lançada pela Presidência da Comissão Europeia em Abril de 2013 à qual se associou o Parlamento Europeu e um largo conjunto de personalidades, da política e da cultura4. Proposta com o objectivo de alargar o debate sobre o projecto Europeu no espaço público e desenvolver a participação dos cidadãos na construção duma nova narrativa, em Portugal, a iniciativa foi dinamizada pelo Centro de Informação e Documentação Jacques Delors5. Como marco de referência para a nova proposta de narrativa, será apresentada, em março de 2014, na Academia das Artes de Berlim a “Declaração o Corpo e a Mente da Europa”. Um documento que resultada do trabalho dum corpo de peritos convidados e reflectir sobre a “narrativa da europa” e o seu futuro.6

3

Pedro Pereira Leite – Investigador no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Professor na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias. 4 http://ec.europa.eu/culture/policy/new-narrative/index_en.htm 5 http://www.pensareuropa.eu/ 6 http://novanarrativa-europa.eu/files/o_corpo_e_a_mente.pdf

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Foi ainda preparado uma Brochura, com a forma de Kit pedagógico, que serviu de base à preparação das diferentes atividades de participação dos parceiros7. A construção desta nova narrativa inspira-se no passado, procura identificar os problemas no

presente

desafios

do

e

preparar

futuro.

O

os

mapa

conceitual (Mind Map8) que é apresentado nessa publicação é bastante ilustrativo da inspiração e dos seus propósitos. Nos seus alicerces valoriza a diversidade cultural, os movimentos sociais de emancipação, a cultura (curiosamente nomeadas de gramática). Sobre a narrativa situa a questão do fim da guerra e do fim da divisão leste-oeste e acentua os efeitos da crise de 2008.

7

http://www.pensareuropa.eu/files/Brochura_final_WEB_19112014_1628.pdf Técnica de Trabalho desenvolvido por Tony Buzan, que se apresenta na forma dum diagrama, usado para resolução de problemas ou elaboração de projetos. 8

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Cem anos duma narrativa europeia que permitem continuar a pensar o presente a partir de três pontos. A questão

financeira,

a

narrativa

e

a

necessidade de mudança de paradigma. Não deixa de ser curioso a ausência de quaisquer referências

ao

processo

político

e

à

implementação do Tratado de Lisboa, que levou a uma configuração das estruturas europeias muito pouco funcionais. Mais relevante contudo no mapa conceitual é a aspiração do futuro. O pensamento europeu hipervaloriza a relação entre passado e o futuro, tendendo a atribuir relevância ao presente. Já num outro trabalho sobre Walter Benjamim, na análise da sua XI Tese sobre a História, tínhamos chamado a atenção esta dupla perspectiva do tempo que

herdamos dos gregos.

O

Cronos

e

o

Cairos9. No

Cronos

inscrevemos o tempo linear, sequencial. No Cairos, a poética do tempo. A sua essência, ou a interpretação. Na tese de Benjamin, que trabalha sobre uma figura de Klee, o tempo do cronos olha simultaneamente para trás, onde vê ruínas; e para a frente, onde vê a utopia. Um não lugar que se projecta como vontade. Sobra o encontro com o presente. O presente é o lugar de onde se observa. Os conceitos que a narrativa apresenta reflectem isso. Esse será a sua limitação e a sua validade. 9

http://globalherit.hypotheses.org/1791

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Quanto à narrativa sobre o futuro escolhido, voltamos a uma maior riqueza conceptual. Procura-se

um

“novo

renascimento”, repensar a política

com

base

na

cultura e no conhecimento. Afirma-se

a

necessidade

de que a Europa se apoie no

conhecimento.

Interrogam-se

os

caminhos

de

transformação

da

sociedade que se vê a si própria como impulsionadora. Já lá voltaremos a uma crítica da narrativa. A representação da comissão europeia em Lisboa decidiu alargar do debate aos cidadãos portugueses, através dum conjunto

de

iniciativas públicas, que culminaram em Maio de 2015 com um evento publico e a publicação duma pequena brochura sobre o projecto10. A nossa participação neste projecto iniciou-se em novembro de 2014 com o convite para participação numa ação de divulgação sobre o programa

“Café-Europa”.

