2 paixao literária

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NGOMA USUKU

Pelรกgio Jorge Chaves Seca 1


CAPÍTULO I Numa madrugada fria, fria como o fogo apagado numa noite de Inverno, um grupo de seis pessoas tentava em vão acalmar os nervos que de segundo a segundo exauriam a força da esperança que tentavam manter. No meio deles, debruçado sobre a cama, um menino de mais ou menos dois anos de idade ardia em febre; tremia, revolvia os olhos, chorava. A mulher que em seguida o colocou no colo – sua avó – passava-lhe quase que descoordenadamente bálsamo sobre o corpo nu enquanto permitia que as lágrimas lhe humedecessem o rosto; o homem ao lado dela – seu avô –, por causa do desespero, culpava-a por tal situação; o homem que lhe vestia os calções – seu tio – nada dizia, mantinha somente sua expressão facial séria e austera de costume; a rapariga e o rapaz assentados do outro lado da cama olhavam melancolicamente para ele balbuciando as mais imperceptíveis palavras de sua vida; o homem que estava mais distante deles – seu pai – com a cabeça mergulhada entre os braços, coberto apenas por uma toalha carmesim, apresentava de forma amarga e desesperada seu monólogo a Deus, jurava que deixaria de ser viciado naquilo que era viciado se Ele concedesse àquela criança a oportunidade de desfrutar da vida pelo período estipulado aos humanos em sua Palavra, se possível um pouco mais. A febre não parecia querer abandonar aquele corpo infantil, nem diminuir. Seus avós e seus tios sofriam. Seu pai sofria. Ele sofria. Que aconteceria àquela criança? As pessoas apavoram-se.

* O dia já se havia pintado de noite. Na varanda de uma das vivendas da cidade, decorria um alegre e romântico diálogo que acabaria de forma triste. – Tens razão, mas só um pouquinho – disse ela. – Um pouquinho, Sara? Ainda tens o poema que te dei concernente àquele dia? – perguntou ele, fazendo com que ela concordasse com a cabeça e com o olhar aceso. – Vai pegá-lo. Ela levantou-se, desapareceu do campo de visão dele por alguns segundos e, quando reapareceu, trazia entre suas mãos um caderno roxo. – Cá está, senhor Márcio – disse ela ao sentar-se. – Mostra-me. – Sem problemas. Olha! é mesmo o primeiro poema! Eu vou ler para ti: Nosso encontro Estava hesitante Não sabia se devia aparecer Queria te encontrar Mas o desejo era inconstante Tinha medo de te voltar a ver Um pouco tarde cheguei Foi de propósito

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Mas que tu compreendes sei Aquele foi o meu primeiro encontro Te abracei – Foi o que fiz logo que cheguei Alguns minutos depois saímos Tremi – contigo ficaria a sós A culpa é dos meus instintos À entrada do Parque Para nós procuraste um lugar Não estou a exagerar quando digo que Em tua voz senti a malícia a exacerbar Nos sentámos A música no local estava alta Um para o outro olhámos Começou então a conversa perfeita Muito falámos Sobre as tuas e as minhas relações passadas Pouco nos tocámos O mais importante foram os olhares e as palavras Porque de minhas mãos tinhas medo? Será que és assim tão fraca? Porque controlaste a tua paixão desde cedo? Será que achas que sou dos que simplesmente ataca? Estavas a fingir Ou algo forte por mim sentes? Será que percebeste que O risco de ficar comigo até o fim corres? Desculpa-me por no colo te ter posto Não resisti Achas que mais para louco estou? Querias dizer algo importante, eu vi O encontro teve de acabar Será que cheguei a te magoar? Fiquei com o teu caderno Não há dúvidas: és o veneno És o veneno que eu procurava O veneno que há muito desejo És o veneno que eu almejava O veneno que em outras raparigas não vejo Doeu-me ter de te deixar Espero que não te tenhas sentido sozinha Mas me esqueci de te perguntar: Sara, aceitas ser minha?

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– Vês? – perguntou ele depois de ter acabado de ler. – Estavas acanhada também. Tímida é a palavra certa. – Tu é que sabes. Para mim, eu não estava… tanto assim. Sorriram. – Sara… – Márcio? – Quanto àquilo que falaste sobre os teus pais quererem que nos casemos por não teres ido trabalhar anteontem… – Isso te deixou triste, não? – Muito. Não que não queira casar contigo, mas – ele deixou que longas reticências tomassem o lugar de suas palavras, enquanto retirava da pasta um caderno vermelho – melhor do que eu, este poema vai te expor o que senti. Escrevi-o no mesmo dia… anteontem. Podes lê-lo em voz alta. Ela recebeu o caderno das mãos dele, fitando-o com olhar brilhante, maternalmente brilhante. Folheou o caderno; leu: Obstáculos Precipitação de lágrimas E eu nem sei bem porque choro Surgem repostas sem perguntas Minha angústia é um triste coro Os que nos querem ver juntos – quais são? E os que não querem – onde estão? Agora que encontrei a rosa desejada Porque são postos tantos obstáculos? Porque o desejar fazê-la sentir que é amada Está sujeito a errados cálculos? Se sinto tua agradável fragrância – tumultos! Se acaricio tuas pétalas – ódio de muitos! Ainda não provei o teu pólen Mas esta verdade não convence a ninguém Serão essas as provas De que juntos devemos ficar? Ou as amostras De que devemos nos separar? Como? Querem que nos casemos já?! Não que eu não te queira ter comigo Mas o que é que eles andam a pensar? Quem são as abelhas traiçoeiras E o florista atencioso para ti? Sei que eles querem o teu bem-estar Mas precisam ser tão radicais assim? Desculpa-me se exagero na interrogação Mas não consigo engolir tanta conspiração Preciso me conter…

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Eu já te tenho, não? Também não é meu desejo te deixar ir És perfeita demais para ser de outro coração Não te posso deixar fugir Não penses que estou a exagerar Só quero que saibas que tua forma de falar Me convence que da inteligência és companheira E que ao meu pensamento relâmpago te ajustas Quando te expressas és certeira Em contestar não hesitas Não – não podes pertencer a outro Queres o porquê? Eu dou-to: És a Sara de Sousa Bernardo É com o Márcio Nassembe que teu destino foi traçado Estou cansado de temer o nosso futuro Fazes parte de mim – estou errado? Será que eles não podiam ser menos duros? Sinto a tua dor Preciso de teu calor Choro a tua tristeza Não temas – serás sempre minha princesa Sara, a eternidade de nosso relação nos espera Tenho certeza – O que é que achaste? – perguntou ele. – Lindo. Muito lindo. Márcio, tu te sentes feliz ao meu lado? Fale sinceramente. – Nunca me fiz esta pergunta. – Eu devo te trazer muitos problemas, não? – Não te amaria se não mos trouxesses. Eu gosto de dificuldades… – Eu sei, mas… Tu me amas mesmo? Sê sincero. Podes me magoar à vontade. – Estou à espera que me dês garantias que eu te deva amar como nunca amei as outras mulheres que passaram por minha vida. – Eu sabia. Passamos por tantas coisas maravilhosas esses sete meses. És especial, Márcio… – Mas…? – Mas vou fazer o mesmo que fizeste a pouco. Ela levantou-se e tirou de uma das gavetas uma pequena moldura castanha de cartão e entregou-lhe. A textura da moldura era aveludada, e em cima dela estavam duas páginas fechadas. Ele abriu-as e leu: Serás tu? És tu, Lindo rapaz, O escolhido de meu coração? Mereces tu tal traição? Amar-te seria uma bênção Estar contigo – uma emoção! Tudo tens feito para me agradar E eu – o que é que te dou de volta?

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Olho para ti com tanto respeito Que medo de te fazer feliz sinto Por ter um coração dividido, aleijado Entre o sonho e a realidade Jamais desejo que te esqueças de mim Mas prender-te seria egoísmo de minha parte Porque me fazes tão bem e eu te faço mal? A vida tem sido injusta com os que amam demais Pedir-te um tempo será um castigo Mas terei de fazê-lo Se algum dia quero estar a sós contigo Ou jamais isso acontecerá Talvez o nosso amor não esteja escrito No livro das paixões infinitas É muito pecado junto Não ser possuída Pelos teus pensamentos mais infinitos Perder a oportunidade De viver um conto de fadas Serei tola demais para ver Que estou pedindo para ser apagada? Feliz queria fazer-te para sempre Mas a luz no fundo do poço Ainda distante está Será indícios de amor impossível? Meu coração castiga-me Por ser tão assanhada: Querer dois amores eternamente Perdoa-me, meu bebé Por não corresponder às tuas expectativas Mas saiba que para sempre tu serás E que saudades deixarás para sempre Ele ficou calado por algum tempo, depois tornou-se audível. – É isso que tu queres? – É. – Então não posso fazer nada, miúda. Quem ama liberta.

* – Boa noite, mãe – cumprimentou Márcio ao chegar à casa. – Boa noite, filho. – Vim ver o Bruno. Como é que ele está? – Apesar do susto que ele nos pregou de madrugada, está a recuperar-se. Apanhou algumas injecções do Doutor Santiago. Está aí no quarto a dormir.

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Márcio pôs-se dentro do quarto. Sentou-se ao lado da criança. Enquanto acariciava a testa tépida do menino, as lágrimas se precipitavam de seu rosto. Agora já não precisava viver para agradar a uma mulher insegura que a poucos minutos lhe destroçara o coração; vivia agora com base no juramento que fizera na madrugada daquele dia – sim, vivia para seu filho. Sem perceber bem o que fazia, seus dedos abriram sua pasta, tiraram o caderno vermelho e uma caneta. Começou a escrever. E se eu me perder…? Sem vontade de escrever esse poema estou Preguiça, mágoa, tristeza A viver o mesmo dilema minha vida voltou Amei quem de seu amor por mim não tem certeza Mas a folha está bem aqui à minha frente O lápis convida-me Se falar sobre ela, ficarei curado ou mais doente? Amiga dessas horas, ajuda-me! Ela pediu-me um tempo pela quarta vez Magoou-me pela terceira Olhas para o meu rosto – o que vês? Achas que levei aquilo a sério ou a brincadeira? Sim – ela é muito inconstante Não sei se desisto ou levo este sentimento adiante Preciso ouvir-te – Amiga dessas horas, pronuncia-te! Porque aceito sempre que elas me magoem? Porque não luto para que mudem de pensamento? Porque será que rio das palavras delas que doem? Porque no final têm todas o mesmo comportamento? Será que o que elas fazem comigo não me interessa? Sim – não quero saber o que elas fazem ou deixam de fazer Estou a ser preparado para algo maior – não tenho pressa Amiga dessas horas, não tens nada a dizer? Penso seriamente no que ela me disse: Sermos só amigos por enquanto Gostaste de ouvir isso? Confesse Mas isso é fácil – eu aguento Preocupa-me mais se for eternal: Sermos amigos para sempre – que mal! Mas, como já disse, Não me interessa o que elas venham a fazer Amiga dessas horas, e se eu me perder? E se nos encantos da Príscila eu me perder? O que farei se a Ester mais adulta me parecer? E se meu coração que eu sempre quis a Raquel reconhecer? O que farei quando o número da Gabriela eu reaver?

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E se eu nos braços de alguém que ainda desconheço me perder? A Eugénia ser um bom começo parece – O Jacinto concorda E se a Mariana aparecer como um anjo do além de repente? Amiga dessas horas, não apanhes sono, acorda! Que resposta se ela desejar voltar darei? O que se ela não o fizer farei? Acho que a minha ideia sobre namorar bem não lhe expliquei: Conversar com ela para mim basta – O que mais quer ela? Eu não posso estar solto, Me conheço É uma necessidade a alguém estar preso – É só o que peço Vou mexer com corações por tudo e por nada Amiga dessas horas, quando terei a minha primeira namorada? E se no meu próprio jogo eu me perder? Impossível – bem os meus passos planejo No mar das paixões sou hábil, não me afogo Mas dos femininos abraços longe não consigo me manter Como o meu novo amor se chamará? Comigo ficará? Negra, ruiva, loura – de que tom de pele será? Para eu esquecer esta dor – o que fará? Amiga dessas horas, a estupidez minha causou-te ais? Por favor, embora não te vais Seriamente, minha paixão por ela começa a esfriar Já sei, já sei: isso não é para ti mistério Também quero saber se ela algum dia me vai amar De me perder por outra rapariga tenho ânsia e medo Não que eu queira confusão – não gosto de intrigas Olho para ti e começo a me interessar Amiga dessas horas, que pena seres apenas minha amiga… Desculpa-me, era um devaneio sobre a minha mente a passar

* – É verdade, ontem ficámos a esperar por ti, Márcio – disse Júlia. – Porque não vieste nos pegar? – A Sara ligou para mim; disse que era urgente – respondeu ele. – E nós que já tínhamos combinado contigo ficámos às moscas. És muito mau – disse Alda, batendo o seu punho contra o ombro do irmão. – 0K. Reconheço… que fiz uma coisa errada. Mas também sei que vocês não ficaram a esperar por mim por muito tempo. O Jacinto e o Edgar disseram-me que aqueles vossos amigos passaram aqui e vos levaram. – Mentira! 0K. É verdade – reconheceu Alda. – Mas isso não…

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– Porque não mudamos de assunto? – interrompeu Júlia. – Vocês têm visto a Helena? Ela e a Salomé andam muito desaparecidas. E se fôssemos visitá-las? – Sabemos muito bem se queres visitar quem naquela casa, não é Alda? – perguntou Márcio, fazendo sua irmã sorrir. – Mas, vamos. Só que a essa hora? São nove e trinta e quatro… – Que importa? Tu estás na minha desde as oito e meia. – Está bem, Júlia – disse Alda para acalmar a amiga. – Vamos. Levantaram-se. Dirigiam-se às gargalhadas à saída quando a campainha foi tocada. Júlia abriu o portão. – O Márcio está aí? – perguntou o rapaz respirando de forma ofegante. – Está – respondeu ela. – Entra, Edgar. – Márcio – disse ele ao avistar o irmão –, pega rápido nas chaves do carro. O Bruno desmaiou.

