Copyright © Editora Patuá, 2018. Na casamata de si © Pedro Tostes, 2018. Editor Eduardo Lacerda
Assistente Editorial Ricardo Escudeiro Revisão Bruna Mitrano Foto
Sara Cristina Trajano
T659n
Tostes, Pedro.
Patuá, 2018.
ISBN 978-85-8297-622-7 1. Poesia Brasileira I. Título.
1. Poesia Brasileira I. Literatura brasileira
Todos os direitos desta edição reservados à:
Editora Patuá Rua Luís Murat, 40 Tel.: (11) 96548-0190
B869.1
Ouça este audiolivro em soundcloud.com/na-casamata-de-si/audiolivro ou atravÊs desse QR-Code
s
m u
รก m
o ir
Parte 1
Casamata
Na Casamata de Si | 27 Como Ler um Livro de Poesia | 29 Por Que Ler os Clássicos | 31 Os Menores | 33 Et Caterva | 35 System Failure | 37 Peixe de Aquário | 39 Vazamento | 41 Fome | 43 Lâmina | 45 Estanca | 47 Estiagem | 49 Varanda | 51 O Céu Decorado por Bombas | 53 Bateau Mouche | 55 A Arte da Guerra Segundo Ovídio | 57 Fronteiras | 59
Parte 2
Guerrilha
Guerrilha | 63 Hattori Hanzo | 65 Canção da Guerra | 67 O Terror | 69 Parabéns Aos Envolvidos | 71 Preciso | 73 O Muro | 75 Bestiário do Apocalipse | 77 Brazilian Dream | 81 Medusa | 83
Sobre guerra e guerrilha. Sobre poesia.
Quando Pedro Tostes me convidou a acompanhar o processo de feitura desse Na casamata de si me chamou a atenção a temática da guerra como um processo interior, pertencente à subjetividade. Ora, sabemos que historicamente a guerra é um agente construtor de memórias, sentimentos de pertencimento e de identidade de sociedades, do mesmo modo que responsável por fragmentações, alienações e manipulações históricas de toda ordem. Ao pensarmos nas histórias individuais ligadas aos traumas da guerra, não raras vezes as
colocamos em perspectiva com a grande história coletiva. Os relatos de guerra, muito embora íntimos, pertencem a todos e a grande máquina que a move é operada por fatores e agentes externos e poderosos, mas que parecem alheios às disposições pessoais de cada indivíduo. Assim, quando o autor propõe uma casamata entranhada no sujeito poético, uma casamata constitutiva, ele subverte o eixo que movimenta esse imaginário e a guerra passa a não pertencer apenas a um “Grande Senhor da Guerra” ou à uma maquinação política que exclui outros agentes, ou qualquer instância totalizante. A guerra é de todos, pertence a todos, é uma disposição que eclode em cada um, até mesmo no poeta, que muitos não julgam perigoso, talvez porque esqueçam que justamente por ser uma ameaça é que foi expulso da pólis. Entretanto a guerra do poeta não é a mesma do usurpador. A guerra do poeta é de outra natureza, ela necessariamente eclode em guerrilha, em revolução. É o anti-status quo.
Nesse livro, Tostes rege os dois movimentos, o interno e o externo, a gestação da guerra e a guerrilha com um olhar afiado sobre o papel da poesia em momentos de grande perigo como o que se vive hoje, em que se exige novamente ação e reação contra a escalada do fascismo no mundo inteiro, inclusive no Brasil. Nesse contexto, o conjunto de poemas que aqui se apresenta documenta esse momento urgente sob o qual se inscreve. Entretanto não parece correr o risco de ficar datado: guerras sempre existirão. Além disso, é um discurso que se inscreve no espírito e no corpo. Um discurso de reação à destruição irrestrita. E a reação, sabemos, é intrínseco ao que está vivo. João Cabral em O cão sem plumas dizia: O que está vivo não entorpece. O que está vivo fere. E é isso que a poesia de Tostes faz: desperta, é aguda e fere. É um projeto poético e político muito bem realizado como o mecanismo de uma granada. Não há retórica gratuita, o corpo não será massacrado sem resistência. E há ainda uma beleza furiosa e simultaneamente sutil perpassando todo o livro.
Escolho para encerrar esse texto trecho de um poema que para mim resume esse trabalho. O poema chama-se Varanda e num crescente do que significa sair do forte e pegar em armas, a voz poética congrega o mundo natural possível em uma residência (casa, apartamento, quitinete, qualquer das opções) para o levante: trepadeira, coleóptero, mandacaru e espada de São Jorge. E é com este último que concluo, sem ponto final:
Vem rasgando a terra na chuva o broto que luta, armeiro de guerra
Micheliny Verunschk é escritora.