Na

sequência

dessa

participação

10

http://www.pensareuropa.eu/uploads/event_assets/23/original/Livro_Uma_Nova_Narr ativa__para_a_Europa.pdf?1431621275

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desenvolvemos diversas iniciativas públicas, entre as quais destacamos a que decorreu na Universidade Lusófona de Lisboa, a 6 de março do corrente ano. Ao diferentes

longo

destas

diferentes

iniciativas11

fomos

articulando

ideias,

sobre a diversidade da História da Europa e sobre

os

desafios

complexos que

enfrentava. Uma parte dessas reflexões foram incorporada na Exposição “Uma Nova narrativa para a Europa” que elaboramos em colaboração com a Universidade Lusófona e que esteve patente ao público entre os dias 2 e 14 de março, no auditório da Biblioteca Victor de Sá12.

11

Em 13 de janeiro, realizamos uma sessão “café-europa” na Universidade de Coimbra. Em 20 de fevereiro, um Café-Europa no Liceu Camões em Lisboa. A 24 de fevereiro realizamos uma aula Debate na Universidade Lusófona. O projecto culminou com o Café Europa que se realizou a 6 de março na Universidade Lusófona. 12 http://www.pensareuropa.eu/narrativa/96

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A metodologia do café-europa O Café Europa foi uma atividade essencialmente prática e envolveu crias várias dinâmicas de grupo com base na metodologia do Cafe"13.

"World

A

metodologia

é

relativamente simples e procura estimular o debate dum dado temas relevante entre todos

os

membros

dum

grupo,

incentivando todos a participarem. A partir dum dado contexto, dividese o grupo em pequenos grupos entre 4 a 6 participantes. Selecciona-se um tema relevante e cria-se um espaço de debate amigável. Nomeia-se um ou dois relatores e debate-se a questão. É útil ter previamente preparado um conjunto de cartões com questões relevantes que o grupo discutirá. Ganha-se tempo, mas restringe-se a criatividade do grupo na produção de relevância. O relator deverá ter a preocupação de ouvir todas as vozes e procurar relevar as diferentes perspectivas. Ao fim do tempo de debate, que deve ser previamente definido com razoabilidade, os membros dos grupos rodam entre si, ficando em cada mesa, pelo menos um dos relatores,

que

apresentará

os

resultados

alcançados

aos

novos

membros. A segunda ronda de discussão contará com novos membros e, de acordo com o tempo definido deverá efectuar um conjunto de concussões que serão apresentadas e escritas ao grupo em plenário.

13

http://www.theworldcafe.com/

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A metodologia pode ser usada para trabalhar diferentes temas e os seus resultados dependem das dinâmicas e empenhamento dos participantes. No caso do Café Europa e das aulas-debate, cada um dos resultados forma compilado na brochura e apresentados à Comissão Europeia como contribuição dos Cidadãos Portugueses. A metodologia permite dar uma voz activa aos participantes e desencadear processos participativos. A metodologia do “World Café” tem sete princípios base e é de aplicação simples e eficaz. Pode ser aplicada num formato flexível e tem como objetivos incrementar o diálogo entre um grupo alargado. Tem como vantagem a possibilidade de ser usado de acordo com as necessidades específicas, os contextos, o número de participantes, os seus objetivos, e outras circunstâncias. Pode ser aplicado num único simples evento, ou para várias sessões, pode ter formas variadas, para uma ou mais questões. O modelo tem contudo 5 componentes básicas: 1. Cenário (Setting). Tem como objetivos criar um ambiente favorável ao diálogo. Muitas vezes tem a forma de “café”, com pequenas mesas redondas. É aconselhável dispor de papel e lápis. Adicionalmente a mesa pode estar decorada com vazos de flores e outro tipo de material para escrita (como por exemplo canetas de cor, sticks). Cada mesa deve dispor de quatro a cinco cadeiras:

