NGOMA USUKU
PELÁGIO SECA
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CAPÍTULO I «…embora Rafael sentisse em suas veias um gás saudável e em seu coração uma alegria descomedida por se ter casado com ela, seus olhos se fecharam eternamente.» – Acabei – disse Carlos, suspirando depois de terminar a leitura do volume de folhas em suas mãos. – Trezentos e quatro já lá vão. Mais um pouco e atinjo a quota anual de trezentos e sessenta e cinco livros. O sábado foi bem aproveitado… Levantou-se da cama com indolência enquanto falava. Pousou o livro sobre a cómoda entre bocejos. Deu sete passos e olhou da janela de seu apartamento. Sentiu uma brisa que adjectivou de calafríaca. A sensação gélida fez-lhe lembrar da peculiar conversa que tivera com os seus amigos naquela mesma manhã: – Porque tens sempre de fazer isso às mulheres? – perguntou ele ao amigo. – Eu sou como um cavalo de corridas – respondeu Mauro em tom egotista –: porque esperar pela poeira deixada atrás se vencer significa seguir em frente? Tal frase personalista ainda estava em sua boca quando uma mulher – Paula era seu nome – apareceu com um olhar de predador. – É isso que eu significo para ti: um depósito de sobras?! Te divertes com as outras, dás-lhes tudo o que tens, enquanto eu fico com as exéquias fúnebres? – Antes de terminar a sua incursão verbal, deu as costas e levantou o dedo indicador. – E não penses que eu quis dizer «restos mortais»! Voltando à hora em que estava, algumas questões ocuparam o pensamento clínico de Carlos: – Porque ela não fez o mesmo que as outras? Porque não fez aquele género de escândalo que começa sempre com uma bofetada? Porque terminou o seu monólogo com «restos mortais»? Será que queria nos explicar o significado de exéquias fúnebres? Ou tinha apenas a ideia de falar qualquer coisa? As perguntas gravitavam em torno de seu cérebro com inquietude parcial, mas seu corpo já exprimia adormecimento, pedia descanso. Fechou a janela e andou de volta para a cama. No momento em que se deitava, o seu telemóvel tocou. Quem seria? – Alô?... Alô?... Alooô? Brincalhões! – vociferou ao desligar o telemóvel. Escapava-lhe o facto de que a pessoa do outro lado da linha tinha como intenção mudar abruptamente a sua vida.
* – Bom dia, caros telespectadores! Cresce o nível de criminalidade deste bairro. Como resultante exemplo, ontem, por volta das dezassete horas, um grupo de meninos de oito a dez anos de idade assaltou, de um senhor de meia-idade, quarenta e cinco mil kwanzas. Por ser relutante, foi morto a garrafada. Carlos ouvia, do quarto de banho, aquela não rara notícia enquanto cuidava da sua higiene bucal. Sobre a mesa da sala estava o que ele chamava de grande pequenoalmoço – tudo preparado por ele mesmo, afinal, vivia sozinho. Correcção: estava sozinho, pois os seus dois irrequietos, porém astutos, sobrinhos haviam pernoitado na casa de um colega. Era domingo, por isso, depois de tomar o pequeno-almoço, dirigiu-se para o seu atelier com o intuito de terminar o quadro que, com dúbio frenesi, intitulou de «Estamos em perigo ou somos um perigo?» 2
– Doze horas. Aqueles belicistas já deviam estar aqui – disse ao dar a pincelada derradeira, referindo-se aos seus sobrinhos. Andou até à sala e a esquadrinhou. Foi até à porta de entrada. Abriu-a, mas foi infrutífero. Fechou-a à frente de si. Foi até ao quarto deles – infrutífero. A situação começava a preocupá-lo bastante, quando elaborou mais de um pensamento no mesmo instante: Iria procurá-los em seu próprio quarto e, se não os encontrasse, telefonaria para a casa do colega. Subia ainda as escadas quando o pulsar de seu coração tornou-se angustiante. O pulsar ganhou taquicárdico como adjectivo. Porém, a três degraus do quarto, observou um casal de meninos sobre sua cama. – Atrasado cinco minutos para dar conta de nossa presença – ralhou jocosamente o rapaz ao olhar para o seu pequeno pulso. Derito era seu nome. – Porque não foi nos buscar? – perguntou a rapariga com austeridade disciplinar. Seu nome? Liliana. – Porque estava combinado que vocês viriam sozinhos, menina Já-Tenho-Nove-Anos-Por-Isso-Tens-De-Me-Dar-Um-Pouco-De-Liberdade – respondeu Carlos em tom gozoso. – Mas você adora estragar combinados e quebrar regras. Porque não fez isso desta vez? – perguntou ela, pulando para o colo dele, despreocupada com o avental de tinta que este trazia vestido. – Porque … Porque … Que resposta darias se estivesses na minha embaraçosa situação, Derito? – Diria, suspirando: Estou tramado. O quarto se encheu de gargalhadas.
* Após terminarem o almoço com Paula – sim, a mesma Paula dos «restos mortais» –, os gémeos foram descansar. Carlos e ela haviam combinado que discutiriam alguns pontos sobre o comportamento humano. Enquanto lavavam e arrumavam a louça, Paula libertou uma palavra aparentemente sem nexo naquela situação: – Raiva. – Como? – Raiva. Porque temos de demonstrá-la por acções, expressão facial ou palavras? – Olha para o prato que estás a enxaguar. Porque é que ele tem sempre de ficar sujo à hora do almoço e do jantar, e depois ser lavado? – Não sei. Ou melhor, acho que é porque é essa a sua função, a sua natureza, o seu … qual é a palavra? Propósito! – A tua resposta à minha pergunta responde à tua ou queres aquele género de resposta que começa com «visto que», o meio é feito com a frase «o nosso ego desencadeia», e o princípio da conclusão é feito por um afinado «portanto …»? – perguntou ele com jocosidade. – A pergunta que te farei pode ser tola, mas é minha, por isso não a descarto: Queres, com a resposta que eu dei à tua pergunta, que na realidade é a resposta à minha, dizer que, quando tenho … sinto raiva, não tenho escapatória: tenho de expressá-la, ainda que em silêncio? – E sai um vinte para a menina Paulinha! Riram-se.
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Após duas horas de conversa que alguns achariam entediante, Paula manifestou o desejo de voltar para a casa, não porque já se tinha enjoado do estranho jeito de Carlos mesclar o sério com o cómico, o responsável com o engraçado, não, era porque tinha de chegar cedo ao domicílio: Aquele era o seu dia de cozinhar para seis pessoas idosas que eram suas vizinhas. Sim, ela fazia parte de um grupo – com apenas um membro – que se dedicava à beneficência. Carlos lembrou-se das perguntas que quis fazer a ela na noite passada, mas, quando isso aconteceu, Paula já estava a sete minutos daí, num táxi. O relógio marcava dezassete e trinta e dois quando chegou ao seu apartamento. Liliana e Derito já haviam acordado e estavam sentados sobre o tapete da sala jogando videogame e cantando o kuduru mais popular. Carlos normalmente os mandaria parar de cantar mas, era um quebra-regras, entrou na onda. – Quem é? – inquiriu após alguém ter batido à porta. – Uma personalidade que, desde que veio ao mundo, é chamada de Mauro. Liliana levantou-se, andou em direcção à porta e abriu-a. Antes que pudesse tornar-se audível, recebeu uma guloseima das mãos dele. – Não faço a sucção de produtos sintetizados – disse, fazendo beicinho, a olhar para o presente. – Eu sei muito bem disso, senhorita Ecossistema Corporal, por isso trouxe duas grandes laranjas, uma para ti e outra para … – Mim – disse ela ao receber os dois citrinos e correr para a cozinha. – O quê? Carlos cantando kuduru? Chamem um doador de órgãos, temos um cérebro avariado! – Mauro articulou estas palavras depois de fechar a porta e aproximar-se das duas pessoas que pareciam se divertir. – Porque é que eu vou me impedir de cantar quando as minhas glândulas sebáceas, sudoríferas e todas as minhas células bailam a sério com este ritmo? – Comé, aquela falhada veio aqui? – cortou Mauro. Carlos olhou-o de soslaio com certa raiva e repugnância, mas, quando intentou replicar ao escarnecedor, o gongo Liliana tocou. – Muito bem, meninos. Trouxe gomos de laranja com mel para todos e… Derito preparava-se para tirar um punhado de gomos de uma só vez quando ela escondeu o prato atrás de si, e disse: – … antes disso terão de purificar as vossas mãos com água e sabão. Derito foi lavar-se na cozinha a resmungos, ao passo que Carlos e Mauro foram fazer isso no quarto de banho. – Então, ela veio aqui ou não? – perguntou Mauro, dizendo o «ela» com um certo tom de desprezo, enquanto limpavam as mãos em toalhas separadas. – Falhada é uma pessoa que, por pensar só em si, ignora os sentimentos de outras. E isso, ela não é – disse isso lembrando-se do adjectivo que ele atribuiu a Paula na sala. – Ah! Tu estás cheio de teorias! Por isso é que até hoje não tens namorada. Passaram-se quatro horas desde que aquela pergunta provocativa sem ponto de interrogação havia sido feita. Carlos deixou-a sem resposta, mesmo na hora em que Mauro se levantou para dizer a sua frase costumeira em que misturava inglês com calão angolano: – Bem, I will bazaring for. Carlos certificou-se de que os gémeos haviam cuidado de sua higiene bucal e orado antes de dormir. Após isso, subiu para o seu quarto. Quando os seus olhos se preparavam para cerrar e abrir apenas no fim da madrugada do dia seguinte, o telefone tocou. Aconteceu o mesmo da noite passada. Carlos decidiu retornar a chamada. Chamou, chamou, chamou. Ninguém atendeu.
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«Talvez esteja com medo de atender, ou talvez goste de ouvir o seu móvel a tocar; talvez tenha posto o volume da campainha no vibrar, ou, pior, no silencioso» – pensou ele ao desligar o seu aparelho de telecomunicações. E, no mesmo instante, dormiu, continuando a ignorar o facto de que mudanças abruptas em sua vida seriam causadas pela pessoa do outro lado da linha.
* Meio-dia e meia. Os gémeos há muito estavam na escola e Carlos assistia à última aula na universidade. As palavras do professor, antes de sair, foram: – Quando estiverem a redigir um trabalho – dizia ele com tom de indignação – não me apresentem uma cópia dos livros que consultaram. Se quiserem me aldrabar, mudem, pelo menos, uma preposição ou uma vírgula; não me tragam algo que pareça muito autêntico do original. Carlos nem ocupou o seu pensamento com as quatro últimas palavras do professor. Não quis rir-se daquele crasso erro e, por isso, resolveu chamá-lo de tautologia. O seu pensamento estava ocupado com perguntas em relação a Paula e quem seria a pessoa que lhe telefonou aquelas duas vezes sem dizer nada. Estava também ocupado em achar uma solução para a falta de maturidade de Mauro. – Carlos. Carlitos… – foram essas palavras, provindas de uma boca feminina, que quebraram os seus pensamentos. – Oh! Oi, Susana. Sim, Susana, a moça de vinte e três anos que por muito tempo Carlos se cansou de lhe dedicar poesias. Usou contra ela todos os ataques masculinos que, teoricamente, fariam com que ela caísse em seus braços: declamação por telefone usando um tom sedutoramente másculo, respeito, presentes, mensagens por SMS, e, é claro, conversar face a face com ela com um olhar afogueado que a despia. Mas foi tudo infrutífero. Ela parecia ser feita de aço, parecia insensível, imune à sedução, parecia … isso: inumana. – Podemos aparecer em tua casa à sonoite? Temos algumas dúvidas sobre a matéria do professor Nsango. As palavras e o tom como foram proferidas pareciam formais, impessoais. A razão? Ela sentia saudade do tempo em que Carlos a flertava intensa, fugaz, mas docilmente. Sabia que o desejo dele era, no fim, casar com ela, mas decidiu chamar tal aproximação idílica de flerte porque se sentia culpada por não ter reconhecido mais cedo o seu sentimento romântico por ele. – Às dezanove vou correr com os meus sobrinhos. Podem aparecer às vinte e trinta? – ‘Tá fixe. O corpo majestoso de Susana começou a afastar-se após aquela resposta e, no mesmo instante, Carlos teve de ignorar a sua libido e se lembrar que estava na hora de ir buscar os gémeos.
* – Tio Carlos! – Este chamamento havia saído ao mesmo tempo da boca de Liliana e Derito. Os dois corriam ao seu encontro enquanto tiravam as batas. – Gostaram das aulas?
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– Yá. – O que é que queres dizer com «yá», menina? – Yá é uma forma abreviada de dizer que em Geografia falámos dos diferentes tipos de relevo: planície, planalto e montanha; em História falámos das fontes históricas: oral e escrita…; e em Ciências da Natureza aprendemos coisas sobre a digestão: que começa na boca, e blá, blá, blá… – respondeu Derito com rosto e voz de advogado que defende despreocupadamente seu cliente. – Mas isso vocês sabem há muito tempo! – É. Por causa disso, a professora pediu que a mocinha que pega a tua mão esquerda desse oportunidade para que os outros alunos respondessem às perguntas que ela fazia. – Mas mais ninguém estava a levantar a mão – disse Liliana, fazendo uma careta a Derito. Iam em direcção ao candongueiro que os deixaria mais perto de casa quando, de repente, a cabeça de Derito se tornou o amortecedor da queda de uma pedra atirada por um rapaz que tentava tirar figos. O rapaz nem se predispôs a pedir desculpas, pôs-se logo a correr, sorrindo. A situação desequilibrou a mansidão de Carlos. Deixou de ver o pequeno inchaço que a pancada tinha feito na cabeça do sobrinho e foi, ferozmente, atrás do culpado. Alcançou-o, pegando bruscamente em seu pescoço. – Me larga, ó! Me larga! – vociferou o mancebo. – Quando pedires desculpas ao meu sobrinho, tal acontecerá. Arrastou-o até chegarem perto dos gémeos. O rapaz era relutante, por isso, em vez de desculpas, de sua boca sem qualquer higiene oral saíram apenas incontáveis ofensas. O pior foi quando, para se mostrar o rei do bairro, projectou sua saliva putrefacta para a cara de Liliana. Os olhos de Carlos ficaram vermelhos. A mão direita apertou com mais força o pescoço imundo do rapaz, enquanto a direita lhe torcia um dos membros superiores. – Sabes quem eu sou? – disse Carlos, irritadíssimo. – Eu posso subornar a morte e dizer-lhe que te deixe vivo mesmo que estiveres com queimaduras do terceiro grau no cérebro. – Ah! fecha o tubo! O furor de Carlos tomava um rumo descontrolado. Apercebeu-se que, se não largasse o mancebo, esganá-lo-ia, por isso, libertou-o. O rapaz voltou a correr e desapareceu num dos becos, expelindo peçonha injuriosa a pulmões abertos. – O Derito só precisa de alguns cubos de gelo, mas eu, eu preciso de uma cara nova – disse Liliana para quebrar a tensão, obtendo desejáveis resultados.
* – O nosso problema é como e principalmente o que escrever nesta tarefa do Nsango – confessou Susana, fitando Carlos. – Alguém pode me lembrar em que consiste a tarefa? – inquiriu ele. – Temos de elaborar um texto prosaico ou poético que fale sobre identidade cultural, numa vertente diferente das que temos lido em livros, ouvido nas músicas, assistido na televisão … – respondeu uma das duas colegas que Susana havia trazido. Edna era o nome desta, o da outra, Amélia. – Peguem todas numa folha branca e um lápis – demandou Carlos. – Vamos escrever o que nos vier à mente sobre isso. – Já tentámos, Carlos. Foi em vão – disse Amélia, gracejando. 6
O homem que promulgara a demanda teve a vontade de proferir as palavras «preguiçosas» e «dependentes», mas conteve-se. Teve então a brilhante ideia, ou talvez a mais pardacenta que pôde engendrar, de ele mesmo fazer uma poesia que, para elas, serviria de guia. Passados quarenta e sete minutos de silêncio, tornou-se audível. – Acabei. Ouçam atentamente, porque não vos vou dar para ler: Sou angolano? Introdução – Faço-a com a mesma palavra E, com dedicação, Exalo minhas ideias como lava Tento queimar preconceitos, Propositados erros e inocentes enganos Sei que todos humanos, assim como eu, Não são perfeitos Mas não vou generalizar, Vou falar particularmente dos angolanos Desenvolvimento É o alvo a atingir de leigos e intelectuais Mas parece não passar de mero pensamento Quando os sentimentos do proletário É adjectivado com ais Mas, desisti de falar dos angolanos, Vou, enfim, Falar só de mim Às vezes me acho de forma descomedida Inteligente Mas há tempos em que Me esqueço Se Angola fica em que parte do continente Gosto de dilacerar um bom funji de moamba Mas será que deixo de ser angolano se Não me lembrar Onde se situa a Serra da Leba? Eu sei que, no calão, A camisola pode ser chamada de Mbila, grife ou bibe Mas, a welwitchyia se situa em Cabinda, Bengo ou Namibe? Eu também sei falar: «Mô nagger, aquele mô wey te espanca» Mas não sei Quais são as reais cores da palanca Quando a bola te passa entre as pernas Eu inclusivamente grito: «Cagô! Yona!» Mas não sei
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Informar onde fica o Parque Nacional do Iona Deixo de pertencer a esta terra por ser assim? Deixo de ser útil à sociedade? Deixam as minhas ideias de ter força Ou um atarracado frenesim? Deixo de ser Um dos integrantes da Muangolé Squad? Deixo de ser Preciso ou apreciado? Tô mbora paiado. Conclusão É o primeiro termo desta estrofe E, sem protelar a minha imaginação, Espero que vocês tenham coragem De tirar os vossos versos do cofre Não sei se o que vou escrever agora Será o certo ou a falha Mas, esta pergunta, vocês têm de lê-la: Será que não conhecer a música preferida De minha filha Me impediria de salvá-la? – Não precisas dizer mais nada, mô ciente – disse Amélia com brio cómico. – Depois de ouvirmos isso, as ideias na nossa cabeça tão à nduta! Entre olhares discretos, Edna apercebeu-se que Susana quis ter um longo momento a sós com Carlos. – Bem, a Susana quer tentar pôr uma pequena gaze na insignificante queimadura que fez ao coração do dono do apartamento, Amélia – foi este o eufemismo utilizado por Edna que denunciou a amiga, fazendo Carlos aperceber-se da real razão de ela estar aí. – Então se eu disser: «Tenho assuntos importantes ainda pendentes em casa», e tu disseres: «Oh! Também eu», o Carlos não vai dizer: «Por favor, fiquem mais um pouco e acabem as vossas tarefas, além disso, adoro a vossa companhia», não é, Carlinhos? – Que Deus vos acompanhe – respondeu Derito com uma voz ensonadamente rouca. Gracejaram. Após a saída das duas colegas, os gémeos foram para o quarto à voz de Carlos. Já não foi dado azo à higiene bucal porque, após terem chegado dos exercícios, todo o seu corpo recebera o refrescante tratamento devido. Entregar-se aos prazeres da alimentação também não foi possível; o cansaço imperava. Dormir era a única solução daquele problema sem valor de incógnita por descobrir. O mesmo não se podia dizer de Carlos, visto que a palavra que ouviria a seguir o deixaria atónito. – Aceito. – Diz? – Aquele pedido que me fizeste há seis meses e dois dias, aceito. Aquela declaração não era algo para se acreditar, não, era para se sentir: sentir a respiração acelerada, as batidas cardíacas descontroladas, calafrio apenas na parte esquerda do pescoço e o olhar a tartamudear. Carlos tentou resfolegar antes de ripostar àquele ataque. – Sei que é ao meu pedido de na… – a voz falhava-lhe. – Sei que é ao meu pedido de namoro que te referes e… 8
Susana abraçou-o. Carlos sentiu a paz de um amor finalmente correspondido a invadir-lhe a alma. A sensação era agradável. Sua mente apagou num ápice a tristeza que sentia quando ela mulher aparecia em seu campo de visão; perdoou-a por um dia ter agido de forma insensível com ele. De forma lenta, Susana afastou o rosto do pescoço dele e tentou aproximar-se de seus lábios. – Sabes tão bem quanto eu que isto é precipitado – disse ele ao afastá-la – e, além disso, os princípios religiosos que temos e o temor salutar de desagradar a Deus que possuímos nos impedem de fazer isso. – Tens razão. Me deixei apanhar como que com isca pelo meu próprio desejo. Deixei até o desejo se tornar fértil. Ainda bem que foste forte e não me deixaste fazer nada de errado. A incidental conversa corporal passou, de um momento para o outro, a ser uma conversa profundamente religiosa. Para evitar mais desvios como aquele, depois de alguns minutos, Susana voltou para casa. Carlos deu azo a higiene bucal após algum tempo e se dirigia para o seu lugar de descanso quando, a três degraus do quarto, encontrou um envelope. Na extremidade superior direita da parte traseira do mesmo estava assinado, em letras desenhadas, Susana. Não foi necessário o costumeiro «De: Susana, Para: Carlos». «Susana» era o bastante para que ele compreendesse. Entrou para o quarto. Sentou-se. Abriu o envelope e começou a ler. Leu, releu. Quando já estava na oitava vez, o telefone tocou, porém, não prestou atenção a chamada. Limitou-se apenas a pôr o volume da campainha do aparelho no silencioso, e voltou a ler.
* Já eram catorze e trinta e o almoço estava a ser confeccionado: Liliana bateu o funji de bombó; Carlos fez o molho de quiabo com cabuenhas; e Derito coou e açucarou a agradável quissângua de fuba de milho. Era um caso para se dizer «Esses gajos vão s’aboná» ou «Eles vão s’alagudá», mas três visitas inesperadas, porém aprazíveis, chegaram mesmo no momento em que eles acabavam de orar e se preparavam para o bromatológico ataque. Seus nomes? Paula, Mauro e Susana. O «boa tarde» triplo e o auto-convite de se sentar e almoçar não foram deixados sem resposta nem negados pela hospitaleira família. A comida era suficiente para todos. Paula quis voltar para a casa quando viu Mauro a subir as escadas, mas, por causa do beliscão que Susana lhe deu como indicador de que aquela acção mostraria fraqueza de sua parte, também estava ingerindo aquele maravilhoso manjar. – Bem, como diz o mais novo ditado: «Visitas chegaram, comeram, comeram, a louça lavaram» – disse Carlos no fim do almoço. – Xé! Você quer dizer que eu, Mauro, vou pôr as mãos na água e lavar pratos de funji e copos de quissangua? A ideia não me agrada nada. Notaram as rimas? Mauro articulara aquelas palavras enquanto levava a louça para a cozinha. Visto que Susana havia se oferecido para ir ao clube de vídeo alugar um excelente filme de desenhos animados com Carlos, Paula teve de ir à cozinha com o insuportável. – Então, estás a pensar mesmo em terminar o nosso namoro? – perguntou Mauro ao receber o último prato que Paula lhe passara após se terem volvidos vários minutos. – Acha que entre nós existiu algo que possa ser chamado de namoro? – Bem, nós íamos juntos a festas, andávamos de mãos dadas e arrebatadoramente nos beijávamos de modo constante…
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– É esse o seu conceito acerca de uma relação basilar romântica que nos leva a uma relação superior a dois bem estruturada? Seu pensamento é vazio. – «Vazio»! – exclamou ele gargalhando. – E o que dizias quando eu te dicava, o modo como rias à toa só com o meu olhar, a maneira como ficavas panca e boela quando eu te falava ao ouvido? Isso também é «va-zi-o»? – Porque é que és tão salafrário, tão reles, tão biltre, tão… pusilânime? Ela dirigia-se para a sala em fuga e, levantando o dedo indicador, culminou o seu discurso com as palavras: – E não penses que eu quis dizer «idiota»! – Ah! Finalmente deixou de me tratar na terceira pessoa, sua… Mauro olhou para o lado esquerdo e, ao ver que Carlos e Susana já haviam chegado e deduzir que o casal havia ouvido aquela conversa desde o princípio, refreouse. Carlos presenciou novamente aquele jeito ímpar de Paula agir: o de usar palavras difíceis quando estava irritada, terminar o seu discurso levantando o dedo a seguir ao polegar, e dizer algo que definia, em português simples, os termos enunciados atrás. Carlos quis perguntar-lhe «porquê» naquele exacto momento, mas não era a altura certa. Protelou. Liliana e Derito estavam no seu quarto presenteando sua audição com música clássica enquanto esperavam pelo tão almejado filme. Carlos foi chamá-los, enquanto Mauro preparava tudo relativamente ao vídeo e ao televisor.
* Carlos quis perguntar a Susana como ela havia conseguido pôr o envelope sobre aquele degrau. Mas, receber uma resposta tão rápida a um problema que ele achava interessante seria fácil demais. Aquele homem gostava de formular hipóteses, de obter soluções por dedução de factos: sim, o silogismo era seu amigo achegado. «A Edna e a Amélia não se levantaram da mesa. A não ser que tenha sido… Derito! Aquele malandro! Ele … não. Ele estava a dormir como uma pedra. Mas, e se…» – Pu-la quando me pediste para ir ao teu quarto buscar mais folhas brancas. Com essas palavras, Susana deu a resposta que Carlos quis obter sozinho. A fácil resolução deixou-o parcialmente irritado. – Eu sabia que estavas a pensar em como eu deixei aquela carta sobre a escada. E, como sei que não gostas que solucionem os teus problemas, respondi de propósito, para te importunar. Sabes que ficas lindo quando estás nervosinho? – Vais pagar caro por isso. Estás de castigo. Vais lavar os meus pés hoje. – Ouço e obedeço, Senhor Namorado Perfeito. Já eram vinte e uma e quarenta e três. Mauro e Paula já haviam regressado aos seus domicílios há trinta e sete minutos, e a vez de Susana chegara. Paula teve de manter o seu espírito hirto e firme para não desviar dos carris um comboio inteiro de bofetadas para a cara de Mauro quando ele pediu para beijá-la no rés-do-chão do prédio onde Carlos vivia. Ela nem se deu ao esforço de o despedir; só quis chegar à casa e confirmar se as pessoas a quem ela alimentava com imensurável dedicação haviam recebido o devido tratamento de suas primas «bodeiras». Ainda bem que, quando ela chegou, pôde constatar que elas não haviam novamente trocado uma acção de caridade por aquelas festas, que muitas vezes eram promíscuas e com títulos imorais como «Tarracha Suada», «Langerie À Mostra» e «Sem Roupa Interior».
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Carlos despediu-se da namorada. Deu azo à higiene bucal e ao costumeiro boa noite aos sobrinhos e, enquanto subia as escadas em direcção ao quarto, lembrou-se das frias palavras que Susana havia lhe dito há seis meses e quatro dias. Sentiu-se contristado por tudo o que ouvira. Bocejou ferozmente sobre a cama mas, quando endireitava a almofada para adormecer, o seu telemóvel tocou. O número era o mesmo das três vezes passadas. Pela expressão em seu rosto, depreendia-se que aquela seria a vez em tomaria conhecimento de que sua vida estava prestes a sofrer uma severa mudança. – Alô? – inquiriu após ter atendido a chamada. – Carlos – chamou a voz do outro lado da linha – quero os meus filhos de volta.
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CAPÍTULO II O pequeno-almoço já estava sobre a mesa. Liliana e Derito haviam feito o mesmo antes de o tio acordar, como era da praxe às quartas-feiras. – Bom dia! – cumprimentou Carlos. – Dormiram bem? – Bom dia, tio – respondeu Derito. – Bom dia – retribuiu Liliana. – Tens espuma na orelha esquerda. – Obrigado – disse ao limpar-se. – Envia o leite, Derito. Oraram. – As sandes e o leite estão uma mistura fatal; muito fixes – elogiou Carlos, ao fim de alguns minutos. – Eles são como nós: não podem ser separados – disseram os gémeos em coro. Carlos observou-os por alguns minutos enquanto comiam. Momentos depois, disse-lhes que iria buscar a sua pasta lá acima, mas, a três degraus do quarto, uma lágrima caiu.
* Susana chegou à casa um pouco preocupada. Carlos havia se comportado de modo não vulgar com ela. Nem sequer a havia elogiado ou dito uma frase engraçada como fazia sempre. Descalçou as sapatilhas ao entrar. Andou até a geleira e tirou um pacote de sumo natural. Enquanto sentia seu vigor sendo regenerado por aquela gelada bebida, sua cunhada chegou. Beth era o seu nome. – Oi! – cumprimentou a outra. – Ajuda-me a trazer as compras que estão no carro, por favor. Foram até à rua. – Uau! Para que será isso tudo, Beth? – … Podes, só por obséquio, fazer só o que eu te pedi sem nenhuma pergunta? – Tá bem. Mas … estás tão respeitosa porquê? – Adoras quando estou sanzaleira? Beth era a esposa, melhor, a mulher com que Júlio, o irmão mais novo de Susana, vivia por causa de um deslize. A história resumida era a de ele, no passado, chamá-la diariamente por meio das crianças do bairro, e ela vir sem hesitações. Ficavam sempre trancados no quarto e, mesmo com os repetitivos avisos da irmã, o que ele dizia era que conseguia controlar-se. Todavia, num dia em que Beth viera coberta por roupas largas e compridas até o pescoço, Júlio havia se sentido mais curioso do que era costume, e deu no que deu: um filho que, no início, parecera não desejado; uma mulher que ele depois pensou ser a companheira indesejável; mas, depois, uma família que ele acabou por amar como a própria vida. Depois de acabarem o estafante trabalho de retirar o que havia no automóvel, Susana ousou gastar o fôlego restante com palavras. – Tô morta. Não vais mesmo me contar o porquê de teres trazido todo o supermercado para a casa? – Não. Mas vou te dizer que o teu irmão pediu para te avisar que quer conversar com o Carlos logo à noite. – Porquê?
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– A resposta a essa pergunta não te vai fazer ganhar mil barras de ouro. Diz-lhe também que aqueles sobrinhos dele fofos podem vir. Susana percebeu que aquela informação só era passível a uma dedução, mas estava mais preocupada com o comportamento de Carlos. Telefonou para ele sem demora. – Alô? – inquiriu a pessoa do outro lado da linha. – Oi, Carlos! Logo à noite tens tempo para vir aqui com o Derito e a Liliana? O meu irmão quer falar contigo. – Não entendi porque esses dois chatinhos também têm de ir mas, 0k, depois da corrida estaremos aí. – Tá fixe. Tchau. Ela conseguiu perceber que, mesmo no tom alegre dele, havia uma voz nos bastidores de seu timbre que conversava sobre tristeza, medo e angústia. Todavia, para limar um pouco as arestas daquela inquietação, foi tomar um banho gelado.
* – Boa noite, mamã. – Boa noite, filhinhos. Onde é que está o vosso pai? – O papá foi comprar um presente para a senhora. Daqui a pouco está aqui – respondeu Derito para acompanhar a piada que Liliana e Susana faziam à porta. Ao entrarem, notaram que Paula, Edna, Amélia, Mauro, e mais algumas pessoas, também tinha sido convidados. Quando Carlos chegou, foi o próprio Júlio que lhe abriu a porta. Passados alguns minutos e engolidos já alguns comes e bebes, o irmão de Susana se predispôs a explicar o que comemoravam. – Estimados senhores e senhoras, cara irmã, aceitável cunhado e… gastrófilos gémeos, quero muito resumidamente avisar-vos a razão de estarem aqui hoje a ajudar a acabar a comida da minha dispensa. A razão é dupla: primeira… o facto de, finalmente, Carlos e Susana terem começado a namorar, e, segunda, Beth e eu nos casaremos em breve. Beth não conhecia a segunda razão. Foi um choque de felicidade para ela ouvir as últimas sete palavras provindas da boca do homem que lhe dava sempre «calmantes» quando ela tocava no assunto casamento. Enquanto tentava enxugar uma das lágrimas que desciam de seu rosto, Tinho, seu filho de três anos, trazia uma caixinha preta com um lindo anel por dentro.
* Seis e treze. Susana acordara parcialmente tarde, não porque o convívio da noite passada se havia estendido às altas horas da madrugada, não, era por causa do gracioso urso de pelúcia que Carlos lhe havia oferecido. Ele tinha sido perfeitamente gentil, atencioso, e havia dado gargalhadas a noite inteira. Aquela atitude fez Susana pensar que o seu comportamento esquisito fora um embuste para que ela recebesse aquele presente com maior impacto. Levantou-se da cama e dirigiu-se ao quarto de banho. A água gelada precipitou-se sobre seu corpo na companhia de espuma por algum tempo. Ao terminar, saiu do
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banheiro na ponta dos pés até ao quarto. Depois de se secar, vestiu-se de modo mais feérico, deslumbrante, do que era normal: pôs um lindo pulôver creme que lhe realçava o busto e a invejável cintura, um par de calças azul celeste que lhe ficaram justíssimas, sapatilhas com a mesma cor do pulôver com barras do azul das calças, arranjou o cabelo de forma sumptuosa, e, como toque final, passou sobre os seus lábios cor-de-rosa um brilho suavemente indecifrável. Saiu do quarto. – Eh-eh! – exclamou Beth ao vê-la. – Ontem o patinho feio… quer dizer, o cisne foi aperfeiçoado. O que foi que ele te fez, hein? Susana olhou apenas sorrindo para a cunhada; coçou a cabeça do irmão, deu um beijo ao sobrinho, tomou um copo de leite, e saiu cantarolando.
* – Você tem certeza que é deste planeta? – inquiriu Carlos após o professor ter abandonado a sala de aulas. – Porquê? – perguntou Susana sorrindo. – Acho que…tenho certeza que mulheres como tu vêm do planeta mais distante do sol. – Urano? Mas aí é tão frio! – Não. Urano vem antes do planeta mais distante do sol. O mais distante é o Perfeição. – Pára! – imperou, dando uma gargalhada. – Deixas-me envergonhada. – Não, a sério. Mulheres como tu não são deste século; ainda são ficção científica para as pessoas que estão vivas nesta época. Tu és do futuro, miúda. Susana teve vontade de agarrar aquele rosto poético e oscular a boca de onde saíam, em tom exageradamente sedutor, aquelas palavras que a encabulavam, mas o outro professor já estava à porta. Enquanto a aula decorria, ela notou que o semblante do namorado oscilava entre alegria, seriedade e tristeza profunda, hipocondria. – Carlos, amo-te – sussurrou-lhe. Aquelas eram as palavras pelas quais ele havia lutado por quase quatro anos e meio para as poder ouvir. Elas entraram em seu sistema auditivo e caíram no precipício de seu coração. O problema que afligia aquele homo sapiens masculino de vinte e cinco anos, alto e esbelto, foi naquele momento, esquecido. Ele não parou de sorrir e de olhar para ela até o fim de todo o dia lectivo. Sim, aquilo lhe havia feito bem.
* Susana estava em seu quarto. Alguém lhe fazia companhia. Sorriam. Contudo, após algum tempo, os sorrisos e os cochichos pararam. Paula – a companhia – tinha algo sério a falar. – Eu não entendo o Mauro. Ele já anda com todas aquelas miúdas e ainda assim pensa que eu quero ficar com ele. – E não queres? – Não. – Já lhe disseste que o vosso namoro terminou?
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– Ainda não, mas acho que isso não é necessário; tendo em conta tudo o que ele fez e faz, ele ainda espera um «acabou» sólido? – Paula, o modo como foges dele, a maneira como fechas com diques as vossas conversas, o jeito como ainda olhas para ele, pareces só estar a dar tempo a ti mesma para que a raiva que sentes por ele desapareça. – Tás a gozar! Eu… Tens razão. – Já sabes, estás a falar com a Susana. Perita na Matéria é o meu último nome. – Ah! Não brinques! – mofou a outra, lançando-lhe uma almofada. – Tu que demoraste séculos, eras, para reconhecer que estavas caída pelo Carlos?! – Oh! Aquilo foi um truque. Quis saber até que ponto ele suportava o meu desprezo. – Será? Eram quinze e doze. Já se haviam passado duas horas desde que elas chegaram à casa de Susana. Durante este tempo, estudaram, reflectiram sobre a vida, falaram sobre seus objectivos pessoais, conversaram sobre a razão do exuberante visual de Susana, e tagarelaram sobre homens.
* – Tia Xujana! Tô teiefone tá tocá. Tinho corria em direcção à cozinha quando proferiu estas palavras. Trazia o telemóvel consigo. A família inteira já havia jantado havia vinte e sete minutos, mas Susana sentia que seu estômago precisava de mais um pouco. – Estou? – inquiriu ao limpar a boca após ter atendido a chamada. – Boa noite, Susana – cumprimentou a voz do outro lado da linha. – Desculpa-me se estou a ser um empecilho neste momento. O tio Carlos hoje não correu connosco, coisa que nunca havia acontecido desde que fizemos cinco anos, não jantou, desde que chegou da universidade trancou-se no quarto, e há poucos minutos o Derito disse que o ouviu a chorar … Pergunta: a Susana voltou a magoá-lo? – … Não…. Estou aí num abrir e fechar de olhos. Fiquem calmos. Susana saiu correndo de casa. Apanhou o candongueiro que a deixava mais perto do lugar para onde ia, e chegou lá suando. Antes de bater à porta, limpou com um guardanapo cada gota advinda daquela não almejada exsudação. – Oi – cumprimentou após a porta ter sido aberta. Os gémeos sorriram efemeramente para ela. Não foi um sorriso hipócrita; foi apenas um sorriso do género «o que é que esperas para subir e trazer o bom humor de nosso tio de volta?». Susana escalava de modo célere os degraus quando, a três degraus do quarto, a pessoa que dormia no mesmo abriu a porta. – Meu Deus! – tugiu ela ao ver o namorado transfigurado. Ele estava com um aspecto excitante desde os pés até ao pescoço: tinha posto apenas um par de calções azuis curtíssimos, mas seu rosto, aí era onde estava esculpido o problema, a testa estava enrugada, os olhos vermelhos, os maxilares semicerrados, e havia lágrimas em ambas as carúnculas. Ele estendeu a mão para ela em redenção. Ela agarrou-a sem demora. Carlos puxou-a com toda força que habitava em seu corpo que possuía todos os músculos angelicamente lapidados e abraçou-a. Fechou a porta atrás deles. Susana obedeceu quando ele a pôs sentada sobre a cama. Carlos deitou-se e dobrou as suas pernas o mais próximo dos glúteos possível. Pôs a cabeça sobre as afáveis coxas dela, e chorou, chorou, chorou amargamente até adormecer. 15
Susana esperava que, depois de algum tempo, ele acordasse e lhe contasse o que estava acontecendo, mas naquela noite Carlos não o faria; daquela vez não seria por causa de seu gosto por resolver os problemas sozinho, não, seria por ainda não ter forças suficientes para falar sobre o assunto.
* Seis e trinta e dois. – Bom dia – cumprimentou Carlos entrando para a sala. Os gémeos responderam em uníssono e Derito puxou a cadeira para que o tio se sentasse. – Hoje não é quarta-feira – disse, bocejando. – Fizeram o mata-bicho porquê? – Porque não foram eles que o fizeram – respondeu Susana enquanto saía da cozinha trazendo uma bandeja com algumas maçãs. – Levanta daí. Vai tomar banho. Não houve resposta. – Estás aí especado a olhar para mim porquê? – demandou ela. – Vai! Tens de fazer rápido. Também preciso lavar-me e ir vestir na minha casa. Estas roupas ficaram amarrotadas demais com a tua cabeça grande sobre elas. – Não te preocupes – respondeu ele a olhar para ela de cima para baixo. – Há roupas para ti aqui. – Xé! Nem penses em me obrigar a pôr as tuas roupas! – Não é isso. Há um presente que eu iria te entregar na noite em que te pedi para seres minha namorada, mas desisti. Será teu hoje. Carlos levantou-se e começou a andar. Havia dado apenas cinco passos quando parou de caminhar. Voltou-se e disse: – Quanto ao assunto de ontem, falaremos dele à hora do almoço.
* Sete e dois. Derito vestiu uma camisola azul clara, calças jeans com a cor parcialmente menos escura que a das do tio e sandálias – roupas que enfatizavam o quão descomprimido era. Liliana tinha tranças finas que acabavam em missangas brancas, sua blusa era cor-de-rosa com o desenho de um lindo panda, pôs uma modesta saia vermelha e calçou um simples par de ténis da cor da blusa com barras brancas – trajes que faziam qualquer um notar que era uma menina normal, porém especial. O tórax e o abdómen de Carlos estavam cobertos por uma linda lacosta vermelha, seus membros inferiores por um par de calças jeans azul claro, e seus pés, por sapatilhas brancas que tinham as laterais azuis escuras. Susana vestiu um par de calções ocres, feitos de linho, que lhe cobriam os joelhos, mas deixavam à mostra a lapidação estonteante de suas pernas, uma espectacular blusa carmesim de algodão com bordados dourados que fez com que ela mesma sentisse inveja de seu tão bem composto torso; os saltos altos pretos faziam seus gastronémeos parecerem o arsenal bélico infalível utilizado somente pela terrorista sedução. Apanharam o candongueiro às sete e onze. Passados alguns minutos, os gémeos desceram e entraram para a sua escola, ao passo que Carlos e Susana permaneceram no veículo até chegarem à universidade.
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* As aulas haviam acabado há quinze minutos. Susana e Carlos se dirigiam já para o portão da saída quando viram Mauro e Paula discutindo na cantina. – Ai é? Então diz-me: Porque sentaste com aquele gajo hoje? – inquiriu Mauro com soberba. – Porque quis – respondeu ela. – Oh! E era necessário para ti, vital até, estarem a rir com as mãos entrelaçadas!? – Mauro. Mauro! Eu já te disse virtualmente que o que sentia por ti está colocado num féretro, lacrado em um ataúde, afekem to pneuma! Voltou e fez o seu peculiar gesto. – E não penses que eu quis dizer «morreu». A cena foi um espectáculo lindo para Carlos. Daquela vez ela usou até grego. Mas, porque ela agia, melhor, reagia sempre daquela maneira? Porém, daquela vez não era porque estava irritada, não, era porque quis ter o gostinho de castigar e rebaixar aquele rapaz. Paula pôs-se a andar, e Mauro foi atrás dela.
* Os quatro chegaram às gargalhadas ao apartamento. Sem demora, cada um pegou em uma das partes que lhe cabia para a confecção do almoço. A feitura do repasto estava culminada. Sentaram-se. Carlos orou. Enquanto comiam, ele começou a explicar o que todos estavam ansiosos por ouvir. – Terça-feira, antes de dormir, alguém ligou para mim. Era o… Bateram a porta. A explicação foi interrompida. – Deixa que eu atendo – disse a pessoa a quem todo o mundo prestava atenção. – Mauro! – gritou após ter aberto a porta. Mauro estava com a mão esquerda tapando uma ferida em sua testa que deixava esvair muito sangue. – Carlos, ajuda-me a ser humano.
* Susana chegou à casa. Eram dezasseis e sete. Ela e o namorado tiveram de levar Mauro ao posto médico mais próximo, embora, de início, ele tenha relutado em aceitar dizendo que só precisava de pôr um pouco de álcool para que o sangramento estancasse. Ele explicou-lhes que havia convencido Paula a permitir que ele entrasse em seu apartamento. Conversaram aberta e calmamente por alguns momentos. Ele estava tão bem-comportado e adulto que ela até chegou a lhe dizer que ainda o amava, mas que ele precisava cortar aquele vício que Carlos um dia adjectivara de mulheromaníaco. Ele aceitou e, empolgado, beijou-a. Ela consentiu, mas ele quis ir mais longe. Ela pediu-lhe que parasse, mas parecia impossível para ele. Rasgou as roupas dela. Para se salvar daquela situação, ela usou o vaso de porcelana situado sobre a mesa atrás do assento em que se encontravam. Ela tentou dar-lhe os primeiros socorros quando viu que o tinha
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lacerado, mas ele indeferiu a ajuda e saiu correndo. A pancada pareceu fazer-lhe cair em si e perceber que o seu modo de vida precisava de inúmeros ajustes, e quem melhor que Carlos para os dar? Após percorrer um plural de quilómetros, chegou ao prédio daquele que seria o seu mentor de como viver. Subia as escadas de forma célere quando escorregou e bateu na extremidade pontiaguda de um dos corrimãos no mesmo lugar onde já existia o corte. Sangrou ainda mais, até que chegou a porta do apartamento que procurava. Após ter visionado o estado do amigo, Carlos mandou os sobrinhos irem acabar de tomar o almoço no quarto, para os manter ignorantes quanto à cruenta situação. Contudo, Derito e Liliana estavam tão curiosos em saber a fundo a história do dia anterior que insistiam em continuar ali, mas a expressão no semblante do tio mostrou-lhes que o assunto por se tratar aí era de séria urgência, então obedeceram. Carlos e Susana colocaram rapidamente desinfectante e uma gaze sobre a laceração de Mauro e saíram. – Como é que ficou aquilo de ontem? – perguntou Júlio à irmã, enquanto brincava no quintal com o filho. – Desde a hora que liguei para ti até agora ele não falou sobre o assunto. Tentou na hora do almoço, mas o Mauro chegou lá a sangrar, e tivemos de adiar. – O Mauro? – Makas com a Paula. – Aquele mais! Sempre o mesmo. – Talvez com isso venha a mudar, não é Tinhozito? – perguntou Susana ao sobrinho, fazendo-lhe cócegas. – Taivés…
* – Ainda não me contaste onde é que conseguiste essas roupas. Pelo visto, estão muito longe de terem sido compradas no kunuar. Beth falou isso quando eram dezoito e vinte e três. Estavam as duas no quarto de Susana. – É um presente que já devia estar comigo a seis meses e… quase seis dias. – Não! – falou com voz de homem. – A sério – sorriu a outra. – Quer dizer que, se não tivesses dito aquelas frases cruas, frias e machucadoras, porém falsas, a ele naquele dia, eu já teria vestido essas queridas roupas mais vezes do que tu? – Engraçada – disse a outra, puxando-lhe as roupas dentre as mãos. – Bem, vamos fazer o jantar – pronunciou-se Beth ao levantar-se. – Vai primeiro, yá? Vou só acabar de arrumar essas relíquias. Daqui a pouco estou aí. Beth saiu. À mente de Susana principiaram então a vir as tristes recordações daquele dia: – Boa noite, miúda – cumprimentou-a Carlos, estendendo-lhe a mão. – Boa noite. Já te disse milhares de vezes que não gosto de apertos de mão – replicou ela, sorrindo. – Entra. – Ninguém em casa? – Foram visitar a minha mãe. Porque é que vieste com esta pasta hoje? – Nada – respondeu Carlos, fazendo voz de criança mentirosa.
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– Ah! Deixa-me ver! – Calma, calma. Tenho algo… (a palavra dói ao sair de minha boca) sério a falar com Vossa Alteza. – Sério? Tipo… – abriu exageradamente os olhos e deixou a boca aberta. – Tipo… há quatro anos tu me conduziste até aqui. Eu sei que há coisas que eu preciso melhorar e… eu vou fazer isso. O que eu estou a tentar te dizer é que eu… amo-te. Será que é impossível tu sentires o mesmo e aceitares ser minha namorada? – Olha – falava calmamente – como disseste, são quatro anos, e nunca, em nenhum momento, eu te mostrei que te amava. Porque é que não desistes de mim e aceitas aquela miúda que diz que quer ocupar o meu lugar, a Telma? – Porque desistir não faz parte do meu repertório discursivo; nem sei como se conjuga. Eu disse a ela que não ocuparia o teu indisputável lugar, mas nunca lhe pedi para deixar de pensar em mim. – Então, eu estou a te pedir isso agora. Desiste de mim. No meu coração não há nada que possa te dar alguma esperança de vires a namorar comigo, apenas que garante que te mantenhas como meu amigo. Eu já te fiz tanta coisa de propósito para ver se me largavas, mas nada. És chato, teimoso! – gritou. – Eu… – Não é «eu» nenhum! Carlos, desista. De-sis-te. Desiste! – …vou voltar pra casa. Só não te esqueças que continuarei a te amar. – Susanaaa! A comida não estará pronta se não vieres! – gritou-lhe a cunhada da cozinha, fazendo com que aquela lembrança dolorosa se desvanecesse e sua mente voltasse ao presente. – Já vou!
* Vinte e uma e quatro. – Fala, Susana – disse Paula, após ter atendido a chamada em seu telemóvel. – Só não liguei mais cedo porque achei melhor te dar um tempo para te recompores daquilo. Paula suspirou antes de proferir a segunda frase. – Já sabes? – Yá. Ele foi ao apartamento do Carlos a sangrar muito. Aumentou o tamanho da ferida enquanto subia as escadas: escorregou e bateu com a testa num corrimão estragado. – Meu Deus! Ele está bem? – Está. Levamo-lo a um centro médico. Mas, e tu, como é que estás, amiga? – O meu corpo inteiro ficou catatónico por alguns momentos, mas já voltou ao normal. Consegui bater até uma bilada para os meus kambas vovôs! – sorriu em seguida. – Mas o que é que ele foi lá fazer? Doar sangue é que não era. – Ele foi pedir ao Carlos para lhe tornar numa pessoa merecedora de tua atenção, carinho e amor. Paula ficou calada por alguns segundos. – Que Deus o abençoe. Olha, falamos amanhã, yá? As minhas primas parecem estar a atacar o meu guarda-roupa para irem a mais uma daquelas festas. – Yá. Tchau!
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Susana ficou sem perceber se ela tinha dito «que Deus o abençoe» referindo-se a Mauro ou a Carlos. Mas aquilo não era a sua preocupação principal no momento; esqueceu-a rapidamente. Levantou-se e deu azo à higiene bucal. Falou respeitosamente ao Dador da vida e dormiu.
* Susana acordara não muito bem-disposta, mas cuidar afincadamente de seu jardim, como fazia aos sábados, pô-la com um ânimo melhor. Às nove e três, saiu de carro para fazer compras com o sobrinho. Antes de voltarem para casa, foram visitar Paula. – Tinho! – chamou Paula após os ter avistado. – Pela primeira vez decidiste roubar o carro do teu papá e vir me visitar, hã? Mas porque é que trouxeste a tua tia? Ela pode te queixar, e acho que ela não vai gostar nada de pegar a vela enquanto estiveres a me dicar. – Ficou de cócoras e brincando levemente com o rosto do menino. – Oh! Oi, tia queixinha e pau-de-cabeleira – fez uma voz de menina apanhada pela mãe a cometer uma travessura ao cumprimentar Susana. – Oi – respondeu a outra, sorrindo. Passando para dentro do apartamento, o menino dirigiu-se ao canto da sala onde se encontrava o televisor. Percebendo o seu desejo, Paula ligou-o no canal de desenhos animados. – Vi alguns sacos no carro quando vos acenei da janela. Foste comprar o quê? – Algumas roupas, iogurte e frutas para o Tinho. – Esse miúdo vai ficar um balão daqui a pouco! Olha para os braços dele! – Quando digo isso ao pai dele, ele só me responde: «Comer é bom» – imitou a voz do irmão. – Mas, falemos de ti. Melhoraste a sério? – Bem, tomei algumas pílulas de retratação e dedução, fiz um teste rápido de lógica para analisar a situação, um hemograma para ver o peso de meus sentimentos… a evolução não é extraordinária, mas tô bem. – Bom pra ti. Agora só tenho a preocupação Carlos por resolver. – O Carlos? O que é que ele tem? Susana explicou tudo à amiga e, depois de alguns minutos, voltou para casa com o sobrinho. – Mamá, axisti bwé de buneco na caja da tia Pauia – Tinho vinha correndo em direcção à mãe, que lavava a roupa no quintal enquanto falava. – Hum! Muito bem – respondeu Beth. – Agora, diz mamã. – Mamá. – Ma-mã. – Ma-mein. – Tás muito inteligente hoje. Vai lavar as mãos pra matabichar – deu-lhe uma palmadinha no traseiro. – Olha só como ele corre quando falam de comida. – Ó Susana, deixa de se meter com o miúdo. Trouxeste tudo? – Yep! Embora ele tenha comido quase um quilo de banana do supermercado até aqui. – E tu ajudaste, né? – Sou tia pra quê?
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CAPÍTULO III Carlos estava preparado há alguns minutos. Sentado, esperava que os sobrinhos acordassem. Derito e Liliana acordavam pontualmente às dez horas aos sábados, ao passo que ele fazia o mesmo aos domingos. – LER! – era este o modo como ele chamava os sobrinhos para lhes anunciar que iriam a um lugar especial juntos; para formar a palavra, havia tirado o L da primeira letra do nome de Liliana, o E da segunda letra do nome de Derito e o R da terceira do seu próprio nome. – Derito. Deritoo! Acorda – chamou Liliana. – Oooh! Inda faltam dois segundos pras dez. – Só se for na Deritolândia. Levanta, ó! O tio Carlos chamou a LER. – Boa! Vamos sair! Será que desta vez ele vai nos levar para vermos os extraterrestres que dançam tarrachinha em Urano? – gracejou o rapaz pulando da cama e calçando rapidamente. Mas Liliana já não estava no quarto para lhe responder àquela pergunta desprovida de nexo feita propositadamente. – Dirijam-se ao portal da limpeza epidérmica, capilar e bucal – disse Carlos em tom jocoso após avistá-los. – Vamos à Viana visitar os vossos avós e os outros. As palavras ainda não haviam sido totalmente articuladas por Carlos quando Derito correu até ao interior do quarto de banho e trancou a porta, deixando Liliana amuada por não ter chegado antes dele. Carlos temia que, no lugar para onde iam, pudessem encontrar as duas pessoas que, desde terça-feira, lhe causavam aquelas quebras de humor. Mas, teve de arriscar, afinal, era muito o tempo que não ia ver os seus pais.