à minha família; à Caroline Nocetti, pelo apoio fundamental no projeto; à Micheliny Verunschk pela leitura atenta, pelo diálogo e pelo retorno cirurgico; à Bruna, à Daniela, à Jéssica, à Renata, ao Tomaz, à Alice, ao Rodrigo, à Ângela, à Lilian, à Carol, ao Manoel, ao Ademir, à Mariana, ao Davi, à Paula, à Nina, e a todos que me ouviram/apoiaram/leram/incentivaram nesses últimos meses.
“Amanhã, para os jovens, poetas explodindo feito bombas, O passeio à beira do lago, o inverno de perfeita comunhão: Amanhã a corrida de ciclistas Pelos subúrbios nas tardes de verão; hoje porém a luta.” W.H. Auden
CA SA MA TA
“Ouço dizer que há tiroteio ao alcance do nosso corpo. É a revolução? o amor? Não diga nada.”
Carlos Drummond de Andrade
NA CASAMATA DE SI
Não quero ser poeta de vestibular ter versos cantados consagrados canônicos com lastro de interpretação resposta certa e errada trabalhado em sala de aula citado pelos grandes mestres. Antes ser o poeta riscado em banheiro falado à boca miúda escrito em cantos do papel passado à mão de mão em mão sobrevivendo escondido com um fuzil habitando o que resta de nós.
NA C A S A M ATA D E S I 27
28
P EDRO T O S T ES
COMO LER UM LIVRO DE POESIA
Recomenda o bom gosto e o bom senso que o leitor faça as leituras na ordem constituída e na tessitura proposta pelo autor. No entanto, não raros leitores não se apegam a tais convenções, folheando desavisadamente o livro e esperando que alguma pétala exploda. Há livros de poesia que demandam uma relação carnal enquanto outros são pluma no vagão de um metrô. Acontece a muitos livros não se desvendarem por completo de uma vez, sendo degustados aos poucos no passar dos anos e horas.
NA C A S A M ATA D E S I 29
Isso pois um livro de poesia é também um oráculo que consulto para saber como vai ser meu dia mais até do que à astrologia! A poesia é um libelo contra a verdade constituída, uma armadilha pronta pra pegar um incauto ou mesmo uma avalanche soterrando sentidos.
30
P EDRO T O S T ES
POR QUE LER OS CLÁSSICOS
É que hoje os dias são mais breves e a cada passo se estreita o precipício. E a vida às vezes bate firme e é preciso ter pescoço duro pra não ir a nocaute. Não se deve jogar esperando ter o nome em uma placa dourada brilhante. Um diamante é sempre rígido e constante e mesmo bruto carrega em si o peso de sua glória.
NA C A S A M ATA D E S I 31
Pois mesmo que falsรกrios escondam do sol a sua luz a chuva sempre lava a terra e apรณs a enchente dentro da lama a vida guarda suas sementes.
32
P EDRO T O S T ES
OS MENORES
Vamos louvar os poetas fracassados, aqueles cuja lavoura não deu conta do riscado; os poetas de versos que ninguém vai lembrar, vomitados com bílis em uma porta de bar; os cuja atenção ninguém mesmo vai dar, que não te levam pra nenhum lugar; os que rimam em ão, os que rimam em vão; os poetas que não editaram revistas famosas, a quem ninguém dedica um dedo de prosa; os poetas inacadêmicos e inacabados, de pena torta sem qualquer lance de dados; os que não podem sonhar com o cânone, que nada ganharão com o próprio renome; os poetas cujos poemas ninguém vai comprar, nas prateleiras, esquinas, em nenhum lugar; os que insistiram em projetos estéticos patéticos, sejam eles herméticos, heréticos ou mesmo pouco poéticos; que não valem nem a metáfora mais antiga e carcomida, os que não manejam nem arco nem lira; que não arriscam na hora de escrever seus versos, repetem a esmo seus lugares comuns no universo; NA C A S A M ATA D E S I 33
os poetas de que ninguém vai sentir falta, sua poesia nunca mesmo seria alta; cujos versos jamais agradariam a malta, ou que tão doces soam sempre repetitivos; aqueles cuja poesia sequer é alívio; pois deles será o reino dos vivos.