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CAPÍTULO II Os dias arrastaram-se até chegarem a duas semanas. O menino estava bem – Bruno estava bem. Foram precisos exames, muitas noites sem dormir e uma boa soma de dinheiro para que ele se recuperasse totalmente, por enquanto. O problema respiratório que ele tinha não conhecia cortesia, surgia sem aviso prévio, assim como a mãe de Bruno. – Gabriela! Que surpresa agradável! Entra – convidou Alda. – Oi, mocinha. Obrigada. Vim ver o Bruno. – Não estás com sorte. Foi passear com o pai dele. Mas já devem estar a chegar. – Estás sozinha? – O pai e a mãe estão no quarto. O Edgar saiu com o Jacinto. – Como sempre. – E o Narciso está no quarto a ler. Senta-te. Vou chamá-los. – Não, não é preciso – disse ela ao acomodar-se. – Eles devem estar ocupados com algo mais importante. Eu posso ficar aqui sozinha. – Que é isso? Faço-te companhia. – Eu posso ficar aqui sozinha? – perguntou de forma cínica. – 0K. Tu é que sabes… esquisita. Estou no meu quarto. Gabriela Velosa Luvana era de altura média. Era mestiça. Possuía um rosto lindo – não, esbelto era o adjectivo certo. Tinha compridos cabelos escuros e sedosos; os olhos eram grandes e castanhos; suas formas não eram perfeitamente femininas, mas encantavam – sim, foi com esta mulher que Márcio teve um filho. Mas não por paixão ou por amor, mas por loucura e uma forte dose de imaturidade. – Chegámos! – exclamou Edgar ao entrar com Bruno sobre os ombros. – Mamã! – bradou Bruno assim que suas pupilas fitaram Gabriela. Ela levantou-se, andou rapidamente até eles e pegou o menino no colo. – Tudo bem, mocinho? – perguntou ela. – Sim – respondeu Bruno. – E a tua vida tá boa? – Está, está boa – disse ela sorrindo. – Boa noite, mocinhos. – Boa noite, Gabriela – responderam Edgar e Jacinto meio irritados com o cumprimento dela. – E o Márcio, onde está? – perguntou Gabriela. – Ficou a conversar com a Judith – respondeu Edgar. – Judith? – A prima Judith. – E quando é que ele volta? – Não sei. O telemóvel já foi criado; se o usasses saberias. – Um teu familiar faz chover saldo todos os dias… – Vamos embora, Jacinto. Sou alérgico a sarcasmo. Tchau, Bruno. – Tchau, tio Edgar.

* – São vinte e duas e dezassete, Márcio – alertou Judith.

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– Deixa as horas em paz, irmã. Eu vou dormir aqui. – Tu é que sabes. Pareces abatido. E não me digas que é por causa do Bruno. – É o meu coração. – Não tentes me aldrabar. Sei que tens problemas cardíacos e que sentes algumas pontadas de vez em quando, mas nunca mais tiveste um ataque, desde a época que a Gabriela te disse que estava grávida.

– Nem me faças lembrar. Mas não é desse coração que falo. – Oh! O teu mambo te trouxe problemas? – Outra vez. A Sara… Depois te conto, yá? – Tá bem. Também daqui a pouco o meu mambo vai ligar para mim. Tchau. – Tchau. Márcio ficou só naquela enorme sala. Tentava enganar-se; dizia que já havia esquecido aquela mulher no curto espaço de duas semanas. – O um acaba onde o dois começa. – disse ele para si mesmo. Mas não é assim no mundo das paixões. Não basta dizer que já não se gosta de alguém para que tal sentimento desapareça. Ele sentia raiva de si mesmo. Porque tinha de se submeter às tolas regras do mundo romântico? Por mais independente que almejasse ser, por mais livre que desejasse tornar-se das paixões e seus acompanhantes, não passava de uma marioneta: só amava quando eles mexessem o fio do amor, só esquecia quando eles mexessem o fio do esquecimento. Triste situação a dos que se apaixonam sem serem correspondidos. Tentou não dar o braço a torcer quanto ao que seus dedos queriam fazer, mas em vão. Pegou numa folha; escreveu: Sonho contigo Magoaste-me Má para mim foste Deixaste-me À nossa relação um fim puseste Contudo, sonho contigo Quase todas as noites A minha mente invades Coisas como tais dizes: «Voltei Aqui estou Bem pensei Só para ti sou Aceita, por favor Que as coisas sejam como antes: Tu me dás amor, Muito carinho e alguns presentes Eu também assim farei Mesmo distante Contigo estarei» Cérebro estúpido – Faz coisas que coragem de admitir não tenho Que caos – Comandas o que enquanto estou a dormir vejo

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Deixa-me em paz, miúda Mal só me faz (escuta!) Sonhar com alguém que não consegue estar um mês comigo E pensar muito em uma pessoa que só sabe dar para trás Estar contigo É um risco que não quero correr mais Mas, se é verdade o que digo, Porque sonho contigo?

* Desenrolaram-se oito meses. Estava livre – era livre! Sua descomedida atenção ao filho e ao trabalho lhe permitiam voltar a respirar sem tristeza. Para que não voltasse a sofrer daquela forma, proibiu a si mesmo estritamente entregar-se novamente a uma paixão. Namoraria com as revistas, casar-se-ia com os livros, teria filhos – não, já tinha um, pensar em ter outros lhe trazia à mente o triste facto de se ter envolvido com Gabriela Velosa Luvana naquela manhã; namorar com revistas e casar com livros era o suficiente, cogitar numa possível descendência estava fora de questão. Seus amigos tentaram algumas vezes pô-lo em contacto com mulheres que faziam o jeito dele, mas foi infrutífero. Jeito – haveria realmente um jeito de mulher para um tipo de homem? Não havia sido isso apenas um pensamento eclodido da mente oca de pessoas preconceituosas que desejavam que abastados ficassem com abastados, pobres com pobres, intelectuais com intelectuais? Porque criara Deus homem e mulher? Não eram diferentes? Não era um o complemento do outro – um género de afinidade entre parafuso e porca? Que tinha isso que ver com classe social, tom de pele, cultura e forma de pensar? Mas meditar sobre as respostas a estas perguntas já não lhe interessava. Os apaixonados que discutissem sobre tal. Márcio se manteria a distância de tais assuntos, até o aparecimento dela naquela noite. Seu nome: Vasconcelos – Abigail Vasconcelos. Notavelmente graciosa: testa pequena, sobrancelhas delgadas, olhos castanhos e brilhantes, nariz idílico, lábios sedutoramente sem adjectivo – rosto encantadoramente formoso –, pescoço esguio; o elegante vestido sobre seu corpo deixava transparecer uma silhueta de tirar o fôlego, a pele macia e cintilante possuía um tom lustroso, de negra lustrosa; não havia qualquer instrumento de medir no local, mas via-se que era alta e não acima do peso – sim, parecia uma princesa na forma de um anjo ou um anjo na forma de uma princesa, um anjo-princesa. Márcio sentiu-se tentado a ir trocar algumas palavras com aquele excelente espécimen feminino, mas ela estava ocupada conversando com Alfredo e Mendes e mais duas mulheres. Melhor para ele, não teria de abdicar de seus pensamentos contra as mulheres tão cedo. Ficou a observá-la de longe. Alfredo e Mendes eram seus amigos de infância – o primeiro estava com trinta anos e o segundo com trinta e um. Não os via há muito tempo, desde a época em que os dois haviam sofrido um grave acidente e levados para o exterior para serem tratados. Alfredo era baixo e cabrito, muito preocupado com a imagem que projectava por meio de suas roupas e forma de andar, muito falaz, mas muitas vezes introvertido, era casado e tinha três lindas crianças; Mendes era de uma altura razoável e de tez escura, muito calmo e excessivamente tímido – por ser tão retraído, houve uma vez em que uma rapariga deixara de falar com ele, porque ele ficara quinze minutos na casa dela sem proferir uma palavra sequer até ir-se embora –, também era casado, e tinha dois filhos. Márcio preparava-se para dar um passo na direcção deles, mas eles meteram-se em movimento, e vinham na sua direcção! E agora? Que fazer? Atravessar a rua e fingir

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que não os tinha visto? Dar as costas e andar rapidamente? Que coragem de rato era aquela num homem de trinta e um anos? Ele ia apenas conhecê-la. Não se casariam por causa de um aperto de mão, ou se casariam? Não se apaixonaria arrebatadoramente por ela apenas por lhe dizer seu nome, a não ser que ela andasse com um pó de encantamento nos cabelos. Além do mais, nunca se ouviu o relato de alguém que amasse outra pessoa apenas por tocá-la. Que pensamentos eram aqueles! Márcio respirou fundo. Eles estavam perto. Esboçou um sorriso e uma expressão de surpresa. – Mendes e Helena Bundi… e Alfredo e Mery Nkodia. Quanto tempo! – disse Márcio. Depois de ter recebido o forte abraço do amigo, e ter visto ele fazer o mesmo com Mendes e suas respectivas esposas, Alfredo notou que Márcio tentava ignorar Abigail por falar sem parar. – Márcio, não cumprimentaste a moça… – Oh! Desculpa-me. – Não faz mal. Já estou habituada – disse ela, fazendo com que a espinha dorsal de Márcio gelasse ao ouvir aquela voz angélica e sua consciência pesasse por ter sido tão pouco cortês. – Boa noite. Chamo-me Márcio – disse ele ao estender-lhe a mão. Ela não respondeu. Sorriu apenas de forma breve. Mendes deu uma gargalhada. – Olha, como estamos atrasados – dizia Alfredo –, o Márcio é que vai acompanhá-la a casa, 0K? – Vou bater o Alfredo… – sussurrou Márcio. Alfredo sorriu. Deu uma palmada nas costas de Márcio. Os quatro despediram os dois e começaram a andar, cada grupo em uma direcção. Pronto. Estava a andar com uma mulher. Ficar calado não era bem o seu forte quando estivesse numa situação daquelas. Tinha o vício de galantear. Abriu a boca, falou: – Vives distante daqui? – Daqui a pouco chegamos. O silêncio reinou por efémeros segundos. – És dedicada à música? – Não. Porquê? – A tua voz… parece ter sido projectada para encantar. – Parece? – 0K. Foi projectada para encantar. O silêncio voltou a reinar. – Não oiço nenhuma forma de agradecimento – disse Márcio, sorrindo. – És exigente? – Mudemos de assunto. Vives sozinha? – Abigail. – Isso é sim ou não em que língua? – É o meu nome – sorriu. – Abigail de Vasconcelos. – Márcio Nassembe – disse ele apertando-lhe a mão, sentindo assim a maciez de sua pele. – Nassembe? De onde é este nome? – Se fores à minha casa e perguntares aos meus pais, eles te responderão. – Isso é um convite? – Não! Quer dizer, sim… se quiseres. – Como posso ir à tua casa falar com os teus pais se nem a ti conheço? Chegámos.

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– Ficas com o meu número, eu fico com o teu… Conhecemo-nos e depois já podes ir ter com eles. Não é perigoso falar contigo ao telefone, pois não? – Faço-te a mesma pergunta. – Só saberemos se me deres o teu número. Depois da troca de terminais telefónicos, Abigail decidiu alertar Márcio. – Tens de andar com cuidado aqui, há muitos desregrados. – Não te preocupes, tudo o que tenho aqui é deles. Sorriram. Antes de se despedir, Márcio olhou de forma perscrutante para o céu. – O que procuras? – A resposta a uma pergunta feita há alguns séculos. – 0K. Que pergunta? – «Quem é esta que parece o nascer do dia, que é bela como a lua, brilhante como o sol, impressionante como esses dois astros e luminosa como o céu cheio de estrelas?» – O Cântico dos Cânticos. Deves gostar muito de ler. – É uma das coisas que mais faço. – Quais são as outras? Se é que posso saber… – Também escrevo. É a única coisa que te posso contar. O resto é sinistro. – És engraçado. Bem, agora tenho mesmo de entrar. Tudo de bom. – O mesmo para ti.

* – Porque é que estás tão colado ao telefone? – perguntou Judith. – Conheci uma pessoa hoje – respondeu Márcio. – Estou aqui a me agarrar para não lhe enviar uma mensagem. – Eu já sei que és gay há muito tempo. Podes dizer: «Conheci um homem hoje». – ‘Cê é maluca. Só porque sais com o Victor te achas completamente fêmea. Riram-se. – Como é que ela é? – Linda e inteligente. – Espera! Esse é o Márcio que está a falar? «As mulheres são muito complexas. Os livros são melhores companhias que elas.» – Não chateies. Vibra telefone, vibra – cantava Márcio ao sentir os fortes movimentos do aparelho em suas mãos. – Quem é? Quem é? – Uma mensagem. E adivinha de quem? – Da Sara? Ela decidiu voltar para ti? – Muito engraçada. Nós não somos dos que retrocedem. É da Abigail. – Quem é a Abigail? – A pessoa que conheci hoje. – O que é que diz? – Tu não estás a fazer o jantar? Deixa-me ler em paz, irmã. «Oi! Chegaste bem? » Eu tentei me conter o máximo possível, miúda. Agora que aqueceste os meus dedos – disse isso ao escrever uma mensagem em resposta a que recebera. Antes de enviá-la, releu-a duas vezes. – «Cheguei muito bem, princesa. Vais me chamar de atrevido se disser que a conversa que tive contigo hoje foi a melhor que já tive com uma rapariga este ano?» Enviar.

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– Tu conheceste a miúda hoje, e já a chamas de princesa? Quando chegar um monte de palavrões no teu telefone, me avisa – disse Judith. – Ela não me pareceu ser do jeito que suja a linda boca com palavrões… – E os dedos? Porque virão palavrões em bando na próxima mensagem que ela te enviar, irmão. – Confie em mim, não vão.