* Mauro se revolvia em dores sobre sua cama. Mas não era por causa da ferida que havia levado sete pontos, não, aquilo até era o mínimo, era por causa do tratamento escusável e descurado que tinha dado à mulher que, só naquele momento, havia descoberto que, para seu coração, não era igual às marafonas, cóias e harpias que podia encontrar em qualquer tempo e espaço; Paula era um ser de carácter impoluto, a mulher que nem em seus sonhos era capaz de conceber. Fez uma introspecção e sentiu remorsos ao constatar que, mesmo tendo sido tão estúpido, seu espírito ainda estava activo em seu corpo. Pensou que a solução seria entregar-se à alexitimia – reprimir-se usando o silêncio e a negação dos factos – mas seu consciente não permitiu; era mais forte que aquilo. – Preciso apenas de abrir a cabeça, lavar o cérebro com palha-de-aço e lixívia e convencer Paula que mudei para que, se possível, possa merecê-la – disse de si para si com jocosidade irónica. Cansado de engolir a raiva e saborear a falta de barulho que havia em seu quarto, foi para sala e presenteou sua audição com de ópera. Colocou o volume ao máximo, afinal, seus pais não estavam em casa desde o dia anterior. Enquanto aquela música dramática lhe lavava um pouco a alma, arranjou uma maneira de cobrir o ferimento, pegou numa enorme bacia onde misturou água gelada, vinho tinto e whisky e tomou um gélido banho daquela reconstituinte poção. Seu corpo parecia estar em êxtase quando terminou o ritual líquido de afogar as mágoas. Demorou alguns minutos ali; deixou as gotas daquela mistura sublime
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escorrerem sobre seu corpo até este ficar seco. Depois saiu do quarto de banho, deitou-se despido sobre o cadeirão e continuou com o ritual sonoro.
* Catorze e sete. Mauro despertou. Sua mente, embora pulsando ainda num diminuto grau de dor e sua cabeça com um quase inexistente ardor, desejou fazer algo construtivo. Foi à estante e tirou um livro. Folheou com perscrutação. Leu atentamente as páginas referentes aos Crúmenes ou Crus, povo da Costa do Marfim conhecido por ser bom trabalhador e navegador, e ao Mau-Mau, movimento terrorista político-religioso ocorrido no Quénia. Leu também sobre Arato, escritor de Os Fenómenos, e Cleanto, escritor do Hino a Zeus, ambos poetas gregos citados implicitamente por Paulo nos Actos dos Apóstolos, e sobre Melpómene que ele achou curioso ela não ser conhecida como uma tragédia de musa, em vez do que ela realmente é, a musa da tragédia. Durante um curto período de intervalo, lembrou-se do dia em que conheceu Paula: Havia sido num dos primeiros dias de aula. Paula estava sentada na cantina com o rosto ostentando um sentimento semelhante à tristeza. Enquanto os outros conversavam e se divertiam juntos, ela, por não conhecer ainda ninguém, isolara-se. Mauro olhou para ela, observou-a durante algum tempo. Estudou atentamente o corpo dela que, naquela posição e com as pernas cruzadas, era algo que convencia que os olhos do ser humano foram projectados apenas com o objectivo de o ver. Aproximou-se e usou a maior parte das palavras que dizia a qualquer moça bonita que ele visse triste. – Bom dia. O lugar está vazio? Ela olhou apenas para ele. – Isso quer dizer «sim» – sentou-se. – Pareces triste porquê? Se for algo que te faz pensar que não és linda, é mentira; se for alguém que magoou este imaculado coração, não merece tal reacção; e se passou a ser a minha irritante presença, por favor, abre-te comigo, acaricia-te, geme comigo. Ela sentiu uma quase incontrolável vontade de dar uma gargalhada, mas disse, sorrindo: – Isso é um pedido criado por algumas sinapses de teus neurónios ou é só a repetição transliterada da frase do livro que leste ontem? As suas lembranças quase chegaram ao momento em que os dois riram despidos de formalidades, mas sua cabeça pulsou de modo tão forte naquele momento que teve de levar a mão à testa e respirar ofegantemente, interrompendo assim a sua viagem àquele encantador instante.
* – Omnipotente Deus!!! – exclamou uma mulher à frente de Mauro. Cristina era seu nome. – O que é que te aconteceu, filho?! – Foi um a-ci-dente – respondeu Mauro à mãe com a calma de um padre convicto. – Um acidente bastante «pontuado». Queres explicar melhor isso? – perguntou o pai. A expressão facial que cobriu o seu rosto de vinte e dois anos mostrou aos pais que não era um assunto de briga de rua, embriaguez ou coisas do género, era um assunto intimamente pessoal e que, se desse, ele lhes contaria em outra altura.
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Cristina tocou levemente o local onde estava a ferida do filho e descaiu a mão até a parte inferior da face esquerda. Deixou por alguns efémeros segundos a ternura de mãe passar pelo queimor emitido por aquele toque, depois abaixou-a. Manuel – era assim que se chamava o pai – esboçou apenas em seu rosto a expressão de progenitor compreensivo que, embora queira ouvir explicações mais detalhadas sobre o assunto, se mantém sereno. Em seguida, bateu amigavelmente no ombro esquerdo daquele que era seu unigénito, e dirigiu-se para o quarto. Eram dezassete e vinte e três quando tal aconteceu. Seus pais haviam acabado de chegar de um pomposo casamento a que ele, Mauro, decidira não ir por causa das regras de etiqueta que seria obrigado a pôr em prática naquele local; teria de defender a posição de rico e bem sucedido do pai. Mauro estava vestido simplistamente: camisola creme, calções pretos com barras laterais vermelhas e chinelos cerúleos com motivos decorativos brancos. Sentou-se. O seu telemóvel situado sobre a mesa tocou. – Estou? – inquiriu após ter atendido a chamada. – Comé, boy? – cumprimentou a pessoa do outro lado da linha. – A tua presença naquela party tá cool? – Pô, num vai dar. Vou ficar a ler hoje. O amigo ficou calado por alguns segundos. – Podes repetir tudo o que acabaste de dizer? Silabicamente, porque letra por letra vais acabar o meu saldo. – Brother, tu entendeste fixe. Vou ficar em casa a estudar. – Porquê? Ficaste farto de ver aquelas coxas grossas cobertas apenas por mini-saias e aqueles corpos bonzudos a se esfregarem com tamanha malandrice contra o teu? Tu não podes perder essa festa, nigger! A Jurema e a Letícia vão estar! – Resolvi redimir-me. Estes tempos de player acabaram. – Epá! Falamos depois. Todas as palavras que estás a usar são desconhecidas pelo meu vocabulário. Later, son. – Yá. Depois. Mauro odiou parcialmente a si mesmo por se ter privado de ir àquela festa que, por sinal, seria uma excitante loucura, mas, antes de aquele sentimento desaparecer, o outro telemóvel, que se encontrava num dos bolsos de seus calções, tocou. – Mauro, vou pôr aquela roupa exageradamente decotada que tu disseste que era teu sonho ver a cobrir o meu corpo. Os meus pés não estarão preparados para pisar o acelerador por causa dos saltos que não me apetecerão descalçar. Não poderei ir a pé: as partes superiores de minhas pernas estarão alarmantemente à mostra, ainda corro o risco de ser violentada. Podes vir me buscar? – Letícia, sabes que não resisto. Ver-te vestida daquela forma é ver a coisa que substitui a primeira maravilha do mundo, girl. Mas … hoje eu vou ter de ficar em casa. Terei de fazer uma coisa vital, algo que devia ter feito há muito tempo. – Sexo com três gajas sadomasoquistas? – Não! – respondeu, dando uma gargalhada. – Vou es-tu-dar.
* Vinte e duas horas. Mauro olhou triunfantemente para o relógio que cobria o seu pulso. Havia recebido um plural de telefonemas alusivos à sua ida àquela festa, mas rechaçou-os a todos. Estava contente consigo mesmo. A expressão orgulhosa em seu
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rosto arguia inequivocamente isso. Pela primeira vez havia tomado a atitude certa, e defendeu-a como um profissional, embora fosse ainda o seu desafio de estreia. Seu corpo estava na posição horizontal sobre uma superfície que, mais do que nunca, o fazia sentir-se nas nuvens. A estrutura de madeira devidamente envernizada que sustentava a mesma superfície se encontrava entre as quatro paredes que pertenciam só a ele – sim, Mauro estava em seu quarto, deitado sobre sua cama. Logo saborearia a experiência de dormir cedo.
* – Bom dia, mã. Bom dia, pâ – cumprimentou Mauro ao entrar para a sala. – Bom dia, fì. Acordaste cedo hoje? A festa acabou cedo? – perguntou Cristina. Mauro levantou apenas a sobrancelha esquerda. – Ontem não ouvi o barulho de nenhum dos meus carros a ser tirado à socapa da garagem – comentou Manuel. – Achas que fiquei surdo, Cristina? Mauro apercebeu-se de que gozavam com ele. Sorriu. – Talvez não tenha ido por causa do terreno acidentado ainda inexplicado que tem na testa; sentiu vergonha o meu bebé – acrescentou a mãe. – Não, não – abjurou Manuel. – Nem mesmo quando ele tinha o braço engessado deixou de ir à rumba! Acho que se deve à outra coisa, algo mais … mais. Não tenho razão, Mauro? Mauro apercebeu-se que, daquela forma engraçada, seus pais lhe pediam que lhes contasse algo sério – sim, eles queriam saber o motivo daquele corte. Sentou-se e principiou a falar sobre aquele história horrenda. Seus olhos tremiam involuntariamente enquanto pronunciava as palavras. Porque tinha de contar aquilo? Ainda mais aos seus pais!? Não seria melhor inventar uma mentira como fizera das outras vezes e deixar que eles tirassem as suas próprias ilações? Não. Mauro já havia escondido coisas muito graves antes, como aquela de custear três abortos apenas para provar que era mesmo um amigo fiel, leal, dos namorados das moças que o procuraram pedindo tal repugnante ajuda. Já havia escondido matéria narcótica e bélica para salvar a pele de companheiros e posto os dois canídeos do pai numa rinha, acontecimento que quase gerou a morte dos animais. Tendo em vista que, no fim de tudo, os seus pais chegaram a descobrir aquilo e que Manuel quase perdera a confiança nele, Mauro não deixou o medo e a vergonha agrilhoarem-lhe a garganta naquele momento. Cristina segurou forte a mão do marido enquanto ouvia a execração. As duas únicas lágrimas que desceram de seu globo ocular esquerdo pareciam vazias, tépidas, por causa do olhar aceso não pestanejante que deitava sobre o filho. Manuel limitou-se a friccionar o maxilar inferior contra o superior com alguma discrição. Quando o filho terminou, Cristina pediu o número da lesada – sim, ela quis falar com Paula –, mas Manuel interditou tal intento dizendo que iriam os dois falar com ela no seu próprio apartamento. Sim, Manuel e Cristina fariam uma visita ao domicílio da rapariga que o seu filho quase desonrara. O casal foi ao quarto trocar de roupa. Mauro fez o mesmo. – Aonde é que pensas que vais? – perguntou o pai após estarem todos aprontados. – Mostrar-vos a casa da Paula. Porquê? – Porque não vais connosco. Tenho a certeza de que ela não quer voltar a te ver tão cedo. Ah! E queremos evitar um escândalo; não queremos que aquela menina fique
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com mais raiva de ti e comece a soltar gritos histéricos por todo o corredor. Escreve aqui a morada, por favor – respondeu friamente a mãe. Mauro ficou confuso. Paula certamente pensaria que ele se acobardara, que ele fora até o nível mais alto de graduação de como ser medricas, e enviou os papás para o defenderem. Pensou na vergonha que aquilo representaria; mas o que ele tentara fazer com ela naquela noite era muito mais vexante, muito mais … muito mais diminuidor da virilidade de um homem que aquilo. Escreveu o endereço, e deixou os seus olhos seguirem o carro em que seus pais se encontravam até o mesmo desaparecer numa das esquinas. Entrou. Ficou parado por alguns segundos, depois fechou a porta atrás de si com alguma violência. O pensamento de que aquela atitude de seus pais era uma pura intromissão em sua vida não foi o que o abespinhou; foi ver por alguns instantes Esteno, a cadela, a claudicar em sua direcção. O animal lambeu-lhe a mão que pegava a linda esferográfica que Cristina esquecera de lhe receber. Abanava a cauda minúscula com entusiasmo, mas não fazia o mesmo com o corpo. Latiu com felicidade. O sucinto barulho da robusta rotweiler fez a red nose Medusa e a deslumbrante caniche Euríale acordar. A heroicidade de Mauro e seus pais conseguirem pôr estas três diferentes raças de cão a conviverem sem estarem sempre à bulha, sem se matarem, era assombrosa. Assombroso também era o facto de que ele se abespinhara por se lembrar que Esteno tinha a pata traseira direita machucada e Medusa, um olho quase cego, por causa da sua intempestiva forma de agir oligofrénica. Mauro e seus amigos – se é que o segundo nome é tão colectivo que abrange até as pessoas daquela espécie – haviam posto Esteno a lutar contra uma grande e colérica pit bull cujo dono a treinava batendo-lhe com pedaços profusos de madeira; a cadela ficou até perita a agarrar aquilo com a boca quando ameaçada com os mesmos. A cadela havia se tornado tão sedenta de sangue que, quando não achasse nada para trincar, mordia a própria carne. Depois de verem que a rotweiler já não revidava, apenas sangrava deitada, tendo a bocarra assustadora da pit bull presa em sua pata, pararam a luta. Após algumas rinhas de outros cães, chegara a vez de Medusa lutar contra dez gatos – o espectáculo mais esperado naquela noite. A cadela conseguiu matar todos, um a um, afinal, cada gato tentava esconder-se em qualquer lugar e, já que não atacavam em conjunto a red nose, ficaram com os crânios semi-mastigados. Mas a cadela recebera marcas talhadas pelas infecciosas unhas afiadas dos felinos em seu corpo, inclusivamente no olho direito. Os olhos de Mauro ficaram cheios do líquido que é costumeiro as pessoas esvaírem quando estão incontrolavelmente encolerizadas mas se sentem incapazes de atacar quem as provocou até tal ponto. Não conseguia esganar o zombador porque tal pessoa era ele. Odiou-se naquele momento. Rangeu os dentes. Mas a festinha que as três cadelas faziam à sua volta, pulando e dançando, parecia que passava a seguinte mensagem: «Perdoamos-te. Não te martirizes mais». Foi ao quintal e brincou como nunca havia se divertido com elas.
* Passara algum tempo desde a hora que ele acordara. Eram dezasseis e quarenta e três. Seu ferimento já não era um grande detentor de dor, pesava-lhe apenas a fronte. Estava sentado perto da porta da cozinha. Seu intento era manter a sua presença aí para manjar o que conseguisse.
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Seus pais ainda não haviam chegado. Como sempre, estavam – o que fazia muitos pensar que eram – ocupadíssimos (porque os seus quefazeres se resumiam a um estado, não ao modo deles genético, biológico, de ser: a riqueza, o não medir esforços para a engrandecer e mantê-la os punham em tal alambique, mas se não tivessem tal avultado de pecúnia, ou melhor, se o tivessem numa quota não tão desproporcionalmente baixa, razoável, provavelmente teriam mais espaço para serem o que estava prescrito, e com o passar do tempo escrito, nas suas «células-tronco»). Depois de falarem pessoalmente com Paula, foram a um daqueles almoços onde o que mais se servia eram bajulações. As bebidas, por vezes, iam, metaforicamente falando, do melhor xerez ao pior zurrapa; quanto às pessoas, o menu ia do mais invertebrado dipsomaníaco ao mais exagerado hidrópata. O que era quase escasso era a sinceridade e a incondicional amizade. Mas, eles tinham de passar por isso; era o preço a pagar pelo seu estatuto social. Quando acabou de comer, Mauro pensou com graça em como se chamaria o horror mórbido, o medo, a fobia, à comida. Foi ao dicionário e achou algumas fobias: ecmofobia (a tudo quanto pode picar), anemofobia (ao vento), cinofobia (aos cães), fotofobia (à luz), pirofobia (ao fogo), heliofobia (ao sol), eritrofobia (à cor vermelha), efodiofobia (aos preparativos de viagem), mas nada da «trofofobia», «bromatofobia» ou «gastrofobia» que ele supusera.
* – Levas a sério a nossa relação? – perguntou Paula a Mauro. – Sim. – Não achas a tua resposta meio … muito vaga? – Eu estou contigo, não estou? Ligo para ti todos os dias, levo-te a passear quando eu ou tu queres, dou-te inúmeros presentes, fiz uma camisola que contem a tua foto e a frase «sou teu fã» e … – Oh, pára com isso! Estou a falar de algo além disso. Estou a falar de um dia talvez virmos a casar, e eu vir a ser a mãe dos teus filhos. – Xé! Eu nem sei se estou preparado para ser o pai deles! – Bem, talvez, com o tempo, amadureças e venhas a ver as coisas de outro ângulo. Por enquanto, vês esta perspectiva num ângulo de trinta abaixo de zero (vês tudo nublado e com muito frio), mas quando chegares a vê-la num de cento e oitenta (com calor do verão e ar limpo), entenderás que a ceifa deste trigo, tâmaras e figos é a melhor safra que podias ter em tua vida. Ele ficou encantado com aquelas inteligentes palavras que fluíram numa naturalidade fatal, e, enquanto seu olhar velejava no dela, Paula beijou-o. Mauro acordou e constatou que aquilo havia sido um sonho. Sua memória o havia levado a um dos apaixonantes momentos que tivera com aquela rapariga. – Dormindo com as mãos atrás da cabeça sobre o tapete da sala. Sinal de que se embutiu demais, Manuel. Sim, seus pais haviam acabado de chegar. Foi o barulho que fizeram ao entrar que o acordou, e, ao som das palavras de Cristina que descreveram a sua habitual posição sempre que ficasse sozinho e atacasse de modo sagaz a comida existente na casa, sentou-se sobre o peculiar produto de tapeçaria onde antes sonhara com Paula. – Posso perguntar como foi ou desta vez vocês é que vão ter de escrever a morada da resposta para mim?
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* Dezanove e quarenta e três. Seus pais não haviam lhe contado nada sobre aquele assunto desde que chegaram às dezoito e seis. Disseram que ele viria a saber quando fosse à universidade no dia seguinte. Estava cansado de ficar trancado em casa desde a noite de sexta-feira. Era domingo; tinha de sair, espairecer. Ligou para Carlos. – Fala, Mauro – disse o outro, sorrindo, após ter atendido a chamada. – Prepara o pitéu, estou a ir aí. – Estás sem sorte. Não estou em casa. – Ainda bem! Diz-me o nome do harém que eu estou aí num instante! – brincou. – Tás louco! A Susana me matava! Estou em Viana, na casa da minha mãe. Comé, o estado da testa? – Oh, o terreno ainda se mantém escabroso! Sabes como é o nosso país: mesmo com a terraplanagem e o alcatroar das estradas ainda se vêm inúmeros buracos. – E a Paula, voltaste a falar com ela? – Não. Resolvi primeiro mudar esta minha personalidade estúpida. Depois conversarei com ela. – Gostei de ouvir: «resolvi primeiro mudar» e não «tentar mudar». Nota-se que a decisão é séria. Achas que já posso te chamar de «ex-mulheromaníaco» ou, em português chique, «ex-ginecófilo»? – O tempo aprendeu a dar as respostas mais sábias e acertadas de todas. Tens de perguntar isso a ele. – Estás a recitar… Agostinho Neto? – Não. Estas são palavras da inteira autoria de Mauro Costa Muhongo. Mas, estás desde o momento que liguei para ti a sorrir porquê? – Oh, é a minha mãe! – deu uma gargalhada. – Está mais louca do que nunca. Cada coisa que diz! Acreditas que quando eu lhe contei que já estava a namorar com a Susana, ela, para me mostrar que se lembrava dela, disse: «Haaã! Aquela moça que tem a cor tipo miudezas de galinha!»? – Essa dona Maria! – Ela falou coisas piores, xé! Te conto depois. Ela está a me chamar para lhe carregar às costas. – Yá, – sorriu em despedida – depois. Mauro ficou parcialmente triste. O melhor lugar em que podia estar naquela hora no mundo estava sem os seus três habitantes. As soluções de saída ficaram escassas. Não podia ser em nenhum daqueles «amigos» ou «amigas» dele. Paula estava fora de cogitação por enquanto. Amélia e Edna não eram muito achegadas a ele. Susana!
* – Boa noite, casal! – disse ele ao entrar com Tinho sobre os seus ombros e pegando a mão direita de Susana. – Oh! Desaparecido! – respondeu Júlio enquanto se levantava e estendia a mão para Mauro. – Como é que estás? – Bem não seria a resposta adequada. Mantendo-me vivo. – Tinho, desce já. Ainda podes magoar o tio Mauro – disse Beth. Mauro pô-lo sobre o chão.
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– Chegaste mesmo a tempo de participar do nosso jogo de cartas. Senta-te aí – disse o pai do menino, que naquele momento corria em direcção aos seus brinquedos. Enquanto decorria o jogo, Mauro pensava que, já que Paula detestou, odiou, mas odiou mesmo, conhecer o seu lado intelectual e animal (relativo a quando se age por instinto, sem o uso da razão), talvez viesse a gostar do seu lado humano, imperfeito (o lado que também tinha o direito de tentar e errar sem se questionar a gravidade do erro), com todas as suas necessidades afectivas e físicas, biológicas. Seu cérebro tentava engendrar o melhor modo de se ver livre de sua ignóbil forma de fazer as coisas: precisava primeiro mostrar e garantir a si mesmo que era isso o que queria (passo esse que já havia dado), segundo, tinha de fazer um esforço titânico para não voltar à mesma desprezível conduta e, terceiro, mostrar a Paula que só havia dado estes dois passos para que ela pudesse perdoá-lo e, por um toque de mágica e muita sorte, voltar a namorar com ele. Mas que amigo seria melhor, que compêndio, que livro poderia lhe dar tal miraculosa ajuda de um modo em que ele sentisse que o escritor não tivesse sido hipócrita? «A Bíblia!», gritou ele em pensamento. Embora aquele grito não se tenha propagado no espaço exterior, no interior ecoou tão infinitamente, que ele sentiu que aquela fora a melhor opção de leitura que tomou desde que aprendeu as vogais, as consoantes e os sons. Todavia, tinha de voltar a sua concentração ao jogo, antes que fizesse uma … – Renúncia! Ganhámos, meninos – disse Beth «quatando-se» com a sua parceira de jogo. – Tás tonto, Mauro – disse Júlio. – Não estás a controlar as jogadas, meu. – Calma. Elas ganharam a primeira e última vez nesta noite. – Hei-iá! Isso é que era bom! Vamos vos tosar hoje, morenas – disse Susana para mostrar que não se sentira intimidada. – Olha, ainda são … vinte e vinte e oito – atestou Mauro. – Até a hora de eu bazaring for, estará dez a um, a nosso favor.
* Mauro chegou à casa às vinte e uma e trinta. Olhou para o tapado prato de comida que sua mãe deixara para ele. Mas, visto que já não tinha fome, resolveu levar o jantar aos seres que tinham o nome das três górgones da Fábula. Sim, seu pai havia dado o nome de Esteno e Medusa às duas cadelinhas logo no dia em que as viu e desejou comprá-las porque no Ensino Médio havia defendido um tema sobre a Mitologia grega; e sua mãe, visto que sabia que faltava o nome de uma, resolveu também trazer a pequena caniche e apelidá-la de Euríale. Depois de vê-las a devorar num abrir e fechar de olhos a sua ex-refeição nocturna, Mauro descobriu que seu corpo ainda não estava habituado a deitar-se cedo, não sentia sono algum, por isso, teve de inventar uma solução para aquele novo problema, pois preferia ficar em qualquer outro sítio decente a estar no quarto fitando as paredes com uma indestrutível insónia. Resolveu passear as cadelas. Sim, Euríale, Medusa e Esteno fariam algo com o dono-júnior que, a última vez que se atreveram a aceitar, as duas últimas quase acabaram em um túmulo canino. Mas desta vez seria diferente. O Maculusso inteiro estava calmo era neste bairro em que ele morava – viam-se apenas algumas pessoas apeando e outras em seus carros luxuosos: clima perfeito para se andar de um lado para
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o outro à frente das cadelas com elas correndo de modo célere atrás de si. Sim, Mauro quis galhofar de pique. Depois de muito suor escorrido, muito babadouro deixado a esmo sob a calçada, as quatro línguas chegaram ao seu habitat de fora e reclamando fôlego. Tinha sido uma arfante, porém hilariante, aventura. Mauro trancou os três «monstros» em suas casotas. Chegou até a dizer boa noite a cada uma delas. Depois tomou um banho e, às vinte e duas e cinquenta e dois, extremamente cansado, adormeceu. – Estás a oferecer-me estas rosas porquê? – Ainda não sei a razão de eu te dar este presente. Só sei que envolve você, eu e uma cama. Ela olhou para ele com o rosto petrificado de seriedade. – Estava a brincar. É por teres aceitado ser minha. Fazemos hoje um dia como namorados, lembras-te? Paula sorriu apenas. – Oi, Mauro! Oi, Pau-la! – cumprimentou uma rapariga com desprezo. – Logo vais aparecer, Mauro? – Que tipo de macho seria eu se não cumprisse com o meu papel para com as fêmeas? Eu e a minha parte do processo vamos estar lá hirtos e firmes, Inês. Não te preocupes. – É melhor mesmo, hein? Logo. Tchau, Pau-la. A silhueta de galdéria aficionada e as roupas curtas de mulher orgulhosa por praticar o meretrício de Inês desapareceram num dos corredores da universidade. Paula deixou apenas as rosas oferecidas sobre a mesa da cantina e foi-se embora; foi para casa. Mauro nem sequer se preocupou em ir atrás dela, afinal, como ele mesmo pensava, podia ter tudo o que quisesse, quando quisesse. – Chatice! – exclamou ao despertar com raiva, por causa daquele sonho que o levara novamente a um dos seus momentos com aquela rapariga. Começou a questionar-se a razão de aquilo acontecer pela terceira vez; não sabia porque sonhava com aqueles acontecimentos. Seria a consequência das duas fortes pancadas que levara sobre a testa? Seria por consciente, subconsciente e inconscientemente pensar em Paula e na razão de ter pensado em fazer aquela coisa imunda contra ela? Seria a empalação, o crucifrágio, o suplício, o castigo a pagar por nem sequer ter hesitado, em segundo algum, fazer aquilo, mesmo quando ela lhe implorou para não o fazer? Estas eram perguntas cujas respostas não tinha azo de obter. Voltou a dormir ao som do seu próprio interrogatório interior. Não tinha de se preocupar com a hora de acordar, afinal, amanhã o dia seria feriado: seria um daqueles dias inventados e marcados pelos humanos para que boa parte deles tivesse vinte e quatro horas de folga; seria um daqueles dias em que o mais preguiçoso dos desempregados, o mais mandrião dos kunangas, sentia que trabalhava, pois tinha de andar de amigo a amigo para aproveitar chupar o maior número de birras, ou, na mais baixa das hipóteses, empurrar alguns reco-reco de kaporroto, para no dia seguinte acordar de mau humor por causa da destabilizadora pelenguenha, sim, por causa da ressaca; seria um dos dias em que muitos podiam fazer o que quisessem sem ter a irritante voz do seu supervisor a soar de modo supersónico em seus ouvidos; enfim, seria um dos dias em que se podia fazer o que se conseguisse.
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CAPÍTULO IV Seis e trinta. Derito, Liliana e Carlos acordaram para continuar com a caçada às frutas. Quando terminaram, deram azo a um refrescante banho, como prelúdio de sua volta a casa. As pessoas que requisitavam seus filhos das mãos do último continuavam a vergastá-lo com telefonemas, mas ele sabia ser esquivo, fugidio. Ainda não tinha contado aos sobrinhos que os dois seres inexoráveis que eles podiam ter chamado de pai e mãe haviam reaparecido das cinzas. Apesar dos pedidos insistentes da mãe de Carlos para que ficassem até à hora do almoço, despediram-se, tendo a celeridade em resolver assuntos pendentes como desculpa. Porém, antes de chegarem ao seu lugar de pousada, foram visitar Paula. Após extensos minutos de conversa com ela e com as suas primas, o trio andou centenas de metros até entrar para o seu próprio domicílio. Guardaram os sacos de fruta num local conveniente para cada um dos três e, minutos depois, sobrinho, sobrinha e tio voltaram a jogar-se sobre suas próprias camas com o intuito de dormir o mais que pudessem.
*
Paula estava sentada ouvindo uma apaziguadora música. A alguns minutos atrás havia sido visitada por três simpáticas pessoas que ofereceram mangas e cajus tanto a ela como a Marlene, a Gisela e a Janeth. A conversa a sós que teve com Carlos sobre o caso «Mauro, o violador» acabou em um dossier escrito com as palavras mais claras e, por consequência, menos técnicas possíveis: ela não começou a odiar aquele rapaz, não, todavia, detestou, no expoente mais elevado, aquela reles atitude dele. Algumas vezes se sentiu tentada a ligar para Mauro, mas a raiva que ainda sentia soterrava essa vontade. Ela havia feito das tripas o coração muitas vezes para aguentar aquela nada estável relação. Havia aguentado coisas como ouvir milhares de moças a convidá-lo fazer sexo mesmo sabendo que ela estava do seu lado; viu coisas repugnantes de longe como o namorado a ser beijado por outras bocas e ele a acariciar o resto dos «acessórios». Mas ouvi-lo a dizer no sábado passado a Inês que ela se contentava a ser a última mulher no fim do dia a possuí-lo, e que tolerava aquilo porque qualquer migalha que viesse dele a satisfazia, não foi a gota que fez transbordar o copo, não, foi a bofetada que o homem mais fraco do mundo deu ao leão faminto que encontrou dormindo. – O que é que aconteceu ao teu vaso de porcelana, Paula? – perguntou Gisela ao arrumar a mesa e reparar a não existência do referido. – Ele já não está aí desde sexta, e só hoje, segunda-feira, é que dás conta? Parti-o num acidente. – Tu?! Miss Cuido-Impecavelmente-De-Tudo-Principalmente-Do-Que-É-Meu? Estranho. Queres perder a coroa? – É impossível isso acontecer, Marlene. Não há alguém que a substitua na passarela do zelo excessivo – acrescentou Janeth para intrometer-se na conversa. – Foi um caso de vida ou morte: se não sacrificasse aquela obra-prima, hoje estaria a mentir se dissesse que ainda sou virgem. As primas ficaram em transe e hiantes – sim, ficaram chocadas e de boca aberta.
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– Isso foi quando, Paula?! Porque não nos contaste? Ele arrombou a porta? – conseguiu uma perguntar atormentada. – Quando, porquê e como ele entrou aqui ainda não interessa, Gisela. Quem é o cão? Vive no prédio? Fala, Paula? – acrescentou Janeth. Ela nada respondera por enquanto. Apenas olhava surpresa para a «reacção coruja» das primas. – O Mauro já sabe? Tenho a certeza que, quando souber, vai pegar todos os kamones kaenches dele para entulharem esse gajo de porrada – falou Marlene, dando o golpe de misericórdia à vítima daquele interrogatório. – Acho que o teu senso de justiça cairá rente ao chão quando souberes que foi o próprio Mauro que tentou fazer isso. Voltaram a ficar em transe e hiantes. – Acho que já podes perguntar quando, porquê e como, Gisela. – Quando? Porquê? E como, Paula? – Na sexta-feira – baixou a cabeça e limpou o olho direito com toda a parte inferior da mão do mesmo lado –, ele veio até aqui para me pedir desculpas e – levantou a cabeça passando o dedo médio da mão esquerda ininterruptamente entre os cabelos – acabamos por nos beijar. Só que o beijo não ficou sendo o que devia lhe matar a sede: quis beber-me por completo. Como eu não queria, ofereci o vaso à testa dele. – E ele parou? – perguntou Janeth. – De me agarrar? Sim. De sangrar? Não. Até tentei ajudá-lo, mas não quis. Saiu. – Antes de ele tirar voado, não lhe disseste que tinha de pagar o vaso? – questionou desalmadamente Gisela. – O vaso não merecia tanto. O que ele teria de suar muito para pagar é um hímen novo – falou Marlene, fazendo com que todas se rissem. A conversa continuou por mais alguns minutos e, depois, cada uma voltou ao seu domicílio situado no mesmo piso, pois tinham ocupado um andar inteiro e feito portas no interior de cada um que conectavam um apartamento ao outro. Aquilo tudo havia sido do pai de Paula, e deixou-o como herança para as quatro. É, o pai de Paula. Quando em vida, ocupou o posto militar imediatamente superior ao de brigadeiro – sim, era general. Quando morreu, ela ficou incontrolavelmente amargurada, chegava até a dar ataques de epilepsia quando, após o óbito, visse os colegas do pai trajados de farda militar, facto que fez com que, sempre que eles quisessem visitá-la, tivessem de ir vestidos de modo civil. Quatro anos depois, apareceu-lhe Carlos como uma bênção divina. Depois de ela o conhecer o bastante, expôs-lhe o problema, acrescentando que as suas primas diziam que ela já não tinha vida própria, pois fazia tudo apenas para agradar aos outros, sem a permissão deles, o que a tornava irritante; e a chamavam de doente. Antes de explicar isso de modo oral, ela havia escrito um meio-enigmático bilhete para ele enquanto o mesmo lhe ensinava as regras para se redigir um impecável trabalho científico. As palavras ortografadas na folha foram: São tantos os planos que foram com o vento Muitos sonhos que se perderam Algo que era motivo de festa Mas agora é luto do que já morreu Mas eu creio e sei que não é o meu fim Porque não foi o que eu planegei Eu me levanto do chão e vou me restituindo Porque eu quero de volta
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Tudo aquilo que perdi Ou não sabia que tenho Ele se predispôs logo a ajudá-la. Afinal, Carlos adorava resolver casos que a ciência que estuda o carácter, o temperamento, a vontade e a inteligência nas suas causas, meios, natureza e manifestações resolveria com processos psicanalíticos e psicoterapeutas com métodos que ele próprio aprendeu vivendo, e o resto lendo em livros especializados na matéria, apenas para provar a si mesmo, mas só a si mesmo mesmo, que não era uma ingente necessidade se sentar numa carteira para aprender a solucionar, ultrapassar e, por vezes, usar como arma problemas inerentes à própria vida social humana – sim, ele acreditava que, por ser o objecto racional desta ciência, poderia desvencilhar-se tão bem, ou melhor, do que alguns professos estudantes da psique gerada à imagem de Deus. Foi assim que eles passaram a ter aqueles encontros em que conversavam sobre comportamento humano. No princípio, na mesma semana em que tinha aprendido que não devia deixar que as pessoas a irritassem e/ou humilhassem sem a autorização dela, que não devia reagir de modo fútil quando alguém tomasse uma acção contra ela, que não devia ser como um reactor que não tem escolha, mas como uma pessoa que age não porque alguém lhe fez algo mas porque tem a certeza que é esta a coisa certa a fazer, deixou de falar com todas as colegas da faculdade e até com as próprias primas, apenas porque elas discordavam de muitas das coisas que ela dizia! Mas, com o tempo, ficou tão boa em demonstrar auto-domínio e agir com sabedoria, que as pessoas que antes estavam zangadas com ela começaram a requisitar conselhos de sua parte e já não a tratavam como alguém desprovido de suas capacidades de raciocínio. Paula levantou-se. Deu alguns passos até a estante e retirou o CD do leitor. Guardou-o na sua respectiva capa e, andando calmamente, saiu do apartamento. – Muito bom dia, tia Antonica. Incomodo se disser que preciso conversar? – Não, minha filha. Entra. O que se passa? – Nada. Tive apenas vontade de falar com alguém que já vem a resolver problemas difíceis há mais tempo que eu. – Ah! É isso que se passa. Ai! Essa minha coluna. – disse isso ao sentar-se. – Puxa uma cadeira, filha. – Quem é, Totó? – gritou alguém da varanda. – É a Paulinha, Bucho! Vem cá cumprimentá-la, homem! A figura masculina com rosto enrugado e o corpo já um pouco encurvado apareceu rapidamente para saudar aquela tão adorável visita. – Paulita! Então, vieste salvar-me das conversas chatas da Totó? Paula sorriu apenas. – Cala a boca, velho! A menina tem problemas sérios a tratar. E não me faças te falar o que é que é «chato» a essa hora. – Oh! Queres começar uma discussão logo às onze horas, é? Tu … esquece. Fala, Paulita, o que é que está a incomodar a tua santa cabecinha? – Se alguém agisse de forma muito maldosa contra a tia Antonica ou o tio Luís, de forma muito maldosa mesmo, será que lhe dariam oportunidades de perdão, tendo em conta que, para além de ser alguém muito achegado a vós, é também um género de «a pessoa mais importante do mundo» em vossos corações? – Bem, depende. Ele tem alguns antecedentes de maldade e muitos avisos de que o que ele faz está errado da nossa parte?
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– Digamos que sim, tia. E aumentem a probabilidade de ele, ou ela, mudar de comportamento mesmo sabendo que talvez não venha a ser perdoado … ou perdoada por vocês. – Eu agiria de acordo com o desenrolar dos acontecimentos, o que me meteria sempre na retaguarda. Mas eu não sou tu, filha. Neste caso, tens de procurar a tua própria resposta a tal problema. – Sabem, ontem fui ao sapateiro buscar um dos meus calçados que já havia deixado lá desde quinta-feira, e sabem o que é que ele me disse? «Esses mambos de deixar aqui os dibengos bué de dias sem vir buscar num dá, kota. Eu já estava a me preparar para eles ficarem nos meus pés; são o meu número.» E os dois nos rimos … – Sim. Mas o que é que a tua estranha conversa com o compadre Ferraz tem a ver com o assunto da menina, Bucho? A idade envelheceu também a faculdade de pensar logicamente, né? – Dou-te a resposta a esta pergunta depois. Continuando: enquanto ainda nos ríamos, ele, às gargalhadas, disse algo (algo que, sinceramente, nunca esperei ouvir dele): «A verdade se diz, a mentira se verifica.» Acho que se fores para casa e pensares atentamente nesse provérbio (ou sei lá como se chama), encontrarás algo para solucionares este problema. Paula ficou por alguns momentos reparando naquelas duas figuras idosas e no seu peculiar modo de prover ajuda. A senhora era de altura média, robusta, e usava óculos próprios da idade; os finos e curtos cabelos brancos estavam tapados por um colorido lenço que possuía a mesma coloração da típica blusa e o pano que cobria por completo a comprida saia que usava por dentro e calçava umas simples sandálias castanhas. O senhor era um pouco mais alto que ela, também robusto, e usava o mesmo estilo de óculos; na cabeça, os brancos cabelos ocupavam apenas as partes laterais e a nuca – sim, era calvo; estava usando uma camisa branca com listras pretas, calções brancos e sapatilhas e meias com as mesmas cores que a camisa. Ela parecia ser onze anos mais velha que ele, mas era o contrário: Luís tinha setenta e oito, e Antonica sessenta e sete. Os gostos por trajes tradicionais dela e a preferência por vestimentas «mais modernas» dele davam vazão a tal impressão. Ambos não eram realmente familiares dela. Eram, porém, duas das seis pessoas idosas que ela cuidava com muito carinho. Desde que o único filho que tiveram deixou de os visitar e de lhes prover sustento e agasalhos – filho este que Antonica deixou vir ao mundo mesmo ouvindo dos médicos que o nascimento dele custaria a perda da vida dela –, Paula usou a qualidade de empatia que tinha em demasia para «adoptá-los» como tios por assumir a responsabilidade de pagar-lhes o imposto e supri-los de comestíveis ininterruptamente, e, em troca, como prova de gratidão, ou «como manda a lei da permuta», eles davam a ela todo o carinho e apoio necessários nos momentos difíceis. Segundos depois, Paula voltou a pronunciar-se. – Se eu disser: obrigada pela ajuda… – Oh! Não precisa, filha. Nós é que te agradecemos por deixares Deus te dar o cargo de nosso anjo da guarda. – … e depois pedir que me deixem vos dar um grande abraço, vocês deixam?
* Mufete, batata-doce, feijão de óleo de palma e farinha musseque – eram estes os alimentos nutritivos que estavam sobre a mesa ladeada por Gisela, Janeth, Marlene e Paula. Cada uma havia trazido a parte que lhe coubera enquanto combinavam fazer o almoço na tarde passada. Visto que em cada dia da semana esta refeição era comida no
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domicílio de uma, naquela segunda-feira estavam as quatro reunidas no apartamento de Marlene. Janeth e a anfitriã eram irmãs, e primas das outras duas. Seus pais as haviam deixado com os pais de Paula com o pensamento de que só com eles elas teriam uma boa educação. Gisela era a única pessoa de uma família de sete filhos que sobrevivera a um horripilante massacre que ocorrera numa das províncias do país, e graças ao programa nacional passado pela televisão que apresenta inúmeras pessoas procurando seus familiares, Maria do Céu, mãe de Paula, reconheceu a sua sobrinha e foi buscá-la. Mas essa não seria uma tarde em que elas conversariam sobre tais acontecimentos. Seria, na verdade, uma tarde alegre, cheia de comentários engraçados que só um familiar bem-humorado sabe dar, e de arrumações no salão que acabara de ser remodelado. O estranho é que o dia terminaria com uma muito, muito inesperada visita.
* – Olha só como ela fica linda de avental! – gracejou Susana ao dar uma palmadinha no traseiro do namorado enquanto ele deslocava dois secadores que ocupavam parte do chão que ela estava a limpar. Carlos limitou-se a esboçar um sorriso de adversário derrotado pois, se respondesse, se participasse activamente daquele duelo de piadas insinuadoras, a boca de sua oponente seria atacada de uma forma tão arrebatadora e apaixonante, que ambos ficariam impossibilitados de continuar o trabalho que tinham de terminar no mesmo dia. – Susana, trouxeste mais um par de luvas? Rasguei as minhas ao tentar descalçá-las – explicou-lhe Paula. – Vê nos bolsos do avental que está com a Liliana – respondeu a outra. Paula dirigiu-se rapidamente à irmã gémea do rapaz que transportava e organizava as caixas de cosméticos com o auxílio de Edna e Janeth. Teve de interromper por alguns segundos a limpeza que Amélia efectuava sobre as escadas e de dizer a Gisela e a Marlene que deviam continuar a arrumar os manequins em vez de quererem saber se Mauro viria ou não. Os onze tinham combinado passar a tarde do feriado varrendo, limpando e arrumando o salão de beleza, a sala de exposição, a boutique e os quartos de banho que haviam passado por um processo de remodelação durante duas semanas e meia. À entrada, à esquerda, colocado na parte final das paredes, ficou situado o lugar da recepcionista e secretária Amélia; o meio arco volumétrico que se transformava na mesa onde se escreveria e se guardariam papéis era feito de mármore, assim como ela havia desejado. Um metro antes, à direita, ficava o salão de beleza, que era composto por duas salas, onde a primeira passou a ter cinco lugares onde Júlio, Carlos e Mauro efectuariam os cortes de cabelo aos clientes masculinos; a disposição das peculiares cadeiras passou a ser feita sobre o círculo que sobressaía a cinco centímetros do nível do chão, e o centro do mesmo foi ocupado por espelhos organizados de forma pentagonal que estavam convenientemente ligados a um tripé. A segunda, semelhante à primeira quanto à construção arquitectónica mas diferente quanto ao design de alguns objectos, ficou reservada para o tratamento capilar das clientes femininas. No fim da sala, à extrema-direita, permaneceu a escada que os levava até o outro piso. Este estava composto por uma boutique (administrada por Susana, que era a desenhadora da maioria das roupas que nela se vendiam), e uma sala de exposição (dirigida por Carlos, que era também o criador da maioria dos quadros que nela se apresentavam), ambas divididas por uma
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grossa vedação de vidro diáfano, assim como as duas salas de baixo (a diferença era que as últimas tinham um vão aberto que as conectava, e as primeiras não). – O engraçado é que eu não entendo como é que elas, mesmo tendo quarto de banho em seus apartamentos, vêm sujar o meu. E ainda fazem questão de eu ser a última a usá-lo – contestou Paula após terem terminado a limpeza e chegado ao apartamento da mesma. – Calma, primota. Daqui a nada ela sai. Depois vais tê-lo só para ti – disse-lhe Gisela. – Ela acabou de entrar. E se «daqui a nada» significa que ela vai demorar quarenta e cinco minutos assim como tu e a Janeth, então ainda vou continuar com este aspecto sujo até o intervalo do jogo. Não sei como é que vocês conseguem tomar banho por tanto tempo. Parece que vão mudar de cor! Gisela ficou parada por algum tempo olhando para o ecrã do televisor à sua frente mas fitando a sua atenção às últimas palavras de Paula, depois disse: – Nunca sentiste uma pitada de racismo quando falas ou ouves isso? – Falo ou oiço o quê? – «Parece que vais mudar de cor». Nunca sentiste isso? – Não. Porquê? – Bem, se a pessoa quer mudar de cor é porque não está contente com a que tem, o que quer dizer que se ela deseja ser branca, ou mais clara, é porque acha que o tom de pele que possui é inferior ao que ela quer atingir, o que faz com que, se numa prova dissessem para ela comparar um europeu e um africano, ela descartaria o sinal de igual e poria o sinal de maior a favor do europeu, o que significa que ou ela padece de complexo de inferioridade ou simplesmente é apologista do racismo … – Estás a me dizer isso para que eu me sinta mal por ter dito que sou a última pessoa a usar o quarto de banho do meu próprio apartamento? Ou é apenas porque queres assistir à primeira parte do jogo escutando a minha agradabilíssima voz? – Não. Falo a sério. E se prestares atenção a muitas outras frases, vais notar uma pitada de preconceitos, estigmatização… A partir daquelas palavras de Gisela, a conversa que começara com um involuntário comentário de Paula passou a ser um intelectual debate sobre conceitos e atitudes que atrasam o progresso de determinadas comunidades. Progresso – na conversa delas, esta palavra não se circunscrevia à área financeira ou tecnológica, mas à uma área muito superior, uma área que as transcende, uma área que as suplanta, uma área conhecida por biliões de pessoas mas só sabida por milhares, uma área chamada empatia. Sim, empatia. A faculdade adquirida de sentir o problema dos outros como se fossem nossos e fazer um urgente esforço de ajudá-los a resolver tais empecilhos, por estar presente em escassa percentagem nas personagens que têm como habitat a crosta terrestre, era o que mantinha a lentidão do passo da humanidade de tentar atingir o que elas duas, Paula e Gisela, chamaram de «topo do progresso empático». Para elas, as pessoas só atingiriam tal topo quando sabiamente sentissem uma sincera vontade de rectificar os seus corações e aprendessem um novo tipo de egoísmo, um egoísmo em que se interessariam só por elas mesmas, mas que esse interesse significasse fazer o bem aos outros para não se sentirem tristes; perdoar alguém para não se sentirem hipócritas; amar a todos para não se sentirem como assassinos; conversar com alguém do sexo oposto mas vendo-o apenas como uma pessoa, não como um potencial macho ou uma apetecível fêmea para não se sentirem como adúlteros; não desvalorizar os outros para não se sentirem mesquinhos; sim, um egoísmo em que o seu amor por elas mesmas seria tão gigantesco que só se sentiriam realizados, só se sentiriam como
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humanos, só teriam coragem de dizer que estavam vivos, se se dedicassem a agir, reagir e interagir cordialmente com os outros. Elas sabiam que pensar assim era sonhar com imagens desconhecidas, fictícias e ilusórias, mas, visto que não seriam postas em camisas de força e trancadas em um manicómio por estarem a ter aquela conversa… – Aleluia! Vossa Limpezidade acaba de abandonar o Templo da Água que Cai do Céu! Vou aproveitar entrar, Gisela, antes que apareça mais alguém e… Alguém tocou a campainha. – Oh! Tia Maria do Céu! Que surpresa! Quando é que chegou? Como é que está a vista operada? – perguntou Marlene depois de ter aberto a porta. – Está vendo a sobrinha de meu falecido marido molhada, amarrada numa toalha curtíssima a atender a uma visita que neste momento está completamente chocada, Marlene. Que modos são esses?! Ao ouvir aquela voz, Paula ficou paralisada, segurando a porta do quarto de banho. Não, não podia ser. Não podia ser ela! – Deixa-me passar, menina. Incomodas-me com as tuas perguntas que nem o ponto de interrogação no lugar certo têm. Boa noite, Gisela. Falo contigo depois. Onde está a... Paula! Que horror! Como é que te permites ficar neste estado macabro, filha? Andaste a ajudar os colectores de lixo, ou é a nova moda neste país? Paula não quis fazê-lo, mas o instinto induziu-a a entrar no quarto de banho sem proferir nenhum som audível em resposta aos comentários descorteses de sua mãe. Ah! O dia tivera começado tão bem; o almoço fora divino; das dezasseis às dezanove e quarenta e cinco, dedicara-se à limpeza de seu local de trabalho na companhia agradável de seus amigos; teve até uma interessante conversa com a sua prima mais calada às vinte e uma e quinze – porque ela tinha de aparecer sem avisar, e ainda mais às vinte e duas horas? Está certo que ela era a mãe dela, mas… ah! – Ainda só vi três de vocês. Onde está a outra? – Está no apartamento dela. Mas daqui a pouco está aqui. – Estás vestida com estas roupas extravagantes, e acho que elas vestirão algo das aparências, vão sair? – A saída era exequível antes de a tia Maria do Céu chegar, agora é provável. E acho que se diz «algo parecido». – Eh! Eh! O vosso hábito de seguir à risca as expressões que pessoas desconhecidas inventaram permanece. Vocês não se cansam de se alojar na bactéria da imitação? Não pensam em se mudar para o neurónio da criação? – Se se mudar para o neurónio da criação é sinónimo de falar coisas que dificultam a comunicação salutar entre as pessoas, não. – Gisela, Gisela, Gisela. Quem te pôs os olhos em cima e quem tos põe agora! Estás com um defensivo pensamento relâmpago impressionante. Os erros de concordância desapareceram; já não guardas a letra s para o jantar. Deixaste de ser o monstro que punha em risco os feitos linguísticos de Camões. Estou orgulhosa sobrinha, orgulhosa. Gisela abaixou a cara e abafou uma gargalhada de cinismo e irritação. «Agora ela recriou o bem conhecido quem te viu e quem te vê», pensou com graça. Janeth possivelmente já chegara a saber da chegada da tia por meio de Marlene, por isso é que demorava a chegar ao apartamento de Paula. Marlene também iria fazer o possível e o impossível para não se vestir com rapidez, e Paula – Paula quis que a água do chuveiro caísse gota a gota, assim o banho demoraria uma eternidade. Mas elas eram quatro, quatro contra uma. Porque tinham medo de a enfrentar? Bem, medo não era a
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palavra certa. Talvez fosse prudência ou o efeito da inexistente vontade de tentar manter um construtivo diálogo com ela, mas medo? Não. Todavia, não se podiam esconder por muito tempo, senão mostrariam claramente que ainda se sentiam inferiores sempre que estivessem perto de Maria do Céu. Por isso… – Gisela, emprestas-me o teu ba… Oh! Boa noite, Tia Maria do Céu! Chegou quando? – Meu Deus! Você e a tua irmã padecem de ecolalia, não? Uma diz a mesma coisa que a outra! E olha-me para essas roupas! Também há falta de tecido no país? – Acho que quando pensarem em produzir um talk show sobre o uso exagerado do ponto de exclamação e do de interrogação, a tia será a única convidada. – Sempre ácida, senhora Janeth. Cuidado, ainda dissolves o pouco tecido que tens vestido. Estás um pouco… – Golooó!!! – gritaram estridentemente Gisela e Janeth, fazendo com que Paula e Marlene saíssem dos sítios em que se encontravam e convergissem euforicamente para a sala de estar.
* Duas da manhã. Paula estava deitada sobre a cama, com os olhos encharcados de sono. Seu pensamento – este estava quase acordado, debruçando-se sobre a chegada de sua mãe. O que é que a fizera mudar de ideias e voltar a Angola? Já que ela não apareceu com malas de viagem nenhumas, quando é que chegara? Porque não avisou a filha e as sobrinhas com antecedência que viria, para que se lhe arranjasse uma recepção com maior pompa? Por que razão ainda permanecia acordada na sala do apartamento de Paula com o televisor ligado até àquela hora? Será que a estadia dela seria prolongada, ou infinita? Será que a presença dela influenciaria pejorativamente o comportamento de Paula? Sim, voltaria ela, Paula, a ser aquela rapariga cujo comportamento obsessivo irritava os outros?
* Seus olhos despertaram. Sete segundos depois, o alarme de seu telemóvel tocou. Abraçou com força o gigante urso de pelúcia que estava a seu lado e fez uma efémera oração. Foi bocejando até o quarto de banho. Saiu depois de dezasseis minutos. Reparou nas duas vezes, que sua mãe não estava na sala. Mas não tinha tempo para procurá-la. Entrou no quarto; vestiu-se e saiu.
* – Que ideia acham que o autor quis expressar nestes versos? Menina… Paula? – Sim, professor!? – Pareces precisar de um fato espacial para te sentires mais confortável no mundo em que te encontras. Por favor, desce antes que te asfixies, e faz a delicada gentileza de nos oferecer a tua ideia quanto a este texto. – Posso voltar a lê-lo antes? – Claro! Mas faz isso de pé e em voz alta. 37
O lado esquerdo de seu lábio superior moveu-se involuntariamente por três vezes. Depois pegou o livro, e leu. As palavras eram: «Parabéns» Com taças feitas de culus enferrujadas Brindamos à nossa terra Onde não se vive Nem se revive Possui-se apenas vida Vida escassa Mas vida… – Muito bem! A explicação, por favor. – O autor… o autor possivelmente quis… (desculpem). Se eu fosse a autora deste poema, e o tivesse realmente escrito com estas palavras, a minha subjectiva mensagem seria: imprevistos, e o resto das coisas más da vida, podem até cair sobre nós como uma tempestade de granizo, o comportamento nada altruísta de muitos pode até incutir em nós uma percentagem de tendências suicidas e/ou homicidas, nossos próprios progenitores podem até ser causa de irritação dia e noite para nós, mas nem por isso deixamos de possuir o dom da vida por causa destes incomodativos factores externos. Não deixamos de respirar, e se respiramos, temos forças para lutar, temos força para nos levantar a cada queda, temos… temos força para «brindar» quando nos sentimos vencedores. – Adoro quando escolho a pessoa certa para algo assim! Muito obrigado, Paula. Podes sentar-te. Outras ideias? Paula sentou-se. Sem saber a razão, sentiu um misto de orgulho e vergonha a invadi-la. Sentiu-se um pouco delatora também. No intervalo maior, não foi à cantina como era costumeiro – permaneceu sentada na sala, relendo aquele curto poema. Quando levantou os olhos, seu campo de visão comunicou-lhe que não estava sozinha. Havia mais alguém que abdicara do prazer da alimentação para ficar a ler. E, pela forma, tamanho e cor do livro, ele parecia estar a ler a… Bíblia!? Ela fez uma rápida retrospectiva das pessoas que sentavam naquele sector. E foi então que seu sensor disparou: ele! Ele estava aí, sentado entre as mesmas paredes que ela. Será que viria desculpar-se? Não. Parecia absorto no que lia. Talvez nem tivesse dado conta que ela permanecera na sala. E se ela fosse até ele? «Nunca!», pensou. «Há coisas que não se fazem.» É, há coisas que não se fazem. Terminadas as aulas, Paula dirigiu-se ao salão. O dia de reabertura começara de forma excelente. Chegaram até a atender vinte por cento a mais do que o habitual, relativamente aos clientes. Um pouco antes do anoitecer, houve a exposição de Carlos no andar de cima. O contraste audacioso entre as formas, a harmonia cromática e a graciosidade do movimento ritmado nos quadros eram de tal forma sublimes, que daquela vez os presentes não se limitaram a menear a cabeça e a dizer: «Por acaso, muito bonito», chegaram mesmo a comprar algumas daquelas obras de arte.