34
P EDRO T O S T ES
ET CATERVA
Pari esse poema numa tarde densa, cinza e fugidia. Talvez, exatamente, por isso, esse poema não tenha nenhuma poesia. Esse poema me estuprou, num beco escuro, sujo e fedido. Talvez, exatamente, por isso, Esse poema não faça nenhum sentido. Caguei esse poema com paixão, fúria et caterva. Talvez, exatamente, por isso, esse poema tenha ficado uma merda
NA C A S A M ATA D E S I 35
36
P EDRO T O S T ES
SYSTEM FAILURE
eixo em que deixo e \/ deito os /\ sentidos | porta aberta da percepção | | por onde entra algum vento | | derretendo o suor | | deste corpo cansado | -----> seta que aponto -----> \ e quase sempre \ - error! \ ouvindo o \ silêncio \ cheio de grilos \ e o barulho \ incessante ___________\ de dedos nervosos / num teclado qualquer / querendo mostrar / pra todo mundo / o ridículo / que ninguém vê / este poeta de cuecas / e olhar inquieto / encarando de frente NA C A S A M ATA D E S I 37
o absurdo sob um sol que derrete a moleira (e / se não derrete causa danos) / destruindo o sistema operacional / da própria mente ao tentar / invocar do fundo / do âmago um desastre um monstro ][- - - - - - - - - - - ela a lira esse ][- - - - - - - - - vírus ataque terrorista ][- - - - - - - - space invaders ][- - - - - - - - - - - - - destruindo a ][- - - - - - - - -*inguagem e suas ruínas por dentro do mundo que morde e muda enquanto os cavalos atravessam a linha de chegada
38
P EDRO T O S T ES
PEIXE DE AQUÁRIO
solitário imerso em sua própria bosta preso neste imenso cubículo repleto de sonhos perdidos lembranças do que foi e outros tipos de lixo em vão nada rumo à superfície tentando respirar buscar comida algum sentido pra essa porra toda tão cristalina quanto os vidros da janela
NA C A S A M ATA D E S I 39
40
P EDRO T O S T ES
VAZAMENTO
as artérias da minha casa estão entupidas com a sujeira dos anos que acumulam e pressionam por toda vida o desespero e as paredes quebradas como eu e o meu saldo devedor credor apenas do destino mero clandestino da existência resistente eu sigo insistentemente buscando saídas que nem sempre aparecem
NA C A S A M ATA D E S I 41
42
P EDRO T O S T ES
FOME
desatinada noite entope de bagas o cinzeiro perdido entre pensamentos buscando vida nas palavras à luz do monitor procuro a cura pro veneno poços sem fundo - fome e a vida dividida entre a dívida e a dúvida não paraísos artificiais não me satisfazem mais como antigamente o sexo drogas e roquenrol era tudo que a gente tinha mas a guitarra quebrou a droga tava malhada e confesso que broxei NA C A S A M ATA D E S I 43
agora aqui diante desse branco pago cofrinho pro mundo entro fundo no meu prĂłprio pesadelo sisificamente preso em si sem nunca querer mais do que o incĂ´modo pode oferecer
44
P EDRO T O S T ES
LÂMINA
A lâmina desliza rente & precisa pela espuma em minha cara se alongando até o pescoço relembrando os dias idos diante do espelho; encaro a morte e não fujo: arranco à unha o sumo das horas. Cada linha mal traçada desse rosto é um rio desaguando nestes olhos que nasceram para ver mais do que o peito aguenta.
NA C A S A M ATA D E S I 45
Tantos córregos e seus leitos irrigam frutos das mais doces lutas que atravessam os painéis luminosos da desesperança. Um corte! - o vermelho se espalha entre o branco e a água lava o tempo escorrido pela pia: nenhuma gota de sangue revive os dias da fotografia.
46
P EDRO T O S T ES
ESTANCA
Da pele que estala dormem desejos e ardem tardes idas - nenhum peito é belo sem cicatrizes ; você sabe , não se pode ser frágil quando estranho ; sobrevivemos todos os dias a pequenos holocaustos : chacinas, acidentes de automóveis, abusos , desamores, falências , o sangue, a insônia , dias que não terminam.