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2. Acolhimento: Quem recebe deverá prestar um acolhimento afável aos participantes. Deverá ser feita uma breve introdução ao método, explicar o contexto do trabalho sugerido e explicitar a “ética” do Café: o livre debate e o respeito pela opinião de todos. Os participantes devem ser colocados à vontade. 3. Formação de pequenos grupos. Os participantes são convidados a sentarem-se aleatoriamente em volta da mesa. O primeiro debate deverá ter uma duração aconselhada de 20 minutos. Em cada mesa é escolhido um relator. No final dos vinte minutos, cada membro da mesa sai para uma mesa diferente. O relator permanecerá na mesa, fará o acolhimento dos novos membros e fará uma síntese do debate. O grupo poderá escolher outro relator. 4) Questões: Em cada roda de debate é escolhida uma ou duas questões para debate. É uma frase criada especialmente para o contexto da discussão pretendida para o World Café. A mesma questão pode ser usada nas duas rodas de debate, ou poderá ser reformulada em função das discussões que foram desenvolvidas, por vontade do grupo. 5) Colheita: Após as rodas de debate (ou se necessário entre as rodas de debate) os membros dos grupos são convidados a partilhar, em roda alargada, o que cada um achou relevante na discussão. É conveniente Informal Museology Studies, 10, summer 2015

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que o processo seja visual, com a afixação de imagens gráficas e poderá ser usada a imaginação para estimular a criatividade

A aplicação do processo é simples de aprender. Apresenta contudo algumas dificuldades e precisões que importa ter em atenção. A primeira dificuldade tem a ver com o contexto. Como pode ser aplicado em diferentes contextos, tudo deverá ser adequado ao contexto do grupo e ao número de participantes. O desenho das questões não é irrelevante, já que condicionará a forma como ela se iniciará. A experiencia do dinamizador será também relevante para obter resultados. É por isso aconselhável que o processo seja acompanhado

por

profissionais

qualificados

na

aplicação

da

metodologia. Existem vários recursos disponíveis para aprofundar a aplicação do método. Podem ser procurados no sítio do grupo que desenvolve a

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metodologia14,

bem

como

a

participação

na

comunidade

de

aprendizagem.. Os sete princípios do “world café” estão integrados no modelo e resultam das ideias e praticas que foram testada na aplicação do processo. Para a optimização dos resultados importa ter em atenção 1) A definição do contexto Ter em atenção a razão da reunião das pessoas, os seus interesses individuais e o que se procura atingir. Definir os objetivos do encontro é o modo mais fácil de conduzir o processo para atingir os resultados pretendidos. Importa definir se o dinamizador participa na discussão, definir o tipo de questões a abordar, que tipos de resultados são mais úteis. 2) Criar um espaço acolhedor A ideia de esta num café em volta do mundo enfatiza a ideia de criar um ambiente acolhedor para o desenvolvimento do processo. Cada participante deve-se sentir descontraído, seguro e acolhedor. Quando nos sentimos confortáveis, no espaço, connosco e com os outros, as pessoas tornam-se mais criativas, pensam melhor, falam mais e estão mais abertas às aprendizagens. É importante pensar a forma como o espaço pode ser acolhedor. Olhar para a iluminação, para o conforto térmico, a acústica, a decoração da sala. A disponibilidade de água e biscoitos podem ser 14

http://www.theworldcafe.com/world-cafe-book/

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questões a ter em atenção. No World-Café é interessante ter, por exemplo, disponibilidade de café. Fazer o possível para criar um ambiente agradável é um passo importante desta metodologia. 3) Explorar questões relevantes O conhecimento emerge como resposta a problemas. Criar desafios estimula a criatividade. Procurar responder a problemas reais do grupo é fundamental. É necessário procurar questões que sejam relevantes para todos os participantes do grupo. Isso ajuda a criar a coesão em trono do processo e estimula a focagem do grupo nas questões propostas. O processo depende do empenhamento dos participantes na criação de sinergias de grupo. O objectivo do processo é procurar a energia criada colectivamente para intervir no sistema. Para ajudar a dar respostas úteis à vida de cada um. Dependendo do tempo disponível, o processo do “World café” pode ser usado para dar resposta simples ou para procurar ir aprofundando as questões em diversos encontros de debate. 4) Encorajar a participação de todos Enquanto dinamizadores do processo é necessário estar muito atento à relevância da participação. Dum modo geral as pessoas, quando

estão

motivadas

tendem,

não

a

participar,

como

frequentemente querem contribuir de forma activa para a resolução dos problemas. Muitos querem marcar a diferença. Por isso é muito importante que todos tenham ocasião para participar activamente nos