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Mas Paula – Paula estava mais atenta em outro tipo de obra artística, uma obra de um metro e setenta e seis de altura, olhos da cor do café, peito garboso, pernas semi-arqueadas e um rosto prosaico que oscilava entre melancolia e seriedade, e havia uma laceração quase cicatrizada sobre sua sobrancelha esquerda. Sim, suas pupilas fitavam Mauro. Mas ele não correspondia ao olhar. O olhar dele parecia completamente imerso na obra de arte intitulada Estamos em perigo? Ou somos um perigo?. O título e as figuras no quadro possivelmente haviam suscitado em seus pensamentos perguntas e respostas com um fundo tão profundo, que ele teve de ficar especado por um tempo considerável. Mas como é que era possível? Ninguém muda assim tão rápido! Estava certo que o choque de perceber que quase violentara a própria namorada (ou ex-namorada) devia ter tido um impacto sem precedentes em seu consciente – e ainda só haviam passado quatro dias –, mas aquela mudança radical parecia muito inconsistente aos olhos de Paula. Não era credível.
* Vinte e duas e sete. Chegou cansada ao apartamento. Os sapatos já não tinham necessidade de estar a apertar seus pés, por isso, livrou-se deles rapidamente. O apartamento estava escuro. Só a luz da lua e o piscar dos faróis de alguns carros lhe permitiam ver os contornos dos móveis. Permitiu que as mãos já quase adormecidas tacteassem um lugar para se sentar. Levantou calmamente as pernas e pô-las sobre a mesinha de vidro. O contacto entre sua pele quente e aquela matéria fria fez-lhe suspirar de alívio. Inclinou a cabeça para trás, começou a desabotoar a blusa… – Boela! – soltou este insulto para si mesma quando recordou que não havia pegado a bebida gelada. Levantou-se. Foi de olhos fechados até a geladeira – não queria ter contacto com a luz logo que ela abrisse a porta da mesma – e apalpou todos os pacotes dentro dela, até que achou o mais alto. Voltou ao lugar em que estava e colocou-se na mesma posição. Abriu o pacote, e no exacto momento em que aquele líquido tão desejado revigoraria sua garganta, alguém acendeu uma das lâmpadas. – Mas quem…? – Perdoa-me se te assustei. – Ah! É Vossa Alteza! – Preciso conversar contigo. Sem discussões. – E por este motivo decidiste entrar à socapa e estragar o meu momento Bryle? – O teu momento quê? – Nada. Podes falar. – Não entrei à socapa. Nem sequer tenho as chaves! Fiquei o dia inteiro aqui, no quarto do teu pai. – Oh! Mas não é sobre como justificar-se esfarrapadamente que queres falar comigo, não é? – Não, não é. É sobre (não me interessa se acreditas que passei aqui o dia todo, menina) nossa relação. – Porquê? – Enquanto estive fora, conheci inúmeras mães e apreciei o comportamento delas em relação as suas filhas. A ponta afiada da inveja começou a picar-me… – Percebi: querias que eu lá também estivesse, para mostrar a elas que a nossa relação é melhor. 39
– Não! É claro que não. Me apercebi que perdi tempo de valor incalculável ao prestar atenção a outras coisas do que em ti. – «Não! É claro que não» digo eu! A mãe tem ideia do que me fez passar com o seu comportamento estúpido… troglodita? Sabe como afectou o meu ego com as suas frases desprovidas de ternura e cheias de desconsideração? Consegue imaginar os meus sentimentos sempre que ouvisse os seus comentários impróprios e grosseiros? – Calma aí! Mais respeito, menina! Achas que, por o teu pai estar morto e eu não estar constantemente contigo, o nosso duunvirato acabou? – Bem, se queres resumir tudo neste termo frio, como é que eu poderia aprender a respeitar o duúnviro menos participante na minha vida, e que, quando participava, era para enfraquecer e depois destruir por completo o meu amor-próprio? – Já vi que a minha ideia de discutirmos civilizadamente sobre este assunto e chegarmos a um acordo favorável para ambas as partes por uma troca de concessões não vai correr bem. – «Uma troca de concessões»? Perdi-me. O que queres dizer com isso, mãe? Maria do Céu limitou-se a olhar para os olhos de Paula e, virando-se, foi em direcção ao quarto onde passara todo o dia e que só saíra para tomar banho, fechando a porta logo a seguir. Era exactamente o estilo dela! Envolvia o receptor de suas mensagens até o ponto de ele se interessar mais, e depois cortava a comunicação. Chata! Paula enterrou o rosto na mão esquerda, em sinal de desaprovação para consigo mesma. Já devia ter aprendido a lidar com aquela senhora – não era sua mãe? –, já devia saber que nunca devia baixar a guarda. Desactivou os seus pensamentos em relação à sua mãe, e ligou-os a Mauro. No decorrer do seu devaneio, lembrou-se que alguém lhe tinha dito que o Mauro era assim «muito restrito», quando ela quis saber mais sobre a personalidade dele. Recordou-se ainda que ele era actor – facto que podia muito bem lhe confirmar que este «neo-Mauro» era só teatro! E, para seu espanto, achou algumas similaridades entre a mãe dela e ele: ambos eram como corpos de água em que se podiam apanhar peixes, embora num fosse à pesca fluvial e no outro, à marítima! Mas, logo que pensou nisso, apercebeu-se de que falava consigo mesma de uma forma tão surreal – ou tão cifrada – que, se continuasse, as pequenas dores de cabeça que tinha naquele momento piorariam. Pegou novamente no pacote de sumo e começou a beber. Ah! – pelo menos um de seus sentidos se sentia alegre naquela hora; mas não foi por muito tempo. A alegria do paladar transformou-se em seriedade no pensamento, o que fez com que o tacto encontrasse o telemóvel em sua bolsa, a visão lhe indicasse o caminho até as Notas Rápidas e os dedos teclassem as seguintes palavras: O silêncio, O vento, A incerteza, E o desespero Chegam a ser professores incautos Quando nos ensinam a reagir Durante um dado acontecimento Antes de gravá-las em seu pequeno aparelho de comunicação, releu-as duas vezes, e, depois de voltar a pôr o pacote na geleira, foi adormecer o espírito e a alma em seu quarto.
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CAPÍTULO V Deitado quase nu sobre a cama, seus lábios mostravam uma aura de satisfação e triunfo; sentado comodamente sobre sua cadeira, enquanto tomava o pequeno-almoço, seu rosto demonstrava o espírito de majestade; concentrado nas explicações dadas por seu professor, na sala de aulas, seus olhos projectavam perfeitamente a imagem da audácia; enquanto cortava o cabelo a um dos clientes, no seu local de trabalho, seus movimentos eram mantenedores de uma elegante fidúcia; mas, ao terminar o corte, seu cérebro passou-lhe a informação de que precisava escrever algo referente a um concurso naquele mesmo dia. Por isso, falou com a chefe, e saiu correndo. Sim, Carlos voltou às pressas para casa.
* – Ah! Ah! Ah! – as gargalhadas eram colectivas e vinham do quarto de Liliana e Derito. Pela hora em que estavam, já haviam feito o pequeno-almoço, antes de o tio acordar, já haviam ido às aulas e já haviam almoçado. Alguns dos amigos deles, que viviam no prédio, apareceram com um novo videogame «quente», por isso os ouvidos de Carlos tinham de aguentar o triplo do barulho costumeiro. Derito entrou a falar com uma bolacha na boca e outras no prato. – Comé, diminuam um pouco o volume. O tio Carlos disse que, se continuarmos desse jeito, vai usar RPG-7, ou algo assim, contra nós. – Pô, ele não devia estar a trabalhar neste momento? – perguntou um dos amigos. – Yá. Mas disse que protelou muito a escrita de umas histórias aí pra um concurso, e, Liliana, nós é que vamos ter de informatizá-las. Liliana concordou com a cabeça, pois seus olhos e dedos estavam crivados naquele jogo. – Mas tu não perdes? Também queremos nos viciar – beliscou-lhe Derito, depois de ter colocado o prato sobre a banca. – Na tua vez eu não disse nada. Quem te mandou perder rápido? – Foi a primeira vez que eu joguei! Querias que fosse craque? – Não. Mas se não quisesses tanto ser o primeiro, irias aprender dos erros de todos nós, e aí demorarias mais tempo. – Deus queira que cortem a luz. Liliana limitou-se a gargalhar. Alguns minutos depois, antes de voltar ao trabalho, Carlos chamou Derito e entregou-lhe algumas folhas cujas palavras contidas nelas estavam escritas a lápis. Derito olhou para o quarto onde estavam Liliana, Dodó, Tino e Mira. Pensou no tempo em que sua irmã ainda era capaz de demorar naquele jogo, depois olhou para o canto da sala onde se encontrava o computador. Para tomar a derradeira decisão, começou a ler os rascunhos do tio, para saber se escreveria algo chato ou algo fantástico. Os gémeos Kitexi e Wanga eram irmãos gémeos e muito inteligentes; Tchimba, por ser mais poderoso que os outros feiticeiros da aldeia, passou a subjugar o povo com tirania. Os
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gémeos, após presenciarem várias cenas horríveis de espancamentos até a morte e perdas de bens injustas patrocinadas por Tchimba, decidiram revoltar-se. Foram… Foi o suficiente para ele se sentar sobre a cadeira de escritório, encostar-se à mesa de secretária e pôr seus dedos em contacto extremo com o teclado. Os Gémeos Kitexi e Wanga eram irmãos gémeos e muito inteligentes. Tchimba, por ser mais poderoso que os outros feiticeiros da aldeia, passou a subjugar o povo com tirania. Os gémeos, depois de presenciarem várias cenas horríveis envolvendo espancamentos até a morte e injustas perdas de bens patrocinadas por Tchimba, decidiram revoltar-se. Foram procurar um sábio em outra aldeia com o intuito de saber como poderiam derrotar o tirano. O sábio disse-lhes que somente quando houvesse quatro luas no céu nocturno é que o domínio de Tchimba cairia. Os gémeos, depois de pensarem por muito tempo no que isso significava, voltaram à aldeia com a solução. Quando chegaram, Kitexi e Wanga congregaram o povo e Tchimba, dizendo que derrotariam o último. Após estarem todos reunidos de noite, Tchimba, com sua voz arrogante, disse: – Desde quando é que formigas lutam contra rinocerontes? Mas, já que querem se ver livres de mim, eu vos proponho algo: cada um de nós terá de fazer uma mágica; a melhor vencerá, a pior condenará o seu feitor a ser imediatamente trespassado por lanças. Os gémeos aceitaram. Tchimba ordenou que homens fortes ficassem perto dele e dos gémeos apontando lanças contra seus peitos. Tchimba foi o primeiro: transformou uma criança em duas gazelas. Quando os gémeos disseram que fariam aparecer quatro luas no céu, Tchimba e alguns do povo soltaram gargalhadas imensuráveis. Mesmo assim, Kitexi e Wanga mantiveram-se concentrados; abaixaram as cabeças sete vezes e, de rompante, levantaram as mãos em direcção às alturas. Aos poucos começaram a aparecer mais três luas em adição à que já lá estava. Todos ficaram estarrecidos e bateram palmas. Num ápice, lanças perfuraram o coração de Tchimba. Aquela aldeia viu-se então livre de opressão. Momentos depois, os gémeos explicaram que não haviam feito nenhuma mágica. Apenas tinham posto três enormes espelhos sobre os embondeiros, de uma forma que a imagem da lua pudesse ser reflectida por eles. Com um sorriso maroto nos lábios, Derito inclinou a cabeça para pensar um pouco sobre qual seria a fonte de inspiração para seu tio ter escrito aquela história. Mas, quando voltou a posicionar-se correctamente para escrever a história seguinte, notou assustado que as folhas haviam desaparecido da mesa. – Preferes que eu dite e tu escreves ou escrevo eu e tu ditas? – perguntou Liliana com uma expressão apaixonada no rosto. – Dita. Escrever deve ter muito mais suspense. – Não. Deve ter muito mais suspense ouvir a Liliana a ler e ver o que você está a escrever – contestou Mira ao espreitar o título da história seguinte. – E o jogo? – Deixamos aqueles dois se viciarem por mais dez minutos. Daqui a pouco vão desligar. – E eu? Não joguei quase nada. – O Dodó aceitou deixar o disco. Vais poder estragar os dedos enquanto o tio estiver a sonecar.
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– Fixe! Fi-xe! Dita. – Muito bem… O Homem do Saco Numa aldeia distante, era da praxe as crianças irem até o rio tirar água para levarem às suas casas. Era também costumeiro os pais avisarem-nas para que não brincassem dentro do rio – pois temiam que as crianças fossem levadas pela forte correnteza – e que muito menos deviam tentar atravessá-lo – pois havia o risco de elas serem sequestradas pelo infame Homem do Saco. Todavia, havia meninos cuja curiosidade lhes corroía os olhos. Kaculu era desses, e um dia decidiu aventurar-se por entre os caminhos proibidos. Engenhosamente inventou calçados de pedra, que o possibilitaram passar incólume pela brava correnteza do rio. Após andar variadas horas por entre as majestosas e intimidadoras árvores, Kaculu viu-se perdido à sonoite. Começou então a procurar o caminho de volta para a casa, mas sem sucessos. Kaculu deixou esvair de seus olhos algumas lágrimas de angústia e medo. Nem lhe foi dado tempo para limpá-las de seu rosto pequeno, pois um barulho sinistro despertou a sua atenção. Kaculu tentou correr, mas caiu, e arrastou-se com os braços até uma árvore próxima. Enquanto o barulho se tornava mais alarmante, viu a aproximar-se dele uma figura abissalmente negra, possuidora de um odor horripilante e um par de olhos bizarros, noctívagos, vermelhos escuros, que imediatamente o pôs num grande saco feito de pele de cabra. Apesar dos gritos e dos movimentos bruscos que Kaculu empreendeu dentro do saco, foi levado com pouco esforço por aquela aberração. Depois de tantas tentativas infrutíferas, a Kaculu restou apenas o fôlego para perguntar ao ser que o apanhara: – Para onde me levas? Após alguns segundos de silêncio, o maior raptor de crianças daquela área respondeu-lhe friamente, com aquela voz áspera de monstro: – O ratinho que vai procurar comida sem a ajuda da mãe, é apanhado pelo gato. As palavras dos teus pais deviam ser como algemas pesadas em tuas mãos, manter-te-iam sempre em casa e seguro. Porém, visto que te atreveste a desobedecê-los, eu farei a ti o que o gato faz sempre que apanha um ratinho. – Meu Deus! Estou arrepiada. Qual é a próxima história? – Não sei o que quer dizer «infame» e «incólume», mas essa história daria um grande jogo de vídeo! O teu tio come o quê? – Isso é pergunta que se faça, Tino? Desligaram tudo aí dentro? – Yá, Derito. Daqui a pouco são dezoito e trinta, dita a última história, Liliana. – Tá a te kuiar, né? Tá a sair fumo da cara até! Mas vamos lá. Daqui a pouco o tio Carlos está aí, e temos de ir correr. Respondendo a tua pergunta, cara Miraldina., a próxima história tem como título: A Estéril Abençoada. A Estéril abençoada Em certa aldeia, eram tratadas como escória as mulheres que não podiam ter filhos. Mukari era uma dessas e, por isso, era física e verbalmente atacada por seus coetâneos. No desespero de acabar com aquele vilipêndio, Mukari foi ter com Kianda, Rainha do Mar, para que a mesma a abençoasse por lhe tirar a esterilidade. Kianda fê-lo, mas com uma condição: Mukari daria à luz gémeos, todavia, outra pessoa os criaria. Depois de muito pensar, Mukari concordou.
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Nas vésperas do nascimento dos gémeos, Mukari deu uma festa ritualista para a Rainha do Mar, o que fez com que Ela aceitasse que a pessoa que os criaria fosse a tia de Mukari. Quando adultos, os gémeos salvaram o povo que zombara de sua mãe de uma grande ameaça.
* – Vinte e cinquenta e sete – respondeu Derito à pergunta do tio. – Está provado: o tempo passa mais rápido enquanto jantamos. Fizeram o trabalho? – Se o fizemos! Até os nossos amigos ajudaram a bater algumas partes. Ficaram boquiabertos com as histórias. – A inspiração adora-me, é este o facto. – Vá lá, tio Carlos. Reconheça que a fonte de inspiração é que é eficaz. – Convencidos! Mas, tá bom. Rendo-me. Vocês são uma fonte de inspiração que jorra sem cessar. – Notei que a história «A Estéril Abençoada» parece ter a sua continuação na «Os Gémeos» – foi assim que a única pessoa que estivera calada até aquele momento começou a sua dissertação. – Ainda nem as li bem, mesmo tendo sido o escritor. Liliana levantou-se, foi até o computador portátil, trouxe-o e pô-lo sobre o colo do tio. Ela mesma direccionou o cursor até aparecer na tela o título Os Gémeos, depois de se sentar ao lado de Carlos. Carlos leu a história com atenção e, quando terminou, Liliana fez aparecer o título A Estéril Abençoada. Segundos depois… – Terminei. – Essas duas histórias nos fizeram pensar em nossos pais, tio Carlos. Sobre a história do nosso nascimento e sobre o actual paradeiro deles. Foi então que Carlos se deu conta de que, inconscientemente, havia transmitido naquelas folhas brancas parte do problema que o afligia já por oito dias. «… o que fez com que Ela aceitasse que a pessoa que os criaria fosse a tia de Mukari» – não espelhavam aquelas palavras o facto de Liliana e Derito estarem a ser criados pelo tio desde bebés, mesmo tendo os pais vivos? – É. Isso de não saber qual de nós é o mais velho é revoltante. Como é que a nossa mãe não prestou atenção a isso? – acrescentou Derito ao que sua irmã dissera. – Eu já vos disse que não é uma história agradável de se ouvir e que me faz mal falar sobre ela. – Eu também digo que me faz mal falar sobre tudo o que aprendi na escola, mas o tio Carlos me obriga a falar – contestou Liliana. – O «Aprende por observar-me» será muito bem-vindo agora. – …0K. Se eu… Naquele dia… Quando… – Fala, tio Carlos! – Estou a fazer tempo para ver se algo me salva. E, por coincidência, o telemóvel dele começou a tocar. Liliana atendeu. – Boa noite. – Liliana! Daqui é a mamã! – Ma… Mamã?! 44
Carlos instintivamente puxou o aparelho das mãos da sobrinha e desligou-o. Os três ficaram no mesmo instante sem saber o que dizer um ao outro.
* Passaram-se apenas trinta e oito minutos desde que Derito dissera a Carlos que horas eram. Sim, já eram vinte e uma e trinta e cinco. Depois de uma longa quebra – e também um extenso bloqueio – de pensamento, aquela estranha atitude do tio de Derito e Liliana deu forma e substância a uma chuva torrencial de perguntas. – O tio Carlos fez isso porquê? – Era a mamã…!? E mesmo assim o tio…? – Não podemos falar com a mamã? – Ela continua sem querer saber de nós? – Mas ela acabou de ligar, Derito. Acho que ela quer sim saber de nós. O que é que se passa, tio Carlos? – Não era a nossa mãe? – Andam outra vez a tentar raptar crianças? – É por isso que o tio Carlos tem andado um pouco diferente? – É isso que o tio tentou nos contar na quinta-feira? – Podemos parar de fazer perguntas e ouvir as tuas respostas? – …Parece que não terá piada se eu disser que posso vos processar por abuso do desejo inerente das crianças de fazerem perguntas – suspirou – por isso… ouçam. Na terça-feira passada, não, a passada foi ontem, na terça-feira antepassada, o Lino e a Eduarda … os vossos pais, mais o vosso pai que a vossa mãe, ligaram para mim, dizendo que querem que vocês vivam com eles. – Fixe! Fi-xe! E o tio Carlos disse o quê? – No princípio, nada. A minha reacção foi a mesma que vocês acabaram de assistir quase uma hora atrás. Depois… sei que o que vou dizer será a resposta à tua próxima pergunta, Derito… depois eles voltaram a ligar, obviamente já no outro dia, e eu disse que precisava de tempo para preparar-vos… – Quis dizer que já temos idade suficiente pra nos vestirmos sozinhos mas… continue. – Vês?! É por causa disso que eu lhes disse que precisava de tempo para vos preparar, Derito. Vocês estão comigo praticamente desde que nasceram; cresceram numa determinada… realidade: fazer as coisas a horas, ler diariamente, pesquisar sempre que houver necessidade… observar o pôr-do-sol com espanto uma vez por mês… lançar piadas sem mais nem menos, e outras, muitas outras coisas. Não achei justo quebrar esta hilariante rotina de repente. – Mas nós podemos continuar a fazer essas coisas com eles… – Isso se conhecêssemos os hábitos deles, Derito. Nós quase que nem sabemos nada acerca do papá e da mamã, a não ser o que os nossos tios e a vovó nos contam – interrompeu Liliana. – …se o tio for viver connosco! – Acho que não vos expus bem o problema. Eles só querem vocês, mais ninguém. Eu sou uma espécie de «obstáculo para o relacionamento entre pais e filhos ser um sucesso». – Quem disse isso? – perguntaram os gémeos ao mesmo tempo. – O vosso pai.
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Liliana sentou no colo do tio e abraçou o pescoço dele. Carlos levantou-se do cadeirão – sim, com Derito preso às suas costas e Liliana entre seus braços – e levou-os até o quarto de banho. Os três escovaram em silêncio os dentes. Quando terminaram, assim como tinham saído da sala até o quarto de banho, saíram de onde estavam até o quarto dos gémeos. O silêncio entre aquelas três pessoas que dificilmente ficavam sem uma palavra para dizer era tão triste, tão gélido, que nem o «boa noite» de Carlos e a resposta de seus sobrinhos foram capazes de quebrá-lo um pouco que fosse.
* Dez horas – hora do intervalo maior. Liliana foi até o canto mais isolado da escola. Tirou do bolso o pau de giz que a professora lhe entregara para responder a algumas perguntas no quadro. Cheirou-o, abriu a boca e comeu-o. Ela sentia uma forte atracção pelo cheiro de cimento, areia molhada e giz, e, quando não houvesse ninguém com ela, digeria um pouco destes compostos. Ela tinha consciência de que aquilo poderia lhe fazer mal, mas, visto que não lera nada acerca do assunto e devido ao facto de que quando se deseja fazer qualquer coisa de índole ilegal vê-se apenas os benefícios que se pode tirar disso, Liliana vez por outra se deliciava com esses venenos. Eram o vício dela. O segredo dela. Para não deixar vestígios, pegou o cantil cor-de-rosa e amarelo que trazia no ombro, deu um gole, bochechou, e em seguida cuspiu as minúsculas metades que haviam colado entre seus dentes e língua. – Liliana! Hoje estás sozinha? – perguntou um de seus colegas com um certo tom de satisfação. – Estava. Agora estou acompanhada. – Mas não estou a ver mais ninguém aqui… – Me referia a ti. Bem, vou voltar pra sala. – Mas o intervalo ainda não acabou e… – o rapaz estava nervoso. – Gosto de passar o intervalo na sala, Ivan. Acho que todo o mundo que me conhece sabe disso. – Oh, yá. Então… toma. Ivan entregou-lhe um envelope branco e saiu de perto dela a passos apressados. Se ela fosse até a sala e o abrisse em sua carteira, no mesmo instante estaria ladeada por muitas de suas colegas, por isso, decidiu lê-lo aí mesmo. Não aceitasti o meu pidido di namoru purque? Foi por eu não afinar o português como você? Ou queres um pidido mais a teu nível? Então lê: Liliana, queres fazer pé de alferes comigo? Ivan O sorriso gozoso que estava pintado na cara de Liliana por causa dos erros ortográficos de Ivan desapareceu quando ela leu a última pergunta. «Fazer pé de alferes». O que significava aquilo? Um pedido para saírem juntos? Um requintado pedido de namoro? Não seria mais uma proposta imoral? De uma coisa ela estava certa: estar ignorante quanto ao significado de algumas palavras não era nada divertido. Sim, Liliana descobriu que ignorância é dependência. – Bom dia, dona Fina – cumprimentou ela após ter entrado para a secretaria.
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– Bom dia, Liliana. Vais ter de voltar amanhã, filha. Ainda não recebemos os livros de que estás à espera. – Não, não é isso. Vim apenas ver algo no dicionário. Posso? A secretária levantou-se, vasculhou rapidamente as gavetas e as enormes estantes, depois disse: – Olha, vais ter de subir até a sala do Director. Acho que foi ele o último a levá-lo daqui. – 0K.Com licença. As sapatilhas brancas cujas laterais eram cor-de-rosa que estavam em seus pés pareciam dar-lhe mais velocidade, enquanto subia aqueles degraus. Quando chegou perto da porta do gabinete do Director, parou. Respirou calmamente por alguns segundos antes de bater à porta. Todavia, de dentro do gabinete nenhuma resposta se ouviu, nem mesmo quando ela bateu com mais força. O Director não estava. Possivelmente havia ido a uma reunião importante, ou simplesmente havia fugido de suas responsabilidades para ir tomar umas cervejas com alguns professores. E agora? Se telefonasse ao tio perguntando-lhe sobre o significado daquela expressão, ele na certa lhe diria que ela mesma tinha a capacidade de descobri-lo, bastando para isso usar os dedos e folhear um dicionário. Que chato que o tio dela era! Derito com certeza não sabia o significado, e, se soubesse, iria esfregar na cara dela por toda a eternidade que um dia lhe ensinara a definição daquela expressão. Perguntar ao Ivan – era uma possibilidade que não existia. Mas será que estava morta? Será que a não existência significa necessariamente morte? Mas isso não era o assunto em questão. Talvez numa outra altura seria bom conversar sobre isso com o tio dela, mas naquele momento – naquele momento ela quis apenas deixar de desconhecer aquelas palavras. – Liliana, olha o que eu ganhei: quinhentos kwanzas! Só por ter deixado uma formiga me ferrar! – pavoneou-se Derito, interrompendo os pensamentos da irmã. – Você é maluco. – Eles é que são. Não acreditam que eu não sinto dor. Coitados, vão continuar a perder. Amanhã vou ganhar mais. – Dessa vez qual será o animal? – Um escorpião. – Um escorpi…! – Nada de pânico. Já li alguns livros que falam sobre esse Aracnídeo, os mais venenosos não vivem aqui em Angola. – ‘Cê é que sabe. O corpo é teu. – E o dinheiro também! Falta pouco para eu comprar aquilo que… Naquele exacto momento, o sino da escola tocou.
* Nota 11. Logo que chegaram perto da entrada do prédio, Liliana começou a correr. Carlos e Derito pensaram que ela fizera aquilo apenas porque quis urgentemente satisfazer uma necessidade natural no quarto de banho. E, de facto, eles tinham razão, em parte. Liliana quis satisfazer uma necessidade natural, só que não seria no local em que eles haviam pensado, seria na sala. A necessidade natural por obter conhecimento imperava na mente daquela menina. Quando chegou ao seu destino, Liliana abriu rapidamente a porta do apartamento com as chaves que previamente pedira ao tio. Lançou a pasta cor-de-rosa e branca sobre o cadeirão, abriu as duas portas inferiores da estante, retirou o pesado dicionário laranja 47
e começou a folheá-lo, ajoelhada sobre o tapete. Foi até a entrada «pé», mas não encontrou o que queria. Folheou regressivamente até a entrada «alferes». Leu a definição e, mais abaixo, sim, aí estava, em negrito… – Achei!! – Tio Carlos, a Liliana quer usar as folhas do dicionário no quarto de banho! – Cala a boca, Derito. Estou a resolver assuntos importantes. – Isso já percebi eu. Estás muito aflita, mas como és muito higiénica, queres papel especial. – Não te ligo. Cá está: fazer pé de alferes: namorar. O miúdo pesquisou, hein? – Não estás a pensar em usar essas folhas como papel higiénico, estás? – gracejou Carlos, enquanto desligava o telemóvel. Antes de Liliana tentar responder àquele dé jà vu de falta de brio cómico, Derito deu uma gargalhada do outro lado da sala. – Não posso acreditar! «Não aceitasti o meu pidido di namoru purque? Foi por eu não afinar o português como você? Ou queres um…» – Dá isso aqui Derito – disse Liliana, dirigindo-se apressadamente para o local em que o seu irmão estava. – Calma. Deixa eu acabar de ler essa maravilha – ironizou Derito, fugindo da irmã. – «Ou queres um pidido mais a teu nível? Então lê: Liliana, queres fazer pé de alferes comigo?» Eh, essa expressão cheira a malandrice! Amanhã vou partir a cara do Ivan. Ninguém faz «pididos» imorais à minha irmã. Liliana aproveitou a distracção do irmão para lhe puxar o bilhete. – Não tem nada de imoral, parvo. Fazer pé de alferes significa namorar. – E o que é que lhe respondeste? – perguntou Carlos, abafando o riso. – Nada, por enquanto. Mas o tio já sabe qual será a minha resposta. – «Sim, aceito fazer pé de alferes contigo, ó Ivan, rei da péssima ortografia.» – Pára de te meter com a tua irmã, Derito. Vão trocar de roupa. Carlos tentou ocupar sua mente com as recordações que aquela atitude de Liliana em relação ao namoro suscitava em seu espírito, porém, a resposta à mensagem que ele havia enviado enquanto subia as escadas interrompeu aquele intuito. Quando a abriu, o visor mostrou as seguintes palavras: Ñ sei o q acontece com meu corpo qdo xtou contigo, ñ sei até q ponto aguentarei ficar sem t declarar o que sinto. Só sei q hoje qro q tenhas uma longa tarde pensando em mim. Bjs. – Susana, Susana, Susana. Excelente.
* – Irritante e chato – suspirou Liliana. – É, ficar sem luz a essa hora não é nada emocionante – concordou Dodó. – Quinze e trinta e três! O que é que eles vão fazer com a energia eléctrica? Guardá-la nos bolsos? – protestou Mira. – E logo agora que eu iria vos dar uma tosa de mestre. Que injustiça! – lamentou Derito. – Você!! Irias levar, fraquinho. – Não te metas com ele, Tino. Sonhar não é pecado. Tenho uma ideia. Porque não jogamos a famílias de animais? 48
– Como é que isso se joga, Liliana? – Fácil, Mira. Eu digo o nome de uma família de animais, e vocês terão de dizer que animais pertencem à mesma. Por exemplo, Cânidas. – Cão, raposa, lobo, mabeco, dingo… – respondeu Derito com cara e tom de exibicionista. – Viram? E, para ser mais fácil ainda, eu vou dizer a família, o Derito vai dizer o nome de apenas um dos animais, e daí cada um de vocês dirá o nome de um animal com as mesmas características do que ele disse. Por exemplo, Sáurios. – Iguana. – Lagartixa…? – Camaleão! – Salamandra! – Muito bem. Vamos continuar. Équidas. – Cavalo. – Zebra. – Jumenta! – Burro! E o jogo continuou. Falaram sobre os Seláquios (tubarão, raia…), os Cetáceos (baleia, golfinho, roaz…), os Blátidas (baratas…), os Anatídeos (pato, ganso…), os Psitácidas (papagaio, arara…), Felinos (tigre, chita, leopardo…), os Crustáceos (caranguejo, lagosta…), os Camélidas (camelo, lama…), os Pedicúlidas (piolhos, carraças, pulgas...), os Símios (macaco, gorila, chimpanzé), os Quelónios (tartaruga…), os Triquéquidas (foca, morsa, otária…) e outras famílias. Quando começaram a achar aquilo aborrecido, foram jogar a macaca, no corredor.
* No momento em que Derito olhou para o relógio e seus olhos lhe mostraram que eram dezoito horas e doze minutos, o jogo terminou; pelo menos para ele e Liliana, pois às doze e cinquenta e sete, sim, na hora em que chegaram da escola com Carlos, o último lhes dissera que iriam fazer uma visita a Mauro. Como sempre, Derito foi o primeiro a alcançar a porta do quarto de banho. Liliana, já conformada com aquele facto, deu-se ao prazer de pensar um pouco no caso Ivan, enquanto aguardava.
* – Não havia de laranja, trouxe de pêssego. – Desde que seja natural, nós bebemos. Mauro entregou o saco a Carlos e foi à cozinha buscar copos. – Estavas com visitas? – gritou Carlos da sala. – Yá! Alguns dos do meu grupo de teatro vieram ensaiar uma nova peça. – Qual é o teu papel desta vez? – Marido infiel – respondeu o anfitrião ao pôr os copos em cima da bandeja que estava sobre a mesa. – Ficas sempre com o que tem mais de uma gaja! Quais serão as vítimas que irão contracenar intimamente contigo?
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– Rita e Tina. Deixa que eu sirvo. – Aqueles dois pesos!? Tu como estás com esse sinal na testa, deixa eu representar na tua conta. – Ah! E permitir que a Susana se transforme numa assassina? Não me parece. – Mas será tudo técnico! Toques técnicos, abraços técnicos, beijos técnicos…. – Não me obrigues a ser conivente na tua própria morte. Pareces aquele milionário que escreveu no testamento que, se ele fosse morto, não se devia prender o seu assassino, caso o tal fosse alguém pertencente à sua família. Se bem que morrer às mãos da Susana deve ser uma agradável tortura… – Eu que o diga! Mas não fales dela nesse tom, 0K? Deixa que eu leve a bandeja. Subiram as escadas até o primeiro piso. – Abandonem as revistas por um momento. A bebida real está na mesa – disse Carlos ao entrar. Liliana e Derito levantaram-se do cadeirão creme, e se dirigiram à mesa. A sala de cima era ligeiramente menor que a de baixo. Havia uma requintada estante branca onde, na parte superior, se encontravam muitos livros e alguns copos ornamentais, no centro, um enorme televisor prateado e, na parte inferior, nove gavetas. Sobre o tapete castanho claro estava uma deslumbrante mesa carmesim pálido, cujas quatro pernas haviam sido esculpidas na forma do pensador autóctone, e dois grandes cadeirões curvilíneos. Antes disso, estavam colocadas uma espaçosa garrafeira da mesma cor da estante e a mesa onde os quatro se encontravam. – Aquelas três Bíblias são tuas, Mauro? – Yá, Liliana. Na verdade, são da biblioteca do meu pai. – Uma delas está aberta em Génesis. Estavas a ler? Mauro concordou com a cabeça. – Sério? Já leste o capítulo em que as filhas de Lot ficam grávidas do próprio pai? – perguntou Derito cheio de entusiasmo. – Entendeste porque Deus disse que quem matasse Caim teria de sofrer vingança sete vezes? – Captaste o sentido do capítulo dois versículo sete? – O que é que achaste da audácia do Diabo? – Podemos parar de fazer perguntas e ouvir as tuas respostas? – Não olhes pra mim. Também fico zonzo quando eles fazem isso – defendeu-se Carlos com o rosto de tio orgulhoso pelo desempenho dos sobrinhos. – Em vez de responder às vossas perguntas, vou vos mostrar algo que eu já li tantas vezes mas só entendi durante estes dias. Esta também é pra ti, Carlos. Mauro foi em direcção à pequena mesa dando goles sucintos do líquido espesso que estava dentro do copo que se encontrava em sua mão. – Génesis capítulo dois versículo vinte e um diz: «Por isso, Jeová fez cair um profundo sono sobre o homem, e, enquanto ele dormia, tirou-lhe uma das costelas e fechou então a carne sobre o seu lugar.» Como é que vocês entendem este texto? – Que Deus, depois de extrair de Adão uma costela, não deixou o peito dele aberto, restaurou-o… – Voltou a pôr o peito dele como era antes, só que sem uma costela, lógico. – Concordo com o que a Liliana disse primeiro e com o que o Derito acabou de dizer. – É assim que eu entendia antes. Mas oiçam o que a Bíblia Sagrada Africana diz – Mauro falou isso após escolher um pesado livro de capa vermelha dentre as variadas traduções das Escrituras que estavam na estante –: «Então o SENHOR Deus fez cair sobre o homem um sono profundo, e, enquanto ele dormia, tirou-lhe uma das costelas
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cujo lugar preencheu de carne.» O que significa que, descartando previamente o pensamento de que o meu desejo é mostrar que a primeira tradução está errada, Deus pôs carne no lugar da costela e não o que vocês acabaram de dizer… segundo esta tradução. – Colocar carne no lugar de uma costela? – perguntou Derito em sério tom de dúvida. – Como é que se coloca carne no lugar de uma costela? – É mesmo – continuou Liliana para colaborar com o pensamento do irmão – não parece nada lógico cobrir o lugar de uma costela com carne. Onde é que ela ficaria? – É por isso que eu disse que é segundo esta tradução – disse Mauro em sua desfesa. – Ainda estou a pesquisar sobre o assunto para ter certeza. – Então ainda não devias nos ter di… – Gostei dessa tradução – interrompeu Carlos, para evitar o dilúvio de perguntas constrangedoras dos gémeos. – Podes arranjar-me uma? – Se me arranjares uma daquelas grandes que tens em casa, daquelas que trazem notas em latim, hebraico, grego e siríaco, estamos combinados. – Terei de pedi-la ao meu irmão mas… não há makas. Mas… pra que a queres? – Eu não questiono todos os teus desejos, pois não? – E os teus cães, Mauro? Podemos vê-los? – interrompeu Liliana ao notar que aquelas perguntas atrairiam piadas às quais ela teria de mostrar um sorriso falso para que eles pensassem que ela estava a gostar de ouvi-las. – Na verdade, são cadelas. A casota fica perto da garagem. Daqui a pouco vamos vê-las. Alguns segundos depois, Derito e Liliana retornaram ao lugar onde estavam sentados, e continuaram a ler. Aquela foi a acção que deu azo a pergunta que Carlos desejava fazer desde a hora que chegou. – Já mudaste de conceito quanto ao amor? – Acho que já tenho o conceito certo sobre ele há muito tempo, só não me sentia obrigado a pô-lo em prática. – Fala-me então sobre o que antes conhecias mas agora sabes. – A capacidade emocional e mental de amar e ser amado deve ser explorada ao máximo. Mas devemos fazer isso sem dar chances que o egoísmo ou qualquer outro defeito que tenhamos interrompa tal processo. Devemos desenvolver primeiro um tipo de amor à prova de interesses sexuais, um tipo de amor que transcende as barreiras da amizade e do respeito, e a esse sentimento dá-se o nome de amor altruísta. – Tocante discurso. Mas achas que simplesmente ler a Bíblia vai transformar-te em alguém que não só pensa mas, acima de tudo, age desse jeito? – Não sei. Tenho apenas a certeza de que vou agir diferente comigo mesmo. Já estou até a fazê-lo! Estou a tentar me conhecer melhor. E, se isso não é um passo relevante, não sei o que será. – Estou a gostar de ouvir. Tu precisas muito do teu «eu», ainda bem que já descobriste isso. E a Paula? – Desisti de ser um sufixo que superlativa a vida dela no grau de inferioridade. Não posso continuar a atormentá-la com o meu comportamento depravado. Carlos limitou-se a bater palmas, pois, se falasse, estragaria aquele momento sério com uma de suas frases cómicas. A escassos metros daí, decorria outra conversa. – É verdade que os teus colegas não trouxeram o escorpião? – Nenhum deles conseguiu achar um. O que foi melhor para mim. O inchaço que aquela formiga deixou ainda me dá comichões. – Oh, o Menino Indolor queixou-se!
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– Não chateies. Eu não pedi para o meu corpo ser assim… melhor do que o teu. – Se te referes às gorduras que tens a mais… – Bem, pelo menos elas não têm a possibilidade de ter um namorado que escreve a palavras do mesmo jeito que as pronuncia. – Ele não é meu namorado! E, para além dos erros ortográficos, tem uma caligrafia horrível. – Ah! Colocaste a carta no sítio? – Não seria tua irmã se não o fizesse. – Quando chegarmos a ler as tuas e as minhas, vamos morrer a rir! – Yá. E, falando nisso, achas que algo que não existe está morto? – Tio Carlos, a Liliana começou com outra conversa chata!
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CAPÍTULO VI Sexta-feira. Embora distantes, cada um procurava ansiosamente uma solução para os problemas que haviam aparecido. Carlos precisava encontrar um plano para que não se separasse dos seus sobrinhos, mas tinha de ser um plano que agradasse também àqueles que só agora haviam descoberto que tinham a obrigação de criá-los; Susana necessitava de uma ideia extremamente original para criar novos modelos para a boutique, modelos que fugissem a febre da moda de blusas, camisolas e calças justas ou desportivas, mas que, ao mesmo tempo, não dessem um ar de superficial ou espalhafatoso a pessoa que os usasse; Mauro ansiava que algo lhe comprovasse que aquela nova tentativa de mudar de comportamento não acabaria como as outras e que a palavra de Deus era efectivamente enérgica, eficaz o suficiente para mudar alguém como ele se penetrasse até a divisão de sua alma e de seu corpo; Paula almejava saber a causa do regresso estranho de sua mãe, saber o que realmente sentia pelo ser masculino que quase a violentara e como fazer as suas primas voltarem a estudar; e Liliana e Derito martelavam a mente para descobrir quando e de onde seus pais viriam e, caso viessem mesmo, se estariam dispostos a abandonar a pessoa que os criara desde pequenos. É óbvio que havia mais incógnitas requisitando seus valores em suas vidas, mas essas eram as mais elevadas exponencialmente. O dia eclodira com uma forte descarga pluviométrica que alagou as ruas de uma forma irritante. Foi uma enorme ginástica passar sobre pedras e pneus até chegar ao local pretendido. Alguns tiveram de pagar para serem levados às costas por rapazes que se aproveitavam daquelas situações, para não sujarem ou molharem o que tinham vestido e calçado. Ao meio-dia, o sol abrasara como se estivesse castigando as pessoas pelos seus erros. E foi um pouco depois desse período que a vida pareceu ficar de costas voltadas para Carlos. – Alô? Mamã? – Mbote, filho. – Boa tarde para ti também, mãe… – Ilumbu chiviokeze bubote? – Aprendeste mais outra língua? Não estou a entender nada. – N’lênvo, filho. – Mãe, pára com isso e diz a razão de teres ligado. – Calma. Estava só a praticar o que ando a aprender com as minhas vizinhas de Cabinda. – Estás a ir muito bem… – Matândo bêne. – Mãe!... – Tá bom! Liguei para te dizer que daqui a pouco a Eduarda virá com aquele endemoninhado do marido dela. Parece que vêm buscar os miúdos.
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– «Daqui a pouco» equivale a quantos dias? – Uâli. – Mãe… – Dois. – E irão ficar hospedados onde? – Aqui. Não sei se conseguirei aturar aquele parasita. Depois de tudo o que ele fez a tua irmã passar, ainda se atreveu a casar com ela escondido e longe de nós. Estás preparado? – Para…? – Para deixá-los ir. A Lili e o Deri. – Não sei, mamã. Eles nunca ligaram para as crianças, e depois de um repentino big bang surge esse desejo de querer estar com eles que evolui muito mais rápido que o Australopiteco!? – Tu sabes que isso não é verdade, filho. – É verdade sim, mãe. Desde aquela noite em que os miúdos vieram ao mundo, para não dizer desde que ela soube que estava grávida, eles se furtaram a cumprir os papéis exigidos pela paternidade: fumavam e bebiam juntos, era preciso lembrar-lhes sempre sobre as vacinas que a Eduarda tinha de apanhar, discutiam sem necessidade e ainda voltavam ao nascer do dia quando iam a uma festa! E a mãe ainda os defende!! – Eu estava a referir-me ao Australopiteco mas… não cabe a ti o poder de concessão e remoção dos direitos e deveres concernentes à criação dos filhos de qualquer pessoa, Carlos, mesmo que o casal em pauta seja o Lino e a Eduarda. – A minha razão também me diz isso. Mas os meus sentimentos em relação a essas crianças… Às vezes acho que não devia ter vindo ao mundo como ser humano, mas sim como a consciência de um; seria muito mais fácil dizer o que é certo e o que é errado sabendo que nunca teria de ganhar experiência de campo. – Ainda é muito cedo para teres esse pensamento de perdedor. O problema é novo, ainda te falta pesquisa, te falta análise. Vocês ainda podem chegar a uma aleloquia… um acordo que beneficie as três partes. – Se a mãe o diz. Vou tentar criar algo do género. – Faça isso, Carlos. Ioió! – Adeus, mãe. Carlos agarrou a colher de alumínio sobre a mesa e dobrou-a, rangendo os dentes, depois endireitou-a e pô-la dentro da tigela de vidro onde ainda havia um pouco da fruta em cauda que estava a comer antes de sua mãe ligar. Que influência tinha aquele casal sobre o seu estado psíquico! Como é que ele permitia que um simples anúncio de sua vinda abalasse estridentemente os seus sentidos? Onde se escondia o Carlos que não deixava ninguém evadir os seus sentimentos sem a sua permissão, quando ele pensava na possibilidade de ficar sem Liliana e Derito? Por que facto Ah! Os conselhos que ele dava às outras pessoas sobre auto-domínio eram tão difíceis de acatar quando era ele mesmo o indivíduo posto entre Cila e Caríbdis, sim, entre a espada e a parede? Era um facto, Lino e Eduarda eram o espinho que fazia Carlos vacilar sobre todos os seus princípios. – Tio Carlos, visita para ti – avisou-o Derito, passados alguns segundos. – Homem ou mulher? – Mulher. – Manda-a entrar. – Já fiz isso. – Tá fixe. Então diz-lhe que já desço. – Não preciso, ela está a ouvir.
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Carlos desceu as escadas e, no segundo em que levantou o olhar e seu campo de visão foi ocupado pela imagem de sua sala, levou um susto. Cabelo volumoso e brilhante preso por um laço verde pálido na parte traseira, olhos e lábios resplandecentemente sensuais, blusa de alça preta, cujo decote deixava à vista um par de pomos avassaladores; calças desportivas verdes e pretas, semelhantes às que os soldados usam em seus treinos, que acentuavam curvas estonteantes, e sapatilhas pretas – era tudo isso, sem falar dos acessórios, que compunha a pessoa que viera visitá-lo. – Vais ficar parado ou vais abraçar-me? Sem dizer uma única palavra, ele abraçou-a. O cheiro do perfume que aquele corpo autenticamente feminino exalava era um poderoso afrodisíaco. Carlos afastou-a. – Agora já me podes convidar para sentar. Ele fez um gesto com a mão esquerda, indicando o cadeirão. Sentaram-se em lugares diferentes. – O que é que se passa contigo, CCB? Já não procuras, não ligas; agora só te vejo por meio de fotos! – Que posso dizer…? O trabalho e a faculdade andam a ocupar-me o tempo. – A ti? Não me faças rir! – A sério, Lu. Nem imaginas o esforço que faço para não enlouquecer. – E se enlouquecesses – cruzou as pernas – , já terias tempo para te lembrares de mim. Carlos suspirou. – Lu, tu… De onde vens? – De casa. – Não, não acredito que a menina Luísa Ndeke saiu de casa, com esse sol abrasador, para vir ter com Carlos Chinengue Banzaia! – Acredita. E ela não veio apenas ter com, mas também estar em, Carlos Chinengue Banzaia. Carlos desviou os olhos daquele olhar provocante e direccionou-o ao visor do telemóvel em sua mão. Enquanto aquela mulher se aproximava subtilmente dele, teclou rapidamente alguma coisa que ela não viu, pois ele fechara o aparelho quando se apercebeu que eles estavam tão perto um do outro. – Não pareces o mesmo, CCB. Pareces tímido. Onde é que estão aquelas tuas frases taradas e o teu tom de voz sedutor? – Só os uso quando é necessário! Queres… queres algo para beber ou comer? – Tu. – Estás uma profissional neste género de respostas. E a ganhar-me no jogo que eu mesmo criei. – A tua proposta ainda está de pé ou já desististe de mim? – Eu… Tocaram a campainha. – …vou atender a porta. E fê-lo o mais rápido que aquela situação permitia. – Uh! Foi rápido. – Ela ainda está aí? – Está. E se ainda estou com a roupa no corpo é porque chegaste na hora exacta. – Não te preocupes, miúdo. Sei defender o que é meu. Agora convida-me para entrar e apresenta-ma. – 0K. Tu é que mandas. Entra, Susana. Estava mesmo a acabar de me preparar para ir ao salão. Já conheces a Lu? – Não, mas tenho a certeza de que será um prazer.
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– 0K. Então… Susana, esta é a Lu, minha amiga que está na Faculdade de Direito. – Prazer, Susana. – Lu, esta é a Susana, minha colega de forma dupla que está… – Em todas as faculdades perceptivas dele. Folgo em conhecer-te, Lu. – Sentem-se. Vou só buscar algo no meu quarto. – Tenta ser breve, ou vamos chegar tarde. Conta-me, Lu, de onde conheces o Carlos? – Fui colega dele no Médio. – E eram muito amigos nessa época? – Digamos… praticamente íntimos. Só não fomos mais longe porque eu não permiti. – Porquê? – Tudo o que ele me dizia, e a forma com que me olhava, tudo, tudo mesmo, ele dava também o mesmo ao resto das raparigas do Instituto. Era um tarado. – Até hoje ele chama isso a si mesmo – tugiu –. Mas ele mudou muito nestes cinco anos. Está menos atrevido, mais responsável, multiplicou a seriedade e, o mais importante de tudo, divide atenciosamente a sua felicidade e problemas com a nova e primeira namorada. – Estás a brincar! Ele voltou a me pedir em namoro três semanas atrás! Eu saí de casa, a essa hora, para vir lhe responder… Quem é ela? – A pessoa que fala contigo. A receptora destas últimas palavras ficou calada por alguns segundos. Quando seu cérebro lhe concedeu a oportunidade de reagir, Carlos interrompeu. – Bem, vamos embora. Desculpa-me por não poder ficar mais tempo contigo, Lu… – Não, não há makas. Eu é que devia ter avisado antes. – Ainda bem que compreendes. Vamos? Os três saíram juntos. À saída do prédio, Carlos e Susana tomaram o caminho em direcção ao Mártires, ao passo que Luísa trilhou a estrada até o Alvalade, em seu carro. Porque será que ela não se ofereceu para levar o casal, visto que o lugar para onde eles iam ficava a uma escassa distância do sítio a que ela se direccionara? Seria aquela uma das femininas formas de agir que suscita o tolo comentário masculino: «Ninguém entende as mulheres»? Ciúme e raiva… Ciúme e raiva.
* Carlos ficou por algum tempo a pensar no modo ilógico de o mundo ser. Que realizador inteligentemente experiente passaria abruptamente de uma cena seriamente dramática à uma tipicamente romântica, e ainda mais com o mesmo actor, no mesmo cenário? Que desconcertante – dissonante – sequência era aquela? – Está provado: o mundo nunca ocupará um lugar de peso nos filmes de Hollywood. – Porque dizes isso? - perguntou o jovem cujo irmão menor Carlos cortava o cabelo. – Imagina-te dentro da sala de um hospital onde a tua mãe está internada por causa do seu estado de saúde gravíssimo. Estás completamente triste, abalado. As lágrimas
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não caem dos teus olhos porque o sofrimento e a angústia são tão grandes que nem te deixam forças para o fazer. – Dramático. – Agora incorpora na mesma cena uma moça vestida com roupas curtas e apertadas que quer a todo o custo ir para a cama contigo. – Chocante! Mas o que é que isso tem a ver com o mundo e os filmes de Hollywood? – O mundo se apresenta dessa forma: as cenas se desenrolam de uma maneira pouco pensada, sem um guião traçado… espontaneamente; não interessa se uma pessoa ri às gargalhadas dizendo que vai passar uma semana sem comer carne porque viu uma criança a ser atropelada… ou se uma tira fotos enquanto uma idosa é violentada por meninos de rua. Bem, essa última até parece se enquadrar nos filmes de Hollywood. Mas o que estou a tentar dizer é que até os filmes que são baseados em factos reais, não são tão reais assim. É tudo regido por uma lógica estrita, tudo tão… pensadamente racional. A vida real não é assim! – Já percebemos, Carlos: estás com problemas em casa e as gajas não te deixam em paz – disse Júlio, dando-lhe leves palmadas sobre o ombro. – É engraçado como os problemas nos fazem chegar a conclusões tão insignificantes – falou rindo e meneando a cabeça o jovem que fizera a pergunta no princípio. – Aperceber-se de que o mundo e os filmes têm uma grande diferença é totalmente… sei lá, estúpido! Sabemos que são as pessoas que criam os filmes e fazemno apenas como esboço do que realmente se vive, com mais exageros ou menos. A criação não é simétrica à imitação… – Mas isso não torna a coisa tão… – Calma, deixa-me só acabar a reflexão. Tu sabes disso há muito tempo. Melhor do que eu até, suponho. Afinal fizeste Belas Artes. Chegar a essa conclusão como se fosse algo novo é tipo… buscar à rasca um pensamento para desanuviar. – É aí onde eu quis chegar. Quando somos afligidos por problemas, nos tornamos inventores das teorias filosóficas mais parvas. Parvas no sentido de já as conhecermos tão bem que não seria necessário chegar a elas como se tivéssemos achado uma mina de ouro. Mas isso nos faz bem. Põe-nos a reflectir sobre coisas tão… estúpidas e parvas, que, no fim, nos levam a criar milhões de soluções para os nossos problemas, para além de nos induzirem a fazer questões cujas respostas poderiam mudar para melhor a nossa vida. E nos dão uma leve sensação de descanso… alívio. – Como também podem nos levar a formular ideias que só piorarão a nossa vida – comentou outro jovem que estava sentado. – É. Mas é melhor trabalhares enquanto falas, Carlos. A sala está cheia.