* O dia em que Márcio conheceu Abigail já era chamado de ontem. Ele ficou por três horas à espera de uma mensagem dela, mas não a recebeu. Com os comentários atormentadores de sua prima, sentiu que havia sido descortês com ela e que por causa disso ela estava provavelmente muito zangada com ele. Por isso enviou-lhe a seguinte mensagem às vinte e três e dezoito: «Minha filosofia de vida: Eclesiastes 7:19-22; 2 Coríntios 7:10. Estarás em casa amanhã às dezanove horas? Quero te dar parte do livro que escrevi. Obs: Perdoa-me se te aborreci de alguma forma.» Esperou pela resposta, mas ela só chegou às oito e onze do dia seguinte: «Bom dia. Vou sim; até porque quero falar-lhe algo.» Márcio ficou desconcertado com aquelas palavras. Será que ela lhe diria que não gostara nem um pouco da ousadia dele de chamá-la de princesa? Ou diria que já tinha alguém com quem partilhar seus sentimentos – um namorado – e que era muito bem correspondida? Será que lhe pediria para apagar seu número da agenda dele? Em que problema se metera ele. – Alda! Minha irmã – disse Márcio ao avistá-la. – Não queres trocar de corpo comigo? Só por hoje? – Não me interessa nada ser alta e ter uma cabeça tão grande. – Irmã da treta. Nem para ajudar o teu irmão quando ele está prestes a ser assassinado serves? – Tenho vinte e sete anos. Tu já viveste mais do que eu, já comeste a quizaca da mamã mais vezes do que eu, e já dormes na casa do quintal mais vezes do que eu. – O que é que queres dizer com esta última parte. – Não sei. Talvez se dispensasses a casa do quintal para mim, eu aceitaria ficar com o teu nguimbo de coconote. – Prefiro brincar com um enxame de abelhas. – ‘Cê é que sabe. Eu estava disposta… provavelmente disposta – disse ela, retirando-se da sala. – Esse domingo vai ser quente. Tenho de preparar as minhas orelhas para logo… – Sempre a falar sozinho, Márcio – perguntou Edgar. – Sou a minha melhor companhia. Fazer o quê? Nunca há mal-entendidos entre mim… e mim. Não tenho de me explicar qualquer coisa que eu tenha dito, nem me chatear por não ter interpretado bem uma minha crítica… – Estás a dizer isso porque estás com problemas com a Sara? – Já não estou com a Sara a quase nove meses. – O quê? – Houve umas complicações. Ela pediu um tempo para saber se gostava mesmo de mim ou de outra pessoa. – E tu? – Aviões não travam no ar só porque uma passageira quer ter a certeza de que não deixou a botija a vazar gás em casa. – Foste mau, mano.

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– Ela pediu a mesma coisa três vezes, Edgar. Que querias que eu fizesse? – 0K. Agora te entendo. Ficaste farto de sentir que a cada vez que ela te pedia um tempo era um provável novo par de chifres que te crescia na cabeça. – Edgar… – Estava a brincar. Bem, vou preparar o pequeno-almoço. – Fazes muito bem. Já estou com fome mesmo. Eu vou preparar o meu coração para mais logo no quarto. – Porquê? – Acho que fui muito directo com uma rapariga ontem. Ela disse que quer falar comigo mais logo. – Quem é? 0K. Não preciso de saber. Queres que te acompanhe? – Não tens nada para fazer com o Jacinto? – É verdade, tenho. Vamos ver alguém no Mártires. Se quiseres podes fugir connosco para lá. – Não. Prefiro enfrentar os meus problemas. – Dizes sempre que vês as coisas sérias como piadas para que não te causem estresse. Chegas até a ignorar problemas graves só para não teres dores de cabeça. – Sabes como é que são as minhas dores de cabeça? Tens de senti-las um dia. Mas este problema não pode ser ignorado. Ainda está no princípio. E fui eu que o causei. Estou a tremer, meu Deus! – Quem te mandou? Aguenta. Boa sorte ao esquivares as facas que essa pessoa te atirar. – Muito obrigado, irmão encorajador.

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CAPÍTULO III – Oi – cumprimentou Márcio. – Como estás? – Estou bem – respondeu Abigail. – Entra. Não te importas que fiquemos a conversar no quintal, pois não? – Desde que isso não chame o pecado… – Senta-te. Como é que foi o teu dia? – Foi bom. Não matei ninguém. E o teu? – Teve um pouco de mais e dois poucos de menos. – Como assim? – Não te preocupes. Não é nada que não possa resolver sozinha. – 0K. – Ontem fiz algo de errado quando vieste acompanhar-me? – Não – respondeu ele com um falso tom de segurança. No íntimo, seu coração tentava romper a caixa torácica. Que diria ela? – Porque perguntas? – «Perdoa-me se te aborreci de alguma forma.» Achei que te fiz algo indecoroso e tentaste camuflar isso com um pedido de desculpas teu, apenas para me mostrar que eu é que agi de forma errada. – Não, não, não – falou ele muito rapidamente, depois continuou calmamente e sorrindo. – Eu é que tenho a mania de pedir desculpas sem necessidade. – Também acho. – Esta casa é grande… e bonita. Vives sozinha aqui? – Tola! – Desculpa? – Não, não é contigo. Esqueci-me de trazer algo para bebermos. Volto já. Ela entrou na casa. Márcio suspirou aliviado. Havia se preocupado desnecessariamente. Olhou atenciosamente para a casa. Parecia ter sido terminada recentemente. A pintura era perfeita. Havia uma grande variedade de plantas no canteiro. Parecia uma casa virgem, projectada para recém-casados. Enquanto sua visão reparava rapidamente os cantos daquela residência, sua audição foi despertada por choro miúdo. O lamento parecia vir de dentro da casa. Márcio levantou-se. Tentou entrar, mas conteve-se. Preferiu olhar pela janela ao lado. Viu Abigail sentada ao lado de um homem deitado sobre uma cama de hospital. Ela falava a ele muitas coisas movendo sofregamente os lábios, mas estava vestida de forma diferente, não eram as mesmas roupas que ela usava quando lhe disse que pegaria algo para beberem. O homem deitado parecia gravemente doente. Não respondia, os olhos estavam semiabertos – Abigail chorava –, o corpo estava ligado a uma máquina. Márcio olhou mais atenciosamente para ele. Seu rosto – o homem sobre aquela cama tinha o rosto de Márcio. De repente, a luz da sala foi apagada e Abigail saiu sorrindo, com uma bandeja entre as mãos. As roupas dela tinham mudado de novo – eram as mesmas que ela tinha antes de entrar para a casa. – Que fazes aí? – perguntou ela. – Estava a ver a linda casa que tens – respondeu ele, aproximando-se das cadeiras em que estavam sentados anteriormente. – Obrigada. – De nada. Tens marijuana neste teu jardim? 17


– Não. Porquê? – perguntou divertida. – Gostas de «chutar» um pouco? – Não. Acho que estou sob o efeito de alguma droga. Estou a ver coisas.

* – Já sei. E se déssemos uma festa? – conjecturou Salomé. – É verdade. Há um bom tempo que não me mexo – concordou Júlia. – Só que precisamos de um local. – Pode ser no meu quintal – disse Judith. – O pensamento de ver gajos bons em minha casa agrada-me. – Mas não podem ser esses bebés daqui do bairro… – disse Salomé. – Concordo. São muito chatos… e irritantes – disse Alda. – Vamos fazer uma lista, como sempre, e só convidaremos os de dezoito para cima – continuou Salomé. – Talvez eu encontre alguém… – Estás a precisar tanto assim? – perguntou Judith em tom de piada. Judith era baixa e graciosamente acastanhada, de trinta e quatro anos, tinha os membros superiores, os inferiores e o peito num tamanho que lhe tornavam complexada – pensava que era exageradamente gorda, principalmente por causa de seu ventre que era um pouco saído – mas era muito extrovertida, embora, às vezes fosse muito directa ao lidar com os outros. Salomé era a mais alta entre elas, tinha vinte e nove anos, também graciosamente acastanhada, achava-se pouco bonita – e Márcio às vezes piorava aquilo por gozar desalmadamente com o rosto dela, mas não passava de brincadeira –, mas conhecia seus pontos fortes, era firme quando queria expor suas ideias. Júlia um pouco mais baixa que Salomé, tinha o tom de pele mais claro entre elas, estava com vinte e oito anos, sua voz era muito fina e se deixava entristecer por pouco, mas era inteligente e tinha um grande sentido de humor. Alda, a mais jovem entre elas, equiparava-se a Júlia na altura, o tom de ébano de sua pele era reluzente, embora tentasse se justificar por tudo e por nada, tentasse dar conselho sem lhe terem pedido e também se afligisse por pouco como Júlia, mostrava ser muito cautelosa e madura. Todas possuíam uma beleza singular, eram bonitas a seu jeito. – Estão a fofocar sobre o quê? – perguntou Edgar ao entrar. – A casa é da mãe Joana; é só entrar, nem se cumprimenta mais os outros – depreciou Salomé. – Que outros? Só vejo outras aqui – disse Jacinto. – Vou vos expulsar da minha casa – alertou Salomé. – É melhor começarem a cumprimentar. – Bom dia, moças – cumprimentaram os dois. – Bom dia – responderam elas. – As vossas mães estão em casa? Espera… Não era essa a pergunta. O que é que perguntaste mesmo quando entraste, Edgar? – perguntou Jacinto. – Estão a fofocar sobre o quê? – Sobre uma festa que vamos dar o próximo domingo – respondeu Júlia. – E não é fofoca nenhuma. – Bom. E estamos convidados? – questionou Edgar. – Claro que não! – respondeu Salomé. – Iam nos estragar a festa. – É mentira – disse Alda. – Ainda não fizemos a lista. Vocês podem até nos ajudar. – Isso custa caro – disse Edgar. – Mas diz-me como.

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– Vocês conhecem muitas pessoas que não conhecemos. Nós conhecemos muitas pessoas que vocês não conhecem… – Duvido, Alda – disse Salomé. – Esses que passam a vida a zanzar sem paradeiro. – Não interrompas. Vocês podiam convidar alguns rapazes e nós, umas raparigas – continuou Alda – e assim a festa estaria cheia de pessoas para serem conhecidas. – Entendemos a vossa intenção – gracejou Jacinto. – Está bem. Faremos isso. – 0K. Então está combinado – interrompeu Judith. – Daqui a dois domingos estaremos no meu quintal a bodar. Óptimo. Assim poderei conhecer a Abigail.

* No dia seguinte, sábado, Narciso pediu a Edgar, a Jacinto e a Márcio que o acompanhassem às compras. Tiveram de se levantar muito cedo – algo que era quase impossível para Jacinto que, por mais que se esforçasse a ser pontual, permitia que o sono ou outra coisa qualquer o atrasasse. Narciso fez-lhe um pequeno sermão por causa da enorme delonga, visto que o carro a ser usado seria o dele, Jacinto, por ser maior e poder albergar tudo o que fosse comprado. Narciso, sério e extrovertido a sua maneira, seria considerado de baixa estatura por estar no meio dos três que eram altos; com a idade de trinta e quatro anos, era um homem que impunha ordem e respeito apenas com seu olhar fustigador e sua voz firme; apreciava e memorizava as informações do que lia e ouvia como ninguém; longe estava dele a ideia de consórcio – «Porque razão faria sofrer a filha de alguém com os meus defeitos e me irritaria com os dela?», dizia quando questionado porque não se casava e quisesse desviar a conversa para um rumo onde não teria de explicar detalhadamente a sua aversão a relacionamentos românticos –, mas dava-se bem com as mulheres, embora tratasse a todas elas como filhas ou como irmãs menores. Edgar, também particularmente sério, tinha vinte e oito anos, preocupava-se mais com a aparência e o estilo que os outros três, talvez não desse conta, mas partia o coração de algumas raparigas a sua volta com o seu jeito áspero, e às vezes começava e interrompia conversas de um jeito que era difícil o seu receptor partilhar da mesma, por não saber do que ele falava; contudo era calmo e respeitador. Jacinto era o de tez mais clara entre os quatro e mais alto que Edgar, tinha trinta anos; tinha sempre o sentido de humor em alerta, embora se irritasse com facilidade e fosse impaciente; por vezes era desleixado, mas não deixava de suscitar paixões por onde parasse e fizesse soar sua singular forma de pensar com lógica. A viajem ao supermercado havia demorado mais do que o esperado. Estavam exaustos quando chegaram a casa. Mesmo assim, Márcio não deixou de pensar no estranho olhar que um casal de desconhecidos lhe deitara por quase todo o tempo em que mercavam, principalmente porque Jacinto, Edgar e Narciso disseram que não viam ninguém quando ele apontou para lugar em que o casal estava.

* – O que estás a fazer? – perguntou Judith enquanto servia o jantar.

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– A enviar uma mensagem para a Abigail. «Falar contigo me extasia; como é que podes ser tão inteligente? Sentir teu perfume me inspira; como é que consegues ser o que tenho procurado em inúmeras mulheres? Responde.» – respondeu Márcio – É isso que vais enviar a ela? – inquiriu Júlia. – Ela vai apagar essa mensagem assim que a ler. – É verdade – concordou Alda. – Se calhar vai apagá-la antes mesmo de a ler. – Invejosas – disse Márcio. – Como não há ninguém que vos envie mensagens assim… Antes que pudesse terminar sua frase, Júlia puxou-lhe o telemóvel. Visto que Márcio tinha Bruno sobre o colo, conteve-se em tentar recebê-lo de volta. – Deixa-me ver o que é que ela anda a escrever para ti – disse Júlia com tom de médica examinando um paciente. – Nada. Não vejo nada aqui, Márcio. Qual é o nome que puseste aqui? – Querida Abigail – respondeu ele. – Nada. Continuo a não ver nada. – É o que dá fugir da escola quando os professores estão a ensinar o abecedário e as sílabas, ficamos analfabetos para o resto da vida – depreciou Judith. – Eu não estou a brincar. Não vejo nenhuma Abigail aqui, Márcio. – Mostra-me – pediu ele. Márcio foi até a «caixa de entrada», à «caixa de saída» e até mesmo aos «contactos», mas não encontrou nada que lhe provasse a existência daquela mulher em seu telemóvel. – Tu não apagaste nada aqui, Júlia? – perguntou ele perturbado. – Não – respondeu ela. – Alda? – O móvel é teu ou é meu? – Judith? – Já te dei tanta confiança assim para achares que sou bisbilhoteira? – Então porque é que não há nenhum registo sobre a Abigail no meu móvel? – perguntou exaltado. – Nem sequer no «registo de chamadas» a encontro? – Não sei. Se calhar a Abigail não existe e tu andas aqui a tentar nos aldrabar – brincou Júlia. – Isso é sério, miúda – disse ele levantando-se depois de ter entregado Bruno a Alda. – Onde vais? – perguntou Judith. – Apanhar ar. As pessoas alucinam.