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processos, respeitando a postura e os desejos de cada um. É necessário ter em consideração que há indivíduos que participam apenas através da escuta activam, e que isso pode ser usado pelo grupo. 5) Ligar as diferentes perspectivas A mudança dos membros das rondas de discussão é uma ocasião para encontrar novas pessoas e incorporar novas visões na discussão. A descoberta de novas ideias decorre muitas vezes de discussões em círculo alargado. Essa é umas das características distintivas do Worldcafé”. Cada participante apresenta as suas ideias a debate, troca de perspectivas e gradualmente vai enriquecendo a sua visão. Muitas vezes, no final, cada participante é surpreendido com as mudanças que sentiu na sua posição. 6) Ouvir conjuntamente para partilhar padrões e relevâncias A capacidade de ouvir o outro é um importante recurso de aprendizagem. No café saber ouvir é talvez uma das mais importantes características que determina o sucesso do processo. Através da prática do ouvir e prestar atenção às questões relevantes, permite ir construindo uma nuvem de padrões. A construção da relevância advém da sua partilha social. A construção das relevâncias emerge a partir da conexão de cada indivíduo aos temas gerais. É por isso importante encorajar cada membro do grupo a escutar activamente enquanto não está a falar e a partilhar com os outros as suas emoções. 7) A partilha das descobertas colectivas

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A

conversa

na

mesa-redonda

deixa

entender

o

padrão

dominante das opiniões. O que une e o que separa. A partilha das conclusões entre as mesas acentua a facilidade de descobrir esse padrão comum. A última fase do Café, chamado de “colheita” permite reforçar o padrão da totalidade que emerge na discussão. O objectivo e torna-lo visível para todos através da imagem gráfica. Pode se útil convidar o grupo a fazer uma breve pausa para reflectir sobre o que pensava sobre a questão do início e o que pensa no momento. Isso facilita cada um a tomar uma maior consciência dos padrões e da profundidade das questões. A relevância a imagem gráfica ´dos resultados finais permite fazer uma síntese que fica retida na memória, tornando a percepção da mudança

mais

sólida.

É

também

importante,

para

efeito

de

documentação do processo, recolher imagens dos quadros finais, sobretudo se o trabalho se prolonga por várias sessões. A gravação das sessões é também uma opção, mas deverá ter a aceitação dos participantes

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A Exposição A exposição foi concebida para ocupar um espaço circular na entrada da Biblioteca Victor de Sá. Trata-se dum espaço com alguma movimentação

diária,

e

pretendia-se

por

isso

que

a

exposição

apresentada não ocupasse demasiado espaço e fosse facilmente lida. Implicava portanto

uma narrativa

sintética em torno de temas

problema. Escolhemos sete temas, abordado cada um num cartaz cromático do tamanho do A0. As cores escolhidas foram a do arco-íris, com o objectivo de mostrar a diversidade. A questão da europa não é uma narrativa fácil. Podemos afirmar que a História da Europa é um tema vasto que nos consumiu vários anos de estudo na licenciatura (1981-1985) e mestrado (1995-1997) em História, que realizamos na Faculdade de Letras de Lisboa. No âmbito da licenciatura, que se dividia em 4 anos, trabalhos a Antiguidade Clássica (Grécia e Roma) e as Idades Média, Moderna e Contemporânea. Para além da História de Portugal, o que se trabalhava era essencialmente a História da Europa, sobretudo os casos franceses e ingleses, e na fase contemporânea a Alemanha. Em grande parte deviase essa aproximação devido aos autores da escola francesa (mais) e inglesa (menos). Falava-se pouco da história fora deste contexto. A minha opção em História de África levou-nos á especialização nos Estudos Africanos (1985-1986), mas do resto do mundo, das américas, da Ásia pouco se trabalhava e o que conheço deve-se sobretudo à