* – Tenho mesmo de contar o meu? – perguntou embaraçadamente Susana. – Claaro! – responderam Carlos e Paula em uníssono. – Cá vai: O momento mais humilhante que tive foi quando eu tinha dez anos. Naquela época eu não metia o pé em casa. Ficava sempre na casa de uns vizinhos, por causa da figueira deles… – Zungueira e interesseira. Que passado! – Cala-te, Carlos. Continuando, para além de apanhar montes daqueles figos grandes, apanhei um monte de piolhos, naquela altura chamávamos de bois… – Hoje ainda é assim. 57
– Pois. Quando a minha mãe descobriu! Usou petróleo, nada; risca-risca, nada; insecticida, nada. Nada era capaz de eliminar aquele enxame de bois. A solução foi me raparem a cabeça toda. E, no dia que fizeram isso, era dia de festa na escola. Vocês não imaginam! Eu toda barraba cebola, com a chipala a brilhar. Até agora não sei como é que eu tenho a coragem de sair à rua depois daquele dia. – Porque depois descobriste que és um protótipo de anjo e que o resto do mundo merece invejar-te. – Pára, seu maluco! – bateu-lhe no braço. – Agora é a tua vez, Paula. – O meu é chocante, sério e revoltante demais. Chega até a ser imoral. Acho melhor eu não contar. – Assim só aumentas a nossa curiosidade. Conta! – Não. Vocês podem se escandalizar, ficar chateados até. – Conta! Conta! – repetiam Carlos e Susana batendo palmas. – Muito bem. Mas não digam que não pus uma placa para vos avisar. Lembram-se daquele texto «A comuna» que vem nos livros da segunda classe? Pois bem, isso é embaraçoso, a minha professora da época mandou a turma toda fazer cinco cópias dessa lição… – Deixa-me adivinhar! Tu não as fizeste e, quando ela te pediu para explicar a razão, molhaste a saia de tanto medo à frente de todos os teus colegas? – Deixa ela contar, Carlos. Bebeste, né? – Já nem se pode seguir o «Seja você mesmo, mas não seja sempre o mesmo» em paz? – Sempre com uma desculpa na ponta da língua. – Isso não é uma desculpa. É a verdade. Mas a verdade também pode ser uma desculpa… – Cala-te, Carlos. Continua, Paula. As cinco cópias e…? Paula contou de forma embaraçosa o que lhe acontecera na segunda classe. Susana e Carlos escutaram-na um pouco impacientes, pois esperavam pelo desfecho do sucedido, por isso, interromperam-na várias vezes com perguntas. Paula tentou respondê-las com o intuito de desviar a conversa para outro assunto, mas eles eram astutos demais para se deixarem enganar. – O vergonhoso não foi isso – respondeu ela a uma das piadas que Susana fizera. – Foi a professora, por causa daquilo, ter chamado inúmeros nomes feios a mim e à minha mãe. O que é que a minha mãe tinha que ver com aquilo!? Sentei, toda furiosa. Tive um ataque de epilepsia minutos depois. Quando fiquei fixe, na hora de voltar para a casa, os colegas todos ficaram a imitar os gestos que eu fiz quando estava no chão, uns murmuravam: «Gota, gota» … Foi um vexame. Mas eu não sabia, professora. Não sabia. Desculpa.
– Já foi há muito tempo, Paula. Não precisas de continuar com este martírio. – Eu não me martirizo, Susana. Lembro-me disso até com graça, se notaste bem. Só que, é aquela: continuo a gostar de pedir desculpas, mesmo quando não sou eu a culpada. Faz-me sentir livre de ódio e daquilo que as pessoas chamam de rancor. – Não sei se me livraria desse trauma com a mesma relativa rapidez que tu. – As pessoas não são assim tão importantes. Aprendi isso com o Carlos. – Vais entrar numa área que eu detesto. Pára. Falando agora do assunto de rapidez, como é que conseguiste chegar tão rápido hoje de tarde? Depois de eu enviar a mensagem, nem demorou nada… – disse Carlos. – Não recebi nenhuma mensagem tua, mas sim uma da Liliana dizendo que eu corria «o risco de perder o tio Carlos se não viesse rápido para cá» – respondeu-lhe Susana.
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– Exagerada… – arrematou ele. – Não estou a entender nada do que vocês dizem. Importam-se…?
* Sábado. Pouco tempo faltava para que o casal Lino e Eduarda Tchiva chegasse e obtivesse a guarda de seus filhos. Carlos não sabia se manteria o seu espírito calmo e bem-humorado ou se entraria em frenesim de matança caso seus sobrinhos deixassem de ser educados por ele. Só de pensar naquilo, o seu rosto ficava transfigurado, mostrava as características de alguma doença grave e que por este facto não tinha mais nenhum prazer em estar vivo. Com o maior prazer e dedicação, Carlos enxertou nas mentes dos sobrinhos conceitos correctos sobre saúde e disciplina: ensinou-os a não empestar o ecossistema da inteligência com frases impensadas e paleio frívolo; ensinouos e ensinava-os, pois aquele ensino ainda estava a monte. Não dava para imaginar um mundo sem Derito e Liliana. Não dava. Porém, fazer uma autobiografia discursiva piorava a sensação de perda nele. Ele não era o pai daquelas crianças. Devia estar cônscio de que mais cedo ou mais tarde tal aconteceria. Como reagiria ele se fosse o caso inverso? Carlos tinha princípios elevados a seguir, nunca agiria de forma inescrupulosa. Mas, Liliana e Derito não eram seu calcanhar de Aquiles ou um género de túnica de Nesso quanto às excelentes regras de conduta de Carlos, não, eram algo pior do que isso. Por esse motivo, ele não os iria entregar aos seus progenitores, mesmo dando sua palavra que o faria quando Eduarda lhe pedira para tomar conta deles. Afinal, eles os haviam rejeitado logo ao nascerem. Na noite em que Eduarda dera à luz naquele lugar imundo, fétido, estava tão fora de suas capacidades de percepção e afecto, que nem sequer soubera ver quem nascera primeiro. Visto que ela havia tido uma conversa acalorada com Maria Teresa, sua mãe, sobre o irritante facto de ela, Eduarda, regularmente alcoolizar o corpo durante o seu estado delicado de gestação, e aquilo havia sido – oh, que discussão! –, Eduarda decidiu sair de casa sem que ninguém notasse, depois de tirar uma garrafa de Whisky do estoque de bebida de seu pai. Enquanto andava à beira da estrada e entre a fria brisa e o militante som de grilos no meio do comprido capim, a sua boca e o gargalo encontravam-se freneticamente. No sexto gole, percebeu que suas coxas e pernas estavam molhadas. Começara. Minutos depois, as contracções tornaram-se causa de fortes gritos. O único sítio que ela viu como refúgio foi duas portas de um carro enferrujadas e alguns sacos de serapilheira organizados de uma forma que pareciam ser um aposento. Era possivelmente o quarto de um mendigo, ou algo semelhante. O dilúvio de suor e lágrimas mesclado com as dores causadas pela eclampsia pareciam ser eternos. Eduarda sentou-se ofegante. Deu um enraivecido gole daquela bebida espirituosa. Encostou a cabeça na parede e dispôs as pernas na posição exigida pela situação. Ela não percebeu se foi depois de horas ou após fracções delas que chegara a ouvir o choro da primeira criança. Passado algum tempo, ficou surpreendida ao apalpar o neófito e ver que, como o outro, era um menino. A ecografia que fizera há meses revelara-lhe que teria um casal, menino e menina, de gémeos. Então, como é que agora…? Eduarda estava um pouco fraca para gastar as forças que ainda possuía em lançar palavrões contra os aparelhos e os médicos que lhe haviam atendido. Ela precisava, no momento, achar um lugar sem escuridão, ratos, restos de comida estragada, panos que traziam comichão e terríveis odores. Ela – necessitava de nutrientes, cama confortável, roupas limpas, ela – devia igualmente encontrar um local que não prejudicasse a saúde
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dos recém-nascidos e provesse o tratamento que o estado deles imperava. Foi então que Carlos apareceu. Cumpriu o seu papel de irmão sem emanar ralhetes. Concordou em não levá-los de volta à casa da mãe deles. Pô-los no carro e dirigiu-se à clínica mais próxima. Passados cinco dias, os três, Eduarda e os gémeos, ficaram hospedados no apartamento de Carlos, no Cassenda. Maria Teresa teve de deixar, por quatro anos, de viver em Viana para poder cuidar dos netos. Eduarda abandonou o apartamento quando viu que teria de dividi-lo com ela. Fez isso sem cerimónias, só que à socapa, depois de Lino a ter convidado para viajar. Antes de embarcar, telefonou para Carlos e pediu-lhe que cuidasse de seus filhos para ela, mas fê-lo jurar que, se algum dia ela voltasse, ele não hesitaria em restituí-los aos seus verdadeiros pais. Carlos não entendia como é que uma mãe, mesmo tratando-se de uma desvairada como sua irmã, podia fazer aquilo – ignorar completamente o seu instinto materno e mergulhar sem preocupações em aventuras que lhe ofereceriam prazer temporário – sem que a consciência lhe pesasse de um modo tal que ela não teria energia suficiente para levantar a cabeça da almofada quando acordasse, mas concordou; jurou-lhe. A partir daquele momento, Carlos não invalidou esforços ao distribuir todo o conhecimento que havia armazenado sobre educação funcional e puericultura àqueles novos seres humanos. Foi com Carlos que aquelas crianças fizeram a fantástica e trabalhosa viagem do crescimento da aprendizagem de valores morais que lhes ensinou a separar o bem do mal, o bom do mau, o correcto do incorrecto, o certo do errado. Quando caíam, as palavras de encorajamento cheias de afeição vieram da boca dele. Carlos ensinou-os a aceitar o que era verdadeiramente valioso de um modo alegre e divertido – será que Eduarda e Lino teriam conseguido isso? Os filhos observam o que seus progenitores fazem – onde estavam Lino e Eduarda para lhes dar o exemplo? Que profundo efeito teria neles o ensinamento dos pais se eles nunca existiram como seus instrutores? O que é que eles tinham feito com a imputação de educar seus próprios filhos? Sonegaram-na e a delegaram a outra pessoa. Nunca haviam sido pais dedicados e amorosos com Liliana e Derito, por isso alguém que o fora podia muito bem ocupar o lugar deles. Por escolherem o prazer em detrimento da importância de os filhos serem criados pelos próprios pais, renunciaram sua paternidade. Em momento algum, tempo e esforços foram gastos para formatar a atitude e o comportamento daqueles meninos. Não fizeram nada certo por eles, limitaram-se a errar redondamente no que tangia à criação e educação dos seus próprios filhos. A confiança que Eduarda depositara no irmão naquela época era de facto um poderoso trunfo que Carlos tinha em mão se eles levassem o caso a tribunal. Se ele, Carlos, com apenas dezasseis anos pareceu a pessoa indicada para cuidar de filhos deles, era porque era notavelmente responsável e paciente nos seus relacionamentos com crianças. E aquilo de ela não saber quem viera primeiro ao mundo? Talvez tivesse confundido o sexo da criança com o cordão umbilical, ou talvez – Deus! –, talvez tivessem trocado os bebés na clínica e Liliana não fosse verazmente nem filha dela e muito menos sobrinha dele. Mas removera-se essa hipótese quando Lino havia dito que segurara um menino e Carlos, que segurara uma menina no momento em que eles se dirigiram para o carro do pai dos gémeos ao saírem daquele inóspito lugar onde ela os havia dado à luz. Eduarda, mesmo tendo presenciado a morte de seus filhos ao saírem da madre nas suas primeiras gravidezes por causa do hábito de beber e fumar, insistiu em praticá-lo ainda naquela terceira vez. Foi por causa daquilo que Maria Teresa a havia chamado de «serial killer de embriões e de cadela que só se importa com o prazer auferido pelo acto sexual» e que não lhe era relevante saber quantas vezes chacinaria os rebentos ainda
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prenha porque tinha uma discoteca no peito em vez de um coração, e vinho no lugar do sangue. Havia até chegado ao ponto de a chamar de amostra grátis para que os homens continuassem a ver as mulheres como reles objecto de lascívia. Chegou até a pecar gravemente quando dissera à filha que dar o dom de conceber filhos a Eduarda foi a única coisa oligofrénica que Deus havia feito. A receptora daquelas ficara histérica ao ouvi-las, principalmente porque haviam saído da boca de sua própria mãe. Mesmo sabendo que corria o risco de dar à luz ao relento sem assistência adequada e/ou profissionalizada, saiu disparada, decidida a fazer uma caminhada aleluítica à deusa da alcoometria – demonstração clara e evidente não do egoísmo altruísta conversado por Paula e Gisela, mas do egoísmo doentio existente em humanos sem escrúpulos. Era essa mãe que Liliana e Derito passariam a ter? Lino era descendente de pais abastados. Por causa do afecto comedido e da disciplina firme que não recebera quando criança, tornou-se num irresponsável convicto. Fazer tudo o que lhe vinha à mente era o único sinal de intelectualidade que possuía. Largara os estudos muito cedo, assim, partira o lápis precocemente. Carros, dinheiro e mulheres – essas coisas gravitavam em sua mente como a ânsia de ser independente girava em torno do coração dos homens e mulheres do 4 de Fevereiro. Não era sábio nem inteligente, mas astuto e esperto – ah! em demonstrar que esses adjectivos lhe caíam como luva era perito. Desde pequeno que explorava a sua inata capacidade de induzir as pessoas a realizarem os seus caprichos por meio de métodos que com o passar do tempo se tornaram praticamente infalíveis. Nunca havia se interessado em cuidar de outro ser – possivelmente por causa do trauma que teve com o seu primeiro e último animal de estimação: Seu pai lhe havia oferecido um cachorro quando fizera seis anos. Por ter algumas dificuldades em fazer amigos na escola e na vizinhança, aquele cânida tornara-se no seu melhor companheiro em poucos segundos. Lavava-o; passeavam longamente; chegavam até a dividir a refeição, coisa que irritava sua mãe. Certo dia, quando Trento já havia se tornado num forte cão, Lino tentou tirarlhe um pedaço de carne dentre as patas por quatro vezes. Na quinta, o animal mordeulhe ferozmente a mão, fracturando-lhe parte do carpo e das falanges do anelar e do mindinho. Ao ver o sangramento causado por seu amigo de longa data por causa de um simples bife, Lino pediu que o pai tirasse a vida do animal aos gritos. Depois de ter visto que o pai satisfizera o seu desejo, ou que pelo menos o cão já havia desaparecido, jurou a si – e por si – mesmo que jamais voltaria a tratar qualquer ser vivo como tal, considerá-los-ia apenas como objecto para atingir seus próprios fins. Mas, quanto aos seus próprios filhos? Que mal poderiam dois seres indefesos fazer a ele? O cachorro também parecia indefeso no princípio. E se um dia, sem motivo aparente, seus filhos decidissem matá-lo? Lino era psicologicamente doente. Sim, muito doente. Contudo, um facto incontestável era a evidência de que ele fazia tudo isso inconscientemente. Suas propriedades psíquicas – temperamento, carácter, capacidade, inteligência… – haviam sido gravemente afectados. Por não ter recebido ajuda profissional para harmonizar o id, o ego, e o superego, era dificílimo viver em concordância consigo mesmo, logo não era capaz de viver pacificamente com os outros. Já se haviam passado nove anos desde que eles, Lino e Eduarda, haviam deixado que a manifestação externa de suas personalidades débeis fosse processada no acto que os havia levado até o apogeu do ridículo. Será que haviam mudado? Ou haviam sido, de algum modo, transformados? Só a chegada deles no dia que se seguiria responderia a tais questões.
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– LER! Derito e Liliana dirigiram-se rapidamente para o atelier. – L e E estão presentes, senhor R. Qual é o sítio por explorar hoje, senhor? – disseram isso em posição de continência ao entrarem. – Hoje vão finalmente conhecer os vossos pais. Eles chegaram e estão na casa da avó. Têm três minutos para se preparar. Dispersar! Liliana e Derito haviam dado gritos eufóricos ao ouvirem as primeiras sete palavras provindas da boca de Carlos. Como era de hábito, Derito foi o primeiro a alcançar a porta do quarto de banho, mas daquela vez foi porque alguém que estava à porta da entrada havia chamado a irmã dele. – Oi, Liliana. – Boa tarde, Ivan. – Fiquei três dias sem tocar no assunto para ver se tu me davas a resposta sem eu voltar a te perguntar, mas como não disseste nada até agora… vou repetir: Liliana, queres namorar comigo? – Obrigada pelo privilégio de ter sido a escolhida de teu coração, mas… não, não quero. – Porquê? É por eu não ter uma irmã gémea e ser inteligente como tu? Posso fazer um milagre para que essas duas coisas aconteçam. É por eu não ter escrito nesse português que tu falas? Posso fazer isso agora. Eu li no dicionário como é que se pede para namorar alguém com palavras difíceis. Era assim: Queres fazer pé de alferes comigo? – Estás a te tornar ridículo e num locutor indigesto ao fazeres isso, Ivan. A resposta é não. Nem mesmo se nos transformassem em xilópagos eu aceitaria namorar contigo. Nessa idade, eu tenho apenas de me preocupar com bonecas e em controlar os meus gritos histéricos. Acho que devias fazer o mesmo. Não com bonecas – sorriu –, mas com aquilo que os meninos da tua idade gostam de brincar. – Tá bom. Tchau. – Tchau. – Esta é minha Sobrinha, a amada, a quem tenho aprovado; abraça-me. Carlos abraçou Liliana tão forte, tão forte, que ouviu estalidos de suas costelas. Verteu algumas lágrimas. A emoção de ver como sua sobrinha havia sido tão firme naquela situação foi demais para ele. Afora os termos difíceis (porque Ivan não devia ter entendido nenhum deles), Liliana havia sido impecável. – Quando eu voltar a ser criança, quero ser como tu. – Isso não é possível, mas porquê? – Sabes introduzir frases cómicas em conversas sérias de um modo que só aprendi quando adolescente, não tens medo de tomar uma posição firme quanto às tuas ideias, seja qual for a reacção dos outros. Quem és? – Liliana Banzaia Tchiva, irmã de Eduardo Banzaia Tchiva e sobrinha de Carlos Chinengue Banzaia. Os dois limitaram-se a esboçar um sorriso que exibia orgulho. Minutos depois, quando Derito saía do quarto de banho e Liliana se preparava para entrar, alguém bateu a porta. Derito abriu a porta ainda enrolado em sua toalha azul-bebé e com algumas gotas de água escorrendo-lhe sobre o corpo. – Boa tarde, Derito. – Boa tarde, minha senhora. – Estás tão grande, meu Deus! Vimos ter com o Carlos. Ele está?
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– Tio Carlos, visitas! – Já vou – respondeu Carlos da varanda. – Onde é que está a tua irmã? – perguntou a senhora a Derito. – A Liliana está a tomar banho. – Vai vestir, Derito. Deixa que eu atenda as… visitas. Carlos entrou em transe por exíguos segundos. – Entrem. Pensei que vos encontraria na casa da mãe. Como correu a viagem? – Foi boa. Estás mais alto – respondeu-lhe a senhora. – Sentem-se – convidou Carlos. – Obrigada. Já não aguentava ficar de pé com essa barrigona. – Nem sei o que vos perguntar. Nove anos sem nos vermos, sem notícia nenhuma… – Não viemos aqui para pôr a fofoca em dia, Carlos, estamos aqui para levar os miúdos – disse Lino, pondo-se de pé.
* Os sentidos dele estavam excitadamente descontrolados. Ele não sabia como. Havia prometido que só voltaria a falar com aquela rapariga quando sentisse que já havia mudado radicalmente a sua personalidade. Como, então, passados apenas nove dias, ele passava desesperadamente de loja em loja para ver qual ainda possuía um cartão para que pudesse recarregar seu telemóvel? Ele não sentia suas batidas cardíacas, seu véu palatino esteva seco, sua respiração estava calma, mas dentro de si – algo explodia incessantemente; os efeitos drásticos não eram os mesmos ainda remanescentes em Hiroshima e Nagasaki, mas eram o suficiente para deixar sua determinação de contenção em escombros. Aquele súbito desejo empreendeu a política de terra arrasada em Mauro sem um prévio aviso de sítio. A incursão fora tão perfeita que a capitulação foi a única coisa sensata a fazer. – Boa tarde – cumprimentou ele. – Boa tarde, sim – respondeu-lhe a lojista. – Têm algum cartão de recarga? – Temos, sim. «Aleluia!» - exclamou ele em seu íntimo. – Pode dar-me três, por favor? – …um, dois, três. Cá estão. – Muito obrigado. Mauro rasgou imediatamente o saco de plástico que encobria os cartões. Tirou o molho de chaves do cós e usou uma para raspar a superfície que ocultava os números. Após confirmar que seu telemóvel estava recheado de UTTs, saiu da loja. Chegou à casa um pouco suado. Foi até o seu quarto. Respirou fundo por três vezes. Discou o número. Ligou. Mauro voltou a sentir as batidas do coração, só que extremamente fortes. Mas… raios! O telemóvel dela estava desligado.
*
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Susana havia acabado de terminar um lindo modelo. Sorria; brincava com os lábios; dava retoques na pintura do desenho… De rompante, lembrou-se que aquele seria o dia mais difícil da vida de seu namorado. Por que razão não podia estar com ele naquele momento? Está certo que era apenas um assunto restrito à família de Carlos, mas era o namorado dela que corria o risco de se tornar uma pessoa amargamente insociável. Será que ela não tinha o direito – e até o dever – de…? Susana partiu a ponta do lápis de cor sobre a folha.
* – Calma, Lino. Não foi isso o que combinámos. Senta-te. Senta-te. Carlos não se conteve em deitar um olhar fulminante sobre seu cunhado. – Dizias que não sabias que perguntas fazer depois desses nove anos de ausência silenciosa. E que tal: É verdade que te licenciaste em Arquitectura e que és sócia de uma empresa do mesmo ramo? – disse a senhora a Carlos. – Não acredito!! – exclamou ele. – A sério, mano. Senão não conseguiríamos sustentar os nossos cincos filhos – confirmou ela. – Cinco filhos?! Vocês têm mais cinco filhos? – perguntou Carlos. – Cinco com a Liliana, o Derito e essa coisinha fofa que transformou a minha barriga nessa grande bola – respondeu ela, acariciando o ventre. – E os outros dois? Vieram também? – Vieram com os pais do Lino na… quando mesmo? – perguntou, beliscando o marido. – Na terça-feira. – E tu? – perguntou ela. – Neste ano termino o superior de Psicologia. Exponho os meus quadros na galeria de uma amiga onde também sou barbeiro. – Psicólogo, pintor e barbeiro. Actividades tão diferentes, não? Mas como desde criança quiseste fazer tudo e te adaptas às situações com muita facilidade… – disse-lhe ela. – Estou pronto! E se deixássemos a Liliana, tio Carlos? Ela sempre demora muito – interrompeu Derito. – Não será necessário, Derito. Já não vamos sair – disse-lhe o tio. – Porquê? Eles desistiram outra vez de nós? – Eles nunca desistiram de vocês. Senta-te – pediu-lhe Carlos. – Mas… – Senta. Conheces esses senhores? – Não. – Então… Derito levantou-se. Apertou primeiro a mão do senhor. – Muito prazer. Chamo-me Derito. – O prazer ainda será maior da minha parte. Chamo-me Lino. A seguir, beijou as duas faces da senhora. – Muito prazer. Sou o Derito. – Sou a Eduarda. Olhando bem no fundo dos olhos daquela mulher e ao aperceber-se que os olhos dela marejavam, o rapaz sentiu-se estranho. Em fracção de segundos, seu cérebro recapitulou os nomes que acabara de ouvir e enviou-lhe o calor que as mãos daquela
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senhora transmitiam pelo modo como ela lhe acariciava o rosto, e chegou à derradeira conclusão. – Mãe… e pai? Os dois concordaram solenemente com a cabeça. O menino não sabia o que fazer. Sentou-se. – Vou deixar-vos a sós – pronunciou-se Carlos. – Não é preciso, mano – disse-lhe a senhora. – Eu insisto, Eduarda. Estou no atelier. – Conta-me, Derito, O que é que tens feito? – Muitas coisas, mamã…posso chamá-la assim, não? – Claro. «Muitas coisas…» – fez gestos de continuidade com as mãos enquanto falava. – Sei lá – sorriu. – Tenho aprendido valores morais, me divertido imenso… muitas coisas. – Tens algum passatempo? – perguntou-lhe Eduarda. – Tempos. Passatempos. Leio, oiço música clássica e jogo videogames. – Interessante. Mas fazes isso porque gostas? É que essas coisas parecem chatas aos outros meninos da tua idade. – Desde crianças que o tio Carlos nos ensina o que é realmente saudável e divertido. Gosto de fazer isso. – Queres dizer que a tua irmã, a Liliana, também é assim? Oh! Falando em irmãos, vais conhecer mais dois. O terceiro é este aqui que me faz parecer a Noelle, a robô – disse ela, sorrindo. Derito sorriu, mesmo sem ter entendido a piada, apenas por cortesia. – A mamã tem alguma foto deles? – Tenho, sim. Eduarda abriu a pastinha e tirou dela uma fotografia. – Este é o Pedro, chará do teu avô paterno, e esta é a Carla, chará do teu tio. – Ele é muito parecido a mim e ela, a Liliana. – Pudera! São filhos do mesmo pai e da mesma mãe. Sabias que eles… Ela parara de falar porque Liliana acabava de sair do quarto de banho. – Uma réplica autêntica da Carla! – exclamou a única pessoa que até o momento falara pouquíssimo. Lino conseguiu conter-se ao ver Derito. Mas Liliana – Liliana era uma menina e ele era afeiçoado a filhos do sexo feminino. Ela, sem perceber o que se passava, levantou apenas as sobrancelhas em sinal de desentendimento, cumprimentou as desconhecidas visitas e foi vestir-se. – Na verdade, a Carla é que é uma réplica dela…. – Ela e o Pedro estão quase a completar sete anos. – Também são gémeos?! Qual deles é o mais velho? Eduarda sentiu-se um pouco constrangida ao ouvir a pergunta. – A Carla – respondeu Lino. Derito puxou por duas vezes o lóbulo da sua orelha direita antes de continuar. – Será que entre mim e a Liliana se dá o mesmo? – Possivelmente. Mas isso não é importante, Derito. O que importa… vem cá – Derito levantou-se e sentou no meio dos dois. – O que importa é vocês são irmãos (nada nem ninguém pode alterar isso) e que dentro em breve viveremos todos juntos – confortou-lhe Eduarda. – «Todos juntos» inclui o tio Carlos?
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A pessoa a quem foi dirigida a pergunta não emitiu nenhum som em resposta. Limitou-se a sorrir e a passar carinhosamente as mãos no cabelo do menino. – Conta-me – recomeçou ela –: qual é a sensação de ter nove anos e já ser tão inteligente? – É a mesma que comer um pudim feito perfeitamente. Só que respondendo assim não estou a ser modesto.
– Incrível. Também tens o hábito de baixar a entoação sem mais nem menos. Se é mais agradável pensar que é um traço maternal herdado. – A Carla e o Pedro… os meus irmãos também têm esse sentido de humor? – O Pedro é muito mais simples e solto. A Carla é… digamos, reservada e espontaneamente intelectual. Os professores dela queixam-se sempre porque ela não dá oportunidades para que os outros participem das aulas. – A outra também é assim – disse-lhe Derito. – Duvido… – Ai, é? Vê: Liliana? – Diz. – Oh, já estás vestida. Já não vamos à casa da avó justamente porque esse casal de senhores anulou esta necessidade. Fixe, não? – Antes de concordar contigo, preciso pensar. Já me disseste a razão de já não irmos… Se esses senhores são-na mesmo é porque ou trouxeram uma mensagem relativa à vinda dos pais ou eles… são os papás. – Não disse? –perguntou Derito à mãe. – Desculpa-me, a anfitriã és tu, mas sou eu quem está a fazer o convite, senta-te – disse-lhe Lino. – Acho melhor ela ficar de pé. Liliana, apresento-te «os papás» – falou-lhe Derito. Liliana sorriu, desconsertada. Como sinal de ajuda, Lino beijou-a e, em seguida, ela mesma beijou Eduarda. – Agora já podes aceitar o meu convite. Como estás? – Com os sentidos um pouco zonzos, se a pergunta foi dirigida para saber o meu estado neste exacto momento; estou muito bem, obrigada pela preocupação, se ela foi dirigida para saber o meu estado de saúde ou outro relacionado a ele. – Olha a foto dos nossos irmãos. – Uoh! Tenho mais irmãos… A sala ficou por alguns segundos em silêncio. – Não perguntas nada acerca deles? – inquiriu Lino. – As perguntas serão aquelas que as pessoas estão acostumadas a fazer e a ouvir, por isso, estou à espera que vocês simplesmente me contem coisas sobre eles. – Este é o Pedro e esta, a Carla. Eles são basicamente o que vocês são em termos de comportamento. Mas, melhor do que palavras, daqui a dois dias vais poder conhecê-los – disse-lhe o pai. – Vou ganhar uma irmã que adora pensar e mais um irmão que chega primeiro do que eu no quarto de banho. Fixe, para a última parte; bué fixe, para a primeira. – Quer dizer que o senhor Derito não é cavalheiro, hein? – perguntou Eduarda, que havia estado calada desde o momento em que Liliana chegara. – Gostamos de nos desafiar. Não tenho culpa se ela perde sempre – disse Derito. – Não perco sempre. No videogame és a minha morena. – «Minha morena»? – perguntou Lino. – Quer dizer que ele leva até cheirar queimado – respondeu Liliana. bem que isso é de todo mundo, mas…
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– A conversa está a tomar um rumo nada agradável para o bebé na barriga da mamã. Ele quer que conversemos sobre outra coisa, como… porque não nos esperaram na casa da avó? – perguntou Derito, para desviar o colóquio.
* – Paula, quero falar contigo. – Sobre…? – Sobre a festa que vamos dar. – «Festa»? «Vamos dar»? Tem certeza que usou estes termos na mesma frase de livre e espontânea vontade? – Pára com as perguntas, menina. Quero que no próximo domingo o terraço deste prédio esteja cheio com os teus amigos mais achegados… – Porquê? Ops! Pediu-me para parar com as perguntas… – Sim. Mas a esta é importante que eu dê uma resposta. A ausência de som tomou conta da sala por alguns instantes. – Então… – Então o quê? – Pergunta: Porquê? Resposta: Porque… – É surpresa. – Não, não, não. Não lhe vou dar o prazer de me humilhar mais uma vez, mamã. – O que é que achas que a tua mãe é? Um monstro insensível? Não respondas. Mas, desta vez, confie em mim, filha, por favor. Paula suspirou antes de responder.
* – Não sei se é um problema ou não, mas ele tem medos e tende a… gosta de preservá-los. Isso bloqueia a minha linha de ataque – disse Susana à cunhada. – Isso só prova que ele sabe o modo correcto de lidar com o medo: transformá-lo em degraus para se atingir o sucesso. – Talvez tenhas razão. Mas é um pouco difícil lidar com isso. – Acredita, Susana: Se todas as pessoas fossem como o Carlos, o mundo seria o melhor lugar para se viver, além de não ser nada entediante. – Então acho que ele merece a penalidade correspondente por ser assim: eu. – Convencida… – Não é pecado reconhecermos que fomos feitos à imagem de Deus. – Falando nisso, ou o teu irmão foi feito à imagem de gado bovino ou está a ser atacado por moças. Desde aquela hora que foi ajudar o Celestino a arranjar a geleira! – Acredita na segunda possibilidade. E, sabes de uma coisa? Elas agora vêm em bando. – Não piores os meus ciúmes. Tinho, sai daí. – Tu é que começaste, cunhada. – Eu sou a mulher, tenho o direito de pensar o que quiser; tu és a irmã, tens o dever de o defender. – Querias! Pôr fogo na lenha é muito melhor. – ‘Cê é louca. Mostra-me o outro desenho que fizeste. – Não está lá grande coisa, né? 67
– Se tu o dizes. Acho que precisa um pouco mais de paixão, aventura e jovialidade. – Que comentário maduro! – gozou Susana. – Mas acho que tens razão. Estou a transmitir a minha tristeza aos meus modelos. Preciso de algo que me alegre.
* – 0K. Aceito. Mas tens de me prometer uma coisa, senhora Dona Maria do Céu. – Sim? – Nada de comida sem colesterol e meias ortopédicas como presentes. Nenhum dos meus amigos é da sua era. – Hilariante… Volto mais tarde. Até logo, filha. – Até logo, mãe. Surpresa e desconfiada – foi assim que Paula constatou que estava após a saída de Maria do Céu. Pensou em alguma frase intelectual para gravar em seu telemóvel. Visto que a bateria do mesmo estava a ser carregada no outro lado da sala, ela teve de recorrer à locomoção bípede por alguns segundos para chegar ao aparelho de comunicação e o ligar. Sem querer, seu dedo pressionou a tecla sete por tempo suficiente para ligar à pessoa cujo número de contacto correspondia àquela discagem rápida. E agora? Se desligasse – aquilo não reflectiria muito bem na imagem que ela projectava com tanta pompa. Não impediu o processo. – Te tornaste telepata ou ligaste para dizer que apresentaste queixa e a polícia já está à minha porta? – perguntou-lhe Mauro. – Na verdade, foi por a… esquece. Como é que estás? – Essa pergunta pertence-me por dever. – Estou de pé, com um pé sobre a mesinha de vidro e a falar contigo. – O cenário é aliciante. Mas não é a isso que me referia… – Como assim? Eu é que fiz a pergunta, eu é que sei se me referia a quê. – Não comeces a tentar me baralhar, menina. Responde. Como estás?
* Sábado. Durante os cinco dias úteis, que passaram à velocidade de relâmpago, Derito e Liliana puderam familiarizar-se mais intimamente com seus pais recém-chegados (paradoxal, não? Quando os gémeos é que eram os recém-chegados, Lino e Eduarda os haviam abandonado; no momento em que a operação se tornou inversa, seus filhos passaram a demonstrar carinho e afecto por eles). Conheceram comovidamente Pedro e Carla; foi como ver seu próprio reflexo movendo-se de forma diferente da deles. Ah! e o mesmo reflexo era dois anos mais novo. Carlos e Susana voltaram a frequentar a Casa de Deus às terças, quintas e sábados, chegaram até a convencer Mauro e Paula a acompanhá-los na mesma acção. Sete e quarenta e três. – Sabem como é que se chama esse peixe? – perguntou a mãe deles enquanto tirava as barbatanas dorsais do mesmo. – Não – responderam os quatro ao fim de algumas reticências e pausas para pensamento. – Perguntem ao vosso tio.
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O referido engomava a roupa, possivelmente para uma saída mais logo. – Tio Carlos, qual é o nome desse peixe que a mamã está a preparar? – perguntou-lhe Derito. Ele observou aquele enorme fruto marinho por um tempo, mas ao fim de alguns segundos, rendeu-se. – Não, não sei. – Eh, mano! Não te lembras do peixe que o papá fazia sempre para nós aos sábados depois de ter posto um bons cálices de vinho? – perguntou-lhe Eduarda. Carlos abanou a cabeça concordando com aquela questão que afirmava uma negação. – Peixe Sofia, Carlos. Eh, estás com uma péssima memória. A Henriqueta anda a limpar-te as recordações com os beijos dela, né? – Não. Só estou um pouco distante do presente para prestar atenção ao pretérito mais que perfeito. Estou na página do futuro do conjuntivo. E o nome é Susana. – Ah, pois. Confundi-a com a Henriqueta Maria do Carlos I da Grã-Bretanha e Irlanda, a princesa católica cujo casamento provocou a cólera dos súbditos protestantes. Vocês têm a certeza que essa quissângua está mesmo boa? – Sim, porquê? – perguntaram os gémeos primogénitos com um rosto de oponente subestimado. – Por nada. É que o bebé aqui está a dizer que deve estar muito boa. – Apanhaste-nos. – O prazer foi todo meu. – Mas foi só desta vez. Espera pela vingança. – Como? – Grávida e de pé com uma mão à cintura – tugiu Carlos. – O que é que disseste, mano? – Nada – fez voz de criança mentirosa ao responder. – Estava a conversar com os meus botões. – Mas, tu estás sem camisola – apimentou Derito. – Não ponhas a colher de açúcar fora da bacia de quissângua, menino. A conversa ainda não chegou até aí. – Nós estamos sentados entre a mãe e o tio. É impossível a conversa não passar por nós antes de chegar a ela. – Hoje é o dia mundial, não, domiciliar de meter-se com o tio Carlos? – perguntou-lhes o tio. – Não é justo. E se nos metêssemos com a mamã, hein? Conta-nos um pouco das coisas humilhantes que ela fazia, tio Carlos – disse Pedro. – Eh, pá! Há segredos sobre a minha infância que não podem ser revelados, o sindicato das mães que estão prestes a ter mais um bebé não permite. – Não te preocupes com isso, mamã. O tio Carlos é bom em não cumprir regras. Principalmente uma que nos prive de ouvir coisas picantes – disse-lhe Liliana. – Desertora! Já te bandeaste para o outro lado ainda agora! Ainda bem que a Carla e o Derito são fiéis à mãe pátria, quer dizer, à mãe grávida.
* – Chambão fatiado… dois mil trezentos e quarenta e cinco kwanzas! Essa miginha!
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– Susana, fala baixo, o cartão não é meu, é da minha mãe. «Só tragam o melhor e o melhor do melhor», foi o que ela disse. – Estás a vingar-te da Maria do céu usando o cartão dela? Má… – Sei que o bolso não é onde lhe dói mais, mas… sabe tão bem gastar dinheiro esporadicamente, principalmente quando não é nosso. – Champô para homem, champô, luvas super macias, óleo bebé Johnson e creme de chocolate… – Pra quê a lista? – Coisas pra mim e pro Carlos. Ele agora tem o hábito de tomar banho antes de dormir e passar óleo bebé Johnson por todo o corpo. Sensual à brava, não? – 0K, 0K, 0K. Fez-me correr um frio excitante na espinha, mas… quem vai pagar isso? – «Só tragam o melhor e o melhor do melhor». – Não há adjectivos para ti. – Não te preocupes. O Carlos arranja sempre um. O quê? Lombinho de vaca, mil setecentos e sessenta?!
* – Eu te avisei, não devias ter contado essa em que fui atropelada por causa dos pirolitos – disse Eduarda a Carlos. – E só tinha seis anos – acrescentou ele. – Pediste. Querem que eu vos conte a que o tio Carlos voltou com um grande galo na testa ou a que ele ficou desmaiado na estrada por trinta segundos na primeira vez que tentou se maguelar?
* – «Não! Estou farta de te dizer que o mundo não gira em volta do teu falo, Sr Kama Sutra É O Meu Modo de Vida. Tu, tu…» – «Eu, eu… o quê? Tu nunca resolves examinar bem as imagens que chamas de factos incontestáveis. Eu te digo sempre: não são realmente as aparências que enganam; somos nós que nos deixamos enganar pelas aparências. Esta moça que tu me viste a abraçar é a tua cunhada que me contou que está grávida.» – «Oh! A Luzia está grávida? Desculpa-me, amor.» – «Está bem.» – «Este teu está bem está a levantar suspeitas. Prova-me que me perdoaste com um…». Mauro! É agora que ele e ela se beijam, esqueceu? – Não, não. Não é isso, Tina. – Então, porque paraste? Vamos repetir. «Prova-me que me perdoaste com um…»
* – Ufa! Esses foram os últimos sacos. – Ainda bem. Não me estou a sentir lá muito bem, Paula. Esses dois dias de compras me cansaram.
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– E amanhã de manhã ainda temos de preparar as coxas de frango e as costeletas. – Nem me fales; podes levar-me para a casa? – Janeth e companhia limitada, venham arrumar as compras na despensa e nas arcas. Vou levar a Susana.
* – Desculpa-me, Tina. Não consigo. – Esta é uma das cenas escritas aqui, não há como não conseguires fazê-la. O que é que se passa contigo? – Nada… – Então… – Não sei se isso é um diagnóstico precipitado mas… acho que a minha consciência ficou obesa em relação a isso. – Não entendi. – Não me sinto confortável… à vontade ao fazer isso. A voz da consciência me acusa. – Estamos só a encenar. O que é que há de errado nisso? – O engraçado é que nem eu mesmo entendo. Acho que é a… «Acho que é a…»? Porque parou ele? Porque não disse logo que ela implicitamente havia enviado sua forma de agir a um mosteiro? Mauro, Mauro – porque deixaste as reticências ocuparem o lugar de um nome próprio tão conspícuo ao teu coração? – Paula. Cruel engano. – Vocês voltaram a namorar? – O termo não é bem este… estamos, mais eu do que ela, a tentar fazer algo diferente. – Duplo «não entendi». – É complicado explicar isso. Como já te disse, nem eu mesmo entendo. Deu-se entrada ao processo a pouco tempo. Mais do que nunca devemos ponderar; não é um caso que se resolve às pressas. – Essa complicação resume-se em «Fui castrado, estou impotente até para fazer cenas românticas no meu grupo de teatro»? – Não gozes. Olha, vamos deixar essa cena para depois. Escolhe outra…
* As disputas da consciência dele acabaram. Partes dos medos que problematizavam a vida dele haviam diminuído de intensidade. No momento, Carlos tinha apenas de se preocupar com o que seria decidido na reunião familiar em curso. E, depois de uma hora de conversa animada mergulhada algumas vezes em dissenções de forte calibre, o veredicto foi: – Visto que não há mais nada a acrescer, ficamos assim. Aprovado por unanimidade… – Não tão una assim. – Os miúdos continuarão a viver com o Carlos até a nossa próxima reunião.
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* – Boa noite. – Oi. Tudo bem? – Estava a pensar numa forma de te fazer vir aqui amanhã; ainda não apareceu nenhuma infalível. Ajuda-me. – Carlos… ficámos mais de uma hora e meia juntos na Casa de Deus, ficámos a conversar por quase três horas em tua casa (a tua irmã é maluca, né?) e ainda assim queres que eu te visite amanhã? – Que posso fazer? Saudades. – Quantas tens? – Quantos são mil vezes mil? – Hum… – Pois. Agora multiplica isso por infinito. – Eh-eh! Hoje estou privilegiada. Tantas dicas num só dia. – Correcção: Tu és privilegiada. Sê-lo-ás sempre. – É impressão minha ou estás a pedir-me em casamento? – Ah! Pensaste tão rápido para falar i… espera. Se estivesse, aceitarias? – ‘Cê não perde nenhuma oportunidade, assanhado. – Já te disse, não sou assanhado, sou selvagem. Responde, aceitarias? – Deixa-me pensar no teu caso… não… – Como? – …Não diria que não a um pedido que eu mesma quis tomar a iniciativa de fazer. – Tu terias coragem? Que pergunta a minha. És a pessoa mais decidida que conheço. Não conheço outra rapariga tão firme, tão… tão sem medo do que acontecerá depois (não que sejas inconsequente, hã?), tão Susana, é esse o adjectivo que estava à procura, meu Deus! O que sinto quando te toco, o que sinto quando te abraço, quando oiço tua respiração então! És a única pessoa com quem tenho dificuldades em rotular as minhas emoções. Me pões zonzo. Contigo eu sei que serei, e já sou, felicitadino. – Felicitadino? – É um adjectivo que acabei de inventar com a Carla. Quem vive na cidade? Citadino. Quem vive em felicidade? – Felicitadino. Tu és demais. Parece-me que te estás a dar muito bem com eles… o Lino, a Eduarda, a Carla e o Pedro. – Os dois últimos são incríveis. A segunda revelou-se a rainha das surpresas surpreendentemente boas. O primeiro vai levar um tiro da arma que estou a juntar dinheiro para comprar. – Ele é tão chão assim? – Atribuir este adjectivo a ele é o mesmo que pôr uma auréola na cabeça de Hitler. – Meu Deus! Que sacrilégio! Vais ter de cozer essa boca. – Com quê? – Não comeces com o teu tom sedutor outra vez. Olha, Carlos, estou com uma pesada dor de cabeça, falamos amanhã, tá bom? – Obrigado. – Porquê? – Me deste um motivo para te procurar amanhã. Boa noite. Dorme bem.
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CAPÍTULO VII Passaram-se três meses e cinco dias. Em alguma fracção de tal período, Mauro e Paula construíram com colunas de mármore uma amizade menos colorida, contudo, mais cheia de altruísmo. Raras vezes marcaram encontros em que tinham de estar isolados. O único acontecimento estranho foi a não comparência dele na festa dada pela mãe de Paula, que fora um sucesso – principalmente por causa da forma como Maria do Céu e Carlos, num dos momentos da referida, se dirigiram para o meio da roda humana e dançaram funky. A vida real pareceu outorgar-lhes um longo instante de sonho quando fizeram a aventurada e quase inconsequente viagem a Lubango de carro com seus amigos mais achegados. Já não parecia uma imagem projectada com segundas intenções – sim, o comportamento louvável de Mauro não teve um «corta!», pelo menos até aquele momento. Paula havia tentado beijá-lo em circunstâncias fortemente românticas, mas Mauro se afastara. Teria ele se castrado literalmente por causa dela? Quem era aquele Mauro? Quanto a Gisela, a Marlene e a Janeth, com o auxílio da mãe, Paula havia conseguido pô-las a tirar alguns cursos no período da manhã e da tarde; só com o insaciável desejo das primas de pôr as hormonas ao rubro, por meio de uma explosão entorpecente de adrenalina durante as noites, é que ela, Paula, não havia tido ainda sucesso ao tentar reduzi-lo a uma quota saudável. Júlio e Beth trabalharam aos poucos em prol de seu consórcio cheios de ansiedade; e Beth voltara a ficar grávida. Um motivo de grande alarde havia sido a caída de cama de Tinho e Susana por causa de uma incursão palúdica em seus corpos. Contudo, os dois haviam recuperado mesmo a tempo de irem à festinha que Liliana, Derito, Carla e Pedro haviam dado para todas as crianças que já entendiam o real sentido das palavras «Primeiro o dever, depois o prazer». As roupas desenhadas por Susana haviam tido uma excelente recepção do público. «Parece que ter o Carlos como namorado te tem dado muito mais criatividade, miúda» – foram essas as palavras que ela ouviu de seu pai. Apenas o seu rendimento na faculdade havia baixado um pouco durante uns tempos. Mas ela recuperou-o sem grandes dificuldades. Conseguiu até livrar-se da maioria das moças que andavam atrás de seu namorado com graciosidade, não precisou de se exaltar em momento algum, como fazia antes. Seus ciúmes e sua obsessão pela possessão exclusiva de Carlos haviam sido terraplanados pelo aumento da confiança que ele lhe outorgava incondicionalmente. Carlos aumentou mais um pouco na sua disposição nata de adaptar-se às circunstâncias, até às mais inóspitas. Quando soube que havia ganhado o concurso cuja participação lhe custara uma séria conversa com seus sobrinhos, aproveitou pintar e comprar mobílias novas para o seu apartamento. Seu cérebro e seu coração não
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desistiam de pôr em voga o seu novo estado civil – quem diria que só aos vinte e cinco anos é que ele conseguiria ter uma namorada no sentido mais lato da palavra? Já que não tinha licença para o porte de ogivas nucleares, pensamentos como assassinar o seu cunhado com uma arma de ocasião passavam-lhe pela mente em alguns de seus devaneios. Um crime passional não lhe custaria a perda total de sua reputação…
* – Não – respondeu Mira ao pedido de Derito. – Porquê? Ele não pode estender o prazo? – perguntou ele, escondendo o aquário atrás de si. – Ele quere-a agora. Passa! – Eles nem tiveram tempo de se conhecer bem – disse ele, entregando o aquário à menina. – Se o tivessem tido, alguém serviria de almoço. – Queres dizer que o meu girino poderia engolir a tua cobra?! Uau! Que descoberta! – Não me faças! Passa-me a cobra, Derito. – Toma. Diz para ele passar aqui depois. – Tá fixe. Tchau. – Quem era? – perguntou Carla a Derito, escassos segundos depois de a rapariga ter saído. – A Mira – respondeu ele, observando as mãos da irmã. – Achaste? – Nem por sombras (de facto, lá nem há luz, dizer isso é meio parvo…). Tens certeza que eles guardaram aquilo na despensa? – Rodésia do Norte é o antigo nome da Zâmbia?
* – Man quem, tá a aeroportar? – inquiriu Carlos. – Nada. Nossa boca é no Zamba Dois – respondeu a pessoa que cobrava no candongueiro. – Epá, estamos aqui a secar há muito tempo, kamones. Subam – disse o primeiro aos seus sobrinhos. – Não entendi nada do que o tio disse, Liliana. – Sobe só, Pedro. Com o tempo aprendes.
* – Achei! – exclamou Carla. – Fixe! Fi-xe! Agora vamos saber todos os planos do inimigo – disse-lhe Derito. – Que inimigo, miúdos? – perguntou-lhes Eduarda. – Oh, oi, mamã. É um desafio entre irmãos gémeos, a mãe deles não pode saber. – Se eu insistir, vocês contam? – Não – responderam ambos.
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– Então não quero saber. Mas o vosso irmãozinho parece querer… que eu lhe mude a fralda. Fuuu! Bebezinho fez pumpum. Carla, traz uma fralda, por favor.
* – Muito bem. E quem sabe me dizer os nomes da nuvens? – perguntou-lhes o tio ao subirem as escadas do prédio onde se domiciliavam. – Eu! Eu! Cúmulos, estrato-cúmulos, nimbos, nimbos-estratos e cirros. – Mais um ponto para a Liliana! E quem conhece o nome de cada parte da orelha? – Eu! Hélice, antélix, trago, antítrago e lobo. – Outro ponto para o Pedro! E quem sabe me dizer, em ordem crescente, o nome dos planetas do nosso sistema solar? Ops! Chegámos. – Parecia que nunca mais sairiam daquele supermercado. Trouxeram o que eu pedi? – indagou-lhes Derito. – E o que eu pedi também? – acresceu Carla. – Calmem, irmãozinhos. A dádiva da memória nos Chinengue é sem limites – respondeu-lhes Pedro. Enquanto tio e sobrinhos conversavam e arrumavam as compras, no quarto, Eduarda lia numa velha folha as seguintes palavras: Foi dramático. Eu não conseguia acreditar que a rapariga que invadia meus sentimentos de uma forma pertinazmente avassaladora estava de partida. Havia posto três peças de roupa dentro de uma bacia laranja: um par de jeans, uma camisa listrada e uma camisola verde decorada com motivos brancos e pretos. Quando voltei com as chaves para abrir o tanque de água, as únicas palavras que meu sistema auditivo captou com angústia foram: – Tchau, tio Carlos. – Tchau – respondi com um falso tom de alegria. Fui a passos lentos até o quarto de minha mãe. Visto que no rádio tocava uma música que transmitia a sensação de nostalgia, meus olhos se encheram de lágrimas. Mas porquê? Como é que ela conseguira me pôr daquele jeito? Ela gostava de mim e eu – eu amava-a, disso até a tia dela sabia. Mas eu tinha vinte anos e ela tinha apenas treze. Sim, era um amor impossível. Ela saiu por aquele… – Estás a ler o quê? – interrompeu-lhe Carlos. – Esta tua romântica e pedófila carta. – Hum? Mostra. Hã! – deu uma gargalhada. – A carta que escrevi para a Yola. Nem cheguei a entregar. Já deve estar um monstro da excitação a essa altura. – ‘Cê… ‘cê não melhora. Passa-ma. – Porquê? É minha. Onde é que a encontraste? – Estava a arrumar umas coisas na despensa e achei uma pasta preta velha cheia de folhas com desenhos, poesias e esta pouca vergonha… – Não comeces… – Estava apenas a exagerar como, às vezes, tu. Deixa-me continuar a ler a baboseira. – Precisas ser internada. Toma. Posso levar o bebé?
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– Hum? Yá. O ambiente literário é obsceno demais para ele. Se continuar aqui, poucas serão as probabilidades de ele não crescer tarado como o tio. Uma miúda de treze anos. Meu Deus!...