* – Oi? – Oi. Como estás? Entra. – Estou bem, Abigail. Só o meu móvel é que enlouqueceu. – Porquê? – perguntou ela apontado para o local em que eles haviam sentado no dia anterior. – Tudo que se refere a ti desapareceu. – Simples. Apontas de novo.

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– Não é assim tão simples – disse Márcio entregando-lhe o aparelho. – Acho que alguém lá da minha casa fez essa brincadeira parva. – Tens ideia de quem? – Não sei. Mas, fala-me do livro. O que é que estás a achar? – Podes desculpar-me? – Porquê? Vais criticar de forma destrutiva até eu chorar? – Não – sorriu – Ainda não pude ler. Estive ocupada com umas coisas… – Não faz mal. Podemos falar sobre outra coisa. Só não sei qual… – Sobre ti. Como é que és? – Essa é simples de responder: alto e chato. Oh! Não era essa a resposta que querias! Sou muito sério e tímido, mas passo a maior parte do tempo a ser engraçado e extrovertido, para não causar tédio às pessoas; detesto ser sempre o mesmo… e de me repetir. – Como? Não percebi a última parte. – Detesto ser sempre o mesmo e de me repetir. – Acabaste de te repetir – disse divertida. – Vai chover fogo em cima de alguém daqui a pouco. Posso continuar ou há mais algum comentário de gozo? Muito bem. Gosto de segurança…muito, gosto muito de pessoas seguras. – Referes-te principalmente a relacionamentos com o sexo oposto? – Sim. Por mais que eu tente achar uma mulher segura, acabo sempre com dores de cabeça. – Eu não te quero dar dores de cabeça. Márcio tremeu dos pés a cabeça. Como é que aquela mulher conseguia ser ato directa, tão frontal, com alguém que conhecera a tão pouco tempo? Não existia a expressão «dar rodeios» no comportamento de Abigail, e isso agradava àquele homem – Márcio pulava de alegria em seu íntimo. – Os teus relacionamentos têm sido tão maus assim? – perguntou ela. – Como diz a minha prima, eu só conheço o tipo errado de mulheres. Me meto com muito artigo indefinido. – Deves ter passado por maus bocados para ela ter dito isso. – Eu e Judith passámos por muita coisa parecida. Judith é o nome da minha prima. – Eu entendi. Acho que também fui um pouco insegura na minha última relação. «Última relação» – ela estava livre; não havia impedimento nenhum, Márcio podia continuar com o cortejo sem medo. – Mas acho que foi porque as circunstâncias quase me obrigaram a sê-lo. – É. Ás vezes a situação nos foge das mãos e não conseguimos manter os princípios que tanto defendemos. Mas com toda essa onda de insegurança feminina em minha vida, aprendi algo que devia ter aprendido há muito tempo. – O que é? – «Tudo o que aprendi se resume nisso: Deus nos fez simples e direitos mas nós complicamos tudo.»

* Manhã de segunda-feira. Jacinto enchia seus bidões de água na casa dos Nassembe. – Latílabro – disse Narciso.

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– O quê? – perguntou Jacinto – Alguém com lábios grandes…se diz latílabro, não labiúdo. – O que é que fica em cima? – perguntou Márcio, olhando fixamente para os recipientes que Jacinto enchia. A água que já está no bidão ou a água que chega depois desta? – Eu acho que é a que já está lá – respondeu Jacinto. – Mas as duas não têm a mesma densidade – perguntou Narciso. – Não sei. Mas será que podemos descartar a possibilidade de a água encontrada já ter ficado mais pesada por estar a mais tempo exposta ao ar do que água que acaba de sair da torneira? – questionou Jacinto. – ‘Cês estão a ter esta conversa a essa hora porquê? – interrompeu Edgar. – Márcio, vai tomar banho, ou ainda chegas tarde para dar aulas.

* O coração de Judith batia dolorosamente contra seu peito: seus pais acabavam de ser internados. O estado da diabete de Marta – sua mãe – que já pusera cega, dava-lhe agora uma repentina proximidade à morte; Guilherme – seu pai – embora parecesse desafiar o israelita Moisés no que tange à mansidão de espírito, acabava de ter um ataque que o deixara em coma, por causa da hipertensão. Como era a única que estava em maior contacto com ele, por causa do facto de viver ainda na casa de ambos, Judith ganhara o emprego de enfermeira para eles: dava as injecções de insulina a Marta a horas, lembrava a Guilherme o tempo de tomar os comprimidos, enfim, era a filha– enfermeira deles. Embora, por vezes, não sentisse que seus esforços fossem valorizados por seus pais, no fundo, seu coração entendia-os e compadecia-se a cada vez que os visse sofrer. E agora estavam internados, internados em clínicas diferentes. Às cinco e trinta e sete, quando tudo aconteceu, teve de voltar â casa algumas horas depois para pegar uma pasta de dente, escova e toalha para a mãe, voltar à clínica para os deixar, só depois é que seu cérebro alertou-lhe que tinha também de pegar as mesmas coisas para seu pai. Chegou à casa estafada às dezassete e quarenta e três. Dirigiu-se rapidamente para a cozinha. Preparou uma sandes. Quando se direccionava para a porta para poder sair outra vez, Márcio apareceu-lhe à frente. – Oi, Márcio. Falamos depois, yá. Tenho de ir ver os meus pais – disse apressada. – O que é que se passa com eles? – Estão mal, irmão. Depois. Tchau. As pessoas preocupam-se.

* Dezoito e quinze. Márcio trabalhava em seu computador. – Papá – chamou Bruno, não obtendo resposta à primeira. – Papá. – Fala, filho. – Olha o meu bolo. – Dá só. 22


– Não. – Dá só, Bruno. – Você pede muito. – Você também. Quem te deu? – A vovó. Márcio levantou-se e foi até o quarto de sua mãe com Bruno. – Ei! Como é que só o Bruno é que tem direito a bolo? – perguntou ele ao entrar. Ela não respondeu. Pôs apenas a mão num saco, retirou-a e estendeu-a na direcção dele. – Eu disse bolo, não ginguba – disse ao receber os amendoins torrados que a mãe lhe dava. – Muito guloso, você – disse ela. – Parece que quando recebes o teu salário compras coisas para todos nós. Passa-me a faca. – Estás bem? – perguntou ele ao estender o talher afiado a mãe. – Tirando a dor sob o braço esquerdo… – O senhor Pontes ainda não chegou? – Aquele teu pai? Deixa, quando ele chegar vamos ter festa – disse ao entregar a fatia de bolo ao filho. – Dona Elizabeth, cuidado. Isso não vai te fazer bem. Epa! O telefone está a vibrar. É a Sara. Fala, miúda! – Ei! Não precisas de me atender dessa forma bruta – disse Sara do outro lado da linha. – Fui bruto? Não senti. Mas, 0K. Como estás? – Estou bem. Estou a querer falar contigo, sabes? – Já estás… – Não dessa forma. Tu sabes o que quero dizer. – Está bem. Também quero falar contigo. Estás em casa? – Estou. – Estou aí daqui a trinta minutos. Antes de sair do quarto, Márcio ficou observando sua mãe. Ela estava a ler algo que parecia interessar-lhe muito. Elisabeth Nassembe tinha sessenta e nove anos, mas tinha ainda o aspecto de menina adulta. Seus olhos eram grandes e brilhantes, o rosto era de um aspecto pueril e encantador; baixa – na, não era essa a sua altura, fora até muito mais alta na juventude. Tinha duas vozes – uma de timbre feminino que usava quando desejasse ser gentil e demonstrar sua felicidade e outra de timbre másculo que usava quando estava irritada ou quando quis ser firme em algum assunto. Tinha um excelente coração. Embora não conseguisse demonstrar seu amor pelos filhos em palavras, fazia-o nas acções – não é isso o mais importante? Márcio entrou no quarto. Enquanto a casa de Sara se tornava mais próxima, pensava no princípio da conversa que desejava ter com ela. Como lhe falaria sobre seus novos sentimentos? Como reagiria ela? E o que é que ela quis falar com ele? Iria ela contar-lhe que deixara de ser insegura e se lançaria nos braços dele? Não – Sara não podia fazer aquilo, pois Márcio não hesitaria em deixá-la cair rente ao chão. – Então, como é que vão as coisas contigo? – perguntou Sara após Márcio ter entrado e se posto confortável. – Yá, vão fixe. Ando a controlar o meu impulso assassino… E tu? Como vais? – Vou bem. Só o trabalho é que anda a atormentar-me. Disseste que tinhas algo para me dizer… – E tu também o disseste. – Eu? Não. Eu não disse nada que tinha algo para me dizer – disse ela gozando.

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– Louca – sorriu. – Foste tu que ligaste, tu começas. – 0K. Já que não há outra maneira, né? O corpo de Márcio levou um choque antes de ela continuar. As mãos ficaram um pouco suadas. O maxilar inferior tremeu involuntariamente. – Sabes, tenho uma amiga que se vai casar, e eu quero dar-lhe um presente. Como sei que tens contacto com alguns artistas plásticos gostaria de saber se podias falar com eles para ver se um estará disposto a pintar um retrato do casal. – 0K. Acho que consigo isso daqui a dois dias. – Bom… bom mesmo. A seguir, a sala ficou em silêncio por alguns instantes. – Não dizes mais nada? – perguntou Sara. – Não tinhas algo para me dizer? – Tenho, tenho algo para te dizer. Esse tempo todo que tenho vindo a tua casa, depois daquela conversa que tivemos sobre a nossa relação, achas que estou à espera… Em algum momento, o mais ínfimo possível, te mostrei que estou à espera que voltes para mim? – Não. Antes até nem conseguia acreditar que, como disseste, ficarias apenas como meu amigo em tão pouco tempo. Mas na última vez que vieste aqui senti que estavas muito descontraído… não estavas à espera de nada… o teu olhar… sei lá. Há coisas que não consigo explicar, apenas sinto-as. Lembro que estavas até a dicar uma das minhas amigas. – Aquilo foi só uma brincadeira – disse sorrindo. – Pensei até que me irias arranjar problemas, por que ela já tem namorado. Resumindo, não, não me tens mostrado nada disso. – Ainda bem que respondes assim. Tiras-me um enorme peso das costas. Não sei o que faria se respondesses o contrário. É que na situação em que me encontro é meio melindroso parecer que estou à espera que voltes para mim. Eu realmente não quis ter essa conversa contigo. É que ontem estive com o Mendes e o Alfredo, e eles me disseram que é melhor eu pôr em pratos limpos o que tínhamos, para que não se arranjem problemas. Eu lhes disse que não era necessário, mas eles insistiram. Chegaram até a dizer que serias capaz de fazer uma loucura quando descobrisses a situação em que me encontro – sorriu. – Disse-lhes que não és assim mas... obrigaramme. – Mas se vieste falar comigo é porque, no fundo, também não te sentias confortável. Márcio franziu o sobrolho. Depois disse: – Aqueles dois me pagam por causa disso. Eu lhes disse que era irrelevante ter esta conversa contigo. – Márcio...? – Sara... – O Mendes e o Alfredo não viajaram há três anos para sei lá onde e não dão notícias até agora? – Aqueles dois? Se eles são os responsáveis por eu estar na situação em que estou! Deves estar a confundi-los. – Estás sempre a dizer «a situação em que me encontro». Podes dizer-me que situação é esta, ou é pessoal? – Estou a conhecer alguém. Sara sorriu. Sua expressão facial parecia esconder a dor que sentiu ao ouvir aquela notícia. Mas não seria isso apenas o que Márcio quis ver? Não seria aquela imagem uma ilusão produzida apenas pela mente dele por causa do seu forte desejo de pô-la a sofrer por várias vezes lhe ter causado mágoa? Sim, será que Márcio via aquilo

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por querer vingar-se de Sara? Não. Ele era superior a tal desejo primitivo e, mesmo que em sua mente tivesse passado tal pensamento ignominioso, seria incapaz de fazer tal coisa a Sara, porque, apesar de tudo, ele chegou a amá-la um dia, e sempre lhe faltaram forças para castigar um amor porque atribuía sempre a culpa a si mesmo quando uma relação não dava certo. – Bom – disse ela. – Um dia, agora ainda não, quando eu estiver pronta, vou convidar-vos para virem à minha casa. Ela não é ciumenta, pois não? – Até onde sei... E os teus pais? Como é que eles estão? – Estão bem. A minha mãe ligou a alguns dias. Mandou cumprimentos para ti. – Diga que os recebi e enviei outros para ela. – Está bem. Sara ficou olhando para ele por alguns momentos. Márcio desejava saber o que se passava na cabeça dela. Em que pensava? Que ele lhe mentia? Será que no fundo ela estava feliz ao saber daquilo por ter visto inequivocamente que ela nunca poderia estar casada com ele? Mas porque se atormentar com tais pensamentos? Não era Abigail perfeita para ele? Não estavam caminhando bem? Com Sara também foi assim – tudo era lindo no princípio. Será que aconteceria o mesmo com Abigail? – E o teu trabalho? – perguntou Sara depois de algum tempo. – Vai bem... ou quase bem. Os alunos continuam a memorizar grande parte do que lhes ensino, mas o problema básico permanece: não conseguem escrever em condições. Talvez se se dedicassem mais à leitura e a observar as páginas do dicionário... – O interesse também conta. Acho que para muitos deles o importante é ter a matéria escrita em seus cadernos, não importando de que forma, para que possam estudar e serem aprovados no fim do ano. – Continuas com a mania de me cortar enquanto falo. – Desculpa. – Não. Nem sabes que assim só me facilitas. Detesto falar. Quanto mais te expressares, menos tenho de abrir a boca. – Muito inteligente esta ideia – ironizou. – Não me parabenizes. É tudo ideia do Mendes – disse sorrindo. – Nem imaginas como o alívio que ele sente quando uma mulher fala muito e tem apenas de escutar. O olhar de Sara parecia perceber que o de Márcio estava totalmente distante do olhar apaixonado que ele tinha sempre que estava ao seu lado. Ele havia realmente mudado. Gesticulava e falava apenas como amigo. Não era o mesmo Márcio que voltaria para ela sempre que ela quisesse. Márcio lembrou-se que, numa das vezes em que a antiga relação deles estava por um fio, ele ligara para ela e lhe perguntara se ela iria atrás dele se ele se perdesse em outra paixão. Ela respondera que sim. E se ela não tivesse respondido aquilo apenas para ser educada com ele – sim, para não lhe ferir com a verdade? E se Sara resolvesse lutar por ele a partir daquele momento? – É bem feito para mim – disse Sara. – Não dei passos firmes quando estavas comigo. Agora tenho que aguentar. Ele não reagiu àquelas palavras. Fingiu que não elas não haviam entrado em seu sistema auditivo e lhe dado um certo sentimento de concordância e tristeza. – Tens andado mais louca que o costume – disse Márcio, fazendo Sara sorrir. – A sério. Nas últimas vezes que falei contigo, te esquecias muito rapidamente das coisas, perguntavas coisas que eu acabava de te dar a resposta... – Devem ser as ocupações. Mas não te preocupes comigo. Daqui a pouco melhoro.