NA C A S A M ATA D E S I 47
48
P EDRO T O S T ES
ESTIAGEM
morto após cada derrota as ressecadas folhas desta hortelã sedenta desfalecem os caules restando sobre o solo o verde que ali havia das coisas que um dia importaram pouco resta da lembrança senão os sorrisos que eu tive que esquecer e os riscos que corremos juntos foram belos os desvios do coração tempestuoso faz do erro a arte do encontro e pelas ruas caminha impávido e tranquilo rumo à hecatombe
NA C A S A M ATA D E S I 49
e do seu voo ao incerto plaina e pousa esse senhor do destino pois sabe que nas folhas que escrevo nem mesmo a morte se promete eterna ĂŠ que a chuva sempre vem e rega a erva perecida e a ĂĄgua traz o broto que faz o cheiro de hortelĂŁ sedenta se espalhar pelo jardim do peito
50
P EDRO T O S T ES
VARANDA
TREPADEIRA Num sol de 40 escala aquilo que abala feito o tempo tenta COLEÓPTERO Lento pousa o tanque no vaso seco no raso - forte, belo e estanque. MANDACARU A torre do cacto com frio não perde seu fio: permanece impacto. ESPADA DE SÃO JORGE Vem rasgando a terra na chuva o broto que luta, armeiro de guerra
NA C A S A M ATA D E S I 51
52
P EDRO T O S T ES
O CÉU DECORADO POR BOMBAS
Carrego em meu corpo uma faixa de Gaza cercada de rios, verde e ruínas Me exilo frequentemente entre delírios, morfina barata pra aplacar a dor. Prisioneiro de guerra, mando sinais de fumaça em busca de resgate ou retorno.
NA C A S A M ATA D E S I 53
54
P EDRO T O S T ES
BATEAU MOUCHE
Rotas velas dançam a canção do vento, o mastro aponta a lua e a diagonal corta o horizonte - lembrança do que foi embarcação; me afundo no raso encaro arrecifes - sou naufrágio sentimental: metade submerso em mim, uma ponta de dor desponta do mar. Não há tesouros de passados gloriosos que não o casco resistente a intempéries; piratas já não habitam o convés;
NA C A S A M ATA D E S I 55
da deriva não resta senão o desejo incontido, pois navegar é impreciso; e se bússolas não te guiam mais no céu ainda brilha encostando em sua proa o cruzeiro do sul.
56
P EDRO T O S T ES
A ARTE DA GUERRA SEGUNDO OVÍDIO
Amar é briga de foice açoite que o peito clama enquanto a bomba ainda pulsa; trincheira cavada no corpo por onde percorrem os cheiros de cuspe, de sangue, de gozo; napalm inflamando sentidos, o toque suave na pele que explode o fogo do ser; espada que fere sem fio e encrava no meio de si todo aço que vem no osso; exército de terracota enfrentando a força da chuva pra semear as flores; é conquistar o território apenas pra se entregar ao inimigo - bandeira branca, eu quero mais é te querer.
NA C A S A M ATA D E S I 57
FRONTEIRAS
perdidos entre ébrios pés noturnos na busca plácida dos caminhos do enquanto sem nunca saber quando e quais fronteiras cruzar somos partes do encontro entre as placas tectônicas esse acidente geográfico dos corpos que se esbarram sem nunca terem se encontrado temos na frente a avenida, que é tudo e desemboca nessas luzes da ribalta como um último voo planejado ou a partida limpa & sanguínea
NA C A S A M ATA D E S I 59
Guer rilha
“Todo poeta é um traficante de armas”
(Chacal)
GUERRILHA
Das mortes e artes que evoco no sustento da minha sede nenhuma almeja verdes ventos de sóis escancarados tampouco choro incontido ou víscera à toa - mas sobrevivência é a questão; se saio sem senso e sentido e verto meu nexo complexo no cerne da tua balada ou intento trazer do cheiro NA C A S A M ATA D E S I 63
de mijo da rua o perfume avesso à lira dos meus dias é que penso que tudo isso pode muito mais quando os fins forem não mais que o rateio dos meios e são imensos os rastros pegadas deixados na estrada: crimes noites mágoas adeus - condenados a contento não nos resta mais tempo.
64
P EDRO T O S T ES
HATTORI HANZO
Um poema duro como um homem afiado feito um hai cai tendo a força dos megatons capaz de eclodir revoluções incendiando a folha que escreve com a ferocidade de um samurai suave na doçura de cicuta tanque flutuando em zepelim silencioso como um morteiro
NA C A S A M ATA D E S I 65
66
P EDRO T O S T ES
CANÇÃO DA GUERRA
Sei que de certo está na fúria dos dentes a arte de amar tão bela quanto assaltantes de banco recitando Rimbaud. As janelas que nos olham não vertem lágrimas enquanto o néctar dos inocentes derrama nas noites Das coisas que não estão em nossas telas, sendo elas o abismo encravado em teus olhos NA C A S A M ATA D E S I 67
ou o riso das flores na lapela do findo transeunte Pois entre estrelas que cantam pra musa distante eu, planeta, vagueio orbito a pele elástica da ampulheta. E é tanta treta, punheta intelecta furtando o senso sem sangue nem medo nem peso nem nada - encarando essa parada dura e aguda como a força da letra & a briga de foice testemunho na vista: é depois do chorume que soergue a vida.