Ela saiu por aquele portão azul trajada de uma linda blusa branca e calças azuis escuras que lhe ficavam muito justas sem sequer ouvir com todas as letras que meu coração lhe coroara como rainha de meus sonhos, deusa de minha respiração, anjo de minha vida. Pelo menos ela, um dia, teve coragem de dizer que estava apaixonada por mim, que eu tinha de a ajudar a respirar e que o meu colo já era dela; mas eu era um covarde, racional demais para agir como ela – tinha medo. Muitas vezes, quando a abraçava, meu desejo era afogar os meus lábios nos dela de uma maneira tão apaixonada e fugaz, que, no dia seguinte, ela teria vergonha de olhar para a minha cara, mas me continha. Afinal, eu tinha de ser para ela um modelo perfeito de homem, um ser masculino que lhe mostrasse que os homens não querem apenas aproveitar-se dos corpos das mulheres – queria educá-la, transformá-la numa rapariga invejavelmente cobiçada por sua inteligência e modo respeitoso de tratar as pessoas, sim, queria torná-la numa mulher de verdade. Mas o destino não permitiu. Raios! Será que ela lá estará bem? Será que a educação será das melhores? E se houver rapazes que conseguirão desviá-la do caminho certo? Espero que ela não se esqueça das lições que tentei lhe ensinar sobre isso. Eu sei que ela é forte, e confio na sua inteligência. Mas o lindo corpo que ela possui pode chamar a atenção indevida de muitos meninos (ou até de homens!). Aquele olhar inocente e provocante dela pode causar-lhe inúmeros problemas… Não quero nem pensar nos estragos que o hábito dela de usar roupas curtas fará. Yola… Yolanda, toma cuidado aí onde estás. Presta mais atenção aos teus estudos. Respeita os teus pais. Não aceites todo conselho que as tuas amigas e os teus amigos te derem. Continua a aprender sobre Deus. E, o mais importante, não te esqueças que usar o cérebro para fazer o bem é a melhor coisa do mundo e que comportar-se com moral significa inteligência. Beijos. Carlos
* – Sinceramente. Eu não sei do que estamos à espera para levá-los… Estou farto de viajar por cinco dias e voltar aqui todos os fins-de-semana, pá! – contestou Lino. – Calma, calma. O plano está a correr maravilhosamente, falta pouco. Ninguém desconfia de nada. Não estragues tudo – amansou-o Eduarda. – E eu é que sou considerado o mau da fita. És terrível! Fazer isso ao próprio irmão!? – disse-lhe ele. – Desculpem interrompê-los. Vão continuar a consumir? – perguntou-lhes o garçon. – Sim, sim. Traga o mesmo para mim e…? – Um uísque duplo para mim – respondeu Eduarda. – Não era melhor abrandares? Vais chegar à casa perfumada de álcool – disse-lhe o marido. – Te enganas. A comida paralisa o efeito. Pode trazer – disse ao garçon. – Oh! Diz-me, como é que estão as coisas no reino do Miguel de Sá? – perguntou a Lino.
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– Aquela vossa empresa parece que fez um pacto com o sucesso ininterrupto, ou mas já se nota a falta da tua criatividade lá. Estão sempre a querer saber quando voltas? – Aqueles! Eu passo horas no meu computador trabalhando como escrava, envio-lhes aqueles projectos todos mesmo depois de ter dado à luz há insuficiente tempo… – «Mesmo depois de ter dado à luz há insuficiente tempo»; a bebida começou a fazer efeito. Querida, isso não é a mesma coisa que estares lá, incentivando-os com a tua garra… – …e ser assediada gratuitamente. – O quê? Queres arranjar conversa. – Não. Tu também trabalhas. Vais-me dizer que saias curtas não te chamam a atenção? – Chamam. Mas não passam disso: distractivos. É só para confirmar que continuo macho e, o mais importante, quanto mais tarado eu mostrar que sou a elas… – Mais distantes de ti ficarão. – Isso mesmo! Como é que sabes? – É o mesmo que eu faço. E o Carlos não pára de falar disso lá em casa com a namorada dele e os amigos… e comigo também. – Cá está o vosso pedido – interrompeu-lhes novamente o empregado. – Muito obrigado. Como é que está o Lino Júnior? – perguntou à esposa. – Nome com o Diabo,
parvo, não? – Foste tu quem lho deu.
Quando acabares de comer, passamos lá. Deixei-o aos cuidados da tua cunhada. Adoro o cheiro do uísque! – Tu…
* – É um defeito meu. Gosto de me achar maior. Mas na verdade sou igual (transversalmente diferente ao mesmo tempo mas…), igual. Agora me dizes que sou perfeita. Ideal é o termo correcto – disse Susana a Carlos. – Não. Tu não entendes. Para ser perfeita nesse mundo de imperfeições a pessoa tem de ter defeitos – explicou-lhe ele. – Como assim? – Bem, tu mentalizas a pessoa com a qual queres casar: inteligente, sensível… – E um cachorro quente com todos os molhos. – Pois. Quando a encontrares… – Já encontrei. – Pára de interromper! Gostei do que disseste. 0K. Quando a encontrares, seria tolo pensar que, por ela ter todas as qualidades que desejas num prospectivo marido, não teria defeito algum, não é? Logo, ela é a pessoa perfeita para ti, porque tem as qualidades e os defeitos aceitáveis em teu coração. – Compreendo o teu pensamento. – Um exemplo mais próximo és tu. Eu adoro as tuas qualidades, mas também amo os teus defeitos. – A sério? Não me achas chata, mimada e possessiva? – Se não tivesses esses defeitos, eu não gostaria de ti… – Carlos, Carlos. Não me obrigues a castigar a tua boca à frente dos teus sobrinhos.
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* Vinte e trinta e quatro. Ele não estava à espera daquela visita. E o pior era que seus pais não estavam em casa. – Oi…? – Não. Não quero um aperto de mão – contestou Paula. Os dois beijos de saudação que se seguiram foram dados muito perto do par de lábios dele. – Apiedar-me-ei de ti desta vez. – Porquê? – sorriu ao entrar. – Que ventos, ou que desejos, te trazem cá? Desculpa. É o hábito. – Não, não te preocupes. Confio em ti. «Porquê?» – perguntou Mauro em seu íntimo. – Houve algo que não percebi bem ontem, quando estávamos na Casa de Deus. E, já que não quero pegar a vela para o Carlos e para a Susana… – Como é que dizes sempre?... Pau de cabeleireiro! – Isso…. Decidi vir ter contigo, já que tens dedicado tempo a perscrutar a Palavra de Deus e seus assuntos derivados… – Não comeces com o português eloquente. Mas, fala, o que é? Senta-te… – Qual é a real diferença entre os Quacres, os Catabaptistas e os Anabaptistas? Foi então que Mauro percebeu que ela quis apenas estar com ele. Pois qualquer dicionário poderia fornecer-lhe a resposta básica àquela pergunta (e isso era o que não faltava na casa dela!). Porque seria que ela, mesmo depois daquilo, ainda confiava nele? Estranho – o comportamento humano. Estranho. Após alguns minutos de explicações, a conversa direccionou-se para outros assuntos. – Com certeza. Assim como há livros que foram escritos para que se pudesse escrever outros – concordou e adiu Mauro à arguição de Paula. – Eu penso em publicar um herético, algum dia - confessou-lhe ela, brincando. – Não gozes. Parece que teríamos de recorrer ao antigo método de queimar as pessoas numa fogueira. – Ai é? – Se bem que teríamos de pensar mil e uma vezes antes de queimar um corpo como o teu. Desculpa, outra vez. É o hábito. – Já te disse para não te preocupares. Porque é que estás sentado tão distante de mim, Mauro? – Por nada, Paula. – Podes encostar mais um bocado? Quero ver bem o sinal que te fiz na testa.
* – Tens como objectivo alcançar o quê?! – perguntou Lino à esposa. – Shht! Falamos disso depois. Chegámos. Comporta-te. – Já tens as chaves do apartamento!? – Eu mais! Tá a brincar ou quê? Boa noite, filhotes. Boa noite, casalzinho. – Papá! Mamã! – gritaram Pedro e Carla. – Boa noite.
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Este último «boa noite» saíra sério e frio. Pudera! Lino havia sido o seu enunciador. – Meninos, podem ir ao quarto? Temos uma conversa por ter com o tio Carlos.
* – Em vez de ficarmos aqui a nos viciar, porque não informatizamos aquilo, Liliana? – perguntou Pedro. – Não. Assim o nosso plano estaria à mercê dos olhos do inimigo – respondeu-lhe a irmã. – Como se nós já não soubéssemos o que vocês prepararam – interrompeu-lhes Derito. – Eh! Cala, xê! Ninguém te chamou na conversa. Espera! O que é que tu sabes, senhor Eduardo? – perguntou-lhe Liliana. – A culpa não é minha, agente da Gestapo Liliana. Se quiser achar os verdadeiros infractores, interrogue a minha chamejante curiosidade e a enorme facilidade da Carla em encontrar planos bem guardados. – Vocês expiaram?! Não vale! – contestou Liliana. – Mas nós expiámo-los primeiro… – disse Pedro. – ‘Cê deu bandeira porquê, Pedro? – perguntou-lhe Liliana. – Não me pareceu justo eles pensarem que são mais quebra-regras do que nós. – Muito bem, mano – declarou Liliana. – 0K. 0K. Provaram que nos atrasámos. E se fôssemos informatizar as duas histórias agora, hã? – Vamos a isso, Carla. O que será que a mamã e o papá estarão a falar com o tio Carlos? – Se Derito, o Curioso, não quer saber, porque é que Liliana, a Não Curiosa, se preocupa? Dita, Pedro. A Lenda dos Fetos Abortados Não se sabe ao certo quando isso aconteceu (ou acontecerá), por isso, a lenda dos fetos abortados pode tanto ser mesmo isso (uma lenda, um mito) criada por pessoas que já não tinham nada para fazer e resolveram divertir e/ou assustar as massas, ou uma premonição, uma previsão do que nos aguarda. Seja como for, esteja sério ao lê-la. – Caros Fetos Abortados! A nossa sociedade existe já há bastante tempo, e cada vez mais se têm juntado a ela, propositadamente ou não. Chegou a hora de fazermos jus à nossa finalidade: eliminar os Bem-Formados que nos assassinaram! Ouviram-se urros de alegria confundidos com sede de vingança após a terminação das palavras do Líder dos embriões que não chegaram a vir vivos ao mundo. – Qual será a nossa estratégia, ó Líder? – Visto que já estivemos no ventre das fêmeas dos Bem-Formados, há definitivamente algo que nos liga a eles: o ADN. Por meio dessas moléculas que transmitem as características hereditárias de uma geração para a seguinte e regulam a síntese de proteínas e graças a essa máquina que criámos, poderemos voltar a entrar em seus corpos sem sermos rejeitados, expelidos. E quando tal se tornar tal, aniquilá-los-emos como a leucemia, só que muito mais rápida e dolorosamente, mas antes, mostrar-lhes-emos o que seríamos se não nos tivessem exterminado.
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– E quanto aos de nós cujas fêmeas dos Bem-Formados já estão mortas, ó Líder? É de vosso conhecimento que esta sociedade é quase tão velha quanto a existência dos Bem-Formados na Terra. Que farão estes? – Caro General, a nossa máquina é poderosa. Conseguirá adaptar estes cujas… O Líder parou para limpar garganta pois quase dissera uma das palavras proibidas naquela sociedade: mães. – …Cujas fêmeas dos Bem-Formados já estão mortas. E visto que serão aparentemente poucos ventres, oito de nós poderão ocupar um, desde que os mesmos tenham algo a ver entre si, com a Bem-Formada hospedeira ou com os parentes ou amigos… qualquer pessoa que a tenha incentivado a abortá-los. E, se não houver úteros adultos suficientes, as Bem-Formadas de nove anos para cima serão a nossa solução recorrente. – Ó Grande Líder, sem limites é a tua sabedoria! E o que faremos com as fêmeas dos Bem-Formados que, no momento de nosso ataque, estiverem grávidas? – Simples, caro Tenente. Com a nossa capacidade de prever o futuro, veremos se ele virá vivo ao mundo ou será transformado em um de nós. Se for a primeira, apressaremos seu nascimento e será criado por Bem-Formados que nunca contribuíram para a formação da nossa sociedade, se for a segunda, haverá apenas espaço para mais sete naquele ventre. Durante dias, os Fetos Abortados trabalharam incansavelmente naquele plano, até os mínimos detalhes eram ratificados como qualquer detalhe maior. Nada, absolutamente nada poderia dar errado. Além do mais, tinham o dom de saber o futuro a seu dispor. No fim de tudo, antes de o massacre ter início, ouviram novamente a voz do Líder, sussurrando aos seus ouvidos. – Agora é só esperar. A carnificina começa ao anoitecer… Autores: Liliana e Pedro – Adorei essa vossa. A sério. Mas a nossa é melhor – pavoneou-se Derito. – Ai é? – perguntou-lhe Liliana. – Ai é. Dita, Carla. O Monólogo do T-rex Algures em uma das cavernas desconhecidas pela humanidade, uma gigantesca criatura saurisquiana, na verdade a mais terrível e sanguinária delas, anda inquietantemente de um lado para o outro, tudo porque um grupo de seres muito menores do que ele, que se acham os melhores do planeta por terem uma estranha massa acinzentada em seus crânios que lhes concede a fútil habilidade de resolver os problemas com tácticas intelectuais e não com rugidos e garras afiadas – à bruta – estraga cada vez mais o habitat concedido não só a eles, mas também a minerais, vegetais e tantos outros. – Acham-me extinto? Vangloriam-se como os maiores predadores existentes? E jactam-se: «Fomos feitos à imagem de Deus!» …? Acham-se superiores a mim por causa disso. Nem sequer chegam para tapar o buraco dos meus dentes afiados e duplamente serrilhados! Comem os animais mais fracos. Eu também fazia isso quando existiam muitos de mim. Mas eles… eles ultrapassam-me. Nem o mais temível dos animais conhecido por eles está a salvo. Grrr! Raiva, raiva, raiva, raiva, raiva, raiva! … Porque é que até as plantas e as árvores pagam? «Oh, descobrimos a cura para essa doença!» «Oh, esta madeira dará uns bons móveis!» Palermas. Sentar em cadeiras que causam inveja nos vizinhos é muito melhor que preservar a própria casa. Estúpidos, estúpidos! «Essa pele de urso deve ficar
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bem em mim.» Porque é que todos os animais não nasceram com instinto de alfaiate? «Gostas das minhas calças, senhora ovelha? São de pele humana», «Oh, sim! E o que achas do meu vestido, senhor gorila? Foi feito com o mesmo tecido», isso é que seria bom de ouvir. Até os tubarões são presas fáceis! Chega!!! Vou mostrar a esses bípedes sem escamas que a grande chuva não me extinguiu. O tempo deles de glória chegou ao fim. Basta um acirrado ataque surpresa e governa o Tyrannosaurus rex outra vez! Voltaremos à época do Cretáceo superior… ah! Carne fresca e a jorrar sangue que escorre directamente para garganta. Que sensação! Êxtase gastronómico… Calma. Se eu mandasse, aconteceria o mesmo. O melhor é deixar as coisas como estão. No fim, o Feitor saberá o que fazer a eles. E, tenho a certeza, será muito pior do que aquilo que eu faria… Autores: Carla e Derito
* – Não gozes com esses homens do pensamento, Paula. De acordo com as individualidades, alguns viveram dele, nele e ele. – Mas, Mauro, alguns deles eram chatos. Achas que conseguirias ficar a conversar com alguém que pensa que ser humano é uma faculdade adquirida? Absurdo! – Dependendo da forma que ele argumentaria, sim. – Nós nascemos seres e sendo humanos; como é que posso adquirir algo que já sou por natureza? – Tu achas todas as pessoas sociáveis? – Não. – Concordas que algumas se comportam desprezivelmente como animais, não? – Sim. – Achas que… – Deixa estar. Percebi. – Então retiras o «absurdo!»? – Sim. Pára de me fazer perguntas cujas respostas são constituídas por três letras, 0K? «Isto é humano, se há formas de evitá-lo, não me diga, fá-lo.» Vamos falar sobre essa.
* Sábado de manhã. – Não. Deixa estar isso aí. Quem me dera que essas meninas fossem menos hormonais e mais neuronais. A vida é só festa e mais festas – desabafou Maria do Céu. – Isso é próprio da juventude. – Mas essa propriedade não é boa, Antonica. Imagine se cem por cento dos jovens fossem assim. As escolas seriam discotecas e os professores iriam dar as aulas de cabelo vermelho e com giz feito de cocaína. – Extremista! – Pode ser que eu seja, mas não me tira a verdade… Sara! Onde está o pão que foste comprar? – perguntou ela, assustada, a uma das senhoras idosas que acabava de chegar.
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– Uma menina ofereceu-se para me fazer atravessar a estrada, ou a rua…, fez uns truques aí, o meu saco de pão e o meu pano caíram, ela apanhou-os, entregou-mos, foi-se embora, o dinheiro desapareceu – respondeu-lhe a senhora. – Deixaste perder os quinhentos kwanzas, Sarita? – Não. A miúda roubou-mos, Totó.
* – Liliana, Derito, Carla e Pedro! – Não fomos nós, tio Carlos! Os copos de creme de chocolate já estavam vazios quando nós chegámos. Prometo. – É «juro» que se diz, Carla. – Mas «prometo» tem muito mais piada, Liliana. – Entrem e me expliquem de onde surgiram essas ideias – falou-lhes o tio, mostrando-lhes o computador ligado. – Oh, as histórias! Foi um desafio – respondeu Liliana. – E quem venceu? – perguntou Carlos. – Ainda não sabemos. O juiz será o tio. – Porquê, Pedro? 0K, 0K. As histórias são irmãmente brilhantes. Há um empate. Podem trazer-me o pequeno-almoço?
* Vinte e uma e três. – Que esclarecimento! Sentiste a convicção dele ao explicar a diferença entre exoterismo e esoterismo? Excelente! – disse Carlos a Susana. – As tuas observações também foram fixes, Carlos. – E… – pronunciou-se Derito. – E os vossos também, meninos. Pensaram que a Susana se esqueceria de vocês? – Falando em esquecer… tenho uma surpresa para vocês os quatros. Entrem. Vão até o meu quarto e leiam o último documento. Inspirei-me um pouco no que vocês escreveram. – Fixe! Fi-xe! – Sai da frente, Derito. Vou ser a primeira a… – dizia Liliana. – Sentem-se, irmãos atrasados. O Pedro aqui é muito mais rápido que os três. Vamos ler. Tragédias projectadas Aconteceu num dia como qualquer outro: Crianças brincavam Jovens estudavam Mais velhos ensinavam o caminho correcto Mais este quadro parecia muito monótono a Natureza Ela queria acção, queria braveza Por isso lembrou-se dos violentos momentos A que assistiu no Coliseu, em Roma
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E, depois disso, Não demorou muito para o massacre entrar em cena: Soltou o feroz gladiador Katrina Na arena de NewOrleans E nem sequer foi necessário Apimentar o espectáculo com tigres Pois morreram como cães Estudantes, mercadores, advogados e empresários A morte também entrou nas lojas E nem sequer ligou para o exorbitante preçário Mas… Calma aí Estou a culpar a Natureza por isso? Eu só posso estar com psicose Preciso de um hospício! Apesar de não ser o único fomentador do ocorrido O ser que vou citar está cheio de culpa (e desta vez é culpado) Quem é que Tem prejudicado O sistema climático da Terra de era a era? Quem é que Continua a lançar Gases de efeito estufa na atmosfera? Quem é que Tem criado Engenhos de guerra com efeitos muito destrutivos Resultantes da brusca libertação da energia Da desintegração do núcleo do átomo? Quem é que Tem condenado A pena capital os maiores produtores de oxigénio Com a esfarrapada desculpa de fabricar livros, Assentos e cadernos? Quem é que Tem desertado, Destruído e despovoado áreas Onde antes havia tubérculos, frutas doces e gramíneas? Acabei de desabafar Um pouco do que comprimia meu coração até agora Mas nesta estrofe vou falar do furacão Humano Que por décadas assolou Angola Formado acima da linha do horror Girava no sentido anti-propiciatório à paz Inundando casas e aldeias com ódio – semeando terror Afogava a felicidade e a harmonia de modo eficaz Munia com asas o dinheiro, a comida e a saúde Descerebrava escolas e fábricas Como se essa fosse a mais exemplar atitude
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Chegou até a disseminar misantropia e escuridão – Casal que até hoje perpetua É como se em milhares de mentes Ele tivesse asfixiado o sol e estuprado a lua Os traumas, estigmas e cicatrizes ainda doem – Não sararam É por isso que a revolta e a vontade de vingança nos moem – Não cessaram Mas a busca por tranquilidade De pessoas pacifistas continua Pois reconheceram que O melhor é ir esquecendo a dor e a mágoa E quanto ao resto dos rancorosos sentimentos, O tempo atenua Testemunhámos que Em ambos os furacões Morreram tanto pessoas más como inocentes Mas não existirá esse nível de injustiça Para o terrível que agora está mais iminente Muito poucos se salvarão Serão decepados aqueles que Carregam o mal nos membros e o ódio no coração Remanescerão apenas aqueles que Têm o amor genuíno ao próximo na mente e sempre dádivas nas mãos Se mudarmos nosso modo de agir agora Ganharemos um fim bom Pois não haverá bóias ou helicópteros salva-vidas Quando se formarem os ventos devastadores do furacão Armagedom – Gostámos de ler, tio Carlos. Mas não parece ter alguma ligação com as nossas histórias – confessou-lhe Pedro. – Claro. Não é essa. É essa. Vocês não esperaram eu dizer o título. – O tio disse «o último documento» … – Não tentes te justificar, Pedro. Não é inteligente. Leiam. Eu vou continuar a fazer a leitura doce de uns certos lábios. A carta desaparecida de Adão Eu sei que a escrita ainda não foi inventada Mas prefiro que leias estas palavras a ouvi-las Sei que nestas linhas não entenderás quase nada Mas prefiro escrever estas vaias a proferi-las A nossa vida era um – e num – perfeito paraíso Vivíamos alegres e sem qualquer problema Eu fazia qualquer coisa para ver teu belo sorriso Lembras-te das assanhadas brincadeiras Que fazíamos com as bananas? Aquilo ainda está gravado em minha alma
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Mas, depois, tinhas de estragar tudo? Tinhas de usar tua sedutora beleza para me seduzir? Tinhas de fazer aquela tua cara de santa virgem Que desvia o mundo? Tinhas mesmo de acariciar meu pescoço E atraentemente sorrir? Tinhas de sussurrar em meu ouvido Que te perderia se não aceitasse? Ossos dos meus ossos, Tinhas mesmo de te apertar em meu corpo E me falar face a face? Agora vê o que aconteceu Caim cresceu neurótico e frustrado Posso não ter lido o livro que Freud escreveu Mas sei que isso é por a Deus não teres escutado Abel chegou a ser a melhor pessoa Que meu olho visionou Mas ele o matou Eu só não acabei com a raça dele Porque ele saiu de um de meus membros Mas por causa desta minha atitude condescendente Verás o que os teus filhos farão em 11 de Setembro Admitir isso é realmente triste Mas amamentaste Pessoas capazes de eclodir as Guerras Mundiais Criaste meninos capazes de inventar a bomba atómica Deste à luz bebés que se matam todos os dias De ti vieram filhos que para Chaplin Não têm nenhuma característica cómica Eva, o papel que eu encontrei é pequeno Por isso, vou ter de parar de escrever Mas não ligues se o que leste te caiu como veneno Acho que só escrevi isso Por causa do sumo de uva que acabei de beber
* Domingo. Doze e trinta e quatro. – Não achas que vocês andam a isolar-se demais? E se ele tentar te fazer aquilo de novo? – perguntou Susana à amiga. – Praticamente impossível. Ele nem me beijar consegue. E olha que eu o tenho seduzido bastante – respondeu ela. – Tu não tens medo?... Vocês falam sobre aquilo que ele tentou te fazer? – «Falar do pecado à frente de alguém que o comete, mas que quer parar, é pôr combustível para que ele continue assim.» – Mas precisas evitar tirar o teu pezinho para ir lá. Não está certo…
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– «Para uma acção negativa há sempre uma aplicação positiva em um outro campo.» Espera… isso não se aplica a essa situação, mas pareceu intelectual dizê-lo. – Estás a brincar com assuntos sérios, Paula… – E não é assim que eles devem ser tratados, Susana?
* – …ou então faço isso, o que pode me fazer parecer fraco aos olhos de outros. Mas não me importo. Se os meus sentidos estão falhos, eu também estou. O que faz com que não haja culpa para se atribuir – explicou Carlos a Mauro. – Quer dizer que não culpas a ninguém quando os teus planos são frustrados? – Não é inteligente fazer isso, Mauro. Pôr a culpa nos outros é pura demonstração de covardia. Tu é que contas. Sempre. Não importa se eles contribuíram a noventa e nove por cento para tal frustração, o relevante é aprenderes a tirar partido disso. – Já deste conta que, às vezes, as nossas conversas parecem escritas por alguém? – Talvez seja porque andamos a ler coisas que já sabíamos muito antes de serem escritas. – É verdade, Carlos. Às vezes dou uma gargalhada quando penso que eles tiveram de estudar anos e anos para descobrir algo que já sei desde os doze anos. – Queres ler o que os meus sobrinhos escreveram?
* – Bom, parece que o almoço já está pronto. Viste a mamã, Gisela? – interrogou Paula. – Acho que foi falar com a Sara – respondeu-lhe a prima. – Por causa do roubo? – Qual roubo? – perguntou Susana a Paula, alheia à situação. – Ah, não te contei? A Sara foi assaltada por uma menina. – Sara não é uma das avós que tu… vocês cuidam? – perguntou novamente Susana. – É – respondeu-lhe Gisela. – Isso aconteceu quando? – Ontem. Chega de perguntas. Vamos sentar-nos e comermo-nos. Quer dizer, sentar-nos e comermos. Antes disso, quem vai orar? Marlene? – Eu, eh! Se soubesses! Os meus pecados são tantos que Deus já deve me confundir com o Diabo. – Não blasfemes, miúda, não blasfemes. Ora por nós, Susana.
* – …os meus desejos e sentimentos. Dizes: «Sinto que desejo…», mas será que dizes: «Desejo que sinto…»? «Desejo sentir…» talvez… – Carlos, chega. Vamos almoçar. Vocês têm conversas chatas. Não se enjoam? – interrompeu-lhes Eduarda.
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– Eduarda, Eduarda. O que é que dirias se ouvisses as conversas de Deus? – disse o irmão. – ‘Cê fala à toa. Como é que consegues pensar em algo que beira o sacrilégio com tanta rapidez? - replicou ela. – O teu computador está a processar muito lentamente. Leio as histórias depois do almoço – disse Mauro a Carlos, levantando-se.
* – A tua cara de preocupação voltou a tomar o lugar da tua cara de felicidade. O que se passa? A receptora daquela pergunta coçou três vezes a sobrancelha antes de responder. – Estou preocupada com a minha mãe, até agora não voltou de sei lá onde para almoçar – respondeu Paula à pergunta de Susana. – Passei agora pelo quarto da tia Maria do Céu e nenhuma das roupas dela está, nem sequer as malas. – As roupas e as malas nunca estiveram no quarto dela desde que ela chegou, Janeth. Ela nunca nos disse onde elas estão e a razão de todas as manhãs sair para ir buscar só algumas peças. Achas que… – dizia-lhe Paula. – Uou! – Que é, Susana? – O meu telemóvel vibrou no bolso de trás das minhas calças. – E é preciso te assustares assim? O que é que a vibração do telemóvel te fez sentir, xê? – perguntou-lhe Marlene. – Dispenso os teus comentários malandros. ‘Cê é louca. Alô? – Boa tarde – cumprimentou-a a pessoa do outro lado da linha. – Boa tarde. – Falo com a assassina? – Sim. E em muito mais carne do que osso. – E depois eu é que sou louca – disse Marlene do fundo da sala. – Chiu! Estás a chatear a conversa – ordenou-lhe Susana. – Ainda nem começámos a conversa e já me mandas calar e me chamas de chato? – falou a pessoa do outro lado. – Não. Não é contigo, Carlos. É a senhora Marlene que está a… fala: ligaste porque… – Marlene? Estás na casa da Paula? – perguntou-lhe o namorado. – Sim. – Ainda bem. Porque daqui a pouco eu e o Mauro vamos passear aí para vos levar a passear. – É assim? Já nem somos consultadas com antecedência para saber se estamos de acordo? Aonde é que nos vão levar? – Surpresa. – 0K. Daqui a pouco, Carlos. – Quem é? – perguntou Paula, após ter ouvido batidas na porta. – Devem ser eles – conjecturou Susana. – Boa tarde, perdida juventude. A «perdida juventude» trocou sucintos olhares antes de uma de suas integrantes se pronunciar.
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– Já estávamos a ficar preocupadas, dona Maria do Céu. Vais ter de aquecer o teu almoço. – Já não se respeitam as mães como… nunca. Porquê, Paula? Vocês estão mais descansadas do que eu. O que eu fiz hoje! Vocês não podem … – Não, não, não, senhora – disse-lhe a filha. – É incrível, mas vou repetir-me, porquê? – perguntou novamente a mãe. – Boa tarde – cumprimentou Mauro. – Muito boa tarde – cumprimentou Carlos. – Por causa deles. Vamos… para onde mesmo, rapazes?
* – Quais são as frases mais parecidas entre o homem mais resmungão do planeta e um extraterrestre que come planetas? – perguntou Lino a Eduarda. – Não sei. Quais são? – Homem: «Há muitas coisas de que não gosto neste mundo». Extraterrestre: «Há muitos mundos de que não gosto nesta coisa». – Rio da tua piada depois. Ainda não entendi. Não! Não a expliques. Pedro, traz outra fralda. O Lino Júnior é chique, não consegue ficar com a mesma roupa por duas horas. – Porcalhão, isso sim. Tá aqui, mamã. – disse Pedro. – Derito! – Diz! – gritou-lhe o irmão do quarto. – Elas já saíram! – informou-lhe Pedro. – Pega as nossas toalhas no quarto. Estou a ver onde é que o tio Carlos escondeu o champô para homem. O olhar entendido trocado por Eduarda e Pedro fez Lino soltar uma leve gargalhada. – Dezassete e trinta e dois – constatou Eduarda ao olhar para o relógio da parede. – Vamos sair ou o programa será mesmo aqui? – Não pensei em nenhum lugar… – confessou-lhe o marido. – Ainda bem. Pedi ao Carlos para encher a geleira daquelas marmitas de gelado e alugar um filme divertido. – Vais ver boneco outra vez? – Querias! Ele alugou a comédia mais comentada no momento… – Não muda nada, Dudu. – Papá, podes fechar-me o botão das calças? – interrompeu-lhes uma das filhas. – Essa barriga não diminui, filha? Tens de correr mais vezes com o tio Carlos. Fica quieto, bebé. – Não te metas com a miúda, Eduarda. Diz-me, Carla, como é que estão a correr as aulas? – Não muito diferente das de onde estávamos antes de vir para aqui: os professores são chatos; a comida da cantina é estranha; os colegas são fixes e adoram levar falta vermelha como eu. – O quê?! Encolhe um bocadinho a barriga, filha. – Levar falta vermelha é o auge de qualquer aluno, mamã. O troféu. – Menina… – Es-ta-va a brin-car.
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– 0K. Está abotoado. Esse «estava a brincar» não me pareceu sincero. Tu continuas a… – Não, papá. A sério, estava a brincar. Já nem se pode dividir silabicamente duas palavras, que desconfiam de nós? – Muito sabida… mas eu e o papá vamos confiar em ti. Deita esta fralda, por favor. – Pai, podes amarrar-me esse lenço? – interrompeu-lhes a outra filha. – Claro, Liliana. Enquanto Lino atendia o pedido de sua filha primogénita, Carla apressou-se em vestir a blusa. Depois, puxou a pequena mesa para mais perto do cadeirão maior. Em seguida, pediu à sua irmã que a ajudasse a trazer as seis grandes marmitas de gelado. – Liliana, pega só o saco de fraldas e o carro do Lino Júnior e condu-los até aqui… por favor – pediu-lhe Eduarda. – «Condu-los», mamã? – Vem de «conduzir», filha. – Que conjugação mais estranha. Mas gostei. Estão aqui. Acho que o Lino Júnior voltou a… – dizia Liliana. O barulho feito por seus irmãos ao saírem do quarto de banho cortara-lhe a pronúncia da última palavra. – O tio Carlos já disse para vocês não correrem pela sala ao saírem do quarto de banho, não há dinheiro suficiente para pagar a consulta ao oftalmologista e comprar óculos especiais para todo o mundo se as vossas toalhas caírem – lembrou-lhes Liliana. – Ninguém te ouviu, maninha! – disse-lhe Derito. – Tenta falar mais alto! – acrescentou Pedro. – Esses miúdos não me respeitam, mamã. Tenho de lhes mostrar quem é que é a filha mais velha. Vou tomar, num cálice, medidas severas. Carla, traz o filme. Eu vou buscar as colheres descartáveis. – Traz-me também os chinelos da Dudu, filha. Estou farto de ter os meus pés fechados nestes sapatos. Deixa-me pegar o Lino Júnior. Continuo a achar o nome parvo. – Ainda há tempo para o trocares – disse-lhe a esposa. – Já o registámos, lembras-te? – Podemos deixar perder a cédula de propósito e… – Acho que eles já têm tudo registado lá. Iriam apenas basear-se nos dados que têm no livro para passarem outra. Calma aí! Estás a te meter na minha conversa porquê? – Não era para me meter? – Não. A conversa era entre Sénior, moi, e Júnior, il. As respostas balbuciantes dadas pelo último, ainda que pouco perceptíveis, são as únicas que devem ser ouvidas. – Não volte a dirigir a palavra para mim a partir deste momento. Isto vale para os dois. A mamã fez um voto de silêncio. – Para assistir a um filme barulhento… – Ganhei! – pavoneou-se Pedro, ao sair do quarto. – Podes ter ganhado ao vestir, mas a limpar o gelado, Derito, o Insaciável, baterá Pedro, o… Perdedor. Estás boa, Carla? – Mãe, o Derito está a pôr os pés molhados dele no meu colo. Posso pôr a minha mão na cara dele? – Liliana… – disse Pedro à irmã, com um olhar de traquinice. – Nem penses, Pedro. O meu colo já está ocupado pela minha marmita de gelado. – Falando nisso… porque é que vocês quatro têm tigelas de gelado e nós não? – O tio Carlos levou duas, Derito.
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– Mentira! Quando eu saí do quarto de banho vi seis, seis sobre a mesa. – Chiu! Pouco barulho. O filme vai começar.
* – Tentem decifrar esse: «Semeia-se s, colhe-se c» – desafiou-os Carlos. – Quer dizer que… tentem vocês. Comer me inibe o pensamento. – Estás a ficar preguiçosa, Susana. Mauro? Paula? – Não quero arriscar. – Eu até podia, mas o meu cérebro está ocupado a pensar no meu próximo pedido. – Ah! É assim? Vocês começam a conversa, eu participo naquilo que vocês dizem, mas quando é a minha vez, desistem? Estão a creditar o papel de chato a mim? – Não é isso, Carlinhos. Nós apenas… – Já não estou a te ouvir, Susana. Agora estou a comer. – Já não há nada no teu prato. Ficaste chateado? 0K. Eu vou explicar… «Semeia-se s, colhe-se c» … quer dizer que… aquilo que fazemos, ou fizemos, influencia, e de que forma, o resultado dessas acções, obviamente referindo-me àquilo que colhemos… mas tal resultado, tal produto, não é exactamente como o original, é apenas mais ou menos parecido. Dando exemplo… alguém quer terminar o meu raciocínio? Ninguém? 0K. Eu vou continuar… uma criança que diariamente ingere uma grande quantidade de açúcar (semeia s), corre o risco de ter cáries, dores de barriga, ficar obesa, sofrer de diabetes, e outras consequências (colhe c). Ela comeu muito açúcar, semeou muito açúcar em seu estômago, mas o resultado disso, a consequência não é o açúcar outra vez, mas algo derivado e/ou parecido ao mesmo. – Se não fosses tu a minha primeira namorada, obrigar-te-ia a sê-lo. Como é que conseguiste chegar a esta conclusão? – Elementar, meu caro Carlos. Bastou-me pensar nos usos fonéticos semelhantes que o s e o c têm.
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CAPÍTULO VIII – A sério, estou completamente a leste disso – confessou Gisela a Maria do Céu. – Como é que pode? Tu és prima dela – disse-lhe a última. – Sim. Mas isso não faz com que eu saiba tudo sobre a vida dela, tia Maria do Céu. – Ao menos sabes alguma coisa sobre o comportamento dele? – Como assim? – Se é uma cegonha ou um orangotango? – O quê? – Se é homem de uma só ou, como vocês dizem… player? – Essa palavra perde todo o charme saindo da sua boca. Pelo que tenho visto, é responsável. – Gisela… – Se não acredita no que digo, porque insiste em me fazer perguntas? Aliás, na verdade, qual é o seu interesse em saber disso? – Digamos que há um iminente consórcio no horizonte. E, dizendo aquilo, Maria do Céu virou-se e foi para o quarto, fechando a porta atrás de si. Gisela quase juraria que ouviu a tia chorar abafadamente em seguida, mas tinha um pequeno problema em seu sistema auditivo desde criança – não podia garantir que não fora uma trama de sua fraca audição. Que quereria aquela senhora dizer pondo «iminente» e «consórcio» na mesma frase quando a conversa girava em torno de Paula e Mauro? Gisela quis ocupar-se freneticamente na caça à resposta a tal pergunta, mas, como um gongo matreiro, Marlene e Janeth apareceram com mais algumas pessoas.
* Nada parecia terrestre naquele momento. As palavras saíam em tom angélico, os olhares brilhavam quais astros, a sensação na reciprocidade dos toques era divina, os corpos, embora de carne e osso, beiravam o espiritual – sim, Carlos e Susana conversavam apaixonadamente no terraço do prédio em que o primeiro vivia. Infelizmente, o tempo na Terra passa rápido demais quando os seus habitantes apreciam 91
um instante especial; Susana teve de voltar para a casa. Após a partida da namorada, Carlos, mitologicamente falando, decidiu não atrapalhar o trabalho de Hipnos. Dirigia-se ao seu lugar de descanso quando, a três degraus do quarto, ouviu uma estranha conversa de sua irmã com, provavelmente, seu cunhado. – É melhor aguardares mais um pouco. Como? Duas semanas?! Os miúdos…? Tu é que sabes. Boa viagem. Tudo pareceu terreno naquele momento. As palavras ouvidas sangravam sua felicidade, o olhar trepidava qual brasa violentamente revolvida, a sensação em sua boca era bruscamente cardíaca, o corpo, embora feito à imagem de Deus, beirava o tormento satânico; Carlos acabava de ser esfaqueado na profundidade de seu ser.
* A segunda-feira chegou mandriona. Contudo, avançou galopante. A seguinte conversa teve azo na rua, enquanto Paula, Gisela, Janeth e Marlene voltavam de um trabalho. – Ela usou exactamente essas palavras? – indagou Paula. – Dentre todas as palavras que ela podia criar com o abecedário, ela escolheu precisamente essas – respondeu-lhe Gisela. – Quando a Gisela me contou ontem, antes de dormirmos, eu nem liguei, mas agora… – proferiu Marlene. – Ah! Você contou a Marlene, mas a mim não?! – disse Janeth, espantada, dirigindo-se à irmã. – Eh! Eh! Não é hora para ciúmes, senhora Janeth – interrompeu Paula. – Isso não tem nada a ver com não teres explicado à «noiva» que o amaciador que lhe deste se transformaria numa espécie de manteiga misturada com cola se ela lavasse o cabelo com água – soltou uma risada em seguida, depois continuou – e a Gisela ter resolvido a tempo… – É, e ainda corríamos o risco de não sermos pagas… – Não agites, Marlene – avisou-a Janeth. – … suficiente de se dar o «casamento» – continuou Paula. – Mas fizeste um óptimo trabalho com as «anjinhas». A minha mãe voltou a preocupar-me como antes. Não gosto disso. – Paula! – gritou-lhe Marlene. – O que é? – Passaste a curva que dá para o nosso prédio. – Oh! Desculpem-me. Esqueci-me que ia ao volante. Vou entrar por aqui. – Não sei porquê, mas me deu vontade de cantar o «pi-pi casamento» com a buzina do carro, Paula. – Gisela…
* A criatura humana em pauta não estava bem. Havia um nível negativo de alegria em sua expressão facial. Perderia desde então, não dois, mas cinco sobrinhos seus. Que mania tinha ele de se ligar tão afectuosamente ao que não lhe pertencia! Porque o desejo de apossar-se dos filhos dos outros? Seria ele normal? Defrontando-se com algumas respostas de atracção e repulsa, Carlos estagnou-se em uma pergunta e suas subsequentes: Que ideia tinha Eduarda ao criar um género de 92
filial da empresa a que pertencia perto da morada de Carlos? Por que razão Pedro e Carla também haviam vindo? E, visto que não demorariam, porque haviam sido transferidos, relativamente à escola em que os dois últimos estudavam? Porque dar uma áurea de permanência a algo que seria temporário? Algo não estava bem. Mas o que seria? Carlos precisava desanuviar. A casa de Susana era o lugar ideal. Ela vestia uma blusa cor-de-rosa de alças verdes, um justo par de calções jeans escuros, calçava chinelas simples, as orelhas estavam adornadas por argolas douradas e tinha cabelo muito bem arranjado quando abriu a porta; ele tinha o tórax coberto por uma lacosta preta, calças jeans do mesmo tom dos calções dela tapavam-lhe os membros inferiores e calçava um par de sapatos pretos e castanhos quando tocou a campainha. – Ainda consegues andar depois do trabalho estafante que tivemos hoje? – perguntou ela. – Referes-te a cortarmos o cabelo de vinte e sete pessoas cada um e vocês terem decorado aquele enorme salão? Onde o Mauro nos meteu! – Bem, pelo menos ganhámos exorbitantemente ao ajudarmos o grupo dele de teatro com aquela cena do «casamento» … – «Ajudámos». Quando somos pagos por aquilo que fazemos, também se chama ajuda? – Consegues… conseguimos dizer muitas coisas inteligentes na língua dos outros, mas a frase mais intelectual que sabemos dizer na língua da nossa terra é «bom dia» ou contar até quatro… – Eh! Quando é que a conversa tomou este rumo sério? – Não ligues. É do cansaço. Ficamos a conversar no quintal ou entramos? – O Júlio e a Beth estão? – O Júlio está aí a ensinar à sua prole a arte de se pegar uma chave de fendas. – Ao Tinho? – Não, ao bebé na barriga da Beth. – Ah! Deixa-me cumprimentá-los. – 0K. Encontra-me sentada no banco branco. Carlos entrou e, antes de soltar o seu cortês «boa noite», observou, extasiado, uma cena que lhe marcou a alma: Júlio e Tinho estavam com as suas orelhas em contacto com o ventre de Beth, enquanto a mesma acariciava ternamente a cabeça de ambos. – Oh, Carlos! Consegues levantar as mãos e mover o pescoço? – gracejou Júlio, enquanto levantava e estendia a mão ao amigo. Carlos apertou-a, fingindo uma ligeira dor. – Oi, Carlos. – Oi, Beth. O que é que o Tinho faz com uma chave de fendas na mão? – Estou a passar-lhe o testemunho – respondeu o pai. – E ele parece ter jeito para a coisa. – É, tem tanto jeito que a semana passada tentou desparafusar a cabeça de um dos filhos do vizinho – disse Beth. – Pelo menos ele sabe que tem de pôr em prática o que aprende, querida – disse Júlio ao receber o objecto da mão de Tinho. – 0K. Gostaria de ficar aqui a ouvir a discussão sobre os feitos do pequeno prodígio por muito mais tempo, mas… – Mas no quintal está aquilo que te interessa. – Obrigado pela compreensão, Beth – sorriu. – Daqui a pouco estamos aqui. – Não inventes nada com a minha irmã.
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– Está descansado. Carlos saiu e, ao fazer a curva num dos cantos do quintal da casa voltou a extasiar-se com uma cena: um corpo feminino sentado com a perna esquerda sobre a direita, ostentando um rosto fatigado, não! melancólico, e as suas mãos ocupadas com pétalas de uma flor que acabara de cair; as cores das plantas e de seu aparato flóreo eram as mesmas que as de suas roupas, o desaguar da fraca luz que havia no local transmitia um tom de arte humana àquela imagem – parecia um quadro. – Se eu andasse sempre com uma máquina fotográfica, não pecaria tanto. Ela fitou-o, sem saber a razão de ele ter dito aquilo. Sentando, Carlos inclinou a cabeça e, vendo a lua em quarto minguante e um quase invisível círculo de nuvens a rodá-la, disse: – Assim não privaria ninguém de ver imagens perfeitas com a tua sentada aqui… – Carlos… O tom era sério e triste. Ele, apercebendo-se disso, endireitou-se. – Sim? – Que farias se eu te traísse? – Uou! Visto que o armamento no mercado negro… – sua consciência alertou-o. Não era altura para se fazer piada. Passou calmamente a língua por sobre a coroa dos últimos cinco dentes de seu maxilar inferior, depois recomeçou. – Das vezes que isso aconteceu comigo, não fiz nada. Limitei-me a perdoar… e a mostrar a mim mesmo que o perdão era verdadeiro. – Porquê? – Não gosto de fazer um mau juízo dos outros quando fazem coisas erradas, principalmente quando essas são contra mim. É contraproducente. – Explicação, por favor… – Eu também erro. Como posso esperar ser perdoado, se não perdoo? E não falo de erros pequenos. Penso sempre nos grandes, nos mais sérios. O desejo que tenho de ser desculpado quando faço coisas contra outros ensina-me a entender o que eles sentem quando fazem coisas contra mim. Se não perdoo o João por ter ofendido a minha mãe, como posso esperar que o Domingos me perdoe por eu ter beijado a namorada dele? Seria um sinal de hipocrisia, e eu não gosto de ser hipócrita, principalmente comigo mesmo. – Entendo… mas esse perdão não é… automático, pois não? Logo que ficas a saber da coisa que essa pessoa te fez, a perdoas? – Não. Claro que não. Passo por um período de tristeza e raiva, muita raiva. – Mesmo se soubesses que a pessoa precisou fazer isso para o bem dos dois? – Não entendo como. Mas sou humano, estou sujeito a sentir tristeza e raiva quando for maltratado. É natural. – 0K. Carlos ficou sem saber a razão daquela conversa. Seus olhos estavam postos em Susana, mas não a via – seu pensamento vagueava. Apercebeu-se disso, Susana colocou sua mão sobre o ombro dele e, sorrindo, pediu docilmente: – Posso pôr a minha cabeça no teu colo?
* – Alô? – perguntou Paula ao atender o telefone. – Mudaste de planeta? – inquiriu-lhe Mauro, do outro lado da linha. – Não. Porquê? Estás a procurar-me?
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– Cansei-me de bater à porta do teu apartamento… – Oh! Desculpa… Estou no da Janeth. Estamos todas. Ainda estás perto? Estás no prédio? – Sim. Se bem que eu quisesse dizer não, para te preocupar, mas… – Convencido! Espera um pouco. Vou te abrir a porta. Paula desceu descalça da cama onde as quatro se encontravam e, após algum tempo, alcançou o objectivo. – Meu Deus! Que penteado é este e… que roupas são essas? – perguntou Mauro ao vê-la. – Eh! Esqueci-me! E vocês não avisam? – gritou Paula para as primas, que continuavam no quarto. – E ainda se riem. Estávamos a ver umas fotos da nossa infância e… – E foste escolhida como cobaia, para as recordações serem mais vívidas. – Não. Estamos todas assim. Mauro afastou uma das tranças e aproximou o nariz ao pescoço de Paula. Até o cheiro a patricinha conseguiram reproduzir. – Entre. Vou me trocar. – Não! Pecarás ao fazeres isso. – O pecado que cometi em pensamento quando te encostaste a mim é mais reprimível. Depois de Mauro cumprimentar Janeth, Gisela e Marlene da sala, Paula dirigiu-se ao seu apartamento. Enquanto ela se trocava, Mauro ocupava seu campo de visão com as imagens urbanas na varanda. – Paula… – Mauro? – Ao acto de um adulto estuprar uma criança, dá-se o nome de pedofilia… –… – E se for a criança que estuprou o adulto, como se chama? – Pára de tentar adivinhar o que eu pensei quando te aproximaste do meu pescoço, miúdo. – É impossível. Seguiu-se um curto período de silêncio antes de Paula voltar a tornar-se audível. – A que se deve a visita? Passaste mil e um dias sem vir aqui… – Tu me fechavas sempre em minha casa com as tuas constantes visitas, miúda. – Usando palavras acusatórias! Que bonito… Mas ainda não me foi respondida a pergunta. – Se te não foi, é porque sabes a reposta. Paula pôs o rosto fora do quarto e franziu o sobrolho. Ele limitou-se a levantar os ombros, como consequência da acção dela. Silenciosos segundos foram precedidos pela saída de Paula do quarto. – Não era melhor irmos conversar mais perto das tuas primas? – Acredita: elas estão mais perto do que podes imaginar. Mas porquê? O assunto é colectivo? – perguntou ela ao sentar-se. – Não. Por nada. – 0K. Podes começar – disse isso ao abrir os olhos como uma criança curiosa. – Sabes que é importante que se dê nome às coisas, não? – Que introdução… Sim, sei. E… – Que nome dás ao que se passa entre nós? Ao nosso relacionamento…? – Amizade. Não, tem muita cor para o ser. Sabes que nunca pensei nisso? Eu dou atenção exclusiva a ti. Tu, até onde sei, também assim o fazes. Cada um demonstra
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interesse romântico no outro. Não nos beijamos, bem, este facto faz com que a palavra de três sílabas tenha sombras de dúvida, mas… a nossa relação não tem outro nome, a não ser que tenham mudado o significado de namoro no dicionário. A última vez que vi ainda era esse. Mudaram? – Eu não acho… – sorriu, mas logo retomou a seriedade. – Tu não achas perigoso estar comigo? – Sentes-te perigoso? – Não. Contudo… «a ocasião faz o ladrão» … – Aprende-se, religiosamente falando, que se não deve confiar em homem algum. Mas, não tenho outra palavra para usar com respeito ao que sinto por ti. Reconheço que tens falhas (e como!), mas também reconheço o quanto consegues acertar. – O problema não é bem teu. Eu é que me sinto mal ao estar contigo depois do que te fiz, ou tentei fazer. – Porque é que queres impor furos… problemas tão pouco importantes nesta relação? Pareces aquelas mulheres parvas que inventam desculpas vindas sei lá de onde para não estar com o homem que amam. Já pensaste nisso como egoísmo? – o seu tom beirou a exaltação. – Não estás a ser extremista? – perguntou ele, calmamente. – Sentes que o estou a ser? O peso de consciência, ou aquilo que sentes, por estar comigo deve-se principalmente a mim, não? Ele concordou com a cabeça. – Não tenho eu autoridade de to tirar? – Acalmou a voz, depois prosseguiu. – Eu quero estar contigo… preciso, necessito disso. Se a ocasião faz o ladrão, nesse caso a ocasião, eu e o meu apartamento, fomos coniventes… incentivamos-te. Se eu não tivesse permitido que ficássemos aqui dentro quando soube que as minhas primas não estavam, achas que aquilo teria acontecido? Eu também me culpo; sinto peso de consciência. Não és o único que fez a coisa errada nesta história. – Eu sei que… principalmente… só estás a dizer isso para que me sinta bem, ou melhor (sei lá qual é a palavra certa), mas… – suspirou, depois pegou as mãos dela – vim exactamente para ouvir isso… – havia um sorriso maroto no canto de seus lábios – obrigado por seres minha. Paula pensou que, depois de proferir aquelas palavras, Mauro a beijaria. Mas tal não se materializou. Não era bom estar a ser tão respeitada? Não era uma grande satisfação estar a ser tratada como um anjo? Não era bom. Não, não era.
* Os dias que precederam a sexta-feira foram de calmaria triste, não de pacificidade alegre, para alguns. Qual é a razão de haver tal diferença de fusos entre os humanos? Feitos da mesma massa, diferentes na reacção aos estímulos. Deus definitivamente não criou robôs. Dezanove e treze. – Oi, avó! Que surpresa! – disse a criança, saltando ao colo da receptora de tais palavras. – Entre. Entre. – Não precisas de me puxar, menina. Ainda consigo andar. Como é que estás? – perguntou a senhora, ao fechar a porta. – A avó sabe que essa pergunta é um pouco chata, não? Todo o mundo a faz, e nem sequer estão mesmo interessados em ouvir as nossas respostas…
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– O vosso tio vos dá muita liberdade de expressão. Posso sentar-me ou o sermão será curto? – Oh! Desculpe-me, avó! Sente-se, por favor. – Quem é, Carla? – perguntou Eduarda, do quarto. – Vem ver, mamã. Surpresa! – Sei que é o teu pai! Chegaste cedo, não, Lino? – Mamã, não é o papá. Eduarda pegou o bebé e dirigiu-se para a sala. Pronunciava palavras enquanto andava. – Se for alguém a dizer que é a tua verdadeira mãe – dizia ela –, prepara as seringas. Se o sangue dela não for azul como o teu, é prova mais do que suficiente para… Choque; contracção involuntária de muitos músculos; piscar duplo dos olhos incontrolado; vontade de fugir; controlo; pigarreio; simulação de alegria. – Boa noite, mãe – disse Eduarda à senhora. – Boa noite, filha – respondeu Maria Teresa. – A Carla estava agora a ensinar-me que perguntar «como estás?» é enfadonho, por isso… não sei o que dizer a seguir. – Eh! Essa daí tem a boca muito doce. Tudo o que lhe é possível argumentar contra, ela fá-lo, sem contemplações. – Puxou-te a ti. – A sério, avó? Então a mamã «Não Faça Isso, Carla» também… – tossiu fortemente antes que pudesse acabar a frase. – Você já tomou o xarope, Carla? – Faltam… cinco segundos para a hora prescrita, mamã. – Carla, vai tomar o xarope, 0K? – ordenou Eduarda. – Porque é que não me disseste que estavas doente, quando te perguntei sobre o teu estado, menina? – perguntou a avó. – Porque a avó iria encher-me de perguntas chatas como se a mãe já me levou ao médico, o que é que estou a tomar… todas as pessoas que vieram aqui antes da avó perguntaram o mesmo. – Talvez tenha razão; talvez eu perguntasse isso mesmo mas… vai tomar o remédio, depois falamos. – Está bem, avó – concordou Carla, pigarreando em seguida. Pronto. Estavam sozinhas. Afora as do bebé, que estavam ocupadas a brincar com o xale, os dois pares de mãos naquela sala estavam entrelaçados, um levemente suado. As duas pessoas sentadas aí não se viam há quase dez anos. Uma saíra do ventre da outra, mas parecia que nem o mais avançado teste de sangue provaria que elas eram mãe e filha em seu modo de agir – talvez fosse esse o caso que alarmaria a mente de James Watson. Desde que souberam que estavam no mesmo espaço geográfico, nenhuma se interessara e/ou dera sinal de anseio de voltar a ver a outra. Uma séria discussão havia esfriado a afeição entre elas, mas no momento estavam juntas. Por que razão? Com que desfecho? A sinfonia de Beethoven seria suficiente para expor o suspense contido entre aquelas paredes? Nenhuma narração substituiria a escrita, palavra por palavra, de tal conversa. – Tentei preparar bem as palavras, para que a conversa não acabe como a última que tivemos – começou Maria Teresa. – Não te preocupes. Este já está nos meus braços. É impossível eu dá-lo à luz na rua. – Conseguirás algum dia perdoar-me, já que me pões como única culpada deste triste acontecimento?