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curiosidade científica de ler a célebre colecção “Rumos do Mundo”15, abordava o “Mundo Chinês”, O "Islão", "os Eslavos", "As Américas" etc. numa visão que ultrapassava os limites da geografia da Europa e da sua expansão colonial.16 É certo que havia no ar uma confiança no futuro. Portugal estava à beira de entrar na então Comunidade Europeia. O mudo apresentavase dividido entre o Ocidente (a democracia) e o Leste (o comunismo).É certo que havia o terceiro mundo e o não alinhamento. Grosso modo, na divisão entre o norte (desenvolvido) e o sul (subdesenvolvido ou dependente) verificavam-se mais alinhamentos do que caminhos autónomos. Só alguns anos mais tarde, já no mestrado, é que dei conta que havia uma “História da Europa”, ou melhor uma narrativa sobre a Europa. Esse era aliás o título dumas das cadeiras do mestrado. Lembro-me que nessa altura trabalhei sobre as guerras intra-europeias, num trabalho que entretanto perdi o rasto, mas que tinha por base os relatórios do SIPRI17 que havia trazido duma das conferências de paz que havia participado nos anos oitenta em Amesterdão. E por aí ficamos sobre a construção das narrativas europeias, embora tenha andado sempre em trono das problemáticas das relações norte-sul.

15

A edição francesa foi dirigida por André Vargnac, e começou-se a publicar Portugal em 1963, pela Editora Cosmos. O seu volume 6 intitula-se “O Nascimento da Europa” 16 Para um maior detalhe sobre esta questão veja-se o nosso livro “Mercadores de Letras” in http://recil.grupolusofona.pt/handle/10437/3936 17 SIPRI Stockholm International Peace Research Institute http://books.sipri.org/index_html?seq_start=20&c_category_id=1

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O evento “Uma nova narrativa” para Europa foi a oportunidade para reactualizar as leituras e as problemáticas sobre as narrativas europeias. Essas leituras estiveram na base elaboração da exposição. Já acima enunciamos o conceito gerados da exposição, de procurar relacionar as pulsões internas para a reunião e desunião da Europa. Há por isso um conjunto de painéis de natureza, mitológica, geográfica, histórica e política. O primeiro painel com o título Europa o lugar onde o sol se põe aborda a matriz dual da herança mitológica europeia. Se o nome Europa tem a sua origem no mundo mediterrâneo,

referindo-se

na

mitologia

grega ou clássica como a filha de Zeus, não podemos descurar a forte influencia que a sua herança tem por via do mundo romano (administração) e pelo mundo judaico (por via do disporá judaica e cristão, e mais tarde islâmica). Se o primeiro painel aborda a questão substantiva do nome, o segundo painel aborda a questão dos seus limites geográficos. A Europa é como que uma península da Ásia. O seu território não aparenta dúvidas a Norte (Mar Báltico e Mar do Norte), a Ocidente (Atlântico) e a Sul (Mar mediterrâneo. As dúvidas são maiores na fronteira leste. Fronteiras mais políticas do que naturais, há quem defenda a sua

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extensão até aos Montes Urais e aos Cárpatos, a inclusão da Anatólia. Já do ponto de vista da delimitação. Para Heródoto o mundo dividia-se em três partes. Europa (a Trácia), a Ásia e a Líbia (África), sendo a Europa delimitada por três rios os Rios Don, Eufrates, e Nilo, ao passo que a Oeste, as colunas

de

Gibraltar

delimitavam

o

mar

exterior. O primeiro esforço de unificação é, se assim podemos dizer, um esforço do Império Romano: A Civititas era o mundo que se opunha ao mundo dos Bárbaros, que se estendia para lá do Limes (a fronteira do norte estabelecida no rio Reno. Se por um lado o Império Romano exclui uma boa parte do que é hoje a Europa, inclui, por outro lado toda a bacia do mediterrâneo. Com a derrota de Cartago em 146 a.C., o mediterrâneo torna-se num mar romano. Uma