68
P EDRO T O S T ES
O TERROR
o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o
terror terror terror terror terror terror terror terror terror terror terror terror terror terror terror terror terror terror terror terror terror terror terror
do estado fardado invade a tua casa de terno exclamando bordão nas manchetes de jornal em muros grades estacas de edifícios habitando mansões assombrando a multidão promove chacinas genocídios trancafia o amor no cofre dos peitos justifica o terror lincha a todos igualmente está armado de argumentos quer te convencer que é inocente é um homem de bem sangrando os dentes em comentários de portais misturado no arroz feijão NA C A S A M ATA D E S I 69
o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o
terror terror terror terror terror terror terror terror terror terror terror terror terror terror terror terror terror terror terror terror terror terror
pra nos manter calados reformatando as almas organizando as filas levando pras prisões estampado nas vitrines em 30 segundos comerciais sufocando o teu ar do alto de arranha-céus faz sombra nos mendigos não gosta de crianças
vai estar lhe transferindo cochila às sextas-feiras não dorme nunca não te deixa dormir vende os teus rivotris é alucinógeno come teu fígado ainda vai te matar
70
P EDRO T O S T ES
PARABÉNS AOS ENVOLVIDOS
A todos que contribuíram com seus 10% para esta nobre causa; aos saqueadores de sonhos, mercadores do país do futuro que não teremos; aos ditadores do dia a dia, feitores rotineiros manejando as planilhas e aos infames pretendentes a Garrastazu Médici; a todos os censores de botequim, cagando regra na moral e vida alheia e aos linchadores e relinchadores do senso comum; aos nobres congressistas e judiciário e executivo corrompidos e aos seus confrades e mecenas corruptores que entopem suas veias com malas de milhões - sem vocês isso não seria possível; aos barões e oligarcas proprietários das ruas e dos dias roubados de nós; aos narcotraficantes de terno
NA C A S A M ATA D E S I 71
cortado, representantes oficiais dos senhores da guerra civil com seu exército nutrido à sangue e miséria; aos disseminadores de inverdades da velha e nova mídia, propulsores da ignorância e do descaso com o que há de humano, e aos artistas do marketing grandioso, sua vida e obra como cães fiéis dos senhores de engenho; aos fraudadores, sonegadores e inventores de impostos, larápios indiscretos, usurários do erário; ao voto obrigatório, introdução à fórceps da democracia em nossas bundas; a todo esse cimento dos monumentos a tempos do enriquecimento escuso ao custo do verde e vida dos nossos povos; às capitanias hereditárias da nossa cultura e suas pautas viciadas e ao escravagismo nosso de cada dia, chibata que estrala na nova senzala; aos que não satisfeitos em ter as benesses do mundo não aceitam de vez em quando ceder a vez e a todos os demais envolvidos: meus parabéns! O país é de vocês.
72
P EDRO T O S T ES
PRECISO
Nesse momento o sol despista o frio pra ver quem vence alguém aprende a andar de bicicleta uma pessoa descobre que ganhou na loteria enquanto outra perde o sono e as esperanças pessoas vagam no shopping alheias a tudo padres preparam a próxima missa um elefante tomba morto na África Nesse momento milícias fardadas chacinam favelas uma overdose está acontecendo surge o precipício no princípio da razão pelo orgasmo vai surgir a nova vida há um golpe em curso e outro anunciado estrelas constelam no céu da China alguém escuta Roberto Carlos em casa Nesse momento (e nem é sábado) um casamento acontece na praia cristais são jogados contra a parede o primeiro berro é dado NA C A S A M ATA D E S I 73
o último momento é vivido Maria é estuprada pelo marido manchetes gritam a próxima crise Paulo e Marcelo morrem de amor Nesse momento a despeito de glórias ou bordéis o mundo atravessa os meus sentidos e no entanto nada estanca esse poema
74
P EDRO T O S T ES
O MURO
nãohánadadeoutrolado domuro nãohánadadeoutrolado não cabe aqui a discussão do ser ou não ser poesia maisummurofoicriado de tão próximos as distâncias ficam maiores nas entrelinhas osdurosmurosdomundo orgânica e saudável a vida pede um recall praia, sonho, luares vidro fechado no farol
NA C A S A M ATA D E S I 75
praqueexistetantomuro música de elevador: estranhos bailam sua nervosa solidão semprehámaisummuro mas podendo ir mais fundo qual a ponte pro teu mundo? nãohánadadeoutrolado domuro nãohánadadeoutrolado
76
P EDRO T O S T ES
BESTIÁRIO DO APOCALIPSE
Mistério em Brasília ETs abortam invasão alienígena iniciada no Planalto Central. Os seres intergalácticos pretendiam dominar a terra com sua tecnologia mas ao assistirem a TV Câmara logo mudaram de ideia.