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– Ponho-te como única culpada?! Imputas-me culpa? – Filha, passou-se muito tempo. Acho que já estás suficientemente madura para atribuir a culpa às devidas pessoas por aquilo ter terminado como terminou. – Posso dizer se concordo ou não contigo mais tarde? Faz-me conhecer a causa da sua vinda, por favor. Veio ter com o Carlos? – Falo com a pessoa. – A cerca…? – Liliana e Derito. Carlos. – Pode usar verbos para eu perceber melhor? – Filha… estás realmente disposta a separar estas três pessoas? – Que razão a senhora tem para se preocupar com isso? Oh! espera! Porque o seu filho predilecto e mimado vai sofrer angústia por isso, não é? – Foram cinco os filhos que gerei. Meus, meus filhos. Como poderia preferir um ao outro? – A senhora acha que o Venâncio, o Raul e a Doroteia saíram de casa logo após terem feito dezoito anos porquê? Não aguentaram ouvi-la mais! Eram só críticas e mais críticas. «Você não sabe fazer nada», «Eu detesto pessoa que se comporta assim», «Se dormir fosse comida, não precisaríamos de mais nada, a não ser seguir o teu exemplo». Nenhum elogio, nenhum só. E quando o davas, era mecânico. Mas o Carlos, o Carlinhos engolia sempre essa tua falta de sadio comportamento materno, nunca te respondia à altura, então «Oh! Carlinhos, toma isso», «Muito bem, Carlos», «Precisas de mais alguma coisa, filho?» – Tu já és mãe… mas… não! Não vou por aí. Será como tentar justificar-me. Se fiz alguma coisa que vos mostrou que eu vos desprezava e preferia o Carlos, perdoa-me. Acho que o facto de não ter aprendido a ouvir elogios da parte da minha mãe, influenciou a minha forma de tratar os meus próprios filhos. Talvez ela me tivesse criado assim, também como consequência de não ter ouvido elogios da mãe dela. Acho que eu devia ter aproveitado o que me fazia sentir mal na juventude, vindo da parte de meus pais, como ajuda para não tratar da mesma forma os meus filhos. Desculpa-me se dizendo isso pareço justificar-me, mas lamento muito não ter percebido com muita antecedência que ser jovem, ou filho, significa coar as acções da sociedade para depois transmitir ao máximo possível uma educação saudável à nossa prole, ou tratar com empatia os que nos rodeiam. – Nunca tinha pensado nisso desse jeito… mas, estamos a fugir do assunto que aqui te trouxe. – Não, não te preocupes com isso. É crucial que exponhamos o que nos vai na alma com o intuito de esvaziá-la. Depois os assuntos têm uma certa conectividade… – Eu passeei anos me preparando para dizer poucas e boas à senhora quando nos encontrássemos… – Este «quando» chegou. Aproveita-o. – … mas acho que algo mais importante merece a nossa atenção, pelo menos por enquanto: A felicidade de alguém, ou de «alguéns», que ambas muito amamos – Desculpa-me por ser directa: Porque insistes em esconder a tua ânsia de liberdade matrimonial atrás do desespero do Carlos de querer continuar a criar os teus filhos? – O quê?! O que é que a senhora está a querer insinuar? – Filha, por favor… – Está bem, está bem. A senhora já se apercebeu disso. Também estou farta de guardar isso só para mim. Não que a senhora seja a pessoa ideal para eu fazer isso… Vou contar-lhe, desde que prometa não contar a ninguém, ainda.
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– Faz-me saber.
* Vinte e dezassete. – Oh! Dona Maria Teresa – exclamou Carlos ao entrar. – Avó! – bradaram Derito, Liliana e Pedro em seguida. – Filho! Netos! – cumprimentou-os Maria Teresa. – Eh! Eh! Eh! Não encostem na avó. Vocês estão muito suados, e a cheirar a coisas – reprimiu-os Eduarda. – Que ventos, quer dizer, que furacões te arrastaram até este apartamento, mãe? – perguntou-lhe Carlos. – Não posso visitar os meus filhos e os meus netos? – Resposta com ponto de interrogação: escondes alguma coisa. Vá lá, conta-nos o motivo. Não vou dizer a ninguém – garantiu-lhe Carlos. – Juras? Estou entediada. Ouvir o teu pai, fazer compras, fofocar com os inquilinos; decidi mudar a rotina. Vim passar a noite convosco. – Uou! Não sei qual é o nome do deus do tempo mas, podes recuar e repetir? – perguntou-lhe o filho. – Juras? Estou entediada. Ouvir o… – Não! Só a parte do «Vim passar…». É a sério? – voltou Carlos a perguntar-lhe. – Queres que eu recue ou responda à tua última pergunta? O meu cérebro está a ficar velho; só consegue fazer uma coisa de cada vez. – Estou espantado. Dona Maria Teresa aqui em minha casa, e para dormir! Sinto-me honrado. E colado; esta roupa está suada demais, quase que a pele não respira. Meninos, façam rápido aí! – Se nos emprestares o teu champô… – disseram Derito e Pedro do quarto de banho. – Fechado! Eh! Vocês é que me andam a sabotar o champô, não é? Uso uma vez, e no dia seguinte já está no meio – disse Carlos. – Não ouvimos o que disseste, tio Carlos! O barulho da água do chuveiro ensurdeceu-nos – disseram os miúdos. – Vamos ter uma longa conversa quando saírem do quarto de banho. Liliana, mostra aquelas vossas histórias à avó – pediu Carlos à sobrinha. – Que histórias, Liliana? – perguntou Eduarda. – Ainda não mostraram as histórias à vossa mãe? – perguntou Carlos a Liliana. – Vou já buscá-las. Mas as minhas mãos também estão suadas. Tio Carlos? – Diz. – Acabaste de perguntar o óbvio. – Vai só buscar o que te pedi, miúda. É o que dá ensinar às pessoas o que mais nos irrita. Ufa! A corrida cansou-me mesmo. Ainda há quissângua na arca, Eduarda? – A devoradora do líquido está com tosse, proibi-a de beber coisas geladas. – Licença, Dona Maria Teresa. Tenho um congelador para atacar – disse Carlos à mãe. – Traz um pouco para mim também, filho. Liliana apareceu com o computador. O resto aconteceu em silêncio, interrompido apenas pelo barulho quase inaudível das teclas e alguns sons saídos da máquina ao iniciar.
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– São essas aqui. Agora, se me dão licença, tenho de tirar estas roupas e pôr uma toalha – disse Liliana à mãe e à avó, pondo-se em direcção ao seu quarto. – Fala, miúdo – pediu Carlos, ao atender o telefone na cozinha. – Como é que está a tua preparação para a defesa? – perguntou-lhe Mauro do outro lado da linha. – Ainda bem que me lembras! Estou a adiar demais as minhas pesquisas. – Faltam poucos meses, pá. – Três, para ser mais preciso. E tu, como é que está a tua? – Estou a ir bem demais. O Freud e a Paula têm sido de grande ajuda. – Entendi a parte do Sigmund Freud, mas a Paula? – Estou a usar o comportamento dela como um género de cobaia. – É, já há alguns meses que o comportamento dela me surpreende. – Não me digas que tiveste a mesma ideia? – Não, não. Só estou a dizer que estou fascinado com a evolução dela. Tentei até falar com ela sobre aquele jeito esquisito dela de terminar uma conversa quando está zangada. – Meu Deus! Nem me lembres! «E não penses que eu quis dizer: morreu.» Onde é que ela vai buscar aquilo? – Posso gabar-me da minha boa influência? – Não. – Então, não sei. Talvez seja porque ela é menina, inteligente, e gosta de ler… São três atributos muito fortes para… – A aula de Psicologia podia ficar para depois? A Euríale, a Esteno e a Medusa estão a insistir para serem passeadas. Amanhã. – Tá fixe. Amanhã. Em seguida, Carlos obedeceu à ordem da garganta: presenteou-a com o gelado líquido. No mesmo instante, seus olhos identificaram uma torrencial chuva a ser formada no céu. – Carlinhos… – evocou Maria Teresa da sala, mostrando ao filho que ela já se impacientava. – Já vou, mãe – respondeu ele rapidamente. Andava a passos largos, antes e depois de se ter detido para pegar um copo na estante. – Maravilha… – disse Maria Teresa ao receber o copo. – Ainda não provaste, mãe – redarguiu Carlos. – Refiro-me às histórias. Tenho uma inquilina que trabalha numa editora. Ela podia pô-las num livro. Se bem que tivessem de escrever mais algumas para formar um. E tu… Carlos, tu podias ilustrá-las. Tu e os teus quatros sobrinhos podiam lucrar muito com isso. – Cinco… São cinco sobrinhos que ele tem, Dona Maria Teresa – corrigiu Eduarda. – O Lino Júnior ainda não sabe para que servem o lápis e a folha, Eduarda. Não te iludas – disse Carlos à irmã. – Ouves o que o teu tio está a dizer? Ele não sabe que és uma transbordante fonte de inspiração, pois não? – disse Eduarda ao bebé em seus braços. – É uma pena – apurou Carlos. – O nosso sexteto será separado daqui a algumas semanas… O Lino vem hoje, Eduarda? – Hoje é o teu dia de perguntar o óbvio. Claro que vem, mano. Porquê? – A chuva far-lhe-á companhia.
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* No apartamento de Paula, um ténue clima de ansiedade gravitava ao redor das quatro pessoas que nele se encontravam. – Eu não vou aguentar ficar aqui por mais tempo. Daqui a pouco a festa começa! – disse uma. – São vinte e uma e quinze, Janeth. Essas vossas festas só começam às vinte e três ou às zero – relembrou Paula à prima. – Não ligues ao que essa diz, Paula. Ela só está a arranjar desculpas para não continuar aqui – disse Marlene. – Olha quem fala. Quem é que está a ligar de cinco em cinco minutos ao Marcos para saber se ele já está com o carro aí em baixo? Marlene é o nome, não? – perguntou Janeth. – Mas nós temos mesmo de ficar aqui? Essa tia Maria do Céu também! É só uma visita. Amanhã nós a veremos – cortou Gisela. – Acho que ela quer dar a impressão à visita de que somos uma família unida. Não que não o sejamos – disse Paula ao levantar-se e pondo-se em direcção à janela. – Ela vai ter de nos desculpar mas, se o Marcos chegar, nós vamos com ele. – Não me parece, Marlene – contrariou-a Paula, depois de estar na janela. – Porquê, Paula? Ela fechou as portas dos quatro apartamentos e levou as chaves? – gracejou Marlene. – Não; pior, pediu às forças das trevas que fizessem chover – respondeu Paula, apontando para o céu. – O quê?! – perguntaram todas ao mesmo tempo, depois de terem ido à janela e visto aquelas nuvens escuras a cobrir o céu. – Vou dizer algo pra fingir que estou calma: O local onde se vai dar a festa é fechado, vamos num carro fechado… não temos nada com que nos preocupar – disse Gisela de si para si mesma. – E se o Marcos não vier? Ele pode ver essas nuvens desmancha-prazeres e decidir não vir buscar-nos, ou não ir à festa, o que dá no mesmo: ele não nos vem buscar! – Aquele! Estás louca, Janeth. Facto um: ele é viciado em festas. Facto dois: ele é panco da Marlene. Nada nesse mundo o impediria de vir aqui. – Espera! E se os aeroportos cancelaram os voos por causa da ameaça de chuva? Assim já não tínhamos de esperar pela tia e sua visita. – Muito bem pensado, Janeth. Diz isso à tia Maria do Céu quando ela chegar, Paula. Vamos embora. A nossa boleia chegou – disse Marlene, pegando rapidamente a mão das suas duas companheiras de festa. – Vocês estão todas loucas! Com essa chuva?! Festas? Há muitas. Vida? Só há uma – disse-lhes Paula. – Vai dizer isso às pessoas que condenam os que praticam «racha» mas que enviam os filhos à guerra – retrucou Gisela. – Pensamento inteligente; desculpa parva. Mas, ‘cês são adultas. Façam o que quiserem. – Não te preocupes connosco, primota. Não é a primeira vez que vamos a uma festa debaixo da chuva. Voltaremos bem – disse Gisela, antes de beijá-la e bater-lhe amigavelmente na cintura. Paula sentiu-se abandonada. As pessoas mais próximas dela deixaram-na sozinha para enfrentar algo desconhecido por causa de dança, bolos, churrasco, gasosas,
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e inúmeras bebidas alcoólicas. Extremamente só. À mercê do atacante psicológico mais perigoso dos humanos: o medo. Ignorou a sensação de ser uma presa; respirou fundo. Sentou-se. Segundos depois, a campainha tocou. Abriu a porta. – Mãe, tu tens as chaves. Porque não…? – Boa noite – cumprimentou a visita que viera com Maria do Céu, antes que a última pudesse tornar-se audível. – Boa noite… – respondeu Paula, com um certo tom de acanhamento em sua expressão facial. – Este é o Tácito – disse Maria do Céu à filha, fazendo com que Paula reparasse nele com olhar de perscrutação. Alto; tez castanha; usava óculos; a barba e o bigode – perfeitamente aparados; os grandes músculos moldavam as roupas em seu corpo; cheirava excitantemente bem; a idade oscilava entre os trinta e cinco e os quarenta anos. – Não trazem bagagem? – perguntou Paula, após terem entrado e sentado. – Ainda não te apresentaste, filha – disse-lhe Maria do Céu. – Não é preciso, Maria do Céu – cortou a visita. – O muito que me falaste dela, quando foste fazer a tua operação ao olho, é suficiente. – Conversem. Vou à cozinha preparar algo – disse a mãe de Paula. – A minha mãe falou-te de mim? – perguntou Paula à visita, após alguns instantes de silêncio. – Nunca tinha ouvido as palavras «Paula», «inteligente» e «caridosa» tantas vezes na minha vida. – O Tácito deve estar a inventar… – Não, é verdade. E… Paula, trata-me por «tu». – Então, trata-me por «lá». – Não percebi. – O teu nome termina com «to», e o meu com… Não é importante. É só uma piada parva. E as malas… onde estão? – Já estou aqui há dois dias. Não queres que ande sempre com elas, pois não? – A minha mãe tinha dito que chegarias hoje… ou a minha prima transmitiu mal a mensagem? Não interessa. E onde é que estás hospedado? – Num hotel perto daqui. – O Alvalade ou o Fórum? – Não me lembro do nome. A Maria do Céu é que sabe. – Se eu perguntasse a ela… Bem, e que motivos o trazem aqui? – Um casamento. Seria verdade? O que Paula pensara sobre sua mãe ter preparado o seu casamento, o de Paula, não era pura dedução desprovida de sabedoria? Estaria Paula olhando para seu futuro marido? E se ela perguntasse a ele sobre quem se casaria? Um familiar dele? Um da mãe dela? Eles – Paula e Tácito? Não. Ela acabara de conhecer o homem. Que intimidade seria aquela? Seria intimidade perguntar a um estranho a que casamento vai? As orelhas dela aqueciam. A boca, quase trémula, preparava-se para soltar uma pergunta. – Paula, podes vir ajudar-me? – Já vou, mãe.
*
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– Não sabia que a Liliana cozinhava tão bem – disse Maria Teresa aos com ela à mesa. – Quando eu vou lá, a vovó não me deixa tocar nas panelas… – pronunciou-se a elogiada. – Lembra-me disso quando voltarem a ir para lá. Acho que ainda temos aquelas panelas grandes – disse Maria Teresa à neta. – «A panela de óbito» ainda existe? – perguntou Carlos à mãe. – Que nome mais bizarro para se dar a um utensílio, filho. Sim, ainda existe. – Já é tão antiga! Lembro-me que fez as mãos da Doroteia e as da Eduarda terem calos – disse Carlos, tocando nas mãos da irmã. – Nem me lembres, mano. Não sei de onde é que vinham aquelas visitas todos os domingos… – acompanhou Eduarda. – Eram os familiares do teu pai… 0K, os meus também iam. Bons tempos aqueles. Agora pouco somos visitados, a não ser no fim do mês, quando eles arranjam problemas financeiros e acham que eu e o vosso pai é que somos os familiares deles mais ricos – declarou Maria Teresa. – Essa gente! – exclamou Carlos. – Sabias que o Bartolomeu já se casou, Eduarda? – Entrámos na secção das fofocas. Fixe! Não, não sabia, querido irmão. – «Querido irmão». Há mil anos que não oiço isso. Yá, casou-se no ano passado. A festa quase foi estragada por um enxame de rivais da noiva. – Aquele sempre foi dedicado aos seios e às coxas – depreciou Eduarda. – Há crianças na sala, irmãzinha… – Aquele sempre foi muito malandro – corrigiu ela. – Mulheromaníaco é o termo – aclarou Carlos. – Sempre a inventar adjectivos – disse-lhe a irmã. – É assim que as línguas evoluem. Bem, não é bem assim, mas agrada-me pensar deste jeito – expôs Carlos. – O papá ainda não chegou – interrompeu Carla. – Estou preocupada, mamã.
* – Comé, puto? Sabes onde é que fica este salão? – perguntou Júlio, mostrando ao rapaz o nome do local que estava no convite de casamento. – Vai ter de curvar por aqui, passar… duas entradas e curvar à direita – explicou ele. – Fixe, puto – agradeceu Júlio, fazendo subir o vidro da porta do carro em seguida. – Esperemos que este nos tenha dado a direcção certa. Estou farta de girar a Vila Alice desde aquela hora – comentou Beth. – E ainda há o risco de essa chuva cair, para piorar. Minha boca! Começou a chover – reparou Susana. – Não te preocupes, miúda. Trouxe um guarda-chuva – falou uma quarta pessoa. – Serve para os cinco? – perguntou ela. – Não. Só para nós os dois. Susana e Beth trocaram olhares. – São quase vinte e duas horas. Será que os noivos já chegaram, Augusto? – perguntou Júlio, enquanto contava as entradas com os olhos.
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– Como é que eu vou saber? Não estou no carro com eles – respondeu ele. – Porque é que a minha irmã não nos apresentou mais cedo, Susana? – Acho que tens de perguntar isso a ela – disse-lhe Susana. – O casamento dela é hoje. Contando com a lua-de-mel, teria de esperar muito pela resposta… – asseverava ele, encostando-se mais a Susana – não achas? Tu estás mais próxima. Podes falar, não? Sem dizer nada, Susana tirou Tinho de seu colo e pô-lo sentado entre ela e Augusto. – Beth, ainda tens pastilhas aí? – perguntou Susana à cunhada. Beth estava sentada no banco da frente, por isso, teve de voltar-se para pegar o que Susana lhe pedira. – Chegámos – disse Júlio ao desligar o carro. – Passa aí o guarda-chuva, Augusto. Beth, pega o miúdo. – E como é que nós saímos? – inquiriu Susana. – Ficas com o Augusto – respondeu-lhe o irmão. – Depois eu trago o guarda-chuva. Susana abriu imediatamente a porta do carro e pôs-se a andar em direcção à porta do salão de casamento, ignorando as gotas de água que lhe molhavam o lindo vestido vermelho e o cabelo arranjado. Ficou irritada com o noivo por ele não ter convidado Carlos para o casamento. Mas que culpa tinha o noivo? Até onde sabia, Susana não tinha namorado, e Augusto, amigo da noiva, que esta última considerava como irmão, recentemente havia terminado um relacionamento – porque não juntar os dois no mesmo convite e talvez gerar com isso um romance? O salão estava com poucas pessoas quando os cinco entraram. As mesas estavam bem adornadas tanto por tecidos como por aquilo com que as pessoas se deleitariam. O recinto era fechado. Num dos cantos, o homem que cuidaria do ambiente sonoro arrumava os seus pertences com alguns amigos. A maioria dos presentes eram mulheres de meia-idade e algumas idosas trajadas de panos coloridos. Entre elas, encontravam-se familiares dos consorciados; sua função seria servir os convidados. – Saíste tão depressa do carro – dizia Augusto a Susana, depois de a ter alcançado – porque estás a detestar a minha companhia ou porque gostas que te caiam gotas de água quando estás com este vestido de gala? – Não posso falar. Estou com a boca cheia – respondeu ela. – Com essa pastilha? Ah! percebi! Queres ficar sozinha – disse ele, retirando-se. – Não. Espera, Augusto. É só que… eu queria muito vir com uma pessoa… – E eu ocupei o lugar dela no carro? Não te preocupes, vai aparecer boleia para ela. – Não é isso. Eu queria que a Noémia convidasse a mim e a outra pessoa. Tivesse escrito no convite: «Susana e… outra pessoa». – «Outra pessoa» não se escreve nos convites. – Eu sei. Mas seria bom, e teria muito mais graça, se essa pessoa tivesse vindo comigo. Desculpa… a culpa não é tua. Eu é que devia ter falado a ela sobre o Carlos antes. Acho que ela continua a pensar que ainda… – A «outra pessoa» é esse tal Carlos? Ele é teu…? – Sim. – Fogo! A Noémia disse-me que estavas sem ninguém e que seria bom eu voltar a ter… alguém. Desculpa lá eu ter-me atirado a ti sem me preocupar em saber se já tinhas a algema… – Ei! Eu não disse que era casada. – Mas a que eu tinha era… é.
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– E tentaste ficar com ela na mesma? – Não. Ela é que soube camuflar bem. Atirou-se a mim como se ainda fosse uma menina de quinze anos. Depois de estarmos tão envolvidos, ela decidiu viajar sei lá para onde. – Chegou a despedir-se? – Só das minhas coisas que não pôde levar. Era uma materialista e tanto! E ficou grávida. Não me pergunte se o filho era meu, porque não sei. – Passaste por um mau bocado. – O pior foi quando tentei suicidar-me: percebi que até a minha coragem para isso aquela parva levou! – É bom ver que ela não te abateu de todo – comentou Susana, por ter sentido humor em seu comentário. Enquanto os dois conversavam, mais convidados se faziam presentes. – É melhor nos sentarmos, antes que ocupem os lugares todos. – Pode ser aqui mesmo. – Conta-me, Susana. Como é que é o Carlos «outra pessoa»? – Resumidamente falando, aquilo que sempre quis. Possui a maioria dos adjectivos de um homem de verdade. – Até fico com inveja. Vocês os dois já fizeram uma viagem juntos? – Não. Ele não é um grande fã de mudanças de ares. – Deviam fazer isso. Eu podia pagar-vos. – A sério?! – Quando é que vocês ficam de férias? A Noémia contou-me que és uma excelente estudante… – Não te justifiques. Daqui a três meses. – Maravilha! Vou viajar precisamente depois deste período. Se vocês quiserem… – Não sei se ele vai aceitar. Mas se não… eu aceito que me pagues a viagem. – 0K. Não sei é se ele vai gostar muito disso. – Não te preocupes. Eu trato disso. – Para onde vamos, só terei dinheiro para alugar um quarto, por isso, teremos de dormir no mesmo… – Olha, os noivos chegaram.
* Sábado. Quatro horas e sete. O telefone de Paula começara a tocar. – Alô? – É a Paula? – Sim. Pode falar mais alto? Há muito barulho aí. – É sobre isso que lhe quero falar. Estou num sítio onde acaba de acontecer um acidente. O motorista do carro que capotou é que me deu o seu número. As suas primas… elas… elas estão mal. Aponte o nome do hospital para onde vamos.
* – «O cemitério estava morto, triste. O coro descompassado de lamentações era meio imperceptível, até mesmo para os que o entoavam. A dor era tanta, que nem forças 105
para chorar alto existiam. Não queriam acreditar – os aí presentes achavam impossível crer que tais pessoas estivessem mortas. Não, não elas. Elas não. Eram jovens demais para serem postas numa abertura rectangular feita no solo, enclausuradas em uma inexpressiva caixa de madeira. Que desgraça!» – Muito obrigado pela leitura cheia de sentimento, Edna – comentou o professor. – Pois bem, este será o texto que estudaremos na próxima aula. Estão dispensados. – Carlos… Carlos! – chamou Edna, logo após a saída do professor. – Diz. – Viste a Paula? – Não. Parece que ela decidiu finalmente fugar. É a primeira vez. – E a Susana? – Foi à festa de casamento de um primo ontem. O efeito cansativo da farra impediu-a de vir hoje. Mas acho que ela falou antes com os professores que vão dar aulas hoje… O teu telemóvel está a vibrar. – Oh! Passa-me só a pasta, Amélia… É a Paula – disse Edna, após ter recebido o aparelho das mãos da amiga e reparado no nome que aparecia no visor do mesmo. – Edna, tudo fixe? – cumprimentou Paula, do outro lado da linha. – Avisa os professores que não vou poder aparecer hoje, yá? A Janeth… as minhas primas tiveram um acidente. Estou no hospital com elas. – Meu Deus! É grave? – Muito – disse Paula, chorando. – Diz-me em que hospital estão. Daqui a pouco estaremos aí.
* – Acha que não sou um bom pai?! – perguntou exasperadamente Lino a Maria Teresa. – Como se a senhora tivesse sido a supermãe para os seus filhos! – Bem, pelo menos o meu marido não me deixava beber enquanto grávida – ripostou ela. – Vocês não pensaram nas consequências? – Ah! o mesmo discurso de sempre! Olhe para os nossos filhos, senhora: inteligentes e saudáveis! Devia é dar graças ao álcool em vez de censurá-lo. – Que pensamento! Nunca ouviu falar do síndroma de alcoolismo fetal, pois não? Claro que não! Ser irresponsável é muito melhor. – Meus senhores, meus senhores! Que discussão é essa a essa hora? – interrompeu Eduarda. – Que é que os teus filhos vão pensar, Lino? E os seus netos, Maria Teresa? Quer transmitir-lhes alguma lição com isso? – Que a vida é injusta por não nos deixar escolher que tipo de pai queremos ter – respondeu ela. – E uma mãe que… – Não responda, Lino – cortou Eduarda. – Vocês parecem duas crianças. Não podem conviver sem discutir? Voltaram a se ver depois de muito tempo. Que tal trocarem impressões sobre o que aprenderam estando distante um do outro? – Filha, não sou eu que casei com ele… – disse Maria Teresa. – Não deturpes as minhas palavras. Os miúdos estão no apartamento da vizinha aqui do lado. Podem estar a ouvir-vos. Finjam pelo menos que se suportam. – Prefiro arrumar as minhas coisas. Já estou no apartamento do meu filho há tempo suficiente. Vou voltar para a minha casa. – E o almoço que disseste que prepararias para os seus netos hoje? – perguntou Eduarda.
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– Fica para a próxima. O teu marido incomoda-me. Melhor é estarmos longe um do outro. – Vai, vai – disse Lino agitando as mãos como se estivesse a enxotá-la. Quando Maria Teresa entrou para o quarto em que passara a noite, Eduarda ficou parada com as mãos na cintura, olhando seriamente para o marido. – O que foi? – perguntou ele. – Estamos quase a levar os miúdos da maneira menos barulhenta possível, e você quer simplesmente estragar os meus planos? – É impossível eu não discutir com a tua mãe. – Eu sei. Mas controla-te. Não arranjes problemas desnecessários.
* Treze e quarenta e sete. – Olha, ela está aí – disse Susana aos amigos, assim que entrevira Paula no hospital. Andaram apressadamente até alcançá-la. Susana abraçou-a antes de qualquer uma dizer alguma coisa. Paula chorava. As raparigas que vieram com a finalidade de a consolar e saber sobre o estado de suas primas não contiveram as lágrimas, acompanharam-na em seu lamento. – Como é que elas estão? – conseguiu perguntar Susana depois de algum tempo. – A Gisela já perdeu e recuperou os sentidos por três vezes. A cabeça dela e a cintura pélvica… não se sabe se ela conseguirá andar outra vez. A Marlene e a Janeth fracturaram algumas costelas e mais alguns ossos dos membros superiores… perderam muito sangue… uma… – Senta-te aqui, Paula – aconselhou Mauro, pegando-lhe o braço. – Quem era o condutor? – O Marcos – respondeu ela. – E como é que ele está? – Tem um simples arranhão na cara e nos braços. – É quase sempre assim: o condutor sofre menos. Ele estava bêbado? – perguntou Edna. – É impossível as pessoas não beberem quando vão a essas festas. Mas parece que ele havia bebido pouco – respondeu Paula. – Escassas gotas de álcool no sangue de alguém podem fazer a diferença. Como é que se deu o acidente? – inquiriu Susana. – Nem sei ainda bem. Parece que o Marcos tentou fazer uma curva em alta velocidade. As estradas estavam molhadas com o chuvisco de ontem e, no momento em que ele se aproximava da curva, apareceu um carro à frente deles, vindo no sentido contrário… Ele tentou esquivar-se… capotaram. Acho que a Gisela foi cuspida do carro… Elas estavam tão bem ontem. «Voltaremos bem.» – O Marcos já foi? – perguntou Amélia. – Não, foi ao quarto de banho. – E a tua mãe? – Saiu daqui há pouco tempo com o Tácito. Mas volta. – Quem o Tácito? – inquiriu Susana. – Depois te conto. Depois. Olha, o Marcos vem aí. Como é que foram as aulas hoje? – perguntou Paula.
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– Também não fui – respondeu Susana. – Fui àquela festa de casamento do meu primo. Estávamos cansados demais. O Carlos é que me ligou e me contou sobre o acidente. – Eu assisti a todas as aulas. Depois vos passo a matéria – pronunciou-se Edna. – Boa tarde – cumprimentou Marcos. – Boa tarde – responderam friamente os cumprimentados. Todos ficaram calados durante algum tempo. A atmosfera começara a ficar pesada para Marcos. Aquela ausência de som julgava-o, condenava-o de forma veemente. Carlos apercebeu-se; tomou a iniciativa de descarregar o clima. – Como é que estás? – Mal por não ter sido eu a sofrer essas coisas todas que elas… – respondeu Marcos ao que Carlos lhe perguntara. – Às vezes, é preferível sofrer no físico a sofrer na consciência. Se eu pudesse… Se eu não tivesse… Raios! Estúpida adrenalina! – O acidente… como é que…? – Estava a tentar impressionar a Marlene. Ela disse que gostava de ver racing e que o sonho dela era sentir o mesmo que aqueles pilotos, quando eles fazem aquelas curvas em alta velocidade… Fui parvo. Apareceu à nossa frente um carro, tentei esquivá-lo. Só me lembro de um polícia a tirar-me do carro, alguns a tentarem tirar a Janeth e a Marlene, outros a procurarem a Gisela… – Tu não podias saber que aquele carro iria aparecer, ainda mais naquela hora. Eram quatro e tal, não? – Mesmo que não tivesse sido aquele carro; a estrada estava molhada… com licença, Carlos; com licença, todos. Acho que aqueles policiais vieram ter comigo.
* Passaram-se algumas horas desde que Maria Teresa havia abandonado o local em que pernoitara. Eduarda, seus filhos e seu marido haviam almoçado sem a companhia do dono do apartamento. Visto que, minutos depois, as crianças haviam saído, Lino teve a oportunidade de conversar com sua esposa sem muitas interrupções. – Já disseste ao teu irmão e aos miúdos que vamos embora na sexta-feira? – A cerca disso, o ano lectivo está quase a acabar; podíamos esperar até eles fazerem as provas. É já daqui a um mês e duas semanas. Podíamos até passar as festas aqui. – Estás outra vez a adiar. Sabes muito bem que o Carlos não celebra essas festas. – Mas os teus pais celebram. Podíamos ficar lá. – Eles não festejam aquilo aqui. – Então vamos à casa de um teu primo, de um teu amigo, sei lá… – Sabes muito bem que as únicas pessoas com as quais me dou bem na minha família são os meus pais. Amigos? Não conheço ninguém a que possa chamar isso, poucos gostam da minha maneira de ser. Eu não sei, Eduarda, mas parece-me que estás a gostar de estar aqui. – Eu? – Claro! Ficas aí a adiar, a adiar cada vez mais a nossa volta com os miúdos. Estou farto de ficar naquele casarão sozinho. Preciso da minha família a encher aquela casa de alegria. Preciso saber que, quando eu voltar do trabalho, te encontrarei a aquecer a nossa cama… Eduarda murmurou algo entre os dentes que ele não percebeu. Lino aproximou-se dela. Sua intenção libidinosa era clara. No mesmo instante, o bebé chorou.
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– Vou buscar o Lino Júnior. – Vou contigo – disse ele, pousando sobre Eduarda uma mão em cada lado da cintura dela. Após alguns segundos, Lino voltou a pronunciar-se. – Tu não estás a pensar em ficar, pois não? – Para continuar a encontrar-me com a minha mãe? Nem penses! – Essa é a primeira vez em nove anos que te oiço chamar-lhe mãe. Era só «aquela senhora», «a Maria Teresa»… – Que queres insinuar com isso? – Nada. Realmente nada. – Ó bebezinho. Já acodó inda agora? Num tá a dar descanso pra mamã, num tá não. Vem pró colo da mamã. Iba! Tá cada vez mais pesado. Lino reparava em Eduarda com um sorriso nos lábios, como se estivesse achando piada à forma dela de conversar com o seu filho, mas, na verdade, era um olhar que anunciava o princípio de uma séria desconfiança. – Eu não quero discutir contigo, mas sinto-me ameaçado – disse ele. – Porquê? – Parece que desististe do nosso plano. – O que é que te leva a pensar isso? – Estás diferente… comigo. – Não inventes coisas… – Porquê? Estou próximo da realidade? – Estás é parvo! Um asno, um autêntico asno ao agires dessa forma. – Não me chames isso outra vez, senão… – Senão o quê? Vais bater-me como da outra vez? – Vês porque é que eu digo que estás diferente? Isso era um assunto enterrado. Tínhamos prometido nunca mais falar sobre isso. Eu estava estressado e cansado naquele dia, e, mesmo assim, querias discutir sobre uma gravata minha que faltava! – E a solução foi bateres-me? Eu? A tua esposa? Lindo comportamento! Custava-te gritares comigo; bateres na mesa, partires um copo e ir acalmar os ânimos no bar depois de teres batido a porta com força? – Eu sabia! Tramas alguma! – O quê?! – Nem penses que vamos viver aqui, para te sentires mais segura, perto da tua família. – Tu estás louco! Que ideia…! – Chega! Eu vou te dar até os miúdos acabarem as provas, depois vamos todos embora. A não ser que queiras ficar aqui, sem os teus filhos. – Serias capaz de me deixar aqui? – Se não quisesses voltar… – Os teus filhos são mais importantes, não são? Quem me dera que os tivesse feito com outro! Assim só terias um par de cornos para voltar àquele país. – Aceita as minhas palavras como verdadeiras: Se o tivesses feito, estarias morta. – Acho melhor saíres daqui, ou farei algo do qual não sei se me arrependerei. E o Lino Júnior já está a chorar desde que começaste a gritar. – 0K. 0K. Vou ver se acalmo os ânimos num bar, já que não posso bicar a mesa e partir um copo, depois de gritar contigo. Lino saiu dando firmes passos de fúria. Eduarda ficou a chorar com o bebé no quarto.
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* O sol já havia desaparecido. As estrelas tentavam incidir em vão a sua luz sobre as partes mais escuras da cidade – as lâmpadas eléctricas nas casas, os holofotes dos prédios e os grandes candeeiros à beira das estradas pareciam pedir que os corpos celestes se aposentassem. Num dos prédios, Paula contemplava uma das facetas da noite. Não era a faceta que transmitia alegria, romance ou nostalgia, era a faceta que mostrava a vida como sendo capaz de oferecer dor e sofrimento sem um prévio aviso. Quase que não comera nada, apenas com a insistência de Maria do Céu e de suas amigas se predispôs a merendar alguma coisa. Que aconteceria agora com suas primas? Recuperar-se-iam ou definhariam ao cabo de alguns dias ou horas? Gisela já nem falava coisas com coerência; Marlene e Janeth nem abriam a boca. Se melhorassem, conseguiriam voltar a andar e correr como antes? Até os médicos tinha sérias dúvidas sobre a resposta a esta última pergunta. A chuva que parecia ser mais perigosa do que qualquer outra coisa, na noite passada, nem sequer caíra copiosamente. Mas, se ao menos ela tivesse servido de aviso para que as primas de Paula não fossem àquela festa… Se Paula soubesse que tudo acabaria daquela maneira, não as teria dado de bandeja às mãos do cruel destino, quando permitiu que elas saíssem de seu apartamento. Ela, Paula, culpava-se de segundo a segundo. Sentia-se conivente. Eram primas dela, adultas – tinham o direito de fazer o que quisessem. Mas também estavam sob a responsabilidade dela; apercebendo-se ou não, Paula possuía uma certa autoridade maternal sobre elas. E que espécie de mãe deixa suas filhas saírem sob ameaça de chuva? Talvez se tivesse sido mais rígida com elas, mais austera… Por causa de uma simples – de uma néscia – festa, estavam naquele estado. Mas, que tinha a festa que ver com aquilo? Não foram o ignaro pedido de Marlene, a inconsequente aceitação do mesmo de Marcos, a estrada molhada e o aparecimento repentino de um carro que pressagiaram o acidente? Contudo, era mais fácil culpar a festa; condenar a própria prima era de uma tal dificuldade! E os pais delas? Que diriam quando chegassem? As dores de cabeça aumentavam-lhe a raiva por se sentir tão impotente. Maria do Céu, Carlos, Susana e o resto dos colegas já haviam voltado para as suas casas. Somente Mauro ficara com ela. Poucas palavras eram emitidas por eles; falar muito não parecia fácil nem propício àquela situação. O silêncio exterior permitia que Mauro achasse, às vezes, palavras de descanso e conforto – afinal, a esperança era a última coisa a esvair-se.
* Revolvidos dois dias, Paula defrontava-se com um de seus medos. Os pais de suas primas haviam chegado, e, na companhia de mais alguns familiares, enchiam de choro o apartamento dela. Gisela, Marlene e Janeth haviam morrido – fora essa a notícia que havia chegado aos seus ouvidos. Nem sequer tentaram confirmar a veracidade da mensagem. Assim que Maria do Céu abriu a porta, eles entraram aos gritos. Algum tempo depois, ainda meio desconcertada, a mãe de Paula conseguiu acalmá-los e explicar-lhes que suas filhas estavam vivas, recuperando-se numa das clínicas da cidade. 110
* Passou-se um mês. Janeth, Gisela e Marlene estavam fora de perigo. Haviam voltado para seus apartamentos há três dias. A primeira e a última conseguiam já movimentar-se com escassas dificuldades, mas Gisela – Gisela não podia ainda pôr-se em pé, não conseguia ficar sentada por muito tempo e não se lhe podia falar do acidente que a deixara naquele estado, pois não se lembrava que o mesmo havia acontecido. Treze e vinte e dois. Almoçavam. – Oh! Nós nos apanhámos mesmo lá no mato! – respondeu o pai de Marlene e Janeth à pergunta que Maria do Céu lhe havia feito. – Deve ser por isso que estão juntos até agora – concluiu Maria do Céu. – Só depois é que passaram aquela temporada em Luanda? – Foi – respondeu ele. – Tivemos de estudar aqui. Em 1973, fiz a sexta classe. Acho que foi no período em que os gajos trouxeram os movimentos. Missão Adventista… saudades. – Bem – interrompeu Paula –, a conversa está boa, mas agora tenho de ir trabalhar. – Oh! – exclamou Marlene. – Agora que vamos começar a falar a língua da minha terra é que foges? – Deixa-me ir trabalhar em paz. Ouve, mãe, não te esqueças de ir à clínica buscar aquilo que o Doutor Miguel disse. Até logo, família. Paula desceu rapidamente as escadas. Entrou no carro. A chave de ignição realizou perfeitamente a sua tarefa. O veículo andou sobre terra molhada antes de tocar o asfalto, e pôs-se em direcção a Samba. Passados extensos minutos, Paula voltava ao Mártires com mais duas raparigas. – 0K – disse ela ao entrar com as raparigas no salão. – É este o nosso, e agora também o vosso, local de trabalho. Esta é a Amélia, nossa secretária. – Boa tarde – cumprimentaram elas. – Boa tarde – respondeu Amélia. – Aqui é a barbearia. Esse é o Júlio. Este é o Tiago. Aquele é o Carlos. Os outros são nossos estimados clientes. – Boa tarde. – Boa tarde. – E aqui é onde vamos trabalhar as cinco. Essa é a Edna, e aquela é a Susana. Troquem-se no quarto de banho atrás de vocês, depois, mãos à obra! As novatas cumprimentaram as pessoas no salão e dirigiram-se ao local recomendado pela chefe. – Paula? – perguntou alguém da barbearia, após alguns segundos. – Diz, Tiago. – Você disse -lhes os nossos nomes, até aí me sinto famoso, mas e o delas? – A minha cabeça não anda muito bem. Mas, espere até o fim do expediente… – É, vai lá cortar o cabelo dos clientes, tarado – disse Edna. – Vais pagar por isso – disse ele à última, antes de se retirar. – Como é que estão as nossas colegas, Paula? – perguntou Edna. – Já conseguem falar à toa e irritar-me… Estão boas. A Gisela é a que me preocupa mais. A locomoção normal dela está comprometida. Não se sabe quando é que voltará a andar, Edna. É chato. – E o caso Tácito? Algum movimento?
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– Tu queres saber demais, Edna – cortou Susana. – Porque é que não nos falas sobre o teu trabalho de fim de curso? À medida que a conversa evoluía, a tarde puxava a noite. A freguesia entrava ansiosa e saía satisfeita. Afora alguns erros cometidos pelas novatas, por causa da falta de familiaridade com o local e do leve nervosismo que as invadia, o dia laboral correra produtivamente bem. Dezoito e quarenta e três. – Chegou finalmente o melhor momento deste dia cabeludo. Para as queridas moças que chegaram hoje, eu disse «dia cabeludo» porque trabalhamos com cabelo… todo o dia. Apresentem-se, por favor. – Chamo-me Neusa – disse uma. – Eu sou a Vitória – disse a outra. – E…? – «E» o quê, senhor Tiago? – perguntou Edna em tom ciumento. – Idade… namorado… O pai é zangado… o cão morde à toa… Podem dizer, nós somos pessoas abertas. – Eh! ‘Cê é mesmo atirado. Sem vergonha – cortou Edna. – Tiago e Edna, eu posso deixar-vos as chaves se quiserem resolver os vossos problemas em particular. Mas não me traumatizem as miúdas com esse vosso assunto não resolvido. É o primeiro dia delas… – interrompeu Paula. – Ainda ficas, Susana? – perguntou Carlos. – Yá, vou… Tenho algo a resolver com a Paula. – Então vou. Fiquem bem. – Não havias dito que o Mauro viria buscar-te de carro? – perguntou Susana. – Ele até agora não chega… – respondeu Carlos. – Até amanhã. – Até amanhã – respondeu ela. – Qual será a rota, Paula? – Vamos deixar a Neusa e a Vitória na Samba, depois subimos. Miúdos e miúda que ficam, tchau! – Eh! Não vamos ficar mais aqui. Liga então o carro, Júlio – disse Edna, preparando-se para entrar no veículo. Segundos depois, os dois automóveis tocaram o asfalto. Paula e as com ela passaram por um terreno escabroso antes de deixar as novas empregadas em casa. Rodoviários minutos depois, chegaram à casa de Susana. As saudações entre elas e os que estavam na sala foram sucintas – não podiam perder tempo com algo que no momento lhes parecia banalidade. Dirigiram-se imediatamente para o quarto da anfitriã após terem colectado dois frascos de sumo e dois pacotes de batatas fritas. Sentaram-se. – Finalmente, agora posso contar-te o meu plano secreto. – Não, Susana. Deixa que eu te conte primeiro o meu.
* – O que é que se passa contigo, mano? Oiço-te a sorrir mas… não sinto felicidade por trás. – É a defesa do meu trabalho da faculdade. Está a sufocar-me o cérebro. – Carlos – subiu as escadas e sentou-se no degrau onde ele estava – não consegue aldrabar Eduarda, a irmã mais velha. Vá lá, fala. – O LJ está a dormir?
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– Sempre à procura de subterfúgios para não dividir os problemas com os outros, não é, menino? – Não, Eduarda. Quero saber isso porque a nossa conversa pode vir a ser longa, muito longa… – Aleluia! O segredo da caixa de Pandora de meu irmãozinho será revelado, e justamente a mim! Sim, sim. O Lino Júnior está a dormir – feriu o ar com três pontos equidistantes com o dedo indicador da mão direita em seguida. – Esses gestos querem dizer o quê? – São reticências. Quer dizer que deves continuar com o assunto… Tu sabes. Fala. – É a Susana… – Eu sabia. – Não interrompas. Ela tem andado um pouco esquisita… diferente, de um tempo para cá. Parece estar farta de mim. Um mês atrás, ou algo assim, ela teve uma conversa comigo sobre traição. Não entendi porquê. Mas agora… – Agora achas que te antecipou que te iria pôr uns chifres. Não achas…? – Sim, sei que parece parvo. Mas ela agora fala muito de um amigo da esposa do primo dela. Chega a ser irritante. Parece que ela faz de pirraça. Uma relação passa por problemas, eu sei. Mas, não sei se é pretensão de minha parte, há relações que não precisam de certos problemas. Se a outra parte te ouve sempre que expressas os teus sentimentos, não vais poder dizer que ela não se importa com o que pensas. Eu não sou perfeito… não sei que queixas ela tem contra mim. Parece que é muito difícil dizer que não quer estar comigo porque pensa em outro. – Usas muito o «parece» quando os teus nervos simpáticos estão em acção. Não tenho muito para argumentar neste caso. Faltam provas de tua parte e comentários da parte dela. O que posso dizer-te é… – interrompeu-se por alguns segundos, depois continuou – Olha onde estamos sentados. Lembras-te do mito que criámos quando aquele primo da mãe viveu aqui? – Que as coisas melhoravam sempre que estivéssemos a três degraus do quarto. Até escrevi algo acerca disso. Éramos crianças naquela altura. Já nem me vem à mente a razão de termos inventado aquilo. – Acho que… houve uma vez que o primo da mãe nos mandou à praça e quase a chegarmos ao mercado, vimos que o dinheiro havia caído. Voltámos a correr para aqui, procurámos, procurámos… a cara começou a acender, o dinheiro não aparecia. – Tu começaste a chorar… – Claro! Aquele senhor era mau. Ia-nos matar se soubesse que o dinheiro dele tinha desaparecido. Foi então que sentámos aqui, depois de termos procurado no quarto. Orámos já…. Aquilo era fervor ou quê?! O engraçado foi quando, ah!... foi quando voltei a pôr a mão no bolso e encontrei o dinheiro! Tínhamos voltado à toa. – Houve uma vez que achei o meu carrinho vermelho aqui, depois de ter procurado pelo apartamento todo. – O primo da mãe só nos deixou ir a uma festa quando lhe pedimos insistentemente … e estávamos sentados aqui. – E muitas outras coisas. – Olha, se bem me lembro, foi aqui que eu te disse que devias estar sentado quando te pedi para jurares que me entregarias o Derito e a Liliana, quando eu voltasse. – É. Esse sítio tem feito parte de muitos dos momentos mais marcantes de nossas vidas. Mas não passa de um género de superstição. – Pode até ser. Mas já viste a ajuda que isso deu à segurança das nossas personalidades? Ficámos mais confiantes, menos indecisos, vacilantes. Deu-nos uma
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certa coragem para enfrentarmos problemas, principalmente os mais graves. Não, não estou a defender a superstição, eu só… – Eu te entendo. «Toda acção má tem uma aplicação boa em outro campo.» Tirámos partido da superstição, ou o quer que isso seja, para nos firmarmos mais como pessoas individuais. – Começaste a complicar a conversa, mas… o importante é que ambos entendemos que, se não tivéssemos a oportunidade de aprender o que é certo à primeira, não devemos nos martirizar, o errado pode servir de caminho viável para alcançá-lo. – Agora tu é que complicaste, mas… acho que estamos a desviar-nos do assunto mais importante. – Não, não estamos. Eu quis te mostrar que quando estamos aqui, a três degraus desse quarto, podem acontecer milagres. As coisas podem vir a melhorar quando menos esperas. – Queres dizer que ainda consideras esse lugar como um amuleto? Já estás muito grande para isso. – Não. Só estou a dizer que, quando estamos sentados neste sítio, pensamos positivamente. E pensamentos positivos trazem coisas boas.
* A conversa havia sido longa. Paula só voltou a pisar o chão de seu apartamento às dez da noite. Que plano era o de Susana! Mas ela, Paula, não o podia divulgar a ninguém, prometera. Susana, Susana – de onde tirara ela a coragem de fazer aquilo a Carlos? Bem, o problema era dela, Paula tinha apenas de esperar o resultado e manter-se fiel à sua palavra. – Boa noite – cumprimentou Paula ao entrar. – Boa noite, filha – respondeu Maria do Céu, que estava sentada e a apreciar um livro. – A mãe foi buscar aquilo? – Meu Deus! Esqueci-me! – Mas a mãe…? Eu não voltei a dizer…? – Fica calma, miúda. Fui buscar. Já jantaste? – Já. Na casa de Susana. Onde é que está o meu prato? – Acabaste de dizer que já jantaste. – E depois? Eu teria fome mesmo que tivesse comido um boi na casa de todas as minhas amigas. A comida da nossa casa é a comida da nossa casa, não pode ser substituída. – Tu é que sabes. Acabei de aquecê-lo. Abre o microondas. Paula foi até o electrodoméstico descalçando os sapatos com os dedos dos pés. Tirou o prato. Sentou-se à mesa. Orou rapidamente. – Hoje não estás com o Tácito? – perguntou Paula, antes de alcançar os talheres. – Isso não interessa. Porque…? – Nada. As miúdas já estão a dormir? – Já. Depois vai ao apartamento da Gisela. Ela quer falar contigo. Período de silêncio em seguida. – O Tácito teve algo a ver com a operação ao olho da mãe? – Foi um amigo dele que a fez. Vais jantar ou vais ficar a fazer-me engolir as tuas perguntas?
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– Péssimo trocadilho, se é que assim pode ser chamado. Os pais da Marlene e da Janeth já foram ou estão a dormir num dos apartamentos? – São teus tios, miúda. E têm nome. Estão todos a dormir no apartamento da Janeth. Vou para o meu quarto, antes que extingas o ponto de interrogação… e ainda não comeste nada. – Mentira! Vais falar com o Tácito. Consigo ver as luzes do teu telefone a acender e a apagar… e oiço-o a vibrar. – Se tu o dizes…. – concluiu Maria do Céu, entrando e fechando a porta do quarto em seguida. Quando acabaria aquele tormento? Tácito? Casamento? «Maria do Céu, apetece-me esganar-te!», pensou Paula com fúria. Mas ela, Paula, participava em seu próprio suplício. O que lhe custava ir ao quarto de sua mãe e interrogá-la, olhos nos olhos, sobre a vinda daquele homem? Fá-lo-ia, assim que acabasse de comer. Renovada hesitação após ter terminado de jantar – Paula desviou-se para o apartamento de Gisela. – Abençoada por Deus, a tua tia disse que querias falar comigo – disse ela após ter entrado. – Continuas a chamar-me isso. Se é uma bênção sofrer um acidente que nos deixa deitados para sempre, a maldição deve ser algo fixe. – disse Gisela. – Yá, como é que as minhas kambas se comportaram no primeiro dia? – Nada mal… para um primeiro dia. Eh! Esqueci-me de lhes dizer que amanhã já não as vou buscar! – Não te preocupes. Já tratei disso. – Então já falaste com elas…? Pra quê me perguntar mais? – Para saber a tua ava… Chuta! Golo? Ah! Esse gajo tem de endireitar mais o pé – disse Gisela ao reparar no jogo que a televisão passava, depois continuou. – Para saber a tua avaliação. Já que disseste que elas foram excelentes… – Ainda não proferi esta palavra no decorrer deste dia. – Não me cortes. O que é que vai acontecer quando a Janeth e a Marlene voltarem a trabalhar? – Não te preocupes. A clientela, consequentemente o dinheiro, está a aumentar de uma forma, que ainda dá para contratar mais três pessoas. Ninguém está a tomar o lugar de ninguém. – Mas alguém tem de tomar o lugar desse fraco aí. É o sexto golo que ele falha. Ai! Ai! – gemeu enquanto tentava alcançar a lâmina de comprimidos e o copo de água à frente de si. – Preciso… – Deixa-me ajudar-te. Paula entregou a Gisela a lâmina de comprimidos, depois de endireitar a almofada atrás das costas da última. Gisela gemeu levemente ao engolir o remédio com um gole de água. – O que é que fizeste antes de estar a picar a cara com este jogo? – Não é o teu time que está jogar, chamas «esse jogo». Mas como na sexta-feira vamos vos cascar com uma goleada… deixa – parou por alguns segundos antes de continuar em outro tom. – Acabei de ler aquele livro que o Carlos me emprestou. É viciante. Quase que não conseguia tirar os olhos das páginas. – É, «O Juiz» é um grande livro. – Será que ele tem mais livros assim? – Tenho de perguntar a ele. – O meu apetite pela leitura está cada vez maior. Se o Carlos tiver livros parecidos a este nem me vou importar de estar deitada aqui o dia todo. Falando em
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deitada, hoje faltou um pouco para eu conseguir ficar um minuto de pé. Seis segundos. Faltaram apenas seis segundos. – Sabes o que isso quer dizer?! – Que vocês já não vão varrer e limpar o meu apartamento na minha conta? – Aproveitadora! Que daqui há alguns meses vais poder voltar a andar! – Não exageres… – Que exagero? Não era possível sobreviveres, sobreviveste. Não era possível voltares a ficar em pé, ficaste em pé. Ainda não é possível andares, mas vais andar. Gisela ficou apenas com uma expressão de riso inevitável com os olhos fixados em Paula. – 0K. Posso ter parecido uma prima bruxa ao dizer que não era possível que sobrevivesses, mas… ânimo! A minha prima voltará a andar! – Estás a gastar o verbo em vão. Ainda é muito cedo para dizeres isso. – Quem me vai morder a língua por causa disso? – Trocou abruptamente de tom em seguida. – Estou a discutir contigo porquê? Levanta lá. Quero ver.