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– Se tivesses crescido comigo, talvez não terias sido tão influenciada pelos amigos. – O queres dizer com isso? – Um outro dia continuaremos com essa conversa. Agora tenho que ir conversar com o Edgar, a Judith e a Salomé. Estamos com um projecto muito importante em mente. Se eu atrasar, eles acabam comigo. – Que projecto é esse? – Estamos a pensar em mostrar por mais tempo às pessoas aquilo que realmente salva vidas. – Bom, quem me dera participar disso. – E podes! – Daqui a mais algum tempo. Por enquanto... Preciso planear bem. Os momentos seguintes foram de silêncio. Ambos não sabiam o que se passava na mente do outro. Se soubessem, talvez os acontecimentos mudassem de rumo. Mas os seres humanos aprenderam a não dar o braço a torcer em tais situações. Por mais que tentassem, o desejo de mostrar que eram indiferentes era superior. Antes de Márcio entrar em seu carro e desaparecer do campo de visão dela, Sara disse calmamente. – Seja feliz desta vez. As pessoas apaixonam-se.

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CAPÍTULO IV Passaram-se alguns dias; o domingo chegou. Alfredo Hidratante Nkodia, Mendes Nobre Bundi, Abigail de Vasconcelos e Márcio Pontes Pereira Nassembe conversavam na casa do último. – Bem, agora vou tomar banho, antes que a Abigail desista de sair comigo – disse Márcio ao levantar-se. – É por isso que o meu nariz me dizia que algo aqui não cheirava bem – gozou Mendes. – Vai, vai, vai, ou ainda me estouras o olfacto! Quando Márcio desapareceu da sala, Abigail mergulhou na conversa com os outros dois. Depois de alguns minutos, o anfitrião apareceu deleitosamente vestido. Segundos depois, saíram. Após terem andado alguns metros juntos, dividiram-se numa das esquinas: Márcio e Abigail continuaram em direcção a um restaurante ao passo que Mendes e Alfredo se dirigiram à casa deste para pegar algo que Márcio deixara ali previamente. – Porque olhas tanto para as minhas mãos? – perguntou Abigail enquanto andavam. – Tens muitos anéis aí. – Não te preocupes. Todos os pedidos foram recusados. Márcio levou um choque. O que queria aquela mulher dizer com aquilo – «Todos os pedidos foram recusados»? Teria sido aquilo a garantia de que, se ele resolvesse pedi-la em namoro naquele exacto momento, ela aceitaria? Sim, teria sido aquilo um Sim adiantado? Márcio não era tolo. Sabia exactamente o que estava por trás daquelas palavras, mas não quis apressar-se. Conteve suas palavras. – Tenho algo para ti – disse Márcio, pondo as mãos nos bolsos. – O que é? – perguntou ela, olhando fixamente para o local onde ele pusera as mãos. – Não sei... Não sei se é grande ou tão pequeno que caiba nos meus bolsos. Chegámos. Quando ficaram confortáveis no restaurante, as palavras fluíram. Márcio quis perguntar-lhe pela terceira vez com quem ela vivia naquela casa, mas conteve-se ao lembrar-se que nas duas vezes que fizera a pergunta ela desviara a conversa para outro assunto. Também falaram sobre o tempo que estavam na Terra – Abigail estava com trinta e cinco anos e Márcio com trinta e um. E se as pessoas falassem sobre tal diferença de idade? Elas que falassem! Quem tinha os ouvidos? Eles – Márcio e Abigail. Eles é que tinham de decidir o que ouviriam; o que as pessoas falassem e que não tivesse nenhuma relevância, podiam liberalmente bloquear sua audição e ignorar os ruídos restantes. Aquela conversa trouxe à memória de Márcio o caso de Mendes Nobre Bundi e Zélia Mayala. Ela tinha quarenta e um e ele, dez anos a menos, quando tiveram o primeiro contacto, o que aconteceu alguns meses depois de Mendes ter mudado de bairro, o bairro em que Márcio e os outros viviam. Volvidos dois anos, enquanto estavam numa das casas de praia da família dela, um homem bateu de forma cortês num

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copo com um dos talheres para requisitar a atenção de todos. Quando viu que já a tinha, aproveitou a oportunidade para pedira mão de Zélia em casamento. Muitos dos presentes aí também transpiravam de paixão por ela, por isso quase houve um tumulto. Foi provavelmente naquele espaço de tempo que Mendes descobriu que sistema nervoso também a desejava. Após aquela situação ter passado e Zélia ter de forma particular falado com ele e mais alguns se deveria aceitar o pedido, ambos, com o decorrer dos meses, conversavam muitas vezes sobres seus sentimentos. Numa dessas conversas, depois de Mendes se ter declarado a ela, Zélia disse-lhe que não conseguia acreditar que um homem como ele poderia gostar dela, e que as mensagens que ele enviava para ela, no princípio, lhe pareciam brincadeira. Numa outra, Zélia disse-lhe que não era possível ficarem juntos por causa da idade – a maldita idade! Há algo escrito em algures que diga que a diferença de anos é sinónimo de incompatibilidade e que uma relação amorosa nestes parâmetros é impossível? Se existisse, muitos já o teriam achado e queimado, depois de o terem julgado falso, mesquinho e desumano – e Mendes concordou com ela, dizendo que não se imaginava a contar ao pai dele que gostava de alguém com dez anos a mais que ele. A partir de então, decidiram ficar apenas como bons amigos, situação que magoou muito a Márcio, mas não era ele quem estava a viver aquela situação – seus sentimentos em relação ao caso não mudariam nada. Uma semana depois, e eram estas as últimas notícias que Márcio tinha sobre o caso, Mendes visitou o amigo para contarlhe que enviara as seguinte mensagem a ela: «Casa comigo, Zélia» e que havia escrito um esplêndido poema para ela e que na última vez que estiveram juntos, ele contou a ela que no mínimo dizia o nome dela uma vez ao dia, que quase todas as noites antes de dormir dizia: «Boa noite, Zélia» às paredes e que sem querer, andado pela rua sua boca articulava o nome dela. Enquanto conversava com Abigail, Márcio lembrou-se também do caso que lera sobre Maomé, o profeta do islamismo, e Cadija, sendo esta quinze anos mais velha dele. – Onde está o presente que disseste? – perguntou Abigail depois de terem saído do restaurante e estarem então a dirigir-se a casa dela. – Presente?! – exclamou Márcio em tom gozoso. – Eu falei alguma coisa sobre algum presente? Deves estar a ouvir coisas. – Márcio, não brinque. Onde está o meu presente. – Meu Deus! Que insistência! – disse sorrindo. – Eu já disse que não falei nada sobre presente nenhum. – Está bem. Tu é que sabes – disse ela com voz triste. – Gostei de estar contigo hoje. – Também eu. – Também gostaste de estar contigo hoje? – perguntou ele com graça. – Que má! Quer dizer que nem notaste a minha presença? – É – respondeu ela para participar da piada. – Espero ansiosamente pela próxima vez. – Não prometo nada, mas a próxima serei eu a convidar e a pagar. Tens algo contra? – Podes ter a certeza absoluta que não – disse ele depois de ter tirado o telemóvel do bolso e lido uma mensagem de Mendes que dizia: «O coelho está na toca». – Bem, chegámos – disse ela para ver se ele lhe daria o tão esperado presente. – Está bem – disse ele ao estender-lhe a mão. – Durma bem. – 0K. Tudo de bom – disse ela apertando-lhe a mão com delicadeza mas com um olhar sem alegria.

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Porque fazia ele aquilo? Porque estragava a noite daquela maneira? Márcio deu as costas e começou a andar. Abigail entrou. Quando seus pés alcançaram o interior de seu quarto, maravilhou-se: havia um enorme urso branco de pelúcia sobre sua cama! As pessoas são surpreendentes.

* – Meu cabelo está mal – disse Judith depois de Márcio ter entrado na casa dos pais dela. – Não sei se me atiraram água destilada ou quê. – Corta-o. É o melhor que fazes – gozou Márcio. – O que há para se comer? – Nada. Porque não aprendes a cozinhar? – Eu cozinho, ouviu? – E comes tudo antes de estar pronto – disse ela sorrindo. – Como é que foi o teu encontro com a Abigail? – Nem te conto! Durante o nosso encontro eu lhe havia dito que tinha comprado algo para ela, só que não lhe disse exactamente o quê. Depois de sairmos do restaurante, a miúda ficou a perguntar-me sobre o presente, mas fingi que não lhe tinha falado nada sobre aquilo, mesmo quando nos despedimos à porta dela. Estava triste ela... muito triste. Mas quando entrou para o quarto dela... Minha vida! Aquele urso deve estar a ser afogado em abraços a essa hora. Diz que sou fixe. Vá lá, diz. – Convencido da treta. E como é que o urso foi parar aí? – Deixei-o na casa do Alfredo na sexta-feira. Hoje foi só ele e o Mendes irem buscá-lo e o levar até a casa dela. Ela acabou de me enviar uma mensagem de agradecimento. O Mendes também ligou para saber como é que a coisa fluiu. Disse-me que quem os atendeu foi a mãe dela. Estranho, porque quando vou lá nunca encontro ninguém. E o teu pai? Como é que ele está? – Está na mesma. Se bem que disseram que, às vezes, mexe os braços e as pernas. – E a tia Marta? – perguntou ele esticando o pescoço com a intenção de pôr sua visão dentro do quarto de mãe de Judith. – O de sempre. Melhorando... – Eia! É verdade, e o Victor? Como é que foi a saída? – Foi boa. Acreditas que ele não conseguiu fazer o quis no quarto de banho do restaurante por pensar que eu estava à espera dele sentada e sabia que ele havia ido urinar? – disse sorrindo. – O Victor é tão envergonhado assim? – disse ele às gargalhadas. – Parece o Mendes. Eu devia ter ido para assistir à cena. – Podias mesmo. Mas como não aceitaste sair connosco... Só querias a companhia da Abigail. E ainda nem cheguei a conhecê-la. – Calma. Já não será no próximo domingo a vossa boda? – Com essa situação aqui em casa? Nem sei se sairá. – Concordo. Daremos daqui a... quando der. – E assim quando é a conhecerei? – Brevemente, irmã. Brevemente.

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Segunda-feira. Márcio acordou pensando nas estranhas palavras que ele dissera a si mesmo em sonho: «O presidente precisa de um pouco; orar um pouco, e um pouco de Cícero.» Que significado tinha aquilo? Que mensagem queriam aquelas palavras transmitir? As pessoas têm sonhos estranhos. Ignorou aquilo e preparou-se para ir dar aulas. – Está bem, professor – disse um dos alunos dele. – Mas é necessário mesmo que conheçamos essas pessoas todas? Elas nunca chegarão a ter contacto físico connosco. Nunca se divertirão connosco. Nunca conseguirão correr connosco depois de termos abusado o cão do vizinho. Nunca vão poder conversar sobre a festa que tivemos ontem ou sobre a boa nota que tive num teste. – Entendo o que dizes – arguiu Márcio. – Por exemplo, conhecemos Agostinho Neto e Leonardo da Vinci. Mas será que eles nos conhecem? Como poderiam? Já não fazem parte do nosso mundo, não é mesmo? Mas precisamos conhecê-los ainda assim, para termos conhecimentos sobre sua história e melhorarmos a nossa história. Não se pode fazer um bom presente se não estudarmos o passado. E isso envolve estudarmos os nossos antepassados. – E o caso de Adão e Eva, professor? – perguntou o aluno mais espevitado da turma. – Como assim? – perguntou Márcio. – Eles não tinham qualquer antepassado. Onde é que se baseariam para não cometer o erro que cometeram? Não havia nenhum relato passado de obediência para eles. Que exemplo humano seguiriam? – Boa pergunta – disse uma outra aluna. – Se não tinham a quem imitar, como é que Deus lhes provaria com algo tão duro? – Quem de vocês aqui é o primeiro filho lá em casa? – perguntou Márcio, fazendo com que alguns de seus alunos levantassem a mão. – Concordam que os vossos pais só poderiam saber se vocês são realmente obedientes a eles se eles tivessem um filho antes de vocês? Será que foi preciso ouvirem inúmeras histórias sobre pessoas que foram obedientes para não mexerem em coisas que só pertenciam aos vossos pais? Alguns valores morais, poderia até arriscar-me a dizer os mais ilustres, são inculcados em nós não através da História, mas através do que os nossos pais nos ensinam e exigem de nós por direito e pelo que os vemos fazer. A História não é importante para ensinarmos aos nossos filhos que o fogo queima... – Basta deixar que ele ponha o dedo sobre a chama! – gracejou o aluno mais espevitado, fazendo os outros alunos e o professor sorrir. – A História não é importante para comprovar que amamos o nosso próximo – continuou professor. – A História não é importante para nos ensinar a nos apaixonarmos por outrem; já está em nós. A História não é importante para marcarmos um jogo de futebol aos sábados e almoçarmos um mufete daqueles aos domingos. Enfim, a História não é importante para coisas que são intrínsecas ao ser humano. – Dizendo isso, o professor concorda connosco – afirmou o aluno que falara primeiro. – De forma alguma. Não é por alguma coisa não servir para outras coisas que não serve para nada. Aliás, a História tem um dos objectivos mais nobres: dar-nos informações sobre o que as pessoas que existiram antes de nós fizeram; nossos avós, os amigos deles; as roupas que vestiam, em que criam, como pensavam... – o barulho do sino interrompeu-o – e muitas outras coisas que não vos posso dizer por ter acabado o tempo de vos aturar.