***
Extra! Urgente! Poeta marginal só entra no jornal na página policial: em eminente fresta literária um subversivo versador foi detido portando 9 exemplares de um livro de poesia. NA C A S A M ATA D E S I 77
***
A volta dos que não foram: cientistas comprovam que o FEBEAPA continua vivo e em plena atividade - 50 anos após a morte de Stanislaw Ponte Preta sua obra perpetua-se em nosso picadeiro.
***
O Ministério da Saúde informa: Prefeito Gestor pode causar indigestão na sua cidade. São Paulo não para exceto no trânsito sinal quebrado ou quando fura o pneu no buraco.
78
P EDRO T O S T ES
***
E nos esportes depois de alçado às Olimpíadas agora em Brasília a moda é o arrastão: empolgados com as Novas Diretrizes deputados arrastam para a latrina os nossos últimos direitos.
***
Em inação da Polícia Federal foi desbaratinado um galpão onde 60 musas eram mantidas em condições análogas à escravidão. Suspeita-se de organização poética financiada pela Lei Rouanet que lhes pagava 5 centavos por verso.
NA C A S A M ATA D E S I 79
***
E a última moda nas ruas das grandes cidades é bater com um grande tacape na cabeça antes de perguntar. Impressionados com o ressoar da penúltima trombeta do apocalipse, os cidadãos de Patolândia caminham armados até os dentes pra ver quem é que tem razão.
80
P EDRO T O S T ES
BRAZILIAN DREAM
Vou-me embora pra Miami Lá sou amigo do Mickey Lavo as privadas que quero Na pátria que escolherei Vou-me embora pra Miami Vou-me embora pra Miami Aqui eu não sou feliz Lá a existência é uma aventura que Roliude nos vende e Trump, o cara da grana quer fazer um muro grande ele é o presidente do país que nunca tive. E como farei ginástica Lavarei os pratos sujos Entregarei pizzas quentes Limparei muitos banheiros E a privada vai brilhar! E quando estiver cansado Vou lá pra Miami Beach NA C A S A M ATA D E S I 81
Mando chamar o Olavo Pra me contar as mentiras Que no tempo de eu menino Veja vinha me contar. Vou-me embora pra Miami. Só em Miami tem tudo É outra civilização Lá eu me sinto seguro Pra ostentar Rolex na mão Tem avenidas floridas Alka seltzer à vontade Tem I-Phone bem barato Nem precisa parcelar E quando eu estiver mais triste (Cucarachas não tem jeito) Quando de noite me der De querer voltar pra cá - Lá sou amigo do Mickey Lavo as privadas que quero Na pátria que escolherei Vou-me embora pra Miami.
82
P EDRO T O S T ES
MEDUSA
Dias cinzas, dias frios que espalham sobre as folhas a fuligem, não façam desse canto mero desencanto na luta do homem contra a Górgona das engrenagens contínua; mas brado de guerra retumbante, retomando os territórios do sentido. Pois do alto de arranha-céus eu vi tuas serpentes se espalhando pelo solo - Anacondas sufocando os pesares nas carruagens do tempo comprimido entre as agendas. Vi homens e mulheres tomando pílulas de alívio e felicidade, irmãos rotos de esperança NA C A S A M ATA D E S I 83
buscando restos no lixo e fazendo companhia aos ratos, vi cérberos adestrados latindo contra inocentes, templos erguidos ao Céu como monumentos do caos e em todos os cantos era possível ver suas marcas. As ruas tomadas de estátuas inertes caminhando - homens de pedra no cachimbo se perguntam na angústia o que sobra dessa dor - comprovam que a besta-fera domina esta paragem & destrói & destroça tudo aquilo que encosta - torna concreto o desencanto secreto do ser. Sigo no contrafluxo do tempo que sufoca os irmãos iludidos pela sua imagem no espelho; 84
P EDRO T O S T ES
me perco em seus recantos: Anhangabaú, Carandiru, Tietê Tucuruvi, Butantã - nheengatu esquecido nas esquinas. Eu sou o genocídio indígena, sou Sepé Tiaraju & Borba Gato & tenho nas mãos o sangue dos meus antepassados. Tupiniquim de Araque não confundo mais o cheiro da selva com o óxido carbônico de tuas serpentes: tu, monstro ctônico, cavalgada e cavalgante sobre nós se constrói pedra sobre gente sobre pedra sobre gente sobre gente sobre pedra sobre pedra sobre gente soterrando os sentidos. Por sobre os prédios vejo Éris dançando ao alvorecer seu balé diário; eternos retornos apertados nas lotações, vias & subterrâneos do teu Hades; sextas histéricas na volúpia da busca vazia, repleta de hiatos buscando no gozo dionisíaco a argamassa que preencha; fins de semana, desespero
NA C A S A M ATA D E S I 85
do sossego que antevê uma segunda depressiva para Sísifo; pequenas tragédias diárias traçam retratos de Pompeia. Quem entra e corrói no cerne das horas o fundo do humano? Quem manda e a mando de quem que se mata de frio de fome de bala qualquer irmão? Por quem dobram os Sinos da Sé? 111 chacinas diárias 21 milhões de seres empedernidos 457 telefonemas não atendidos por segundo 232 estupros registrados por mês só na capital 1 trilhão de saudades 12 crises de choro por dia 7 bilhões de angústias e em cada pessoa transformada em estatística eu sinto a sua presença.