divisão

entre

culturas

que

ainda

perdura nos dias de hoje. A cultura do vinho e da oliveira, e a cultura da cerveja e do centeio. Ainda

que

mediterrâneo,

o não

Mundo seja

o

Romano, início

do

dessa

narrativa sobre a Europa, ele é uma das suas influências. Será Carlos Magno (742-814) o Rei dos Francos inaugura um movimento de integração do espaço europeu numa unidade política e religiosa. Informal Museology Studies, 10, summer 2015

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A fundação do Sacro-império Romano Germânico corporiza a primeira integração político-militar no ocidente europeu uma figura política e religiosa que se irá manter ao longo da História Europeia como uma configuração hibrida e fluída no centro da europa. Ela passa por vários períodos com mais ou menos intensidade, e atinge o seu auge com Carlos V (1500-1558), da casa de Áustria, que através de sucessões dinásticas agrega vários territórios europeus, incluindo a Espanha e suas possessões coloniais. Já

nos

alvores

da

nossa

contemporaneidade,

o

exercito

Napoleónico, de Napoleão Bonaparte (1769-1821) imperador dos franceses

extinguirão

esta

experiencia

dinástica

e

inaugura

a

experiencia dos movimentos sociais. Napoleão será derrotado, mas levará o seu exército até à Rússia. A europa que renasce à destruição napoleónica será uma Europa de Nações. A Europa tem uma identidade fluída, difícil de precisar. Como tal encontram-se no

seu

seio

profundas

divisões

e

antagonismos não resolvidos. No passado as guerras assolavam o território europeu com regularidade. A guerra dos cem anos no século XIV, as Guerras Religiosas no século XVII, as Invasões francesas e a guerra franco prussiana no seculo XIX, os dois conflitos mundiais no século XX, para não falarmos de inúmeros conflitos

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regionais que de modo mais intenso ou pacífico foram aflorando a vida dos seus povos, e que deixaram um rasto de carnificinas e destruição. Para além da unidade e da divisão política europeia, a Europa é também o continente onde surgirá a moderna ciência e a arte. São duas componentes da sua narrativa

que

não

podemos

descurar.

O

Renascimento (que se inicia nos finais do século XIV) caracteriza-se por ser um período de redescobrimento da antiguidade clássica, dos livros da filosofia, da ciência e da história da sua herança clássica europeia. A moderna ciência, que será também um dos instrumentos de dominação do mundo afirma-se como um dos pilares da narrativa europeia. Das várias realizações cabe destacar a cartografia e a ciência náutica, permitem navegar em mares abertos e construir embarcações resistentes aos mares que viabilizam o comércio transatlântico, o domínio da Pólvora Seca que permitirá uma supremacia militar sem precedentes, o desenvolvimento da arquitectura, que assegura a conquista. Mais tarde a botânica e a física irã permitir aos europeus construir vários mundos novos fora das suas fronteiras naturais. Grosso modo o ocidente torna-se numa alternativa do oriente e as revoluções agrícola e industrial conquistaram a natureza, garantido a supremacia europeia no mundo, elementos que estão bem presentes nas várias narrativas civilizacionais. Informal Museology Studies, 10, summer 2015

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Será também a Europa que inventará a Democracia, ou melhor reelaborará herança grega do governo de cidadãos, alargando-a aos diferentes corpos sociais. A invenção da democracia é uma história longa e complexa que fundamentará, por um lado a emergência do estado como instituição de regulação política dos territórios, e, por outro lado cria um sistema de regulação do poder

político,

periodicamente

renovado, através de sistemas de representação. organiza

em

Um corpos

poder

que

se

funcionais

de

legislar, governar e justiçar e que interagem entre si, mantendo a sua interdependência. O sistema Europeu de formação de estados estará também nos fundamentos da criação da ideia de Nação, que ao longo do século XIX e XX servirá de fundamento para as relações internacionais. A democracia parte da naturalização do ser humano, na ruptura com a teocracia e alicerça-se nos princípios da igualdade da liberdade e da fraternidade. Mas a democracia na Europa foi e é um importante campo de tensão social. Apesar do que pensou a Europa permanece como um espaço de conflito latente.