* Terça-feira. Seis e quarenta e sete. – Quem era? – perguntou Carlos à irmã. – O preguiçoso que está a cuidar da minha obra aí em baixo. Disse que só estará acabada dentro de um mês! Aquilo! Pago-lhe o suficiente para ele e os homens dele acabarem aquilo no tempo combinado. Dei-lhe mais quatro dias. Se não acabar, a Comarca terá novos prisioneiros. – Acho que podias fazer algo melhor, na verdade pior, para que eles trabalhassem mais rapidamente: pôr o Lino a controlar a obra. O mau feitio e a estatura de gigante dele fariam com que eles trabalhassem com a rapidez dos desenhos animados. – Não brinques com isso. Além do mais, o Lino não pode saber que estou a construir aquilo. – Porquê? – Quero fazer-lhe uma surpresa. Por isso, não lhe digas nada. – A obra é tua ou da tua empresa? – Era só uma maneira de falar. – Se é da tua empresa, o que é que tem que ver com o Lino? Não é uma casa, é uma filial… – Não te metas onde não és chamado. Acaba o teu pequeno-almoço, os miúdos já estão à espera de ti no corredor. – Estás a trocar de assunto. – 0K. Vou te contar. Ele duvidou de mim sobre uma certa coisa. Vou provar-lhe que estava errado. – Não me convenceu… – Tu és muito chato. Vai, vai, vai – empurrava-o em direcção à porta, enquanto falava. – Volto para te atormentar mais tarde. – Nem tentes. As mães de cinco filhos conhecem as artes marciais mais letais do mundo. – Se me tocares, conto ao Lino. – Se eu não te tocar, não contas?
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– Não. – A três degraus do quarto? – A três degraus do quarto – jurou, sorrindo. Há tempos que não usavam aquela frase como confirmação de uma promessa. Bateu carinhosamente no ombro da irmã, antes de voltar a falar. – Até logo. Cuida-te. – Até logo, mano – despediu ela, fechando a porta em seguida. Deixou a sua visão ocupar-se com o aspecto alegre do apartamento, antes de se dirigir ao quarto, para se certificar da localização do objecto que havia comprado sorrateiramente no dia anterior. A acção de reparar que Lino Júnior ainda dormia com o dedo colado à boca precedeu a de abrir calmamente o armário, destrancar a última gaveta à chave e puxá-la para si, retirar algumas peças de roupa e alcançar a superfície fria do objecto que procurava. Olhou atenciosamente para o cano, girou a roleta, soprou sobre o gatilho; segurou o objecto como se fosse atirar contra o vaso púrpura que estava sobre a cómoda. Abaixou a mão, colocou o objecto onde anteriormente estava, colocou as roupas por cima do mesmo, fechou a gaveta e trancou as duas portas à frente de si. Não se sentia confortável por ter aquele grotesco apagador de vidas em sua posse, mas para que seu plano de ficar com seus filhos sem a presença daquele que era um empecilho para que tal acontecesse, fosse bem-sucedido, talvez, em alguma altura, Eduarda tivesse de sacar uma arma. «Que disparate fiz eu dessa vez! Defesas radicais atraem ataques radicais», pensou de si para si mesma. Comprar aquela arma não era nenhuma demonstração de intelectualidade. E se seus filhos achassem aquilo sem querer? Notícia na primeira página de todos os jornais: Criança mata irmãos, pais e tio por querer saber se era verdadeira a arma que encontrou. Bem, ela tinha as chaves – não era muito provável que aquilo acontecesse. Mas onde estava sua moralidade? Onde havia caído sua fé em que o Absoluto era capaz de resolver os problemas daqueles que Nele depositam sua confiança? Fé? Deus? Após muito anos, era a primeira vez que se lembrava destas palavras e da infinidade de coisas por trás delas. Qual fora a última que havia conversado com seu Fazedor? Não era capaz de dizer a data. «Para evitar um crime, cometi um que pode levar-me a cometer outro ainda maior. Lindo, Eduarda. Lindo», pensou, batendo-se levemente no rosto enquanto as palavras desfilavam sobre seu consciente. Aquela arma não havia sido adquirida de forma legal. E se alguém a havia visto naquela ruela escura, enquanto fazia a compra? E se já tivesse avisado a polícia e eles tivessem no mesmo instante a chegar para prendê-la? O choro de Lino Júnior ao acordar despertou-a do devaneio.
* Pouco depois da terminação das aulas, Mauro trilhou às pressas o caminho para casa – alguém que tinha de se encontrar com ele esperava-o no local combinado. Devido ao congestionamento do trânsito e outros causadores de atraso, chegou uma hora e meia depois do que havia pensado. Embora a pessoa que o aguardava tivesse ficado irritada, breves explicações temperadas com humor fizeram com que o que haviam planeado não sofresse fortes baixas. Contudo, o encontro demorou mais do que o esperado, e ele nem se lembrou de ir à Casa de Deus, nem mesmo quando o alarme de seu telefone tocou. – «… só quando inventarem um fim para a eternidade.» Terminámos. Esse foi o último ensaio, Tina. Não me obrigues a repetir…
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– Acho que já conseguiste enquadrar-te com mais paixão. O Cláudio está a exigir perfeição nesta peça. Acho que alguns produtores e escritores de novela vão estar lá. – Estou farto de lhe ouvir a falar sobre isso. Mas se formos mesmo escolhidos para trabalhar na televisão… – Alguns serão escolhidos… Se eles gostarem da peça e se o teu instinto beijoqueiro não falhar. – Não voltes ao problema – tirava o telemóvel do bolso enquanto falava – só para me desmoralizar, não vais apanhar nada. Vinte e duas e quê?! A ida à…? Tina punha sobre ele um olhar de triunfo enquanto arrumava suas coisas. – Tenho de ligar para a Paula – disse ele, abrindo o aparelho em seguida. – Fica calmo. Não é o fim do mundo. – Se fosses mais religiosa, entenderias. – Estás a dizer que eu sou o quê assim? Olha que eu vou à igreja todos os domingos. – Para quê? Chatice! – exclamou, ao fechar o aparelho em suas mãos. – Não atende. De repente ouviu-se a buzina de um carro. Mauro deixou o telemóvel sobre a mesa e saiu da sala – ia em direcção ao quarto. Enquanto tentava identificar quem viera ter com ele da janela de seu quarto, o aparelho que abandonara na sala perto de Tina começou a tocar. – Senhor fugueiro, hoje te esqueceste? – disse a pessoa do outro lado da linha. – Paula, não estás a falar com o Mauro. – Falo com…? – A Tina. O diálogo cessou por ínfimos instantes. – E estás com o móvel dele porque…? – Nada. Eu estava mais perto do móvel quando ligaste. – Podes levá-lo até ele, por favor? – Calma, deixa-me só vestir qualquer coisa. Não posso aparecer à janela neste estado. Quando Tina chegou perto dele, com o penteado meio desfeito, o carro que Mauro perscrutava pôs-se em movimento. – A Paula quer falar contigo. – Alô? Desligou… – Quem é que vai naquele carro? – Não sei. Nunca o tinha visto aqui. Nem consegui ver quem era. Andaste a lutar com o teu cabelo?
* Quarta-feira. Durante as aulas, Mauro sentiu que ela se comportava de forma fria com ele. Nem no intervalo ela lhe dirigira a palavra. No dia anterior, quando ele voltara a telefonar para ela, ela não atendeu nenhuma das doze chamadas. Seria por ele ter faltado àquilo ontem? Já não tinham mais aulas – eram horas de descobrir. Aproximou-se dela. – Eu sei que eu devia ter ido ontem, mas tive algo para fazer que me tirou a noção do tempo – disse ele, ao aproximar-se de Paula. – E ainda me dizes isso?
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– Compreendo que estejas chateada por eu não ter ido, mas não achas que quem deve julgar-me por isso é Deus, não tu? – Quem está a falar da tua não ida de ontem? – Eu… melhor, nós. Ou não é por isso que estás chateada? Tínhamos combinado alguma coisa de que me esqueci? – O cinismo é irritante – tirava o telemóvel da pasta enquanto falava – e enjoativo. Estou a falar disso! – exclamou ela, mostrando-lhe algumas imagens em seu telefone. Cessação de som por momentos. – Não sei como é que estas imagens foram parar no teu móvel… mas ontem eu tive de ensaiar com a Tina. Ensaiar muito. Acho que te avisei sobre a peça de hoje. – Ensaiar. Isso é que era bom! Todas as frases que oiço neste vídeo não estão no guião. Mauro apercebeu-se que eram os únicos naquele local. Dentro de alguns minutos, os estudantes do período seguinte chegariam. Mas decidiu arriscar ter aquela séria conversa mesmo aí. Trancou a porta da sala. Voltou-se para ela com um olhar fechado, levemente irritado. – Foi a Tina que te enviou estas imagens, não? – Não interessa. – Foi. E também deve ter-te mostrado o guião para comprovares que tudo o que digo aí não consta do mesmo. Já que vocês não são amigas, ela teve de chegar muito cedo para fazer isso. Tu sabes que ela te odeia por estares comigo… não entendes o que ela está a tentar fazer? – Não me tentes enganar com falsa lógica. Eu vi-vos ontem no teu quarto. – Ela não entrou no meu quarto… excepto quando levou o meu telemóvel. Tu tinhas ligado para mim…? Como é que viste? – Eu estava no carro que vias da tua janela. Mauro sentiu-se desconcertado. Suspirou. Passou os dedos entre os cabelos com uma sofreguidão furiosa. Paula entendeu aquilo como uma confissão. Andou apressadamente até à porta. Alcançou a maçaneta. Antes de sair, atirou secamente. – Pensei que tivesses mudado. – Paulatinamente…
* No apartamento de Carlos, Pedro dava voltas à mesa, tentando alcançar Carla. – Eu vou-te devolver – dizia ele enquanto corria atrás da irmã –, vais ver! Eu vou-te devolver. – Quem te mandou mexer no meu prato? Eu avisei-te. – E era preciso espetar o garfo na minha mão? O forte empurrão de Pedro contra Carla a seguir às últimas palavras do mesmo fez a última cair de forma brusca. Como resposta àquilo, Carla soltou um forte palavrão. Pedro fez o mesmo. Eduarda levantou da mesa de forma ameaçadora, vociferando expressões ofensivas piores que as de seus dois filhos. Derito e Liliana assistiam àquela cena, imóveis. Ouviram-se batidas na porta. Eduarda acalmou-se, pediu a Liliana que atendesse. Esta levantou-se da mesa meio alienada; tremia ao puxar para si a maçaneta. Um idoso rosto masculino apareceu-lhe em primeiro plano, após a passagem da porta diante de seus olhos. Liliana abraçou imediatamente o senhor. Ele depôs uma de suas pesadas e peludas mãos sobre as costas dela, e com a outra acariciava-lhe o cabelo. O 119
senhor lançou um olhar de não cumprimento de requisitos aos que se mantinham à distância. Derito apercebeu-se; foi saudá-lo. Pedro, Carla e Eduarda fizeram o mesmo em seguida. – Há mil anos que não entrava aqui; acho que desde aquela reunião… Está diferente – pronunciou-se o senhor, depois de se ter sentado. – O tio Carlos usou bem o dinheiro que ganhou de um concurso – respondeu Derito à pergunta implícita do senhor. – A essa hora ele deve estar a trabalhar, não? Aquele miúdo esforça-se muito. Não há nada para alegrar a minha garganta? – A água fervida ainda está morna… Posso descer pra ir comprar sumo – prontificou-se Liliana. – A minha boca está a pedir outra coisa, mas… porque é que não descem os quatro? Assim poderão comprar e trazer os pacotes de sumo e bolachas (tragam de sal, sim?) e comer os vossos gelados favoritos. Houve um alegre alvoroço infantil em seguida. Num instante, a sala principal do apartamento hospedava apenas duas pessoas. – Senhora Eduarda, senhora Eduarda – dizia o senhor, enquanto batia calmamente a ponta dos dedos de uma mão contra a ponta dos dedos da outra – que andou desaparecida. Nem sequer uma carta ao papá enviaste. – Pai, já tivemos essa conversa. Vieste…? – Não. De forma alguma! É que ainda me dói saber que fiquei aquele tempo todo sem saber se estavas bem. Seu rosto tomou outro aspecto e sua voz, outra tonalidade, quando recomeçou com as seguintes palavras: – A que se deveu aquilo que ouvi antes de bater à porta? Não! Não tens de responder. Você viu a reacção da Liliana e do Derito? Os hábitos que tu manténs e trouxeste! É assim que queres que voltem para viver contigo? – O pai está a me dizer que não devo usar palavrões com os meus filhos? O pai? – Que tem isso que ver com a minha linguagem? Estou a falar da educação que o Carlos dá aos teus filhos e da que tu podes dar a eles. Já viste as roupas que a Carla usa? Aquelas coisas curtas… – dizia ele com olhar e tom de voz oscilantes entre cólera e paternidade – numa criança de sete anos? – O que é que aquilo tem? O Carlos também se implica com isso. É uma criança! Não há malícia nenhuma naquilo. Além do mais, eu compro as mesmas coisas para a Liliana. – E quando é que a viste a usá-las? Eduarda tentou responder, mas engasgou-se nas ideias. Transtornada, levantouse. – O pai não tinha de estar a trabalhar? – Não fui. Precisava de ter esta conversa contigo o mais cedo possível. Senta-te. Não discutas, menina. Senta-te! Eduarda sentou-se, exalando fúria pelo olhar e pela respiração. – Vieste para me fazer sentir inapta em tudo… – Estás a ver o assunto do ângulo errado. Vim alertar-te sobre as possíveis desvantagens dessa mudança de ambiente. Qual era a vossa rotina lá em… onde é que vocês estavam mesmo? – A menção do país não é necessária. – Pelo sotaque dos teus filhos dá para se ter uma ideia. Quando vocês estavam lá, onde vocês estavam, tu sentias que a tua família era uma família? Sentias-te satisfeita? Sentias felicidade, não alegria, nos olhos, no sorriso e nos gestos dos teus
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filhos? O Lino era homem, não apenas macho, mas humano, contigo? – Encostou-se mais para a frente, relativamente a Eduarda, antes de continuar. – Sentias-te em casa ou num campo de batalha? – Essas perguntas passaram por um esboço primeiro, não? Breve pausa. Eduarda coçou as pálpebras com o dedo anelar e o médio da mesma mão com a cabeça abaixada, enquanto sorria. Suspirou com agonia. Levantou o rosto. Os dedos sobre o nariz e sobre os lados do queixo mostravam lábios entreabertos. – Que família não tem makas? – recomeçou Eduarda. – Eu não vou ficar aqui a estender os meus problemas familiares só porque o pai resolveu abusar da retórica. – Isso não é retórica… – Não?! O pai está aqui a insinuar coisas que, quem as ouve, sente que o pai está a falar com certeza, com provas, factos! Está praticamente a afirmar coisas sobre algo que não acompanhou por nove anos. Como é que pode? – Sabes quais são as consequências de escondermos o que mais nos aflige? – Doenças sexualmente transmissíveis, gravidez indesejada… – Esse teu humor… – disse ele, pigarreando em seguida, e, como se tivesse acabado de receber a última informação de que precisava para que uma ilação se tornasse numa certeza, lançou em tom diferente: – Ainda sabes fazer quizaca?
* A noite já se fazia presente havia algumas horas. A peça protagonizada por Mauro fluía de maneira agradável e impressionante. Não parecia teatro quando ele contracenava com Tina – as frases de repulsa e desprezo contra a última soavam com o vigor da realidade. Para os que conheciam os acontecimentos mais recentes relativos à trama dela contra o relacionamento romântico dele, era como se Mauro quisesse verbalizar o que não havia conseguido naquela sala de aulas. Quando a peça chegou à sua raia, fortes aplausos invadiram a atmosfera. Extensos minutos depois, Mauro encontrava-se com seus amigos. – O que é que foi aquilo, pá? – interrogou Carlos, abraçando Mauro. – Achava que ver um actor assim só em imaginação passiva. – Eu também quero parabenizá-lo – pronunciou-se Susana, puxando Carlos pelo braço. Em seguida beijou as faces do amigo e cobriu-o apaixonadamente com seus membros superiores. Depois de seu sistema auditivo ter captado as emboras de Edna, Júlio, Amélia, Beth, Janeth, Marlene e outros amigos e seus nervos aferentes lhe terem levado informações agradáveis sobre o contacto do corpo dele com aquelas pessoas, seu campo de visão apanhou em desfoque a imagem de um corpo que se dirigia rapidamente para a saída; ele teve de voltar a calibrar suas objectivas para obter uma imagem de maior precisão – fechou e abriu rapidamente os olhos – e de usar a capacidade de rotação do pescoço para constatar que a pessoa que havia pensado que não aparecera para participar num dos momentos mais decisivos de sua carreira como actor se preparava para sair. Na tentativa de alcançá-la, andou de forma célere por entre a multidão descoordenada. Atravessou a porta com ansiedade; olhou para os lados; deu alguns passos até ao asfalto. Tudo o que via não era reconhecido como o alvo. E aquela rapariga que abria a porta do carro de forma agitada? Não, não era quem ele pensava ser. Ainda absorto em sua procura, uma mão tocou-lhe o ombro. – O que fazes aqui? Os homens da televisão querem falar contigo, rapaz! 121
– Estás a brincar, Cláudio?! – Claro que não. Vamos, vamos. O sucesso não espera pelos estagnados.
* Quinta-feira. Vinte e uma e quarenta e sete. Susana, Paula e Gisela conversavam. – Ele nem sequer se defendeu! Devias ter visto a cara dele… – desabafou Paula. – Eu sei que o Mauro, mesmo que fosse eunuco, conseguiria desviar as mulheres que quisesse, mas essa Tina… não agrada ao olfacto de ninguém – asseverou Susana. – Queres dizer que é possível ela ter tramado aquilo tudo? – perguntou a primeira. – Pode até ser. Mas se ele caiu… se se envolveu com ela, como é que eu posso continuar a confiar nele? – Pareces estar tão certa disso – dizia Gisela – como o facto de estarmos as três sentadas neste cadeirão e a beber este sumo… – Disso o quê, Gisela? – interrogou Paula. – De ela ter tramado ou de ele ter caído? – Aposta mais na última – respondeu a prima. – Vocês estão a tentar defendê-lo! – exclamou Paula, lançando a cabeça para trás em desânimo, fazendo com que seus cabelos se espalhassem sobre a almofada. Continuou a falar na mesma posição. – Sabem o que é que o sem-vergonha falou quando eu lhe disse que achava que ele já tinha mudado? Paulatinamente! Paulatinamente? Paulatinamente… Ele assumiu a traição. Os olhares trocados por Gisela e Susana indicaram que a defesa já não tinha o que arguir.
* – O miúdo que engraxa todos os sapatos da casa não veio hoje? – perguntou Manuel ao sair do quarto. – A tiazinha – dizia Mauro, referindo-se a uma das empregadas – disse-me que ele está doente, esse paludismo em tudo e de todos… tive até de acordar mais cedo para engraxar os meus. O palco gostou do brilho deles. – Palco? – O pai esqueceu-se do que eu tinha hoje. – Eh! Se eu me esqueci, a tua mãe também se esqueceu, Mauro. Estás a atribuir as culpas só a mim… A peça! A tua peça! – exclamou, enquanto tirava o blazer e a gravata. – Filho – pousou a mão sobre o ombro de Mauro –, não vou tentar defender-me. A única coisa que me sinto obrigado a fazer é pedir desculpas. Desculpa, filho. – Não há makas. Já estou habituado. – Os teus pais faltam a inúmeros eventos relevantes para ti, e teus, e tu conformas-te com isso? Se fosse a ti faria um enorme sermão a eles sobre o significado de paternidade, maternidade e afeição fraternal – brincou Manuel. – Oh! Se é o que queres… – Não, não, não. Foi uma ideia que surgiu por causa do cansaço. Como é que foi?
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– Achas que eu vou contar? – Se eu quero saber… Deixa-me em paz. Se eu quero saber, deixa só o meu desejo em paz, yá? – disse Manuel em tom de brincadeira, fazendo Mauro sorrir. – Já que pareces ter aprendido a lição, só pareces, vou te conceder a honra de assistir a isso. Alguém gravou tudo e me deu uma cópia do CD… – Cópia de que CD, Mauro? – perguntou Cristina ao sair do quarto de banho. – O CD da peça dele. Voltámos a esquecer-nos – respondeu Manuel. – Oh! Desculpa, fi. É por isso que estavas triste quando chegámos. E eu a pensar que voltaste a ter uma querela com a Paula. Cristina, com o intuito de tirar o robe e vestir alguma coisa rapidamente, dirigiu-se ao seu quarto, ao passo que Manuel e Mauro permaneceram na sala, fazendo os preparativos para a sessão que teriam. – Pai – pronunciou-se, ao cabo de alguns minutos de silêncio, enquanto tirava o CD da capa. – Não, não, não. Outra vez esse assunto? Eu já te disse que funji de goiaba não existe. Qual é o teu problema? – Estás cheio de humor hoje. Os negócios correram bem ou quê? – perguntou Mauro, após ter posto o CD no leitor e fechado a tampa do mesmo. – Bem demais! Tinhas de ver que catapulta foi usada para o enlevar das receitas… Falando em negócios… está na hora de começares a tirar aqueles cursos. A cadeira do teu escritório está ansiosa. – Outra vez a tecla «Empresa». Mas, está bem – concordou ao sentar-se. – Vou tirar os cursos para ocupar o teu lugar lá. – Ei! Eu não falei nada sobre sucessão. – Calma, senhor Manuel. Estava só a confirmar a existência do teu amor exagerado pelo trabalho. Não, não precisas de dizer nada. Eu quis falar algo… esqueci-me. – «Pai» … – disse Manuel, girando as mãos, uma sobrepondo a outra alternadamente. – Isso vai me ajudar em quê? Ah! Fugiu de novo… Lembrei-me! Quando é que o pai se justifica? Quando é que o pai vê que é necessário justificar uma das suas acções, algo que o pai fez, ou não fez, mas a outra a pessoa acha que fez? – Fez a segunda pergunta ao ver a expressão de desentendimento de Manuel relativamente à primeira. – Conversa estranha – adjectivou Cristina ao fazer-se presente na sala. – Assemelhas-te àquelas mulheres e homens que não conseguem expor os seus problemas com claridade. Dão voltas, põem uma pessoa fictícia no meio, mentem ou ocultam certas partes que ajudariam a outra pessoa a dar-lhes um conselho mais abalizado… Porque é que não és mais directo? – perguntou ao sentar-se. – A mãe está a falar de quê, pai? – perguntou Mauro, dirigindo-se para o cadeirão à esquerda das duas pessoas que o ouviam, contudo, ao ouvir as batidas da mão de Cristina sobre a almofada não ocupada do móvel onde ela e Manuel estavam sentados, acomodou-se entre seus pais. – É constrangedor sentar no mesmo cadeirão com vocês com essa idade. Pareço uma criança de seis anos. – Tu que estás a tirar Psicologia deves estar mais apto para falar sobre esse… complexo? – perguntou Manuel, desejoso de saber se havia empregado correctamente a última palavra. – Não ajudes o teu filho a fugir do assunto. O que é que querias contar ao teu pai com aquela conversa estranha, Mauro?
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– Depois vos conto. O CD já está no leitor, os cabos já estão ligados, (o pai não me ajudou a fazer nada, mãe); quem quer premir o play?
* Vinte e duas e sete. Carlos e Beth dialogavam. – Fico fixe com esse chapéu? – perguntou Beth ao pôr o mesmo sobre a própria cabeça. – Ficas – respondeu Carlos. – Essas longas tranças de postiço que fizeste aumentam o teu charme. Mas estás a experimentá-lo a essa hora porquê? – Quero zungar. Não estou bem só num sítio. – A essa hora? – Não! Sábado vamos ter um chilling falado. Tenho de ter a certeza que vou sexy. – Eh! ‘Cê não respeita a tua barriga. Chilling falado com quem? – Contigo. Era para ser com a Susana, mas ela agora dificilmente pára em casa… está uma chata. O Júlio tem uma saída de sei lá das quantas, e o Tinho… tem pernas de vinte e cinco centímetros ou menos. – Então fui escolhido por não haver alguém disponível. Que privilégio! – ironizou Carlos. – É melhor do que ficares a pensar que tens dor de cotovelo. Ops! Falei demais. – Sabe muito você. Mas, aceito. Talvez assim esqueça um pouco que os meus sobrinhos me vão abandonar. – Ainda bem que tocas nisso – disse Beth ao endireitar a si e a Tinho que dormia sobre seu colo – sem eu precisar usar o dom de enxerida primeiro. Porque é que não pões o caso na Justiça? – Por causa de um juramento que fiz a Eduarda. E depois os miúdos não têm de ver desconhecidos de toga ou fato e gravata a discutirem sobre a guarda deles. Iria levantar-se muita coisa má sobre o passado dos pais deles e sobre o meu, que poderia fazer com que eles passassem vergonha onde quer que estivessem. Poderiam até se tornar sociopatas. – Estás a exagerar. – Não, a sério. Eu prefiro dar o filho a quem parece não o merecer a deixá-lo ser dividido em dois por uma espada. Ambos receberíamos partes sem vida. – O julgamento de Salomão. Mas esse juramento que fizeste… – E o irritante barulho do martelo. – O quê? – Eles não têm de ver desconhecidos de toga ou fato e gravata e ouvir o irritante barulho do martelo. – Pois… Esse juramento que fizeste… Não é certo cumprir uma promessa quando o objecto dessa promessa estará muito melhor se não a cumprirmos. Tem algo que ver com o fim não justificar os meios. – Sábias palavras. – Ando a ouvir demais a Susana a estudar. Ela lê em voz alta as definições daqueles fascículos. Aprendi alguns termos novos. Nem parece que só estudei até à quinta classe, né? Sou intelectual. Ambos soltaram rizadas em seguida. – Prosseguindo… – recomeçou Beth.
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– Sinto-me completamente atado. Eu quero fazer algo, mas eles não são meus filhos. Não são. – Claro que não são. São meus – interrompeu Júlio ao entrar. – O Tinho e a ainda sem nome são meus filhos. Boa noite – cumprimentou, beijando Beth e apertando a mão de Carlos em seguida. – Correcção: o ainda sem nome. Vai ser um rapaz – disse Beth com olhar perspicaz e com o olfacto tentando detectar algum perfume invasor nas roupas de Júlio. – Tu só queres me provocar-me. Também queres que seja uma menina. Ufa! – exclamou Júlio, sentando-se. – Trabalho nocturno fatiga. – Eu que fico a arrumar aqueles salões de casamento – dizia Beth –, a fazer aquelas comidas (funji, hã? funji!), tenho de esperar até à hora em que a festa acaba para desarrumar tudo de novo, lavar aquela loiça toda… ‘cê tá a brincar ou quê? Aquilo é que é trabalho nocturno que fatiga! Agora, arranjar arca, geleira… – Estás a atacar-me porquê, Beth? – perguntou Júlio? – Ciúmes… – E depois? Saber que tenho ciúmes teus vai te pôr a governar o país? – Está doce a tua boca hoje – disse Júlio, enquanto andava. – Vou à cozinha ver o meu jantar. – Eu, as minhas colegas, os garçons… trabalhamos duro nessas festas. É um emprego de escravo. – Pára de tentar irritá-lo, Beth. Só vais provocar uma discussão, e isso pode fazer mal ao bebé – aconselhou Carlos. – Está bem, está bem. Vou acalmar-me… por enquanto. Depois será de mil e quinhentos completos. – ‘Cê já não muda. Bem – disse Carlos ao levantar-se –, foi bom conversar contigo… – Já vais? – Tenho aulas amanhã de manhã – explicou ele, beijando as faces da amiga em seguida. – Fica bem. Júlio? – Fala, Carlos – gritou ele da cozinha. – Estou a ir. – 0K. Chega bem. Não. Espera! Vou te acompanhar – disse ele, aparecendo na sala num ápice. – Tu é que sabes. Tchau, Beth. – Tchau, Carlos. Não te esqueças de pensar naquilo. – Vou tentar. Vou tentar.
* – Espectacular! – exclamou Cristina ao afogar Mauro num estalado beijo. – Querias o quê? É meu filho – gracejou Manuel ao som de suas próprias palmas. – 0K. Já nos agradeceste por te termos elogiado – falava Cristina muito rapidamente e a contar os dedos –, nós já dissemos «de nada», o teu pai já propôs um brinde, nós já o adiámos por causa da conversa que queres ter connosco e já estás a falar sobre o assunto. Mauro exibiu sorrisos de constrangimento. Pigarreou. – São vinte e três e oito – dizia Mauro, tentando esquivar-se –, meus senhores. Vocês têm de dormir para poder ir trabalhar cedo… – Oh! Não te contámos? Conta-lhe, Manuel.
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– Conta-lhe tu, Cristina. – Não, conta-lhe tu. – Conta-lhe tu. Sou cavalheiro… – 0K. Conto-me eu – interrompeu Mauro –: vocês desistiram de me atazanar e já não querem mais saber sobre o que eu quis contar-vos. – És muito envergonhado porquê? – perguntou Cristina, puxando a bochecha do filho com o polegar e o indicador. – Sais ao teu pai. Eu sou extrovertida. Vá lá. Não te acanhes, bebezinho. Fala pra mamã. Fala. – Espero que isso não esteja a ser filmado; teria de ser um ermitão pelo resto da minha vida. Eu vou explicar… Sem que o filho se apercebesse, Cristina fez um sinal a Manuel, para que o último fosse tratar das bebidas. Mauro seguia-o com olhar. – Não ligues para o teu pai – disse Cristina. – Ele está a ouvir. – A mãe… e o pai… sabem que é difícil relacionar-nos com os outros… – Estás a dar voltas – disse Manuel. – Preciso de dar, pai… senão não terei coragem para vos contar mais detalhadamente – dizia Mauro, acompanhando o desaguar do whisky nos copos. – Continuando… somos diferentes, e, por consequência, semelhantes. Se conseguimos aperceber-nos do mal-estar que nos invade sempre que alguém nos apanhe no princípio, nos meados ou no fim de algo que estejamos a fazer e deduz, erroneamente, aquilo como sendo a acção final, porque é que não pensamos em agir com empatia… deixar ao menos a pessoa explicar-se, em vez de chegar soltando acusações como se tivesse certezas certificadas? – Bateu ferozmente o dedo médio e o anelar de uma mão contra a palma da outra por duas vezes quando proferiu as duas últimas palavras, para demonstrar que o pleonasmo havia sido propositado. – Deste tanta volta para falar do mal-entendido – sintetizou Manuel ao entregar o copo a Mauro. – Acho que as palavras derivadas, às vezes, são muito vagas, não expressam em detalhes a situação. – Assim como, às vezes, as pessoas não expressam bem os seus sentimentos, filho – conectou Cristina. – Há momentos em queremos ouvir as razões da pessoa, queremos que ela se explique, mas, como queremos sentir-nos superiores a ela naquela situação, transformamo-nos em juízes cruéis. – A surpresa, a repugnância e a vergonha tomam conta de nós… – concordou Mauro. – Tu é que estás a tirar Psicologia… – disse Cristina. – Portanto, essa nossa falta de coragem, esse nosso complexo… esse género de incapacidade inata, se é que se pode chamar assim, que temos de ouvir o que a outra pessoa tem a dizer… e, às vezes, não a ouvimos porque ela já tem um quibuto de mentiras passadas colado às costas… é que nos faz continuar a agir como gente imatura. – 0K, mãe. Mas seria melhor se… – Filho, somos pessoas, não probabilidades – interrompeu Manuel, pousando a mão sobre o ombro do filho. – Eu sei disso. Só que a Paula… – Oh! – exclamou Cristina. – Afinal a Paula está mesmo no meio disso tudo! O meu sexto sentido de mãe não falha. – Não vou contar mais então… A Paula viu-me à janela com a Tina, a moça que fez de minha esposa na peça; e está a pensar que eu estava em imoralidades com ela! – Só por isso? – perguntou Cristina, depois de ter dado um gole do espirituoso líquido.
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– O facto de a janela ser a do meu quarto pode ter contribuído. – O quê! Tu estavas com essa miúda no teu quarto? O que é que estavam a fazer? Vês, Manuel? Não devíamos ter dado tanta liberdade a esse miúdo – disse Cristina, exaltada. – Calma, mãe. Ela foi ao meu quarto apenas para me entregar o telemóvel. A Paula havia ligado para mim. E eu não sabia que era ela que estava naquele carro; não era o dela. – E o que estavas a fazer no quarto, se a Tina estava na sala? – inquiriu Manuel. – Ouvi a buzina de um carro. Fui ver quem era… Aquela maluca entregou-me o móvel com o cabelo todo despenteado, por isso é que o carro começou a andar. Ela deve ter filmado aquela cena do beijo com o telemóvel dela, e eu nem me apercebi. Muito esperta… – Do que é que este miúdo está a falar, Cristina? – A Tina armou a coisa melhor do que eu pensava – disse Mauro. – Ela não veio com o plano traçado detalhadamente. Veio apenas com algumas ideias. Ela não forjou muita coisa. Deixou o decorrer natural dos acontecimentos ajudá-la – divagava ele. – Bebe um bocado de whisky, filho – aconselhou Cristina. – Assim vais poder explicar-nos a coisa com maior clareza. – Ah! O vosso plano é esse: embebedar-me, para eu vos contar tudo! – gracejou Mauro. – É simples. A Tina mostrou a Paula umas imagens do nosso ensaio para a festa, imagens em que apareço a dizer-lhe coisas românticas e a beijá-la… – Então resolver isso é fácil – deduziu Cristina. – Mostra-lhe este CD e ela verá que era só um ensaio. – Há um pequeno problema. As imagens que ela viu não faziam bem parte do ensaio. Era um ensaio para o ensaio. Eu não estava a conseguir viver as cenas de beijo, por isso tivemos de criar uma mais ou menos espontânea para me ajudar… – Arranjaste sarna! Vais te coçar com as próprias unhas – disse Cristina. – O que é que a mãe quer dizer com isso? – Vais encontrar a solução deste teu problema sozinho. Agora vais ouvir o que temos para te contar. – 0K. E depois disso vamos voltar à frase do pai de sermos pessoas, não probabilidades. Há controvérsias…
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CAPÍTULO IX As gotas que caíam eram finas e dançavam descompassadamente com o forte vento sobre as pessoas na rua. Alguns corriam, outros apenas aceleravam o passo, outros não se incomodavam com aquela situação desconfortante, andavam calmamente, absortos em seus pensamentos. Um deles era Carlos. Entre a ventania gélida e a razão de suas roupas estarem a tornar-se húmidas, seu olhar triste, acinzentado, parecia almejar lágrimas. Mas não conseguia chorar. Tornara-se mais forte. Já não se deixava sofrer pelas acções dos seus mais próximos. Afinal, segundo ele, as pessoas não eram tão importantes assim – elas que fizessem o que quisessem, ele apenas se manteria disposto a rotular os actos delas em níveis de atracção e/ou repulsa quanto à convivência entre ele e elas. Quem eram elas para se tornarem no controlo remoto de seus sentimentos? Ele era livre! Sentiria o que quisesse porque queria, quando quisesse e onde se permitisse sentir. Por este facto, não estava derradeiramente abatido por causa do que Susana, Eduarda e seus sobrinhos lhe haviam feito. Mentira! Sofria, sofria muito. Já se haviam passado alguns meses e, durante tal período, o ano lectivo acabara; ele e os seus colegas defenderam suas teses, uns de forma extraordinária, outros com arguições vacilantes; Susana viajara com Augusto sem avisar a ninguém e Eduarda desapareceu misteriosamente com os miúdos. Estava de rastos. Da forma mais sôfrega que se podia imaginar, chegou ao apartamento. Cama – mergulhou nela, na busca desafortunada de conforto. Descansou por quase duas horas. Quando despertou no sentido mais lato da palavra, viu-se a transpirar copiosamente sobre suas roupas desportivas – corria de forma vigorosa sobre a calçada. Ao levantar o olhar, seus olhos captaram a imagem de um céu sem alegria, o mesmo céu que viu quando chuviscava e ventava. Mas quando direccionou o olhar para a sua retaguarda, para o Oeste, maravilhou-se! Que era aquilo? Era – era a imagem mais perfeita do pôr-do-sol que já havia visto. Os tons sublimes de rosa, azul, amarelo, vermelho e laranja (que cinzento sem adjectivo era o daquela enorme nuvem?) extasiaram-lhe a mente. Era um quadro esplêndido, pintado no grau absoluto da perfeição, mas não pela mão de um homem – era a pintura de Deus! Seria sua vida igual à situação daqueles dois pontos cardeais? A tristeza e o sofrimento reinariam por um tempo, mas depois a felicidade e a segurança tomariam o poder? Sim, haveria Susana de voltar depois de algum tempo e contar-lhe que fora tudo um mal-entendido, que não estava interessada romanticamente por Augusto e que nunca havia permitido que ele a tocasse e que ainda teria a bênção de voltar a viver com Derito e Liliana? Mas podia ele pensar assim? Não, não podia. A razão? Porque não era um pensamento realista. Não, não era. Empurrou a porta do apartamento, entrou. Contemplou o vazio, contudo não observou o nada. Viu Liliana e Derito conversando sobre as frases mais tolas que haviam ouvido no dia anterior. 128
– Essa tua não é tão forte – dizia Derito sentado a três degraus do quarto. – A que eu ouvi ontem! Foi assim… uma das amigas da mãe da Miraldina foi visitá-las, ela e os pais dela. Como ela quis falar com a mãe da Miraldina, a Miraldina contou-lhe que ela havia viajado. Sabes o que é que aquela senhora falou quando a Miraldina lhe disse que ela havia viajado para a África do Sul para dar à luz? «Eh! Bebé quer ser África!» Não me aguentei. Eu ia morrer! – E aqueles dois malucos que estavam a discutir porque um havia dito que a cerveja tem mais açúcar que a gasosa?! Nem sei como é que tive forças para me levantar hoje. Aquilo chocou-me. – Yá, há muito mais velho sem juízo que… oh-oh! O tio Carlos chegou. Hora de irmos embora, Liliana. Carlos correu para tentar impedi-los, mas eles desapareceram entre suas mãos, desvaneceram-se entre seus dedos. Tacto, audição e visão miseráveis – as últimas por não terem a capacidade de denunciar uma alucinação, e o primeiro por não poder ser um sentido impressionável por falsas percepções. Porque é que se podiam pegar objectos nos sonhos, senti-los, mas – Carlos enlouquecia. Sentou-se em cólera sobre o mesmo degrau. Como foi possível ele ter descido até àquele ponto? Era entediante vê-lo assim. Dava preguiça. Quando foi que ele havia perdido a sua forte e conspícua personalidade e se tornado naquele protótipo de mau humano? Força, rapaz! Ânimo! O que podia ser melhor que a servidão a Deus? Eles – Eduarda, os miúdos e Susana – haviam agido de forma errada com ele. Mas a obrigação dele não era apenas a de fazer o que era direito, amar os outros com dedicação e viver em humilde obediência a Deus? Se eles haviam feito aquilo, que lhe interessava? Ele tinha apenas de cumprir com a sua parte. Não devia julgar, para que não fosse julgado, pois, conforme o juízo com que julgasse, assim seria julgado; e, com a medida com que medisse, assim seria medido. Eles erraram, erraram. O assunto era entre eles e Deus. Ele precisava apenas de perdoá-los – se é que havia algo a ser perdoado – e continuar a amá-los sem ressentimento, mesmo que fosse à distância. No dia seguinte, quinta-feira, depois de ter trabalhado e ter chegado do local onde prestava adoração a Deus, resolveu escrever um poema, com o intuito de abrandar, o menor que fosse, a guerra em seu espírito. Pegou três ou quarto folhas brancas e depô-las sobre a mesa. Tentou desistir da ideia, todavia, a vontade de assentar por escrito o que o invadia por dentro era mais forte. Pegou o lápis, escreveu: A solução mais covarde Por mais que ignore Por mais que conheça Por mais que piore Por mais que enlouqueça Ainda respiro Percorrem dúvidas ilógicas Quando aquilo de que se tem certeza Não é a verdade santa Mesmo que tenham sua foz em teorias castas Mas desagúem copiosamente em práticas levianas E eu estou lá: face ante face com o certo falso Mas, mesmo assim, Ainda respiro
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É diante das notícias más Que nos desaparece o espírito Os olhos, a boca, o coração – o íntimo – Tudo em conflito Uns solidificam as lágrimas, outros as derramam A mim falta a voz para soltar gritos Falta a devida coragem Para exteriorizar o que meus sentidos sentem Falta o adequado duplo sentido Inspiração ⁄ expiração para me sentir vivo Todavia Ainda respiro Às vezes, irreflectidamente, julgamos outros Talvez o apedeutismo ao silogismo nos leve a tal Mas nos esquecemos Numa curva de 360º daqueles nossos erros Daqueles que cometemos Mesmo sabendo que beiram o prejudicial Daqueles que cometemos Mesmo sabendo que só nos farão mal Daqueles que cometemos Por puro egocentrismo fiducial Mas, mesmo me envergonhado profundamente Por causa disso, Ainda respiro Infelizmente Há dias e pessoas sem nenhuma alegria Assolados pela raiva, desespero, medo e agonia Aterrorizados pela solidão, Falta de solução e pela hipocondria Humedecidos por aquele líquido Que escorre de nossos olhos quando há angústia Com rostos Que hospedaram inconscientemente Uma cruel solução cheia de apatia: Homicidar a si mesmos; enforcar-se; envenenar-se; Lançar-se do alto para abraçar o chão E lá estou eu: suspenso no ar Com pensamentos imperceptíveis ao coração Subitamente acontece o colapso Entre cimento e meu corpo Espalhando-se aquele líquido vermelho Mas… Raios! Já não respiro Transpirando pelo corpo todo, pegou as folhas e dirigiu-se ao terraço do prédio, onde, por três vezes, declamou em voz alta o poema que acabara de escrever. Quando terminou o seu desvairado recital, sentiu-se leve, apto para fazer o que havia planeado na manhã daquele mesmo dia.
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Lançou as folhas para o ar; o vento levou-as para longe. Como se pedisse coragem para consumar o acto, olhou para frente, para os lados e para trás, movimentando bruscamente a cabeça e o resto do corpo. Pôs-se de pé sobre o parapeito. Porque faria ele aquilo? O que diriam seus amigos, seus pais, seus irmãos – todas as pessoas que o conheciam – quando soubessem que Carlos Chinengue Banzaia, o Humano, havia posto fim à própria vida por não se ter conformado com um par de cornos em sua cabeça? Ele que havia aconselhado e ajudado tantas pessoas a tornarem-se pessoas, a sentirem-se pessoas, abdicava agora de todos os seus princípios porque duas crianças haviam resolvido virar-lhe as costas? Como seria ele lembrado se fizesse aquilo? Mas as pessoas não eram assim tão importantes, dizia ele. Se já não queria viver, era um assunto entre ele e Aquele que lhe deu a vida. Só Ele tinha um voto naquela matéria. Por isso, estendeu os braços, olhou para o céu – as estrelas pareciam apagar-se – e tugiu, antes de se atirar. – Deus me censure.
* Zero e vinte e um – despertou. Enquanto seu rosto se distanciava da superfície em que se encontrava, sentiu uma forte dor nos músculos do pescoço, que o fez gemer de forma angustiante. Depôs as mãos sobre a superfície, na tentativa de se levantar usando-as como suporte. Antes que se pudesse erguer, reconheceu que era sobre folhas de papel que seu tacto se acomodava. Elas estavam molhadas – na verdade, húmidas – e muito amarrotadas, provavelmente por causa do líquido que tinham absorvido e do peso que havia ficado sobre elas por algumas horas. Depois de alguns segundos de lucidez, ele deu-se conta de que havia adormecido quando tentava ler o seu poema, logo após a terminação da escrita do mesmo e que aquela cena em que se suicidava era apenas a retratação em sonhos de um desejo reprimido seu – sim, Carlos estava vivo; não, não morrera; tudo não havia passado de um pesadelo que o expunha como fraco, susceptível a engendrar tolices quando se visse sem solução, como qualquer, realmente qualquer, outra pessoa. Às nove e meia, enquanto trabalhava na barbearia, recebeu um telefonema em que o tema da conversa fora uma interessante proposta: se ficasse apto em todos os testes rigorosos, após ter austeras aulas práticas e aprender a fazer o uso mais conspícuo possível da Psicologia – teria de se sair bem no uso da observação, experimentação, entrevista, inquérito e método clínico –, teria um consultório individual num dos cantos da cidade. Finalmente uma notícia boa! Agora era grande a possibilidade de exercer a profissão que tanto desejava. Estudaria – com maior profundidade e oportunidade – o comportamento de inúmeras pessoas; não só saberia de suas aflições, problemas e complexos, mas também as ajudaria ao máximo que pudesse a encontrar alívio, soluções e liberdade em suas vidas. Carlos teria agora algo para se preocupar: o emprego de seus sonhos. E um emprego nunca decepciona; talvez o patrão ou os colegas o façam, mas o emprego como tal? Não, aquilo era incapaz de o desiludir. Que lhe importariam então Liliana, Derito e Susana?
*
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Terminara a hora do expediente; Carlos dirigia-se para o lugar onde vivia. Enquanto andava sobre as ruas poeirentas, pensava sobre a responsabilidade que Paula lhe deixara antes de viajar. Sim, Paula também havia viajado, e o havia feito três ou quatro dias antes de Susana, por causa do casamento de Maria do Céu e Tácito. Maria do Céu – que partida pregara à filha, fazendo-a pensar que ela, a filha, seria obrigada a casar-se com um homem com o qual nunca convivera antes; como no tempo e nas culturas em que os pais eram/são os que arranjavam/arranjam os cônjuges para os filhos! Não passara tudo de um mal-entendido. Maria do Céu voltara para Angola na noite em que havia encontrado Gisela, Janeth, Marlene e Paula em um estado nada agradável, não para atormentá-las novamente, mas para contar-lhes que havia descoberto um novo homem para a sua vida e que ela quis que Paula o conhecesse um pouco antes de eles, Maria do Céu e Tácito, dizerem-lhe que se casariam e que o casamento seria fora do país, sendo que toda a família do noivo se encontrava no país em que fora feita a operação a Maria do céu. Chegou ao seu apartamento. Tirou as chaves do bolso; abriu a porta; entrou. Visto que tinha de ir à Casa de Deus, fez rapidamente os preparativos para o banho. Quando subia para pegar a toalha e o champô, exactamente a três degraus de seu quarto, suas pupilas fitaram um envelope. Teria sido ele a deixá-lo cair quando saíra às pressas do apartamento de manhã para ir trabalhar? Que fazia aquilo ali? Apanhou-o. Quando o virou, para ver a parte traseira, tomou um susto. «De Liliana e Derito Para: Tio Carlos». Abriu rapidamente. Leu: Saudações, tio Carlos! Eu, Liliana, e eu, Derito, lamentamos muito o desenrolar triste e estranho deste problema que tem afligido o centro das emoções de todos os – ou da maioria dos – envolvidos nele. É nossa primitiva intenção pedir desculpas ao tio por o termos deixado sem dizer nada. Queremos por meio desta carta dizer-lhe que estamos bem e que nos encontramos em segurança. A mãe tem cuidado muito bem de nós – tem envidado esforços para que a nossa rotina seja o mais semelhante possível à que tínhamos com o tio, (o Lino Júnior agora só se cala quando houve o Adagio sostenuto de Beethoven). Falando ainda da mãe, ela contou-nos a história dos três degraus antes do quarto do tio Carlos. Por isso é que o envelope que contém a carta que o tio está a ler foi encontrado onde foi encontrado. As palavras loucura, insanidade e superstição passaram em nossas mentes; não sabemos se podemos dizer no bom sentido, mas o facto é que não parece que isto tenha que ver com amarrar um gris-gris à volta do pescoço como protecção contra os maus espíritos, confiar a Mami Wata a morte de um de vossos inimigos ou qualquer outra crendice sem nexo. (Viu como temos andado a pesquisar coisas novas?) Contudo, se superstição, conforme o dicionário que estamos a usar, é o «sentimento religioso baseado no temor ou na ignorância, e que induz ao conhecimento de falsos deveres, ao receio de coisas fantásticas e à confiança em coisas ineficazes; crença em presságios tirados de fatos puramente fortuitos e apego exagerado e/ou infundado a qualquer coisa, nos predispomo-nos a ser os primeiros a dizer que o tio está a entrar em maus ventos no que diz respeito à realidade e que precisa de livrar-se disso por levar em conta as palavras do Filho de Deus: «Se permanecerdes fiéis à minha mensagem, … conhecereis a verdade e a verdade vos tornará livres.» Queríamos escrever muito mais coisas, mas isso parece ser o suficiente, por enquanto; e a luz do monitor deste computador parece estar a corromper a vitalidade de nossos olhos; achamos que, dentro em breve, estaremos a usar óculos. Fique bem, tio. Confie no que dizemos; não o ludibriámos: Encontrar-nos-emos em breve. É sério, a três degraus do quarto. 132
P. S. (Liliana): A minha dúvida parece ilógica, mas se eu chego algum tempo depois de uma hora marcada, quer dizer que cheguei à frente do tempo combinado; como é que posso estar atrasada? Não cheguei atrás da hora, mas à frente. P.S. (Derito): Se corrigir consiste em eliminar os erros existentes em alguma coisa – se eu tirar 100% da nota numa prova, o professor ainda assim corrigiu o que eu fiz naquela folha de papel? P. S. (Carla e Pedro): Temos saudades suas.
* Vinte e uma e dezoito. Após ter saído do lugar onde ouvia inúmeros monólogos e diálogos sobre o ser Supremo, Carlos decidiu andar pela cidade no carro que havia adquirido havia alguns dias. Quando o seu telemóvel começou a tocar, encostou o auto numa das curvas. – Fala, Mauro! – disse ao atender a chamada. – Preciso que me venhas apanhar no Largo António Jacinto. Onde estás? – Na Tomaz Vieira da Cruz. O que é que aconteceu ao teu carro? – Nada. Quis andar um pouco, depois pensei que seria melhor conversar contigo. Há mil anos que não nos vemos. – Tu agora trabalhas com o teu pai, eu passo o dia todo a tomar conta da «empresa» da Paula; o único sítio em que estamos juntos é na Casa de Deus, mas tu sais tão rápido depois de tudo acabar… – Foi só hoje. E na terça-feira passada… e no sábado… e na quinta-feira passada… não é tanto tempo assim. Estás a gastar o meu saldo. Vem-me pegar. – Primeiro vou pegar a Beth, o Tinho e o Júlio na Ernesto Marecos; eles ligaram para mim há pouco tempo. Depois te pego. – 0K. Daqui a pouco. Enquanto suas mãos e seus pés davam direcção e locomoção ao automóvel, Carlos pensava na coragem que tivera ao aprender a conduzir. Nunca gostara de carros, bicicletas, skates ou qualquer destas coisas que possuem rodas. Mas, desde o choque que tivera quando descobriu que Susana, Eduarda e seus filhos o haviam traído, sentia-se vazio e entediado. Como lera certa vez, para que a vida não se tornasse monótona, era necessário que a pessoa se esforçasse a aprender coisas novas. Então, porque não se aventurar a aprender algo que nunca esteve em seus planos? Apenas teria de ter cuidado para não se tornar obcecado pelo veículo assim como Paula – ela nem conseguia sair do Cassenda ao Mártires a pé; se o carro estivesse estragado, chamava um táxi, como na vez em que esteve no apartamento de Carlos conversando sobre o comportamento humano e o ajudara a lavar a loiça. Depois de ter apanhado Júlio, Beth, Tinho e Mauro, deixou os três primeiros no lugar onde viviam, e levou o último para o seu apartamento. – «Não. Eu não gosto de carros. Por mim, nunca compraria um.» – disse Mauro ao entrar, imitando a voz do amigo. – Nós já tivemos essa conversa – ripostou Carlos ao fechar a porta atrás de si. – Quantas coisas não gostamos de fazer, mas fazemo-las bem? Por exemplo, quantas raparigas gostam de cozinhar, lavar e engomar? Poucas, senão nenhuma. Mas como o fazem? Maravilhosamente. Eu sou adaptável. Não é por dizer que não gosto de uma coisa que não a farei. Existem necessidades que aparecem com o decorrer do tempo.
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– Sim, sim, senhor troca línguas. Espera. Não precisas de dizer nada. Estava a brincar. Podes pôr este CD do Ravel? – perguntou Mauro, mostrando de forma exibicionista o referido. – Ravel?! Conseguiste o CD do Ravel? Ando à procura disso há mil anos! Posso ser eu a tirar o plástico? – O viciado és tu. Carlos livrou-se rapidamente do que encobria a capa do CD, andou valsando até o leitor, abriu-o e retirou o CD da capa; pô-lo a tocar. Por alguns segundos, com os olhos fechados, Carlos e Mauro deixaram-se hipnotizar por aquele som que lhes invadia a alma e os tornava livres de seus problemas por transformá-los em cativos seus. Meneavam a cabeça como zombies amantes de música clássica. Era excitante sofrer aquela incursão sublime – não sofriam às mãos daquele tom melodioso nem eram magoados e, se o fossem, era para que sentissem seu íntimo a encher-se de felicidade, sim, para que se sentissem efemeramente completos, como se nada faltasse em suas vidas. A sensibilidade apurada dos dois fê-los conjuntamente sorrir de forma suspirante. – Carlos – chamou Mauro, despertando os dois –, como é que vais em relação a Susana? – Sabes como é que reajo a essas situações: o assunto é entre ela e Deus, não lhe guardo ressentimento. – Parece muito teórico o que dizes. Se não te conhecesse, diria que escondes a tua dor, o teu pesar, por aplicar tenazmente tudo o que foi dito no Sermão da Montanha… Pareces usá-lo como recurso para tudo o que fazes ou, principalmente, para o que é feito contra ti. «Sede perfeitos, como é perfeito o vosso Pai celeste.» Não é fácil sê-lo. Não é fácil. – Eu tento apenas sê-lo. Há inúmeras coisas que ainda me fazem agir de forma parva. Mas tu também melhoraste muito. – Obrigado. Esse tempo todo que fiquei a ler a Bíblia de forma intensiva ajudou-me muito. Mas tive uma recaída quando vi que a Gisela, a Janeth e a Marlene haviam voltado, mas a Paula não. – Ao menos não tentaste suicidar-te como eu. – O quê?! Tu…? – Não, não te preocupes. Foi só um sonho. – Tens certeza? – Tenho. – Ainda bem. Senão teria de forjar um testamento em que dizes que todos os teus quadros ficam comigo – disse Mauro, fazendo os dois sorrir. – Como é que vai o teu trabalho na empresa do teu pai? – perguntou Carlos, após alguns instantes. – Desde que ele decidiu fazer da casa ao lado da nossa a sede da empresa, tenho trabalhado forte e suado na filial. – Bem, pelo menos agora podes tê-los em casa todos os dias. Temos de convir que eras um órfão com os pais vivos quando eles trabalhavam fora e exageravam nas viagens. – Yá, é um ponto. Eles têm tido realmente mais tempo para criar, na verdade é recriar, o único filho deles. Tu, tu até o momento ainda não te sentiste atraído por outra rapariga? Desde que a Susana…? – Ando a fingir que não. Mas as minhas constantes conversas com a Gisela têm feito com que eu a veja com outros olhos.