86
P EDRO T O S T ES
O cheiro se alastra pelo templo que é o corpo e é o mundo também e logo ouço o tremor no chão com o peso dos seus temores monstro à espreita teu fino exército frio engravatado tecendo as mordaças, vidas desperdiçadas na miséria ou no luxo; mas se Perseu sou eu com que espada é que luto? tenho apenas minha pena de ser torto e ter devir; era pra ter escudo mas nos deram espelhos eis que encaro seu reflexo e vejo a face da besta: era eu que ali estava parado atrás de mim. Cada fera tem seus mistérios e a ti não deveria olhar por não saber o que veria e já que não te enxergo me guio pelas sombras e pelos ecos do teu ser; NA C A S A M ATA D E S I 87
não se sabe se é sina ou ilusão a simetria entre o homem e a besta, mas quando o perigo se aproxima não hesito e arranco a cabeça da Górgona enquanto caio morto no chão. E tudo que era você e aquilo que te cercava, suas raízes podres que daqui se espalhavam lentamente definham e desmancham demolem cada alicerce de tua torta estrutura. E a chuva que desaba dos céus alaga tuas ruas e esquinas submersa a cidade desafoga e das cinzas dos teus dias surgem flores de Afrodite que saúdam o novo tempo mesmo no cheiro de podre pois é da morte que surge vida nova em teu solo.
88
P EDRO T O S T ES
PUBLICAÇÕES
“o mínimo” (1a Ed. Ibis Libris, 2003; 2a Ed. Benfazeja, 2018) “Descaminhar (1a Ed. Annablume, 2008; 2a Ed. Poesia Maloqueirista, 2014) “Jardim Minado” (Patuá, 2014) “Na Casamata de Si” (Patuá, 2018)
Antologias “Quem Conta um Conto” (Giostri Editora, 2012) Orgs. Pedro Tostes, Hugo Possolo, Alex Giostri “Vinagre - Uma antologia de poetas neobarracos” (Virtual, 2013) Orgs. Pedro Tostes, Fabiano Calixto Dimenor (Virtual, 2015) Orgs. Pedro Tostes, Victor H. Andrade “Poetas do Jardim” (1996) Org. Ivo Torres “Poemas Cariocas (Ibis Libris, 2000) Org. Thereza Christina Rocque da Motta “Santa Poesia” (Casarão Hermê, 2001) Orgs. Alexandra de Moraes, Aldo Medeiros “Poetas do Jardim 2003” (Armazém das Letras, 2003) Org. Ivo Torres “República dos Poetas” (Museu da República, 2005) Org. Ricardo Muniz de Ruiz “Ponte de Versos - 4 anos” (Ibis Libris, 2003) Orgs. Thereza Christina Rocque da Motta, Ricardo Muniz de Ruiz
“I Concurso Carioca de Poesia” (Editora Contemporânea, 2006) Org. Cairo Trindade “Mais” (Gang Edições, 2006) Org. Cairo Trindade “Antologia Sadomasoquista da Literatura Brasileira” (Annablume, 2008) Org. Glauco Mattoso, Antonio Vicente Seraphim Pietroforte “Asfalto” (Publicações Iara, 2011) Org. Fernanda Grigolin “Relicário” (Publicações Iara, 2011) Org. Fernanda Grigolin “O pequeno livro sagrado do Menor Slam do Mundo” (DoBurro, 2012) Org. Daniel Minchoni “Portapoema” (Publicações Iara, 2012) Orgs. Vanderley Mendonça, Fernanda Grigolin “Uma vez poetas ambulantes” (Conecta Brasil, 2013) Org. Poetas Ambulantes
“Flanzine - Língua” (Flanzine, Portugal, 2016) Orgs. João Pedro Azul e Ubirathan do Brasil “Golpe - Antologia Manifesto” (Nosotros, 2016) Orgs. Ana Rusche, Carla Kinzo, Lilian Aquino, Lubi Prates, Stefanni Marion “Simultâneos Pulsando - Uma antologia fescenina” (Corsário Satã, 2018) Orgs. Fabiano Calixto, Natália Agra
FORTUNA CRÍTICA