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Fréderic Nietzsche caracteriza a Europa como um “apolíneo dionisíaco”. Trata-se duma oposição entre razão (a europa do norte) e a emoção (a europa do sul) que se mantêm como fonte de tensão. No último painel procuramos sintetizar algumas questões que a europa enfrenta na construção da sua narrativa. Se por um lado a Europa inventou a vida moderna, o mercado, a máquina, a democracia, a cultura e as artes (a literatura, a musica a dança o teatro, a pintura, a escultura, a fotografia e o cinema) e amor, que se generalizaram por todo o mundo e que de certo modo se tornaram valores universais; enfrenta no seu seio importantes desafios de inclusão de outras formas de ser e estar no mundo global. Também ao nível político a tal democracia, como sistema de representação que a Europa enfrenta importantes desafios em termos de processos de representação e inclusão de dinâmicas participativas. A exposição termina com algumas questões em aberto que procuram abrir o debate. Qual o lugar da cultura cosmopolita na europa e no seio das suas nações? Que nova narrativa inclusiva? Qua valores vão ser usados? Que instituições?

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Também procuramos interrogar algumas questões sobre a Relação da Europa com o mundo. Nomeadamente quais as relações que procura estabelecer com as suas fronteiras? Qual o papel da Turquia? Haverá integração dos Balcãs? E na fronteira leste. Será o futuro uma Europa do Atlântico até aos Urais, incluindo a Rússia, ou regressaremos a uma outras Guerra Fria, que parecer estar a ser iniciada a Ucrânia. E finalmente qual será o lugar do Sul nesta Europa. Como é que ela se irá relacionar com esse mundo multipolar.

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A dignidade Humana e as novas narrativas

O

debate

realizado

foi

vivo

e

empenhado.

Contou

com

a

participação Carlos Poiares18 de João de Almeida Santos19 e de inúmeros docentes e alunos. Dele ressaltamos algumas questões que merecem destaque. Em primeiro ligar ficou claro que a Europa é uma construção política que procura a paz. A construção da europa é um processo de Paz, que conduziu ao mais longo período de ausência de conflitos directos no continente. É certo que se verificou a excepção da guerra na antiga Jugoslávia, um conflito que acabou por resultar da fragmentação duma unidade política criada na sequência dessa guerra. Um segundo momento fundador da europa relaciona-se com a constituição, primeiro da CECA (Comunidade Económica do Carvão e do aço), e depois da Comunidade Económica Europeia. Nesse projecto tiveram papéis relevantes Robert Schumann e Jean Monet e Konrad Adenauer. Finalmente num terceiro momento, a discussão sobre o processo económico (a política agrícola comum, por exemplo) passa a centra-se na dimensão política. Uma dimensão que será sempre polémica, com um campo de tensão a que podemos nomear federalistas (que tem como figura de proa Alfredo Spinelli, que em 1985 apresentará um Carlos Poiares- Vice-reitor da ULHT e director da Faculdade de Psicologia João de almeida Santos – director da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas e do curso de Ciência Política. Neste número, por razões que nos são alheias não foi possível incluir a sua intervenção. 18

19

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projecto de constituição no Parlamento Europeu20), e um outro campo de tensão que privilegia a “comunidade de estados sobramos”. Um processo que culminará com o Tratado de Lisboa, em 2007 onde se procurou um compromisso entre órgãos próprios da União (Parlamento, Comissão Europeia, Banco Central Europeu, Tribunal de Justiça, Tribunal de Contas, Represente Europeu para a Política Externa, Política Comum de Segurança de Defesa e demais agências); e o poder do Conselho

Europeu,

constituído

pelos

diferentes

estados.