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Depois de ter saído da escola, Márcio deixou os seus pretendes em casa, trocou de roupa e foi a barbearia, mas como esta estava cheia, decidiu fazer algo que já vinha adiando a um bom tempo. – Boa tarde, jovens – disse ele aos vendedores ambulantes que se encontravam debaixo de uma árvore. – Boa tarde, meu mano – respondeu um deles. – Onde é que estão aqueles moços que vendem pasta? – Ah! Quer pasta? Espera só aqui, meu mano. Vou só lhes chamar. O jovem atravessou as duas estradas a correr. Enquanto esperava, Márcio observava atentamente o que o rodeava. Haviam alguns sapatos no chão, ferros de engomar e rádios. O sol era abrasador. Como é que aquelas pessoas conseguiam ficar dia após dia naquela situação assustadora, arriscando suas vidas por entre os carros? A resposta era óbvia: procuravam pão; procuravam sobreviver, não se davam a oportunidade de morrer à fome. «Mas se é assim», pensou Márcio de si para si, «o Diabo é um mau padeiro.» – Yá, tá aqui ele, meu mano – disse o jovem ao chegar com o outro que trazia algumas pastas nas mãos e nos ombros. Márcio examinou-as. – Não tens menores do que essas? – perguntou ele depois de alguma tempo. – Tô chegá agora. As outras pasta ‘tão no meu processo – respondeu o jovem. – E onde é o teu «processo»? – perguntou Márcio. – Aqui perto. Podemos ir lá. – 0K. – Lá já como é dentro, vou tirar todas pasta, vais preferi. Márcio Nassembe quis dar uma gargalhada, mas conteve-se. Ainda bem que ele não estava a andar com Mendes Bundi, senão teriam chovido risadas naquela hora. Márcio Nassembe atravessou as estradas com ele. Entraram por alguns becos e chegaram ao local. – Pode já ficar aqui dentro – disse o jovem depois de terem entrado. – Vou já buscar. Quando o jovem desapareceu de seu campo de visão, Márcio Nassembe ficou reparando o local em que estava. Era um quintal grande com várias casas. Havia duas mulheres no quintal lavando a roupa e discutindo sobre o que tinham vestido na festa do dia passado. Quando o jovem apareceu com as outras pastas, Márcio Nassembe escolheu a que mais lhe dera prazer em ver e tocar. Depois discutiram sobre o preço. – Três mil kwanzas – disse o jovem. – O quê! Está a chover dinheiro ou quê? Olha eu só estou a andar com dois mil. – Aumenta mais. Não estás ver bem essa pasta. É única. Não vais encontrar com mais ninguém na rua. «Na hora de falar sobre dinheiro, até o português melhora» – pensou Márcio com graça. – Está mal aqui. Tenho exactamente três mil kwanzas nos bolsos. Mas os outros mil são para comprar outra coisa. – Você é homem como eu. Não vamos nos complicar por causa do preço. Pode dar os dois mil. Depois de ter pagado, Márcio Nassembe andou um pouco com o jovem pelo caminho de volta. No momento em que se separaram, ficou a pensar se tinha de pagar algo ao jovem que chamara este que lhe vendera a pasta. Não sabia como é que as coisas funcionavam entre eles. Enquanto andava, aproveitava reparar mais

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detalhadamente no objecto que acabara de comprar. Quando viu que o objecto tinha muitos bolsos, gritou com graça – Vou me perder na minha própria pasta. Quando entrou para outra rua, olhou para o lado e viu duas camisas que lhe agradavam muito. Quando o jovem que as vendia se aproximou para falar com ele, voltou a ter uma discussão sobre o preço, e conseguiu adquirir as duas camisas pelo preço de uma! Onde é que Márcio havia aprendido a negociar? Que mania a de não comprar as coisas pelo primeiro preço! Se estivesse a andar com Judith, ela já o teria ralhado ou deixado sozinho por pedir tantos descontos. Mas quem é que trabalhava? O dinheiro era dele. Gastá-lo de forma sábia era um direito seu. E ninguém gosta de ser extorquido. Se os vendedores baixavam o preço é porque lucravam bem da mesma forma. A inflação tornava as pessoas mais gananciosas. Márcio não era obrigado a participar do enriquecimento injusto de outros. Também tinha suas necessidades. Quando estava próximo da barbearia, decidiu não entrar. Lembrou-se que só cortava o cabelo às sextas-feiras.

* Terça-feira. Márcio voltava a casa com Judith. – Ei, Márcio! Já te disse que o meu cabelo está mal, não? – perguntou Judith. – Sabes trançar? – Sei – brincou. – Fixe. Quando chegarmos a casa, vais me dar um toque. – Se quiseres que o Victor tenha um ataque assim que te vir... Enquanto andavam, observaram cães, uns andando atrás dos outros. – Responde essa, Márcio. Se o melhor amigo do homem é o cão, qual é o da mulher? – A cadela? – Você é mesmo muito burro. Se é «homem», é no geral. A mulher também está inclusa – disse gozando. – Obrigado pela aula do óbvio, professora. – Sempre às ordens. – Estas chuvas começam a amedrontar-me – disse Márcio ao olhar para o céu. – Já estamos em Outubro e ainda não caiu nenhuma. Quando caírem! Os tectos vão voar. – E eu então? A minha vai ser levada, levada para as profundezas das águas. – ‘Cê é exagerada. – Foi o que o irmão da Júlia me disse ontem. Estou a te dizer. O miúdo chegou já e me perguntou: «Judith, porque é que és muito directa? Porque é que falas tudo que te vem à mente?» Ah! E eu vou falar o que me vem a onde? – ‘Cê não bate bem, irmã – disse sorrindo. – Chegámos. Entraram e arrumaram as compras. Enquanto Judith fazia o jantar, Márcio, sentado, lia um dos salmos para Marta, mãe de Judith. As lamentações e a confiança em Deus demonstradas naqueles versículos adequavam-se à situação de Marta e lhe davam forte encorajamento. Seus olhos, embora cegos, pareciam seguir o folhear das páginas de seu sobrinho. Quando ele terminou a leitura. Conversaram um pouco sobre o estado de saúde dela e de Guilherme, seu marido. Márcio sentiu na voz de sua tia um mesclado de esperança e abatimento emocional, tentou confortá-la com algumas palavras, mas ela mesma mostrou-lhe que não precisava ouvir mais nada. O que ele havia lido era o suficiente.

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– Alô? – disse Márcio ao atender a chamada. – Márcio, é a Sandra. – Sandra! Quanto tempo. Como estás? – Estou bem. Estás ocupado? – Porque...? – Preciso falar urgentemente contigo... pessoalmente. – Queres que eu viaje para ir ter contigo? – brincou. – Sabes o que penso sobre mudanças de lugar. – Não será preciso. Vem. Estou na nossa casa. Márcio levantou-se. Despediu-se da tia e da prima e correu até o local em que Sandra dissera que estava. Quando abriu a porta, ignorou as pessoas que falavam com ela; levantou-a com um abraço e pô-la no colo. Depois de muitas risadas e perguntas sobre tudo que se passara com ela até aquele momento, Sandra procurou um local isolado para falar com ele. Tudo que Márcio ouviu pareceu-lhe sem nexo. Não podia ser verdade o que Sandra lhe contava, mas como tinha um espírito calmo, ouviu-a com atenção, ou ao menos fingiu que assim o fazia. Enquanto ela falava, ele observava atentamente os movimentos de seus lábios e mãos. Sandra era irmã gémea de Alda, mas eram muito diferentes. Sandra era mais forte e retraída; tinha também a tez mais clara. Falava pouco quando estava na companhia de amigos. Muitas vezes, tinha uma expressão fechada em seu rosto, mas com o tempo aprendeu a demonstrar mais simpatia e a conviver com os outros. As coisas que dizia ao irmão eram simplesmente inacreditáveis para ele. Sandra contava-lhe que já por algumas semanas o via andando pelas ruas conversando sozinho. Que anormalidade havia nisso? Bem, é na verdade normal proferirmos algumas palavras enquanto estamos desprovidos da companhia de outras pessoas. Mas falar na rua como se estivéssemos a andar com alguém, e de mãos dadas? O que dizer de entrar num restaurante sozinho, requisitar uma mesa para dois, pedir o mesmo número de pratos, consumir apenas um convencido de que a outra pessoa ao seu lado, que na realidade não está aí, consumira o outro? Mais grave ainda, o que se comentar sobre uma pessoa que compra um grande peluche e o deixa numa casa abandonada? As pessoas são esquisitas.

* Manhã de quarta-feira. Alguns da família Nassembe acabavam de acordar. – Mãe – chamou Márcio do quintal. – Diz, filho – respondeu Elisabeth. – Tens chá aí? – Não. Só há leite. Queres? – Sabes muito bem o que o leite faz ao meu estômago. Não queres ver o teu filho preso por ter intoxicado os próprios alunos até a morte, pois não? Tens dinheiro para mandar comprar chá? – Não te metas com o meu dinheiro. Tens o teu; e dificilmente mo dás. – Está bem. Quando eu cair na rua... – Papá, olha meu dinheiro – disse Bruno pavoneando-se, como se tivesse uma fortuna nas mãos. – Bruno, filho. Meu salvador. Empresta estes cinco para o papá comprar chá. – É pá compá gelado...

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– O gelado custa dez kwanzas. Depois o papá vai te pagar, sim? – Logo? – Sim, logo o papá vai trazer dois gelados até! Bruno entregou o dinheiro a Márcio. Este saiu e foi a uma das lojas. Enquanto adquiria o que o levara aquele local sorria consigo mesmo. Antes de Márcio poder sair, o lojista, depois de o ter entregado o pequeno pacote amarelo, perguntou-lhe: – Porque é que estás com este sorriso, amigo? – Acabo de ser sustentado pelo meu filho de dois anos. Depois de ter chegado a casa e ter feito todos os preparativos relacionados ao seu pequeno-almoço e tê-lo tomado com seu filho, o cérebro de Márcio arrastou-o a um local tenebroso. Com sinapses atormentadoras, a parte respectiva de seu encéfalo lembrou-lhe da estranha conversa que havia tido com sua irmã no dia anterior. Porque é que Sandra havia inventado aquela brincadeira desprezível? E se não fosse brincadeira, o que aconteceria? Será que Márcio havia enlouquecido e começado a ter visões de pessoas que não existiam? Seria um caso de esquizofrenia? Não, não podia ser. Abigail era tão real para ele quanto Sara, Gabriela e todas as pessoas que ele conhecia. Podia tocá-la, sentir o seu perfume, visitá-la, perder-se no som angélico de sua voz. Márcio não podia estar apaixonado por uma alucinação. Contudo, se fosse verdade, porque razão? Porque criaria seu cérebro uma mulher fictícia, quando havia no mínimo seis mulheres pelas quais seu coração localizava indícios de paixão em si mesmo sempre que as visse. Sim, segundo o seu poema E se eu me perder...?, Príscila, Ester, Raquel, Gabriela, Eugénia e Mariana lhe interessavam. Onde é que estavam estas mulheres durante o período em que lamentou ter perdido Sara? Porque não ficou com nenhuma delas? Quanto a Gabriela ele sabia a razão: era uma mulher detestável e sua consciência fremia de horror sempre que se lembrasse que caíra na tentação da voluptuosidade e tivera um filho com ela. Mas que dizer de Príscila? Não era ela simplesmente encantadora e, embora, às vezes, fosse infantil em seu comportamento, sempre mudava de proceder quando ele a aconselhasse? Príscila parecia ter sido esculpida por alguém que conhecia os pensamentos dele – era inigualavelmente feminina: seu olhar era meigo e ao mesmo tempo incendiado, digno da atenção de Márcio, sua estrutura física parecia pedir a protecção dele. Ainda havia Ester, a mulher do sorriso mais lindo que já vira, Raquel, a mulher que parecia afogar-lhe em felicidade só com o brilho de seus grandes olhos, Eugénia, a simples e Mariana, a mulher que parecia esperar que ele a amasse desde que haviam se conhecido na adolescência. Eram todas agradáveis – porque não se interessou mais por uma e preocupou-se em conquistar o seu amor? Agora corria o risco de ser considerado louco e internado em um hospício. Será que o choque de Sara o ter abandonado foi tão forte ao ponto de lhe comprometer gravemente o sistema nervoso? Amara tanto assim a Sara ao ponto de criar uma mulher alegórica apenas porque não queria sentir que a traía se começasse a amar uma mulher de verdade? Que doença era aquela? Como reagiria Sara se descobrisse tal coisa? Abigail não podia ser fictícia. Abigail não era fictícia. Sandra havia se enganado. Mas como Márcio havia de provar isso a ela? Que garantias tinha Márcio quanto a existência real daquela mulher. Apenas ele a conhecia. Calma, Alfredo e Mendes podiam ajudá-lo quanto a isto. Era um pouco estranho Sara ter dito que os dois haviam viajado a um bom tempo atrás, mas Márcio não hesitaria em usá-los como trunfo. Assim poderia calar a boca de Sandra e enterrar aquele assunto de uma vez. Antes tinha de saber mais sobre aquela mulher. Quem era realmente aquela mulher, sim, quem era Abigail? Porque tinha às vezes um comportamento estranho que parecia esconder muito sobre sua vida? Porque é que ele havia tido aquela estranha visão na casa dela na qual observara a si mesmo sendo

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supervisionado por ela num hospital? Márcio precisava buscar as respostas a estas e outras perguntas, e foi isso o que fez durante três dias.