“Não é de hoje que ele vem colocando a mão na massa, o pé na estrada e a mente no verso. Sempre de rolé pela cidade apresentando seus poemas sulfúricos, colocando as cartas na mesa, fazendo poesia de alta tensão, minando e cantando - suas bombas de flores.” (Fabiano Calixto) “...cabem a solidão de um ser humano inteiro, a sua rebeldia, a sua resignação e um lirismo fundo retirado da tragédia diária – existencial, política, afetiva – que é viver. (...) não pesa, porém, é denso. tostes sabe manejar bem um dos grandes mistérios que a poesia domina: o paradoxo.” (Adriane Garcia)
“Sem ousadia não fugimos do obscuro e, o Poeta, aqui, com a sua inesgotável irreverência, sua notável desproibição, o seu olhar voltado para as mazelas do homem, o caos do homem, nos conduz a um universo absoluto” (Celso de Alencar) “Pedro Tostes é um guerrilheiro poético. (...) Com humor e ironia, Tostes revela a cidade em fotografias ácidas e corrosivas. E expõe com rara sensibilidade as carências a temores mais profundos de seus habitantes. Como ele. Como nós (difícil não se identificar).” (Frederico Barbosa) “Pedro Tostes não é um cara legal com seu leitor. Justamente porque ele não quer leitores. Quer sobreviventes. (...) Tostes é justamente o cara que veio pra meter o dedo no bolo e acender barbantinho cheiroso no ar-condicionado, para passar o poema a quem de fato merece.” (Márcio-André) “Uma alegria para mim, e uma porrada a cada gesto. Há muito não lia algo tão forte, tão contundente e, paradoxalmente, tão genuinamente lírico e belo. Não há tempo pra descanso, o leitor não pode parar de se
surpreender. (...) Às vezes um humor aqui, um carinho acolá, mas o que persiste é o desejo confessado de se colocar os pingos nos iis com essa sociedade tão violentamente hipócrita; sem demagogias, sem bandeiras inúteis, só com o poder da palavra poética, como arma ou flor.” (Tanussi Cardoso) “Dono de uma poesia densa, com um humor ácido, Pedro Tostes, além de militante do movimento poético, é um dos mais promissores poetas brasileiros da novíssima geração neste início de século” (Cairo Trindade) “Eu tenho uma admiração muito grande pelo Pedro porque ele é um cara que leva a palavra, dentro daquele postulado do Octavio Paz que a poesia não é para ser escrita. A poesia não é letra não, a poesia é palavra. Palavra é muito mais que letra” (Manoel Herzog) “Poesia nasce quando o homem cansa de andar de joelhos. Fluidez ereta, alma nua, desvairada e imersa nessa pauliceia. Oceano que a gente entra pra ver onde vai e quando cansa, mais adentro... quando a gente vomita, sente náuseas e acha que é impossível continuar, o jeito é deixar doer e soltar mais braçadas, com raiva desse
mar que não deixa enxergar, sem esquecer que raiva é um tipo de amor que a gente nunca deixa passar” (João Martins) “Eu estou impactada com o livro. Não esperava algo tão forte e ao mesmo tempo tão sensível - como aquele poema de fazer a barba e pensar no tempo. A ironia deixa tudo mais interessante. Você pega pesado e quando parece que vai cair numa melancolia, você se ergue e dá mais porrada.” (Bruna Mitrano)
Esta obra foi composta em Adobe Garamond Pro em setembro de 2018 para a Editora Patuá.
Aqui o poeta se encontra desarmado até dos dentes. Com as unhas arranca o sumo das horas. Faz o impossível para sobreviver em plena selva paulistana & Brasil afora. Quem sabe agora dá certo.
Tiragem de 2.000 exemplares