Esta

arquitectura tem vindo a demonstrar que o poder decisório se mantém no Conselho Europeu. A prática também tem vindo a mostrar que com o alargamento aos Estados Bálticos e do Leste da europa, a comunidade de estado tem vindo

a

perder

relevância

para

uma

afirmação

dos

chamados

“directórios”, com a Alemanha a assumir um maior protagonismo. A crise económica e financeira de 2008 foi um factor que tem vindo a condicionar a vida política europeia, como o caso da Grécia tem vindo a demonstrar neste ano de 2015. A europa parece estar à procura dum novo lugar num mundo multipolar, onde o eixo de hegemonia transitou para o Pacífico, enfrentando o desafio da sua coesão interna como entidade política e económica. Haverá uma Europa para além da Europa é a questão que agora tentaremos sistematizar.

20

http://europa.eu/about-eu/eu-history/founding-fathers/index_pt.htm#box_11

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As diferentes narrativas sobre a Europa, as suas leituras sobre o passado e o futuro acentuam, do passado o legado mítico e os diferentes instrumentos e ferramentas construídas pelos europeus para conquistar o mundo; e sobre o futuro, o usso desses instrumentos como elementos distintivos. Ciência e Democracia parecem ser os dois conceitos emergentes nessa relação. Podemos criticar essa hegemonia, argumentando que a ciência também permitiu a construção das máquinas de guerra, que a europa pretendeu evitar, tal como a democracia não conteve o autoritarismo. Não faltarão hoje argumentos para criticar a falta de democraticidade da arquitectura política europeia. No nosso ponto de vista, como acima assinalamos a propósito da IX tese sobre a História de Walter Benjamin, não podemos continuar a esquecer a relevância do presente como ponto de partida. É nesse ponto que nos encontramos hoje. O que para nós é relevante nesta Ideia de Europa é a sua capacidade de ter pensado a dignidade da pessoa humana e das formas de como se agregam. Como afirma Habermas, em “O conceito de dignidade humana e a utopia realista dos Direitos Humanos” (Habermas, 2012) Europa afirma-se como espaço de afirmação da dignidade humana e de afirmação da sua pluralidade de configurações. Habermas disseca a emergência do conceito de direitos humanos, realçando que no seu enunciado se encontra a raiz da dignidade: da pessoa humana e dos povos. Demonstra que o conceito de dignidade se demora a consolidar, mas que ele está presente, quer Informal Museology Studies, 10, summer 2015

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na formação da memória, (do holocausto), quer na formação da “utopia”. Demonstra que direitos humanos e dignidade humana são inseparáveis, ao mesmo tempo que abre campo para a inclusão dos direitos sociais. A ausência do direito social, recorde-se, é uma das críticas que tem sido feita à teoria dos direitos humanos a partir da Epistemologias

do

Sul.

(Santos,

2011),

que

parece

ignorar

a

configuração do social e dos papéis sociais. A dignidade humana como direito fundamental parece ser um conceito a continuamos a aprofundar do ponto de vista teórico. Será possível uma Europa sem a respeito pela dignidade dos seus povos. A Grécia será um caso a seguir para melhor compreendermos as nossas opções.

Bibliografia Arendt, Hannah (2001). A Condição Humana, Lisboa, Relógio de Água. Benjamin, Walter (2012). Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política, Lisboa, Relógio de Água. Galtung, John (1998). Direitos Humanos: Uma nova perspectiva, Lisboa, Instituto Piaget. Habermas, J. (2012). Um ensaio sobre a constituição da Europa. Lisboa: Edições 70. Honnet, Axel (2011). Luta pelo Reconhecimento: para uma gramática moral dos conflitos sociais, Lisboa, Edições 70. Santos, Boaventura de Sousa. (2002). A Crítica da Razão Indolente: Contra o desperdício da Experiencia, Porto, Edições Afrontamento. Santos, Boaventura de Sousa. (2006). A Gramática do Tempo: para uma nova cultura política, , Porto, Edições Afrontamento. Santos, Boaventura de Sousa e Meneses, Maria Paula. (2011). Epistemologia do Sul, Coimbra, Edições Almedina.

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