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– É, ela não deixa de ser, (como é que dizes?), «um monstro da sedução» e «uma junção perfeita de homem e mulher.» – Pode até ser, mas não é nada. É só o meu espírito tarado a exercer a sua função. Não estou realmente interessado nela. – E ela? – Não sei. Ela deve ter namorado, não? Pessoas com o comportamento antigo dela normalmente têm um parceiro, não é? – Não brinques com a miúda, pá. – Eh! Tu sabes muito bem como é que eu sou. Se detesto a ideia de ver alguém a brincar com os sentimentos da minha irmã, não posso brincar com os da irmã do outro… mesmo que ela não tenha irmão. Na verdade, a maior parte do tempo falamos sobre a Susana e as nossas antigas relações. – Cuidado. Pode ser por causa disso que ela vai apaixonar-se por ti. – Nem mo digas! Tive um caso assim no ano antepassado. Foi cruel, cruel. E tu? Tens alguém em mira? Eh! Essa minha pergunta não quer dizer que a Gisela está na minha mira, hein?
– Não precisas de te justificar. Não. Como tu, também não tenho. Ainda não sabemos realmente se essas miúdas nos deixaram ou não. E depois, onde vamos conseguir mulheres parecidas ou melhores? – Olha, isso é interessante. Eu estive a pesquisar e descobri que só daqui a uns dois mil anos é que o cometa Halley vai deixar cair os anjos originais dos quais a Paula e a Susana são protótipos. – Protótipos! – exclamou Mauro, sorrindo. – Acabaste de chamar a Paula e a Susana de rascunhos de anjos? – Mais vale ser um esboço de um ser celeste do que ser rascunho de um ser humano. – Pode ser. Mas um rascunho não deixa de ser um rascunho. É diminuidor, rebaixa. Gostei da ideia. Estás a passar a raiva de seres abandonado em implícitas palavras de zombaria – gracejou Mauro. – ‘Cê tá a gozar, você. – É o que parece. Vou fazer o quê? Carlos olhou para o amigo como se fosse dar uma gargalhada, sugou a lateral interior do lábio inferior para se conter. Levantou-se e foi em direcção ao amigo, movimentou as mãos como se fosse atacá-lo com um murro. Mauro cobriu o próprio rosto com a gravata, sorrindo de forma triunfal, depois de a ter abaixado. Carlos andou até geleira, pediu a Mauro que tirasse dois pacotes de sumo natural e pegasse o mesmo número de copos na estante e uma bandeja. Depuseram as cinco coisas sobre a mesa. Sentaram-se em posição de desafio. Entreolharam-se. Para que começasse o duelo, Carlos tornou-se audível. – Vamos ver se ainda tens estômago para acabar um litro dessa bebida espessa, senhor acusador de inocentes.
* Sexta-feira. Dezanove e quarenta e cinco. Carlos voltava suado para seu apartamento – havia acabado de correr há alguns minutos. Abriu a porta sorrindo consigo mesmo. Entrou. Quando tentava fechar a porta, alguém a empurrou bruscamente. Era Lino, extremamente furioso. – Onde estão os meus filhos e a minha esposa? – gritou ele ao entrar.
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– Eh! Mais calma! – disse Carlos, meio desequilibrado, por causa do empurrão que Lino dera à porta. – Pensei que eles estivessem contigo. Há quase dois meses que eles não estão aqui. – Mentes! Tu mentes! Convenceste-a a ficar com esse teu jeito de menino mimado. Onde estão eles? Responde! – Estás com cortes na audição? Eles não estão aqui. – Então diz-me onde estão, maricas – disse Lino, agarrando a gola da camisola de Carlos com as duas mãos. – Acho que necessitas da definição desta palavra. Mas, como nunca conseguiste ser um homem de verdade, um humano a sério, para todas as pessoas que conheces e te querem bem, acho que estarei a falar ao vento. – Maricas, maricas – disse ele depois de ter empurrado Carlos um pouco para trás, continuando a agarrar a gola do último com a mão esquerda, e dado dois leves tabefes com outra no rosto do cunhado –, eu sou mais forte do que tu. Não queiras entrar numa briga comigo. – Só se fosse tão desprovido de inteligência quanto tu é que o faria. Lino voltou a dar-lhe uma bofetada no rosto, só que muito mais forte. Num ápice, Carlos agarrou-o fortemente no pescoço, virou-o e arreou-o, fazendo com que a cabeça de Lino batesse contra o cadeirão. – Eu vou bater esse miúdo – disse Lino quase sem voz, enquanto Carlos lhe apertava o pescoço com mais força. Em milésimos, o cérebro e o coração de Carlos acalmaram-se. Não era a coisa certa o que fazia. Começou a soltar o pescoço de Lino aos poucos. Contudo, no mesmo instante, Lino empurrou-o com veemência. Carlos não se deixou desequilibrar. – Eu não quero lutar – disse Carlos. Lino acertou-lhe um murro nos lábios em seguida. Carlos passou a língua na boca e sentiu o sabor de seu sangue. Gostou daquilo – era algo que ele, Carlos, não tinha muita certeza até o momento, mas acabava de se certificar: gostava de dor. Permitiu que Lino lhe batesse mais algumas vezes. Quando Lino tentou novamente bater-lhe no rosto, Carlos cobriu-o com suas mãos, o que fez o primeiro sorrir desdenhosamente, por ter visto que o último não era tão insensível aos golpes que ele lhe dava. Lino tentou oferecer mais um murro a Carlos, mas quase caiu, por causa do empurrão que Maria Teresa lhe dera. – Sai daqui! Sai daqui! – gritou ela. Lino levantou-se. Mas, antes de sair, disse: – Todos os dias que me encontrar com esse maricas, ele vai levar uma boa porrada. Maria Teresa rasgou o ar com o dedo indicador fazendo um gigante x no vazio à frente de Lino, depois lançou de forma seca: – Vai-te! – Como é que estás aqui a essa hora? – perguntou Carlos à mãe, após alguns minutos. – Vim fazer-te uma surpresa… parece que o à imagem da estupidez já te fez uma. Machucou-te? – perguntou Maria Teresa, passando as mãos no rosto e nos braços do filho. – Nada que as plaquetas não consigam cobrir. – Acho que a jaula que o teu pai está a soldar terá um residente inesperado. Esse energúmeno precisa de estar preso. – Seria um género de paraíso se isso acontecesse. Vieste sozinha? – Queria que não tivesses feito essa pergunta.
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– Porquê? – Assim o Venâncio teria mais tempo para amassar aquele verme. – O Venâncio está aí em baixo? O Lino…? Carlos saiu disparado do apartamento. Desceu as escadas sem tocar em muitos dos degraus. Antes que pudesse alcançar o portão do prédio, a figura gigantesca de seu irmão mais velho cobriu-lhe a passagem. – Venâncio! – exclamou Carlos, agarrando os ombros do irmão. – Carlos! – exclamou o outro, abraçando-o. – O Lino…? – Não te preocupes mais com ele. Pu-lo a correr aos pontapés e tabefes desde o quinto andar. Há muito tempo que eu estava à espera dessa oportunidade. Desde que ele começou a meter-se com a Eduarda. – Ele não está muito ferido, pois não? – Não vi sangue nenhum. Bem que queria! – Sempre o mesmo Venâncio. – Sabes como é que o mambo é: sou calmo mas, se for aquecido, fervo. – Espero que não sejamos processados. Vem. Vamos subir. A mãe deve estar a fazer coisas estranhas lá em cima.
* Sábado. A conversa na noite anterior com sua mãe e seu irmão havia sido longa, mas reconfortante. Carlos sentia-se com mais ânimo. Haviam falado sobre as vantagens de sofrer nisto que é mormente dado o nome de vida, e que, se precisasse de apoio, todas as partes do corpo de seus familiares lhe serviriam de suporte. Não precisava de sentir-se abandonado ou solitário. Havia muitas pessoas que ainda gostavam dele e que estavam prontas para fazer o que fosse necessário para o verem bem. Tinha outros sobrinhos: Venâncio tinha dois filhos, Doroteia, três, e Raul, dois; ele podia visitá-los sempre que quisesse. Teceram também inúmeros comentários sobre o possível facto de Eduarda e os miúdos não estarem com Lino. Divagaram um pouco sobre os prováveis locais a que Eduarda teria levado os cinco filhos. Carlos sentiu-se mais seguro, talvez ainda viesse a ter a oportunidade de viver com aqueles que amava mais que a própria vida. Dezoito e cinquenta e cinco. Tirou a gravata e a camisa, após ter fechado a porta do apartamento. Dançou de forma provocante até chegar às escadas que o levavam até o lugar onde dormia. Enquanto subia os degraus, seus olhos viram um envelope no mesmo local onde havia encontrado o anterior. Apanhou-o. Abriu-o. Deixou que sua visão e seu cérebro fizessem o resto. Saudações, tio Carlos! Estamos a tornar-nos chatos, não? O tio deve estar a pensar como é que conseguimos entrar em seu apartamento e pôr estes envelopes onde os tem encontrado. (Acho que não, Derito. Ele deve lembrar-se muito bem que deu as chaves à mãe. Nós apenas as temos tirado sem ela aperceber-se.) Pára com isso, Liliana. Estou a escrever. Continuando, estamos a pensar seriamente em aparecer aí para conversar consigo. Já não parecemos capazes de suportar estas saudades. O tio pensou nas nossas questões? Quando nos encontrarmos, terá de responder a elas. (Que adjectivos novos o tio inventou? Eu
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estou com a mania de chamar «sapo nabóide» a quem faz coisas parvas. A Carla agora passa a vida a comunicar connosco numa língua inventada por ela mesma. Diz coisas como: «Na pick su ngaiaia?» e nós respondemos: «Ininza ininpeiza.» É, estamos cada vez mais loucos.) Continuas a interromper a minha escrita, doutora Conto-Tudo-Para-Que-Não-Haja-Surpresas-Quando-Nos-Encontrarmos-Com-O-Tio. Agora a única coisa que ele ainda não sabe é que o Pedro descobriu que a cura para a SIDA é iogurte com mabangas. Ops! É melhor eu parar de escrever. Receberá a nossa visita em breve, tio Carlos. Prosperidade e saúde. Dobrou o papel. Desceu as escadas. Abriu a geleira. Tirou um bidão de água, o único que se encontrava aí – estranho, porque se lembrava de ter posto mais alguns ontem. Sentou-se. Abriu o recipiente e deixou-se revigorar pelo gelado líquido. Releu a carta de seus sobrinhos. Ao levantar-se, sentiu-se zonzo. O mundo começou a andar às voltas para ele. Seus olhos abriam e fechavam de forma involuntária; era como se estivesse a perder o fôlego, não respirava em condições. Arrastou-se até às escadas. Ordenou aos pés e às mãos que o levassem até a sua cama, mas, a três degraus do quarto, tombou. Na manhã seguinte, alguém que possuía as chaves do apartamento abriu a porta. – Carlos? Carlos, onde estás? – perguntou a pessoa em tom manso. Teve a ideia de ir vê-lo no atelier, mas, ao virar o rosto para o lado direito, suas batidas cardíacas dispararam. Ele estava aí, caído, parecendo morto. Ela soltou um grito. Correu até ele. – Carlos! Meus Deus! Acorda, meu amor. Que desgraça! Carlos! Carlos! – gritava ela, balançando o corpo dele. – Acorda, Carlos! Acorda, miúdo! Eu não pensei que isso fosse acabar assim. Eu quis apenas realizar um dos teus sonhos. Por favor, amor, acorda! – gritou ela, chorando. – Susana… Susana, és tu? – tugiu Carlos, meio atordoado. – Sim, sou eu… – respondeu ela, pondo a cabeça dele sobre o seu colo. – Sou eu, querido. Estou aqui – dizia, acariciando-lhe o rosto. – O que é que te aconteceu? Pensei que estivesses com o Augusto… – É isso que eu quis que pensasses. Mas, na verdade, fui para poder realizar um dos teus sonhos. Eu nunca fiquei no mesmo quarto com o Augusto. Eu estava com a Paula. Contei a ela o meu plano. – Sonho? Que meu sonho? – Tens de levantar a cabeça, amor. Carlos conseguiu sentar-se sobre o degrau, o terceiro degrau antes de seu quarto; ela também estava sentada sobre o mesmo. – Eu faço tudo para creres que te amo – começou ela –, meu miúdo singular. Espero que até agora não te tenha dado motivos para duvidares que o que sinto por ti é verdadeiro. E, se dei, foi apenas para criar em ti ciúmes, para que o pedido que te farei agora tenha um maior impacto – disse ela, levantando o queixo dele e olhando de forma apaixonada, mas séria, para os olhos dele. – Carlos, fecha os olhos. Só abre quando eu disser. Ele obedeceu. – Eu fiquei hospedada com a Paula todo esse tempo, pensando se essa era a atitude certa a tomar, para ver se já estava pronta para tomar esta decisão tão séria. Nunca te traí com o Augusto, ou com qualquer outro homem. Nunca. Desapareci por alguns tempos para poder reflectir sobre a nossa relação e ter a certeza que é isso que quero. E descobri: é realmente isso que desejo. Espero que seja o mesmo para ti. Podes
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abri-los – pediu ela, fazendo com que ele obedecesse sem demora. – Carlos, queres casar comigo? Ele ficou mais atordoado com aquele pedido e, quando abaixou a cabeça e viu que entre as mãos dela havia uma caixa com um anel, sentiu todos os seus sentidos dormentes. Não – não podia ser. Ela lembrara-se que um dos sonhos dele era ser pedido em casamento pela mulher que amasse. – Sim, aceito – respondeu ele, beijando-a de forma angélica.
* Alguém acabava de tocar a campainha da casa de Mauro. Ele estava em companhia de seus pais. Visto ser o menor entre os três, levantou-se, para atender a porta. – Paula! – exclamou, ao abrir a porta. – Posso entrar? – perguntou ela, com olhar maroto. – Claro. Podes entrar. – Boa noite – cumprimentou ela, beijando as faces de Cristina e Manuel após ter entrado. – Bem, vieram expulsar-nos da sala, Cristina – disse Manuel, depois de ter visto a cara de ansiedade de Paula. – É, é realmente isso – concordou Cristina. – Estamos no quarto. Fiquem à vontade. Não tão à vontade assim – disse ela, depois de Mauro ter levantado a camisola, em forma de gozação. – Achas que te amo? – perguntou Paula, após terem ficado a sós e se sentado. – Eu… como é que posso responder a esta pergunta, depois deste tempo de ausência de tua parte? – Tendo em conta tudo o que me viste fazer, esquece o que não viste, achas que te amo? – Muito. Acho que me amas demais. Ao ponto de me mandares fuzilar se não ficar contigo. – Muito bom… é muito bom ouvir isso. Eu fiquei no mesmo quarto que a Susana todo este tempo. Havia pensado que a minha mãe quis casar-me com o Tácito, por isso decidi dizer à Susana que fugiria. Mas, quando a minha mãe me contou que ela é que casaria com ele, e depois de a Susana me ter contado o plano que preparara para o Carlos… – Que plano? – Não interrompas… eu pensei em fazer o mesmo que ela. – Fazer o quê? – Põe a tua mão esquerda sobre a minha coxa direita. Ele fez como ela lhe pedira. – Agora levanta o dedo anelar. Ele fez exactamente assim. – Visto que te amo – dizia ela, puxando algo do bolso de suas jeans – e que tu tens certeza disso, se eu te pusesse esse anel no dedo, e te pedisse: «Mauro, casa comigo», o que dirias? Mauro encostou os lábios na orelha dela e bafejou de forma ardente e suspirante: – Sim.
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* Domingo. Sete e quinze. Carlos acabava de acordar. Seu olhar e seu corpo emanavam felicidade. Desceu da cama. Calçou as chinelas. Começava a descer as escadas, quando uma voz lhe ordenou: – Pára! Ele parou. Olhou à volta e viu Liliana aparecendo em seu campo de visão. Ela posicionara-se bem à beira das escadas. Depois viu Derito andando em direcção à porta que estava entreaberta e ficar parado ao lado da mesma. – Não, não podes descer para abraçar-nos – disse Derito, com voz austera, mas com expressão facial alegre. – Tens de ficar mesmo aí, a três degraus do quarto. Carlos não conseguia dizer nada. Seria novamente uma alucinação? Não, não podia ser. Até o cheiro ameno deles conseguia sentir. Ficou calado por alguns momentos. Mas, antes que pudesse tornar-se audível, alguém empurrou a porta com violência. – Como é que não estás morto? – perguntou Lino ao entrar e curvado olhar para a direita. – Aquela dose era o suficiente para extinguir um maricas como tu. Liliana?! Eu sabia que me escondias algo, senhor maricas. Mas, como não terás tempo para te explicares – dizia ele, tirando do bolso do casaco um objecto –, diz algo inteligente agora! – ordenou ele, pegando um revólver com as mãos cheias de adesivos, por causa da surra que levara de Venâncio há dois dias. – Eu não sei como é que consegues descer tanto – disse Carlos. – Ainda tens voz? Mesmo com uma arma apontada às tuas fuças de maricas? És quase um homem; afinal, enganei-me. Pena morreres antes de assumires a tua masculinidade. Tudo a seguir aconteceu muito rapidamente: Apercebendo-se que seu pai atiraria contra seu tio, Derito bateu o pau da vassoura que estava atrás da porta contra a mão de Lino e Liliana lançou-se na frente do tio, sendo assim atingida pelo projéctil. – Liliana! – gritaram os três ao mesmo tempo. Lino tentou socorrer a filha, mas, visto que os vizinhos começavam a sair dos seus apartamentos, disfarçou o andar e saiu do prédio, deixando Carlos e Derito num desaguar angustiante de lágrimas e gritos.
* Oito e treze. O hospital estava cheio. Boa parte das pessoas do bairro interessava-se em saber do estado clínico da menina baleada acidentalmente pelo próprio pai. Embora não tivessem entrado no estabelecimento, permaneceram ali por algumas horas. Que alegria foi ouvir que o projéctil traspassara apenas um dos músculos do pescoço que se estende do occipício à décima segunda vértebra torácica – o trapézio – de Liliana! Ela estava fora de perigo. Quando ouviu aquilo, o rosto de Carlos transformou-se em algo monstruoso, cruel, sedento de vingança. Lino pagaria por aquilo, e fá-lo-ia com a própria vida. Visto que Liliana precisaria de fazer ainda alguns exames, Carlos abandonou o hospital às pressas, deixando Derito aos cuidados de um dos vizinhos que conseguira entrar. Teve de falar muito rapidamente com as pessoas que esperavam por notícias fora do hospital; quase que não se percebeu bem o que dizia sobre o estado de Liliana – com a fúria que possuía, as cordas vocais estavam entesadas, não conseguia relaxar os músculos da garganta. Procurou o causador daquela situação por todo o bairro. Algumas 140
vezes foi interrompido por pessoas que queriam saber mais sobre o triste acidente. Após algumas horas de procura infrutífera nas inúmeras partes da cidade, Carlos sentiu uma fúria ainda maior. Parou por alguns instantes, respirava com cólera. Seus olhos avermelhavam-se. Os dentes batiam uns contra os outros com implacável raiva. Para tentar acalmar-se, mordeu ferozmente a pele sobre a falange de seu dedo médio. Quando sentiu que iria arrancar a própria epiderme à dentada, largou-a, mas pôs a unha do dedo polegar entre os dentes e desenraizou-a com furor. Aquilo doeu-lhe bastante. Gritou com angústia. Acalmou-se. Momentos depois, decidiu voltar ao hospital. Quando chegou ao referido e tentou informar-se sobre os seus sobrinhos, a enfermeira disse-lhe que Liliana acabava de ser transferida para uma clínica a pedido da mãe da paciente – Eduarda aparecera e levara os miúdos. Tentou descobrir o local onde eles estavam, mas não lhe valeu de nada. Parecia que ninguém havia ouvido falar do nome daquela clínica em sua vida. Decidiu voltar para o seu apartamento.
* Dezanove e cinquenta e três. Eduarda voltava de forma disfarçada para o local onde se escondia com os seus filhos. Derito estava com ela e vestido da mesma forma. Tirou calmamente as chaves da sua bolsa, acariciou a cabeça de Derito, suspirou. Abriu a porta. Permitiu que Derito passasse à frente de si. Olhou de forma triste para o andar em que seu irmão vivia, depois entrou. – Mãe, o que é que aconteceu? – perguntou Carla. – Porque demoraram tanto? O Lino Júnior só parou de chorar agora. Está a dormir no teu quarto. – Depois te conto, filha. Deixa-me só tomar um banho e arrumar algumas coisas. Olha, tomem banho também. Vamos sair. – Para onde vamos? – perguntou Pedro. – Depois vos conto, 0K? Vão. Façam o que vos disse. Eduarda trocou-se e entrou no quarto de banho. Concedeu àquela água fria o prazer de lhe acalmar o espírito por lhe tocar a pele e os cabelos de forma doce. Quando terminou o banho, foi às pressas para o quarto. Nele, tirou o roupão como se o quisesse rasgar. Estava coberta apenas com roupas interiores quando Lino Júnior começou a chorar. Pô-lo em seu colo; ele calou-se. De repente, sentiu a presença de alguém atrás de si. – Achavas que te safavas de mim assim tão facilmente? – Como é que entraste aqui? – perguntou Eduarda, com voz e expressão facial assustadas. – O Derito estava aí fora a olhar para o apartamento do maricas, foi só apanhá-lo e entrámos. – Porque é que fizeste aquilo à Liliana? – A bala era para o teu irmão. Tínhamos combinado matá-lo se ele não deixasse os miúdos virem connosco, lembras-te? O teu plano era envenená-lo. Mas o pó que usei no bidão dele de água parece que apenas o fez dormir. O que fizeste? – Troquei aquele veneno por sonífero. Achas mesmo que eu mataria o meu próprio irmão? – perguntou ela, dirigindo-se para o guarda-fato. – Queres dizer que me mentiste? Traíste-me. – Traição! Ah! a palavra! Traição! Achas que não sei dos teus casos extraconjugais? – De que falas? 141
– Da outra família que tens e das outras mulheres com as quais dormes. Achas-me parva, não? Desde o dia em que aquela tua gravata desapareceu, comecei a desconfiar de ti. E quando me bateste então! Ah! que confirmação! Havias dividido os teus sentimentos românticos por mim com outras. A partir daí, planeei voltar para a minha família. – Usaste-me. – Quem o diz! Quando decidiste voltar para o Carlos, depois das duas vezes que liguei e não consegui dizer nada, para que ele deixasse os miúdos viverem connosco, aprimoraste apenas as minhas ideias. – Vaca! – Poderia dizer-te para chamares isso às com quem dormes, mas elas não merecem ser julgadas por terem sido contaminadas pelo teu vírus bovino. – Estás atrevida demais. Vais… – Vou o quê? – perguntou ela, apontando-lhe o revólver que acabava finalmente de encontrar entre suas roupas. – Vou o quê, hã? Diz-me! – Mereces realmente morrer. – Vieste aqui para me matar? – Já não o posso negar. – Derito, Carla e Pedro! – chamou Eduarda em voz alta. – Sim, mãe? – responderam eles da sala. – Vão agora ao apartamento do tio Carlos. Agora! Eh! – disse Eduarda a Lino, vendo que o mesmo se preparava para abrir a porta. – Aonde pensas que vais? A nossa conversa ainda não acabou. A cena parecia «fílmica», como diria Carlos: Ela apenas de roupas interiores, pegando o bebé com a mão esquerda e apontando firmemente o revólver contra o marido com a outra. Parecia excitante. Mas o que aconteceu a seguir estava muito longe de o ser. – Consegues realmente premir o gatilho? – perguntou Lino com desdém. – Achas que eu, às vezes, chegava tarde do trabalho porquê? Estava a receber treinamento profissional sobre essas coisas. – Querida, baixa a arma. Vamos conversar. – Sobre o quê? Para me explicares que só depois de teres passado dois meses com a tua outra mulher é que te lembraste de nos vir buscar? Não, não preciso, meu asno. – Não me chames isso, vaca! – Porquê? Lino pôs rapidamente a mão sobre o bolso de seu casaco e tirou um revólver, mas, antes que pudesse apontar contra Eduarda, foi atingido pelo projéctil do revólver dela.
* Carlos conversava com Raul, Doroteia, Venâncio – seus irmãos –, Ernesto e Maria Teresa – seus pais, quando sua audição o informou de que alguém abria à chave a porta de seu apartamento. – Tio Carlos! Tio Carlos! – gritou Derito ao entrar. – Tens de ajudar a mamã, tio Carlos! – disse ele, agarrando e puxando Carlos pela mão. – O papá está aí embaixo com ela. Talvez a mate. Anda, tio Carlos!
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– Aí em baixo, onde? – perguntou Ernesto, levantando-se. – Na casa que a mãe disse que seria uma filial da empresa dela – respondeu Carla. – Mas aí está sempre escuro. Como é que vocês…? – Por causa dos jornais que encobrem os vidros fumados – respondeu Pedro. – Também usamos só velas, às vezes, para que ninguém desconfiasse que estamos aí. Era uma surpresa que a mãe quis fazer ao… tio Carlos? Carlos já não se encontrava entre eles após as nove primeiras palavras de Pedro. Ele, Venâncio e Raul dirigiram-se de forma célere para o local indicado por seus sobrinhos. Encontraram a porta do referido aberta. Entraram com cautela. Vasculharam os compartimentos da casa – nenhuma presença humana. Quando descobriram sangue sobre o chão de um dos quartos, estremeceram.
* Depois de dois dias passados com extrema ansiedade, Eduarda apareceu no apartamento de Carlos na companhia de Liliana e Lino Júnior. Após uma séria conversa com seus irmãos e seus pais, que foram convocados assim que Carlos a avistara da janela de seu apartamento, Eduarda decidiu entregar-se aos que faziam vigorar a lei de César – foi a uma esquadra. Quando se encontrou dentro da esquadra, apresentou-se como a assassina de Lino, caso o mesmo fosse encontrado morto, mas não deixou de frisar que ele devia pagar pelo que fizera à filha, se fosse encontrado nele o mais ínfimo resquício de fôlego. Vinte e uma e trinta e sete. Após se terem separado de Mauro e Paula, Carlos ficou conversando com Susana em seu carro. Falavam sobre o futuro; trocavam ideias sobre o local em que viveriam, quantos filhos teriam e que fim deviam obrigatoriamente ter todas as discussões que tivessem. Com a velocidade de um relâmpago, alguém abriu a porta do carro e puxou Carlos para fora, enquanto dois outros advertiam severamente Susana, para que esta não tentasse sair do carro. Ela gritou várias vezes o nome dele, mas Carlos pediu para que ela se mantivesse calma e orasse quantas vezes conseguisse. Que diria ela a Deus naquele momento de aflição? Seus olhos, coração e cérebro concentravam-se no desenrolar daquela situação desconfortante – como poderia dirigir palavras ao Absoluto, quando se sentia atordoada, sem sequer conseguir raciocinar direito? Ela não possuía a frieza dele em situações aflitivas, mas entrelaçou os dedos e, sem deixar de olhar para o que acontecia, permitiu que seus lábios se movessem lentamente – orava. Carlos também tentou manter-se calmo, enquanto aqueles homens o revistavam de cima a baixo. Vendo que era o centro das atenções dos meliantes – já que não tocavam em Susana, não havia razões para se mostrar agressivo. Fecharam a porta do carro dele de forma cortês, para que nenhuma das pessoas que passavam por ali desconfiasse de alguma coisa, fazendo com que Susana ficasse sozinha no automóvel. Os dois que estavam do lado dela dirigiram-se até aonde o outro estava com Carlos. Voltaram a olhar para Susana de forma selvagem, visto que ela se preparava para sair do carro. Ela permaneceu no automóvel, tentando conter a vontade de gritar por socorro que a invadia, mas as facas nas mãos daqueles homens não pareciam de plástico; tinham um brilho metálico e uns dentes que provocavam pavor. Sem proferirem palavra alguma, fizeram-no andar com eles, até ao momento em que o atiraram para dentro de um carro e o levaram. Carlos acabava de ser raptado. 143
CAPÍTULO X O desespero reinava. Por três quartos de um mês não se obtiveram notícias sobre o paradeiro de Carlos – porque havia sido ele raptado e por quem? A pergunta «A mando de quem?» não permitiu que a ignorassem. O advogado de Eduarda tornou exequível a ideia da prisão domiciliar da mesma até que Lino fosse encontrado, para que fosse possível um julgamento mais egrégio e que ela pagasse uma multa considerável pelo porte ilegal de arma em vez de ser condenada à visão quadrangular do sol pela manhã. Visto que o dono do apartamento não estava, Liliana e seus irmãos, na companhia de sua mãe, foram hospedar-se na casa de Venâncio a pedido de Maria Teresa; assim correriam menos risco se Lino decidisse procurá-los. Mas tal abandono do local em que Carlos vivia resultou na invasão nocturna do mesmo por salteadores que levaram apenas a pasta onde se encontrava o computador portátil dele e destruíram o terceiro degrau antes do quarto do tio de Liliana, Derito, Carla, Pedro e Lino Júnior. Quem fizera tal coisa? E com que motivos? Quarta-feira. Dez horas. O telefone na casa de Venâncio tocava. Um dos filhos deste atendeu. Quando lhe foi respondida a pergunta de com quem a pessoa do outro lado da linha desejava falar, chamou: – Tia Eduarda! Telefone para ti. Eduarda apressou-se; pegou o auscultador. – Alô? – disse ela. – Não digas nada até eu terminar de falar – disse a pessoa do outro lado da linha. – Se quiseres livrar-te de todo o mal que me fizeste e voltar a ver o teu irmão outra vez, ouve com atenção.
* Algumas semanas depois, providenciou-se um julgamento – um dos mais efémeros e estranhos julgamentos. A pedido de seu próprio cliente – Lino Tchiva – que não se fizera presente de forma física, mas enviara cento e quarenta e quatro páginas informatizadas explicando tudo o que acontecera entre ele, Eduarda, Carlos, seus filhos e os familiares da segunda, a Acusação tornou-se audível por raras vezes. Quando se foi pedida uma garantia relativamente à autenticidade daquelas páginas, a Defesa pediu à Acusação que abrisse sua pasta e tirasse dela três cadernos escritos à mão que mostravam os rascunhos que Lino fizera relativamente à prova que se apresentava. Depois de examinado à base das assinaturas encontradas em muitos cheques de Lino Tchiva e de seu passaporte por alguns dias, não se pôde mais negar a autenticidade de tais páginas. Aquelas folhas apresentavam de forma clara que Eduarda havia agido em legítima defesa. Embora o caso esteja a ser estudado até ao dia da presença e Lino Tchiva esteja ainda a ser procurado para que a prisão lhe seja companheira, Eduarda recebeu o veredicto de inocente. Eduarda estava livre – livre para começar uma vida com maior felicidade e paz.
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* Após alguns dias, Júlio e Beth marcaram a data de seu casamento, Mauro e Paula decidiram casar-se na sexta-feira a seguir e Carlos e Susana na a seguir à de Mauro e Paula. O segredo de Liliana com o giz e o de Derito com as ferroadas de insectos foram acidentalmente descobertos por Raul. Para evitar dar um conselho que poderia parecer irritante aos sobrinhos, Raul contou-lhes apenas que um dos tios deles, Liliana e Derito, também fazia daquelas coisas quando criança, mas parou, não porque havia descoberto que contrairia inúmeras doenças incuráveis ou porque, com o decorrer do tempo, seus neurónios morreriam e por fim se tornariam débeis mentais, mas porque lera na Bíblia que pessoas realmente sábias purificavam a si mesmas de tudo o que torna impuro o corpo e a alma; e, temendo a Deus, vivem uma vida completamente dedicada a Ele e não O põem à prova, decidiu simplesmente abdicar daquelas coisas fúteis. O filho de Antonieta e Luís – aquele casal de idosos que Paula cuidava – decidiu fazerlhes uma visita depois de várias ligações de Gisela ao mesmo; e esta voltou a trabalhar no mesmo local que Marlene, Amélia, Edna, Neusa, Victória e Susana. Sábado. Dezoito e quarenta e três. Carlos conversava com algumas pessoas na casa de Ernesto e Maria Teresa. – Já nos contaste isso várias vezes – dizia Mauro – mas queres dizer mesmo que ele ficou estes vinte e dois dias e meio contigo...? Queres dizer que ele mandou que fosses raptado apenas para lhe contares o que aconteceu desde o dia em que ele ligou para ti pedindo o Derito e a Liliana de volta? – Sim – respondeu Carlos. – E usou tudo o que disseste para que a Eduarda fosse absolvida de qualquer crime – disse Paula. – Que forma mais estranha de amar – comentou Susana. – Talvez seja apenas exibicionismo – comentou Raul. – Porquê? – perguntou Carlos. – Há pessoas que são boas, ou muito boas, com as outras, não porque não as amam o suficiente, mas porque o desejo egoísta de mostrarem que o são suplanta (e como!) tal amor – respondeu o irmão. – É meio complexo entender o que acabaste de dizer – disse Doroteia. – Não, não me refiro às palavras, mas ao comportamento de tais pessoas. Como é que elas conseguem dar uma boa soma de dinheiro a um amigo só para provarem que são prestáveis? Como é que às quatro da manhã conseguem arranjar uma boleia para socorrer uma moça prestes a dar à luz apenas para sentir o sabor de mais um «muito obrigado; não sei o que faria se não fosses tu»? – Não fales muito disso quando estou por perto, Doroteia – disse Mauro. – Eu era um desses. Se continuares a falar ainda posso voltar a sê-lo. – Mas ninguém pode arguir inequivocamente que foi essa a intenção daquele incapacitado – interrompeu Ernesto. – Porque é que ele mandou aquele tipo execrável de pessoa roubar o teu computador e partir aquele degrau, Carlos? – Falei-lhe sobre as histórias que os miúdos escreveram – respondeu ele. – Há gajos com sorte. – Porque dizes isso? – peguntou Eduarda. – Um tiro do peito não os mata; fá-los agir de forma estranha e possivelmente sair como heróis como consequência – respondeu Carlos.
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– Ainda não disseste por que razão ele mandou alguém para destruir aquele degrau, filho – disse Maria Teresa. – É meio esquisito. Ele achou que assim me libertaria do meu pior defeito e o da Eduarda: o de sermos supersticiosos. – Vocês? – perguntou Paula, apontando para Carlos e Eduarda. – Parece esquisito, não? Mas acho que ele e os miúdos têm razão – disse Carlos. – Aquele degrau, directa ou indirectamente, prendia-nos num enredo supersticioso que arrastava também os à nossa volta. – Perdoem-me a interrupção, mas – dizia Susana antes de virar o rosto para Eduarda – esse veneno que trocaste por sonífero... E se o Lino tivesse comprado outro? Não achas que foi um pouco inconsequente o que fizeste? Perdoa-me se te ofendo. – É verdade o que dizes. Não há nada para perdoar. Comprámos o veneno há quase um ano. Ele experimentou em dois ou três cães da vizinhança, uns que ladravam muito à noite e que já era intuito dele livrar-se daqueles rafeiros há muito tempo, e viu o resultado que queria. Achei que nunca iria desconfiar se eu fizesse a troca. Na verdade, achei que nunca o fosse usar. Desde criança que acho que as coisas acontecem como eu quero... Desculpa-me, Carlos. E desculpa-me, Susana, por quase ter feito morrer o ser humano cuja boca te faz viver. – Esse teu humor... – disse Ernesto, sorrindo. – E as chaves? Como é que o à imagem da irracionalidade as tinha? – A culpada sou eu... outra vez – admitiu Eduarda levantando o dedo indicador. – Ele com certeza fez cópias das que o Carlos me deu. Se tivesse sido mais cuidadosa, a Liliana não teria passado por aquela terrível experiência. – Logo que ele entrou – explicava Carlos – e ouvi a voz dele, desci rapidamente alguns degraus. Eu estava tão perto da Liliana... Quando ele sacou da arma, abaixei-me para pô-la no colo ou puxá-la para subir as escadas e esconder-se no quarto, já não me lembro bem. Ele nem tinha visto o Derito... – Bem, chega de conversa triste e de explicações que dão sono – interrompeu Maria Teresa. – Como é que andam os preparativos para os vossos casamentos? – Alguém quer bodar aqui – disse Doroteia com leve sarcasmo. – As jovens que deviam ter o vício das farras nem o têm, mas ela! Essas Marias Teresas de agora... – Eh! É o quê então? Deixa-me em paz, filha. Diversão não tem idade. Por mais anos que a pessoa tenha, o sangue ainda circula – defendeu-se Maria Teresa, serpenteando o corpo com graciosidade; os outros limitaram-se a sorrir. – Espero que o sangue do Lino ainda circule – tugiu Carlos. – Porque dizes isso? – perguntou Susana. – O aspecto dele era péssimo, a voz... parecia estar a morrer quando me fazia perguntas sobre vocês e sobre mim. Uou! – exclamou ao sentir as vibrações de seu telemóvel. – Volto já – disse depois de ter tirado o aparelho de um dos bolsos de suas calças e se dirigido à cozinha.
* Domingo. Onze e trinta e oito. Divertiam-se na praia. – É minha! – gritou Gisela, batendo, fortemente a mão contra a bola. – E é golo! Fraquinhos, fraquinhos, fraquinhos... fracos. – Estás com muitos ares – disse Paula, sentando-se. – Estou cansada. – Vamos descansar então – disse Carlos, imitando a amiga.
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Carlos sentou-se. A seguir, Susana fez o mesmo à sua direita e Gisela à sua esquerda. Ele reparou por alguns instantes nas grandes cicatrizes no braço da última, depois deixou a cabeça cair sobre a areia. Fechou os olhos. Enquanto respirava fundo e sentia o suor escorrendo sobre sua pele quente, deixou-se embalar pelo som distante das ondas e das inúmeras vozes ao seu redor. De repente, todo o cenário ficou confuso, tumultuado, devido ao gélido grito que se ouviu num dos quadrantes da praia. Carlos levantou-se e dirigiu-se correndo até ao aglomerado de gente. Passou com dificuldade por entre as pessoas até chegar ao que as atraía aí: um homem deitado sobre roupas ensanguentadas. A grande e desarrumada barba não conseguiu esconder aquele rosto conhecido – era Lino, moribundo sobre a areia. Carlos aproximou-se mais do corpo, ajoelhou-se; tentou falar com ele. – Lino... Lino? Lino! – O que é que queres? – perguntou o quase cadáver. – Quem te fez isso? – Enfraqueceram a tua memória? A tua irmã... – E como é que vieste parar aqui? O teu esconderijo? Os teus amigos? – A polícia descobriu o lugar em que estávamos. Houve tiros. Eles foram todos presos. Eu consegui fugir, mesmo neste estado...
– Porque é que estamos aqui a falar? Preciso de levar-te a um hospital. – Não... Não! Deixa que eu sangre... sangre até mergulhar na morte. – Tu não precisas de morrer. Precisas apenas que te apertem algumas coisas na cabeça. Só não sei quem o conseguirá fazer... – Tu. Serás tu, maricas. – Carlos! Carlos! – chamou Susana enquanto batia levemente no rosto do namorado, fazendo com que ele abrisse os olhos. – Estás a dormir desde aquela hora, miúdo. – Onde é que estamos? – perguntou ele meio ensonado. – No carro e a voltar para a casa. Divertiste-te pouco connosco na praia. Passaste a maior parte do tempo aqui. – É. Por tua causa não demos mil a zero aos fraquitos do grupo da Paula – disse Gisela. – Não dizes nada, senhor dorminhoco? – perguntou Susana, acariciando-lhe o rosto. – Foi um sonho. Foi tudo um sonho.
* Duas semanas depois, Pedro, Carla, Derito, Liliana e Carlos lançaram seu primeiro livro. O livro, além de conter as histórias escritas, possuía também um complemento que as trazia em banda desenhada que podia ser adquirido por metade do preço; mas só o levava quem comprasse o livro com as histórias escritas. No fim da venda do livro, os miúdos contaram a Carlos que Lino havia aparecido e comprado alguns exemplares.
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Os preparativos para os três casamentos estavam terminados. Beth e Júlio saíam felizes da conservatória. Todas as pessoas que lhes eram próximas estiveram presentes. Quando a noite chegou, o copo de água ganhou vida. À esquerda e à direita os convidados fizeram uma parede humana, desde a entrada do local até ao espaço em que os recém casados dançariam a primeira balada. A música matrimonial tornava sublime a entrada de Beth e Júlio no salão. Chegaram ao centro. Trocaram a música. Júlio abraçou Beth. De repente, tudo era melodiosamente harmonioso para os dois, mas aquilo não durou muito. Ouviu-se o barulho de sirenes vindo de fora do salão. Oito policiais entraram. um deles desligou a música. Sem proferir palavra alguma, algemaram Júlio. – O que é que estão a fazer? – perguntou Beth, desnorteada. – Este senhor andou a apoderar-se de coisas que não lhe pertenciam. Agora uma cela lhe fará pensar duas vezes antes de fazer o mesmo. – Que é isso? Meu Deus! É verdade, Júlio? – perguntou ela, chorando. Júlio apenas abaixou a cabeça. – Façam alguma coisa, por favor! Papá? Mamã? Tio Guilherme? A multidão já cochichava. Alguns se preparavam para bater em Júlio por permitir que Beth passasse por aquela humilhação no dia de seu casamento, outros queriam ir contra os policiais. – Acalmem-se, acalmem-se – disse Carlos. – Tenho a certeza que isso se resolverá da melhor forma possível. – Sim, com este malandro na prisão, os nossos electrodomésticos estarão mais seguros – disse outro policial levando Júlio para a saída. Beth desfazia-se em lágrimas. Antes de se irem embora, um dos policiais chegou perto dela e perguntou: – Gostas mesmo desse homem? – Amo-o, senhor agente – respondeu ela, soluçando. – Farias tudo para estar com ele? – voltou a perguntar o policial. – O que fosse possível para uma mulher com uma barriga tão grande como a minha... Estou grávida. – É. Dá para ver. Espero que não o mates por causa disso. Toma – disse ele entregando-lhe uma corrente. – Puxa-o para si. – Não entendo – disse ela, recebendo o que o policial lhe entregava. – Puxa-o para si, Beth. – Puxa! Puxa! Puxa! – gritava a multidão. Beth fê-lo de forma calma; tremia. Júlio apareceu-lhe bem na frente, preso por correntes, trajando roupas de presidiário e no peito trazendo um cartão que dizia: «Eternamente teu». Beth sorriu. Quando ambos ficaram mais próximos, Carlos deu a Beth uma pequena chave, para que ela pudesse abrir o cadeado das correntes. Depois de liberto, Júlio rasgou de cima a baixo aquelas roupas, fazendo assim aparecer o elegante fato por baixo delas. Antes de beijar Beth e sentir um pouco do sabor de suas lágrimas em seus lábios, disse: – Quero estar preso a ti para sempre. Amo-te. Durante partes entrecortadas da festa, por causa do atendimento obrigatório aos convidados, e, durante a lua-de-mel, Júlio contou a Beth tudo sobre como havia preparado aquela cena. Todas as noites em que saía usando a falsa informação de estar a ir concertar alguns electrodomésticos, encaminhava-se, na verdade, para o local onde Mauro e seu grupo de teatro ensaiavam as suas peças – de facto, seis dos oitos policiais eram actores –, mas pedia a Carlos que fizesse companhia a Beth e a Tinho. Quando tudo estava perfeito para a execução, teve apenas de contar a alguns dos convidados –
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inclusivamente os pais dela – o que ele havia preparado como surpresa para a sua esposa.
* Passou-se uma semana – sim, era o dia de casamento de Paula e Mauro. Vinte e duas horas. O salão estava recheado de esplendor – havia até uma pequena piscina coberta por rosas vermelhas. Elegantemente posicionados – dois em cada mesa – estavam os garçons. Quando a sumptuosa limusina dos noivos apareceu à porta do local, todos se apressaram em ficar em pé. Vestidos de forma deslumbrante, quatro casais de crianças desceram do esplendoroso carro – Carla, Pedro, Liliana e Derito faziam parte dos mesmos –, dirigiram-se até a piscina e posicionaram-se, cada casal num ponto equidistante dos outros três: um na frente, outro atrás e os outros dois nas laterais. O clima sonoro foi tomado pela música matrimonial. O olhar de todos ficou preso à porta da limusina, mas ela fechou-se – inaceitável! – o carro meteu-se em movimento. De repente, as pessoas viraram o olhar para dentro do salão, por causa do estranho barulho de água e flores a cair que seu sistema auditivo captara – surpreendente! – uma espécie de elevador subia do meio da piscina. Depois de estar bem estabelecido, o elevador abriu-se de forma automática – lá estavam eles, Mauro e Paula, radiantes e felizes.
* Na semana seguinte, foi a vez de Susana e Carlos. O copo d’água deles não pode ser contado em pormenores por ter sido um acontecimento tão magnífico e fora do comum que qualquer palavra que o tentasse descrever não arranharia o mínimo sequer o intenso esplendor daquele evento. «Impar e apaixonatemente agradável», diriam alguns. Carlos havia superado a si mesmo na criatividade, mas Susana também o surpreendera, da maneira mais absoluta; esmerara-se. O único ponto que pode ser relatado com exactidão é o de os sobrinhos do noivo terem comprado as alianças com o dinheiro que tinham começado a guardar desde o dia em que ouviram que Susana e Carlos haviam voltado a namorar.
* Passados alguns meses, Carlos pôde explodir de alegria por causa do consultório que lhe fora concedido. No princípio, o atendimento tinha mais um cariz formal, mas, com o decorrer das sessões e do tempo, Carlos tornou-se mais achegado às pessoas que atendia. Aprendeu até a ser amigo íntimo delas assim que pusessem os pés em sua sala, se sentassem e começassem a falar sobre seus problemas. Susana continuou a trabalhar na boutique e no salão, mas nos que ela ganhou de seu tio. Estudar as pessoas pelo que vestiam e pelos penteados que escolhiam pareceu-lhe mais agradável e menos estafante. A cada dia que passava, convencia-se mais que deviam ter-lhe dado o nome de «Carla» quando veio ao mundo – sim, Susana 149
convencia-se diariamente que completava seu marido em detalhes em que nem ela mesma sabia como; sentia que se as pessoas nascessem com uma versão sua do sexo oposto que lhes servisse como complemento, ela sem dúvida alguma seria a de Carlos. Discutiam? Sim. Mas era apenas para endireitarem o que não ia bem e provar como consequência que ele a amava sem limites e que ela o respeitava profundamente. Eduarda, Liliana, Derito, Carla, Pedro e Lino Júnior voltaram a viver na casa em que a primeira construíra. Eduarda voltou a comunicar com seu Fazedor e a cumprir humildemente com suas leis – não era para seu próprio proveito? Era ela quem se beneficiava! Os miúdos, embora sem pai, desfrutavam do melhor ambiente familiar possível para aquela situação. Mauro e Paula aprenderam o sentido das palavras cordialidade e afecto. Ambos faziam o que conseguiam para proporcionar um ambiente digno – com amor, respeito e carinho – em seu lar. Com o passar do tempo , chegaram a construir uma grande casa, onde podiam cuidar dos idosos e mais algumas pessoas na mesma situação. Não permitiam que aquele local tivesse o aspecto de um hospital. Haviam-no construído dentro do quintal de sua própria casa. O ambiente era familiar. Era como se aquelas pessoas nunca tivessem mudado de casa; na realidade, era como se tivessem ganho uma casa melhor. Júlio, Beth e Tinho receberam com prazer Arlete – a filha que a segunda dera à luz. Janeth, Gisela, Marlene, Edna, Amélia, Neusa e Vitória continuaram cuidando do salão de Paula. Ernesto, Maria Teresa, Venâncio, Doroteia e Raul davam festas mensais de maneira revezada para todos os citados anteriormente.
* Treze anos depois. Terça-feira. Quinze e trinta e três. Carlos acabava de atender um paciente quando um outro que não havia marcado consulta entrou e fechou a porta à frente da secretária – facto este que fez com que a última se calasse, pois falava repetidamente ao senhor que não podia entrar naquelas condições. – Tens uma secretária gira – disse o homem ao sentar-se. – Obrigado – respondeu Carlos. – Aviso-o já que terá alguns problemas ao sair. – Porquê? – Não deve ter olhado para a cintura dela. Ela tem um cinto preto. Isso quer dizer que ela é mestre em artes marciais – gracejou. – Diga-me, porque entrou desta maneira? – perguntou ele calmamente. – Eu disse-te que um dia visitaria o teu escritório. Conversar contigo ao telefone tem sido... bastante interessante. Mas como te disse, tinhas de escrever um soneto e eu o viria buscar pessoalmente. Carlos sorriu. O rosto da pessoa que falava com ele havia mudado muito com o tempo. Havia deixado a barba e o bigode encontrarem-se, e usava óculos. Por treze anos haviam conversado apenas pelo telefone – o número aparecia sempre restrito quando ele ligasse para Carlos – mas agora ele estava aí, bem à sua frente. – Não tens medo que a polícia entre aí e te pegue? – Não. Além do mais, para que não sintas a tua consciência a pesar depois, liga para eles e diz-lhes que estou aqui. – Estás a brincar... – Não. Liga.
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Carlos ligou. Depois de ter falado com a pessoa do outro lado da linha em alguns segundos sobre o que acontecia em seu consultório e sobre a localização do mesmo, abaixou o auscultador. – Bem, eles vêm aí – disse Carlos. – Muito bem. Passa-me o soneto. – Tentei escrevê-lo da forma mais simples possível. Aviso-te já que o décimo segundo e o décimo terceiro versos nem eu mesmo sei o que quis dizer com eles. Acho que quis apenas rimar. Não estava a conseguir achar palavras melhores. Talvez tu encontres algum sentido profundo neles. Carlos tirou uma folha de papel de sua pasta e entregou-a ao senhor. Este recebeu-a ao mesmo instante que se levantava. Antes de sair, partiu alguns dos quadros que estavam na parede e jogou a cadeira em que sentara contra um grande vaso ornamental num dos cantos. – É para ser mais verdadeiro para quando eles chegarem – disse o senhor, sorrindo. – ‘Cê é maluco – disse Carlos com um sorriso maroto nos lábios. O senhor saiu. Alguns segundos depois, enquanto ele e sua secretária tentavam arrumar a sala, entrou um lindo casal de miúdos. A mais velha tinha onze anos e o menor, sete. – O que é que houve aqui, pai? – perguntou a mais velha. – Raquel e Hélder. Como estão? – saudou Carlos. – Estamos bem, pai – respondeu o mais novo. – O vento deu uma festa aqui dentro? – Não foi nada... de grave. Como é que correram as vossas aulas? – Vamos responder à tua pergunta quando estivermos em casa – respondeu a mais velha. – Ei, pai! – dizia o mais novo – encontrámo-nos aí embaixo com um senhor que eu nunca tinha visto em minha vida. Ele deu-me um beijo da testa e beijou as estranhas bochechas da Raquel. Diz então a essa tua filha para não arranjar namorados malucos. – Pai, viste quem começou. Quando ele voltar a ter um galo na testa, não me responsabilizo. – Vocês são mesmo meus filhos – disse Carlos, sorrindo. – Por mais que ela quisesse, aquele não era o namorado da Raquel, Hélder... – Pai... – ... era o vosso tio mais louco. O pai dos vossos primos que anda desaparecido: Lino Tchiva.
* Três dias depois, toda a família Banzaia e todos os que lhes eram próximos – incluindo Mauro, Paula, Júlio, Beth, as primas e a mãe da segunda e os pais do primeiro – receberam um compêndio com o título A três degraus do quarto em suas casas. No fim do mesmo havia o soneto que Carlos havia escrito, e uma nota do autor: A três degraus do quarto Por tudo e qualquer, sou superstição De facto, superstição ambulante
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Ah! O meu começo foi hilariante: Vim como ponto de consolação Suscitei confiança no coração Pude aprisionar dois seres pensantes Dei a eles personalidade – em vão, Eliminaram-me ao ver as correntes Foi sobre mim que fizeram um pacto O lugar em que sentiam mais firmeza Foi sem dúvida a três de graus do quarto Nada fazem agora sem pureza Aprenderam muito sobre contacto Carlos e Eduarda vão à madureza NOTA: Não existem palavras ou sentimentos para explicar a reles forma de agir de Lino Tchiva. Não há nada que exija que o perdoem, nada que o amem. Contudo, ele parece agradar-se da vida que leva no momento. Não tem a consciência pesada por tudo o que fez – admira-se até! Se a máquina de voltar no tempo já estivesse pronta, ele garante que faria tudo exactamente como o fez – talvez pior ainda. Sim, ele continua um feito à imagem da irracionalidde. Todavia, encontra-se em melhores condições que todos vocês, esperando que a ninguém irrite o facto de ter sido ele o escritor deste livro. Fim
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