CAPÍTULO V Domingo tão triste. Durante mais de duas semanas ele digladiou com a morte – a saga mais silenciosa e ao mesmo tempo a mais titânica que teve em sua vida onde esteve em jogo ganhar o tesouro da saúde estabilizada ou perder para o desfiladeiro gélido da não existência. Seu corpo parecia recuperar-se durante algum tempo – os braços chegaram até a mover-se! Mas o dano causado pelo aumento de sua pressão arterial impossibilitou a continuidade do processo Guilherme da Cruz estava morto. A notícia chegou por volta das nove horas da manhã aos ouvidos dos da casa de Judith. Os gritos arrepiantes soltos por Marta da Cruz ao ouvi-la despertaram a curiosidade da vizinhança. Judith estava fora de casa, trabalhando naquele projecto que tinha com Márcio, Edgar, Salomé e outros quando tal aconteceu; teve-se de se recorrer a telecomunicação para avisá-la. Visto que Márcio trabalhava em outra secção do projecto, Salomé ligou para ele com o fim de lhe transmitir a avassaladora informação. Ele chegou às doze horas na casa da tia. O quintal estava quase cheio. Márcio cumprimentou alguns, abraçou Marta que, mesmo sem poder enxergar, andava descalça de um lado para o outro envolta em panos verdes chamando Guilherme de pai. Júlia e mais alguns já estavam presentes. Entrou para a casa. Na sala estavam a filha mais velha de Marta e Guilherme da Cruz de pé, a penúltima filha deles e o marido desta sentados e Judith deitada sobre o cadeirão maior com o rosto triste mas concentrado sem pronunciar som algum. Márcio cumprimentou-os e saiu. Sentou-se ao lado de uma das irmãs de Júlia; tirou o telefone e começou a enviar mensagens sobre o ocorrido a todas as pessoas que conheciam tanto a ele como sua prima. Quando terminou, olhou para o chão e viu os pés de Marta passando repetidas vezes sobre uma pequena poça de água. Salomé levantou-se, pegou uma esfregona e limpou a poça. Segundos depois apareceu Victor Luremo com mais três amigos. Quando ele entrou e se dirigiu para Judith, esta desatou a chorar sem parar. Victor ajoelhou-se diante dela e principiou a limpar-lhe as lágrimas que pareciam não terminar até o momento que ela adormeceu. Às treze horas, Márcio voltou para sua casa. Entrou para o quarto atordoado e dormiu na profundidade da dormência até as dezoito horas. Ao levantar-se, Judith ligou para ele dizendo que se precisava de mais cadeiras para as pessoas acomodarem-se. Ele disse-lhe que iria buscar um bom número delas no apartamento de Alfredo. Embora Judith tivesse achado aquilo estranho porque, até onde sabia, Alfredo estava fora do país há três anos, desinteressou-se do assunto quando viu que Márcio trouxera realmente os assentos.

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Enquanto conversava com algumas pessoas, Márcio viu Abigail se dirigindo para a saída. Andou apressadamente até alcançá-la na rua. Como é que ele havia chegado até aí? Ele apenas lhe tinha enviado uma mensagem dizendo que o tio dele havia morrido – como é que ele achara a casa? Mas a resposta a esta pergunta não era a coisa mais importante naquela ocasião. Márcio acompanhou-a até a casa rapidamente, depois voltou para a casa de sua tia. Durante o percurso, lembrou-se que não a havia apresentado para Alda e aos outros. No dia seguinte, ao sair de casa para dar aulas, Márcio deparou-se com um bulldozer a escavar a terra bem à frente de seu portão. Enquanto andava, viu uma mulher, considerada a vizinha mais ordinária daquela rua, discutindo de forma vociferante com os homens que faziam tal trabalho, pois o bulldozer, ao terraplenar a rua, estragou a canalização de água de algumas casasse arrostou a lama decorrida do vazamento até a entrada do prédio dela, coisa que dificultaria o negócio dela, pois tinha uma rulote. Dois dias depois, organizou-se tudo para o enterro. Antes de se chegar ao cemitério, fez-se um discurso fúnebre na casa de Marta da Cruz onde muitos estiveram presentes. No discurso, ouviram-se coisas contrárias às que se ouvem normalmente: o orador, depois de falar sobre a data de nascimento d Guilherme da Cruz, falado sobre os catorze filhos que ele deixara e sobre suas muitas qualidades bem como o afinco que tinha relativamente a Palavra de Deus, falou sobre a condição dos mortos segundo Eclesiastes 5:4 e que a sepultura não seria a última casa de Guilherme da Cruz como normalmente se diz, pois em João 5:28,29 apresenta-se a esperança da ressurreição para os fiéis. Depois de mais ou menos trinta minutos de discurso, entoou-se um cântico que arrancou lágrimas e gritos de lamento da maioria. Só então partiram para o cemitério. Algo que ficou gravado na mente de algumas pessoas foi a pergunta levantada pela filha primogénita de Guilherme e Marta da Cruz no dia em que recebera a notícia sobre a morte do primeiro: – Se precisavas de um ombro, porque não o disseste? As pessoas convivem consigo mesmas.

* A noite se fez presente. Márcio conversava em casa com Sandra e seus pais enquanto Narciso conversava com um dos irmãos de Júlia Vikeira. Estavam todos na sala. – Se eu tivesse uma boa amizade com a vizinhança, teríamos gás de quinze em quinze dias – disse Pontes Nassembe. – Tanto gás para quê? – perguntou Elisabeth. – Para termos sempre de construir uma casa nova – gozou Márcio. – Yá, por causa da forma como o pai acende o fogão, isso vai explodir todos os dias – disse Sandra. – Vocês estão sempre contra as minhas ideias. Até parece que a idade está a me pôr senil... – disse Pontes Nassembe levantando-se. – Onde vais – perguntou Elisabeth. – Vou tomar banho. A água pelo menos não diz nada contra as minhas ideias. – Então é uma comunicação pouco construtiva – comentou Sandra.

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– Não me venhas fazer barulho com o que aprendeste na carteira – disse Pontes Nassembe tapando as duas orelhas e desaparecendo do campo de visão dos que o escutavam com graça. – Esse senhor não muda – disse Sandra referindo-se ao pai –, quer sempre ter razão, e quando vê que a não vai ter, tira o pé para o quarto de banho. – Falando em tirar o pé – disse Márcio fazendo um sinal com a mão direita ao jovem que conversava com Narciso –, vou vazar. – Vais para onde? – perguntou Sandra em tom de séria preocupação, fazendo com que Márcio se lembrasse que sua irmã achava que não estava bem em sentido mental. – Vou à casa da Júlia – respondeu ele depois de se ter levantado, feito o jovem que conversava com Narciso sair à sua frente e quase ter trancado a porta com fúria. Márcio e o jovem saíram à rua. Haviam algumas pessoas conversando nos cantos escuros, outras nos carros, umas compravam bebidas alcoólicas no que era comummente conhecido como janela aberta; havia cães e um certo número de crianças dispersas correndo de um lado para o outro. O espaço entre a casa dos Nassembe e dos Vikeira era de uns cento e quarenta metros. Durante aquele pequeno intervalo entre as duas moradias, Márcio pensava no que acaba de ouvir de sua irmã. A pergunta que Sandra fizera deixou-o triste. Não havia bases para tal desconfiança. Márcio tinha de pôr fim àquilo o mais cedo possível. Convidar Abigail para um jantar com Sandra pareceu-lhe a forma mais propícia. – Xê! Estás a pensar em quê? – interrompeu-lhe o jovem com quem andava. – Já te falei sobre a Abigail, não? – Estás a perguntar o que já sabes porquê? – Estou a ter um pequeno problema com a Sandra por causa disso. – Como assim? Antes que Márcio pudesse responder à pergunta do jovem, suas pupilas captaram a imagem de Alda triste encostada no portão dos Vikeira. – Vou fazer a pergunta irritante – disse Márcio ao pôr sua mão sobre o ombro da irmã. – Porque estás com esta cara? – Nada… não é nada – respondeu ela para evitar o assunto. – Foste outra vez lutar com aquele rapaz, não é? Eu já te disse que não tens força suficiente para bater o Bruno – dizia ele para animá-la. – Aquele meu filho tem os genes do Hulk. Vais sempre apanhar… – Pára de brincar, Márcio. É algo sério. – Márcio, vou entrar – disse o irmão de Júlia ao deduzir que aquela conversa seria longa. – Encontra-me no quarto. – 0K, André – respondeu Márcio. – É a Júlia – disse Alda ao fim de algum tempo. – Desde o óbito do pai da Judith que ela está fria comigo, e não me diz a razão. – Voltaste a falar com ela hoje? – Porque é que achas que estou assim? Após um curto período de explicações sobre a conversa que Alda tivera com Júlia, Márcio chamou a última e ficaram os três a falar sobre o assunto no quintal. No decorrer das expressões, Alda articulou as palavras ignorante e insensível contra Júlia e esta, de forma sarcástica, disse que Alda não precisava apontar coisas mínimas num caderno para que depois pudesse contar tudo de forma exageradamente detalhada. Depois de proferir e ouvir mais um bom número de palavras ferinas, Alda abandonou a casa dos Vikeira com o semblante totalmente triste. Márcio meteu-se em posição de segui-la, mas Júlia puxou-o pela camisola. Ao fazer isso, Júlia caiu. Márcio ajudou-a a

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levantar-se, depois saiu. Alcançou Alda à frente do portão dos Nassembe, e conversou um pouco com ela. Depois voltou para conversar com Júlia. Depois de ter ficado alguns minutos a conversar com o irmão de Júlia, Márcio voltou para casa. Antes de entrar bateu acidentalmente o seu ombro contra o ombro de outro homem. Pensou em ir conversar mais um pouco com Alda, mas, se bem a conhecia, ela já devia estar a dormir depois de ter derramado inúmeras lágrimas sobre a cama. Por isso, decidiu entrar para o seu quarto. Nele viu que algumas de seus pertences estavam fora do lugar. Alguém havia entrado ali sem a permissão dele. Apenas ele possuía as chaves – como é que alguém conseguirá entrar? As gavetas onde guardava os documentos mais importantes estavam abertas. Havia muitas folhas espalhadas pelo chão. O que estaria tal pessoa à procura? Márcio seguiu o rasto de papéis até a cozinha. – Lindo, até o meu jantar o sapo comeu… ou a sapa. Se for o Edgar… Sua garganta deixou de produzir som. Sua audição havia captado o som de chaves na fechadura de sua porta. O invasor, ou a invasora, estava de volta. Márcio ficou bloqueado por milésimos. Quando viu a porta a abrir-se lentamente, escondeu-se perto da entrada para a cozinha. Quando a pessoa tentou passar, Márcio atirou-se contra ela. Rolaram sobre o chão. Márcio ficou em cima segurando firmemente os membros superiores da pessoa contra o tapete. A pessoa conseguiu soltar-se, empurrando-o contra a pequena mesa atrás dele. A pessoa tentou fugir, mas Márcio agarrou-a pela cintura e voltou a jogá-la contra o chão. A pessoa atacou brutalmente o estômago de Márcio com uma cotovelada. Márcio gemeu, mas não a largou, pelo contrário apertou-lhe a cintura com mais força. A pessoa fez de tudo para rolar com ele para conseguir se libertar daquele asfixiador abraço, mas Márcio agarrou-lhe na máscara, o que fez com que a cara dela ficasse descoberta. Márcio levou um grande susto quando olhou para aquele semblante. Era… ele! Márcio via a si mesmo à frente de si. Não, não era a sua imagem reflectida num espelho. Os reflexos das pessoas não lutam contra as próprias pessoas; nem as conseguem tocar. Afinal, só fazem sincronizadamente aquilo que as pessoas fazem. Então, o que era aquela pessoa? – Acabas de ver o que devias ter visto – disse o aparente espectro. – Agora entendes tudo? Antes que Márcio pudesse responder, embora, na verdade, não o fosse fazer, por causa do choque causado pelo que via, ouviu-se a porta da entrada a ser aberta. – Márcio? Estás aí? – perguntou Sandra ao aproximar-se da sala. – Ouvi uns barulhos estranhos… Oh! Estás com visitas. Uma expressão de admiração apoderou-se do semblante de Sandra. Suas pupilas captavam a imagem de seu irmão à esquerda trajado de uma camisola e calções – assim como o tinha visto sair de casa – mas à direita observava a mesma pessoa trajando um pulôver e calças jeans. – Quem é este senhor, Márcio? Quem quer que seja o Márcio nesta sala… as – disse ela após sua pressão arterial se ter estabilizado. – Então também o consegues ver? – inquiriu o Márcio de calções. – Que queres dizer com isso? – perguntou Sandra. – Que é um facto: estás a ver este homem aqui à minha frente. Não é uma alucinação. Não é um sonho. Eu não estou a ver coisas que não existem. – Sim. Vejo alguém com características muito semelhantes às tuas nesta sala… – Sandra, este homem entrou aqui, provavelmente usando as minhas chaves, na verdade, cópias delas, as minhas estão no meu bolso… por momentos pensei que estivesses certa, que estou a ficar, sei lá, esquizofrénico… – Márcio, Cuidado! – gritou Sandra ao ver que o Márcio de calças dirigia um pedaço de madeira contra a cabeça do Márcio de calções.

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* Faltando ainda alguns minutos para as seis da manhã, os olhos de Márcio despertaram. De forma sobressaltada abandonou a cama. Dirigiu-se à sala e viu alguns móveis desarrumados – confirmação de que o que vira ontem não fora um sonho, principalmente quando levou a mão à cabeça e sentiu uma forte dor. Sandra – o que acontecera com ela? Teria aquela pessoa a levado consigo? Márcio saiu correndo de seu quarto e foi até a casa maior onde seus pais e seus irmãos dormiam. Bateu a porta. Elisabeth abriu-a. Após ter cumprimentado a última rapidamente, pôs-se em direcção ao quarto onde Sandra provavelmente estaria. Abriu a porta sem bater previamente. Respirou aliviado ao ver que sua irmã estava aí. – Sandra, Sandra – dizia para acordá-la, empurrando e puxando levemente o ombro dela. – Que foi? – disse ela depois de algum tempo. – Estás bem? – Acabas de interromper um dos meus melhores sonhos… Não, acho que não estou bem. – Aquele indivíduo de ontem… o que é que aconteceu com ele? O que é que ele te fez? – Que indivíduo, Márcio? – O indivíduo de ontem. Aquele que entrou na minha casa e é muito parecido comigo. – Do que é que estás a falar? – Sandra, pára de brincar! Ontem foste ao meu quarto e me encontraste com alguém. – E como é que eu entrei lá? – Talvez ele tenha deixado a porta aberta. Ele estava com a cópia das minhas chaves. – Não me lembro de nada disso, Márcio – disse sorrindo. – Ontem fiquei aqui a assistir a um filme com o pai. Talvez tenhas sonhado. Márcio pegou a mão de Sandra e pô-la sobre a cabeça dele. – E este galo que tenho aqui, também é sonho?! – Que é que te aconteceu? Caíste? – perguntou preocupada. – Foi a pancada que o palerma de ontem me deu. Não te lembras? – Márcio, estás a precisar de ajuda – disse ela ao pegar a mão do irmão. – Eu me especializei nessa área, mas se não achares confortável ter consultas com a tua irmã, posso indicar-te alguém de minha confiança. – Queres dizer que estou louco, não é mesmo? – perguntou ele calmamente, como fazia sempre que estivesse extremamente irritado. – Estás parado no meu quarto a falar sobre um género de clone teu que achas que eu também vi… Márcio não permitiu que ela acabasse de falar. Puxou-a pela mão e conduziu-a às pressas ao seu quarto. – Achas que eu seria capaz de fazer essa confusão na minha própria casa? – perguntou ele, depois de terem entrado no referido. – Não sei – respondeu ela com um tom de pena. – Eu não sei bem o que aconteceu ontem – dizia ele andando com Sandra que se dirigia para o quarto dele – mas tu estavas aqui, viste a maior parte de tudo que houve.

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Falaste comigo... Chegaste até a gritar para me avisar quando ele apanhou algo para me atingir. Como é que podes não te lembrar disso? Essa brincadeira já chegou longe demais, Sandra. Por que é que estás a fazer isso, irmã? Eu sei que tu és muito amiga da Sara, mas me fazer passar por louco só porque a minha relação com ela não deu certo é infantilidade. Tu combinaste isso com ela? Responda, Sandra. Tu combinaste isso com a Sara? Enquanto Márcio projectava aquelas questões insultantes contra a audição de dela, Sandra abrira a gaveta de uma das bancas e tirara de dentro dela um considerado volume de folhas de papel. Desconsiderando as perguntas que seu irmão lhe havia feito, começou a ler em voz alta a primeira página. Era um pequeno poema, construindo pelos seguintes versos: Desconhecida Nunca te vi Nunca te falei Mas no dia que te vir Te beijarei Quando sua mente principiou a processar com eficiência as palavras que Sandra leu nas páginas seguintes, Márcio sentiu a dureza da realidade a atacar-lhe a percepção. Estava tudo aí, e escrito pelas próprias mãos dele. Desde que perdera Sara, seus pensamentos focalizaram-se na procura e na descoberta da mulher perfeita para si. O poema E se eu me perder...? marcou a génese da aventura quando citou por oito vezes a «amiga dessas horas». Aquela evocação a alguém que o entendia sempre que estivesse naquela situação deu azo aquela fantasia. A mulher citada naquelas páginas andava de mãos dadas com ele. Nunca o magoava. Participava de suas alegrias. Desde que a conhecera, a compreensão entre eles nunca sofrera reveses parecidos às relações românticas que tivera. A «amiga» o consolava. Nunca era tola o suficiente para achar que a solução para resolver um problema sério, ou mais superlativo ainda, era pôr fim a relação. Por causa de todo o sofrimento que passara no mundo do romance, decidiu assentar por escrito a paixão que queria viver, e enquanto escrevia, seus sentidos confundiram transportaram a ilusão para a realidade – Márcio começara delirar. Antes que sua irmã pudesse acabar de ler mais uma página, ele recebeu-lhe o volume de folhas das mãos e pediu-lhe que saísse. Depois de se encontrar sem viva alma como companhia entre aquelas paredes, leu por si mesmo sobre sua criação que o levou à fuga da realidade. Quando terminou, deu gargalhadas de fúria ao olhar-se para o espelho. Chegara a hora de descobrir a verdade. Será que Sandra havia encenado aquilo tudo? Teria realmente sido ele o escritor daquelas palavras? A letra era dele, mas Edgar e Narciso tinham a caligrafia semelhante – não teria sido um jogo? Não queria esperar pelas respostas. Entrou em seu carro e saiu de casa. A cabeça de Márcio pulsava freneticamente; seu coração batia de forma explosiva. Muitas partes de seu corpo estavam trémulas. Sua respiração era acelerada e enraivecida. Se tivesse aquela conversa com Abigail e descobrisse que Sandra estava certa, talvez chegaria a ter um ataque cardíaco – sim, talvez seria esse o acontecimento que lhe tiraria a vida. Mas já não era concebível um adiamento. A verdade tinha de vir à tona, acontecesse o que acontecesse. Após ter feito uma manobra perigosa, estacionou o carro sobre o passeio à frente do portão de Abigail. Pouco lhe interessava a possibilidade de ser multado; demonstrar

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sua fúria ao mundo que parecia só lhe oferecer tristezas era mais relevante. Sem sequer bater, empurrou a grande porta, depois de ter descido do automóvel. – Abigail! Abigail! – gritava do quintal. Ela apareceu à sua trás. Abigail sorria como uma criança. Estava vestida como um miúdo: um macacão jeans azul claro lhe tapava a maior parte do corpo esbelto e uma blusa laranja que deixava à mostra a angélica pele de seus braços lhe cobria o busto. Ela tirou os óculos. Seus olhos brilharam de forma cegante. Márcio quase desistiu de falar o que tinha como recluso em sua garganta, mas o assunto era sério demais. Mesmo estando parcialmente petrificado com aquela imagem substancialmente estonteante, abriu a boca: – Quem és, Abigail? – Alguém perdeu as boas maneiras. O «boa noite» caiu enquanto vinhas para aqui? – gracejou. Márcio pegou-a nos ombros. Respirou fundo. – Desculpa-me. Boa noite. Quem és Abigail? – Boa noite. Essa pergunta é a primeira de um inquérito? – Não estou a brincar, irmã. Passa-se algo muito estranho. As pessoas estão a dizer que me vêm a conversar sozinho na rua, a andar de mãos dadas com uma pessoa invisível e… – O que é que isso tem que ver comigo? – Tudo. As pessoas nunca te vêm quando estás comigo. Abigail retirou as mãos dele de seus ombros. Seus olhos piscaram involuntariamente por algumas vezes. – Que brincadeira é esta? Ah! Já sei, estás a estudar a minha reacção neste assunto para depois a descreveres num dos teus poemas. – Não é isso, irmã. Responde-me, quando é que eu te apresentei a Judith? – Tu nunca me apresentaste a Judith. – Então como é que apareceste na casa dela quando o meu tio morreu? – Eu… – Onde é que está o urso que te dei? –… – E esta casa? Porque nunca me deixaste entrar? – Tu nunca pediste para entrar. – Posso entrar agora? – O que queres provar com isso? – Posso entrar agora? – Se achas que vais descobrir o lugar onde o sol se esconde quando a noite chega… Ela começou a andar. Márcio foi atrás dela. Quando Abigail abriu a porta, a incredulidade e o susto tomaram conta de seus sentidos. Havia panos velhos e latas espalhadas pelo chão – e este estava coberto de areia que cheirava a urina de várias espécies. O local parecia abandonado por várias décadas. Havia páginas soltas de jornais antigos em cantos aleatórios, partes das paredes sala, dos quartos e da cozinha estavam destruídas e com a pintura queimada. Tudo aí demonstrava que aquela era uma casa abandonada, que muitos jovens vândalos, muitos homens bêbados e muitos animais vadios passaram por aí e deixaram suas marcas. – O que é que aconteceu com a minha casa? – perguntou ela com voz de choro. – Talvez o mesmo que aconteceu contigo, nunca chegou a existir. Abigail, não sei como te dizer isso, mas… acho que não és real. És só algo que a minha mente criou

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por eu ter ficado profundamente abalado com o fim da minha relação com a Sara. Acho que a amei de mais… Acho que nunca consegui superar a perda. – Pára de falar isso! Ou andas a ver muitos filmes de ficção científica ou então esta é a forma que arranjaste para me contares que queres voltar, ou já voltaste, para ela. – Longe disso, irmã…. – Pára de me chamar «irmã»! – gritou. – Eu não sou tua irmã, está bem? E se fosse realmente verdade, eu teria sido criada pelo teu amor pela Gabriela, não pela Sara. – Porque dizes isso? Eu nunca amei a Gabriela. – Ai não? Tu não estás mesmo a ver, pois não? Gabriela… Abigail… Gabriela…. Abigail… – Sei que estás chocada. Eu também estou. Mas, por favor, não digas coisas que possam vir a baralhar mais a minha mente. Já me sinto como um louco. Não piores mais a situação. – Dentro em breve vais descobrir o que quero dizer. Mas, pára com essa conversa. Começo a ficar irritada. Meu Deus, o que é que houve aqui? – Não sei o que te dizer. Acho que tudo começou quando escrevi o poema E se eu me perder?... nele eu falo de uma «amiga» que me consola nas horas em uma mulher diz que já não quer ficar comigo. Acho que o meu cérebro deu forma e substância a essa «amiga». – Não entendo nada do que falas. E nem sequer quero continuar a ouvir… – Mas tens de continuar. Talvez assim desapareças e eu volte a ser alguém normal. – Estás a magoar-me. – Tu não existes, não é possível que tenhas sentimentos reais. Abigail ameaçou atacar-lhe o rosto, mas refreou-se. Dirigiu-se a chorar para o quintal proferindo frases de fuga da realidade para si mesma. – O nome da tua mãe, podes dizer-mo? – perguntou Márcio ao aproximar-se. – Não me chateies. – Porque não sabes, pois não? Não tens nenhuma memória a respeito. Com quem vives aqui? – Com os meus pais, a minha irmã, a minha avó e a minha sobrinha… nem sei porque te respondo. – Bravo! – ironizou. – Porque nunca os vi? Não, não. Não respondas. Diz-me apenas o nome da tua sobrinha, ou da tua irmã. – Eu… Márcio, eu não me lembro. O que é que se está a passar comigo? Ajudame… – Não posso. Tenho de te expulsar da minha mente. Preciso ser duro contigo. – Estás a dizer que sou um género de demónio para ti? – Não sei. Gostaria de dizer que és uma grande mulher, mas estaria apenas a elogiar a mim mesmo; sou eu quem te inventou. És algo que escrevi. És uma paixão que só existe nos meus poemas… uma paixão literária. – Pára! Não digas isso. Eu sou real – disse ao levantar-se de forma ameaçadora. – O que é que vais fazer? – perguntou ele com medo. – Nada que te faça sofrer tanto quanto me estás a fazer sofrer agora – disse ela tirando uma faca de seu macacão. – Tu não podes fazer isso. O irreal não pode atingir o que realmente existe – dizia ele com os olhos fechados. – Não me podes magoar. Está na hora. Desaparece, Abigail. Desaparece! Deixa-me em paz.

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Márcio abriu os olhos mas não viu ninguém à sua frente. Apalpou suas roupas, e sentiu algo avolumado num dos bolsos de suas calças. Era pequeno saco branco e dentro dele havia uma linda gravata. Ele acariciou o tecido – era macio. – É para que descubras mais coisas sobre mim – disse Abigail antes de entrar para a casa e fechar a porta atrás dele.

* – De onde vens? – perguntou André após ter aberto a porta de seu quarto para o primo. – Fui conversar com a Abigail – respondeu Márcio com uma alegria fingida ao entrar e se deitar numa das camas. – Ela está fixe? – Não muito. – Estava aqui a ler a história de Sansão – disse André ao se deitar na outra cama. – Eh! Antes disso, hoje eu estava a falar com o Valdemar e o Dário… – Aqueles dois jovens que vivem no prédio aqui perto? – O Valdemar é que vive no prédio; o Dário vive nos arredores. Tu sabes muito bem disso, não? Andaste a pôr um cochito de «coca», entendo. Continuando, o Valdemar diz que um desses homens da luta livre é capaz de matar um leão com as mãos. – Só o rugido do animal já iria fazer o gajo esquecer que existem casas de banho. O leão manda pata. Aquilo se chama pata gigante. Uma bofetada daquela derruba um animal como o boi. Se desse uma a um humano então! A cabeça iria girar em torno do pescoço umas mil vezes – hiperbolizou com graça. – Foi o que eu lhe, mas ele não quis aceitar. E ainda foi me pôr o caso de Sansão. Mas Sansão, embora tivesse um corpo daqueles, tinha o poder de Deus. – Não é à toa que ele subiu uma montanha carregando os enormes portões de uma cidade. – Não imagino como é que aquele leão sofreu nas mãos de Sansão. Quando ele lhe abriu a boca, o leão deve ter gritado: «Vais me matar, Sansão! Vais me matar! Vais me matar!» – disse ele libertando gargalhadas da boca de Márcio. – Sansão nada; continuou a lhe abrir a bocarra. Sansão era mau, yá? – Cê fala mesmo à toa – disse sorrindo e meneando a cabeça. – Vibra telefone, vibra – cantarolou enquanto tirava o aparelho do bolso. – É a Sara. – Deixa eu atender! – Estás maluco ou quê? Fala, miúda – disse ao atender a chamada. – Oi. Estou em tua casa. Estás distante? – Não. Estou na casa do meu tio. Queres falar comigo? – Yá. Pode ser? – Daqui a alguns segundos estarei aí. – Adúltero – disse André depois de Márcio ter terminado a chamada. – Ela quer falar comigo. Que queres que eu faça? – Vai, vai. Assim deixas a Abigail para mim. Márcio tentou contar a história toda sobre Abigail a André, mas a percentagem de coragem em si mesmo ainda era insuficiente. Despediu-se do primo e saiu. Quando se preparava para abrir a porta do carro, sua visão captou a imagem dele mesmo sentado no banco traseiro do automóvel com um computador ao colo e um homem estranho no assento do condutor. Abriu a porta e as alucinações desapareceram. Talvez estivesse na

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hora de procurar ajuda médica, pensou ele de si para si. Mas, no mesmo instante, ignorou a ideia sensata e concentrou-se nas possíveis palavras que ouviria da mulher que o esperava em casa. – Não precisas de bater a porta da casa dos teus pais. Estou mesmo atrás de si – disse Sara depois de Márcio ter entrado para o quintal. – E estás aqui fora porque…? – Já estava aí dentro com o Narciso e os teus pais. Decidi conversar contigo sem nenhuma interrupção. Então, como é que vai a tua vida. – Estou a enlouquecer – respondeu ele ao puxar uma cadeira para que se pudesse acomodar. – Estou a falar a sério. – Se não queres acreditar na verdade, deixa que eu te minta: estou muito bem. E tu? – No mesmo estado que tu. E… vim te dizer que também estou com alguém. O que é que ela quis que ele sentisse com aquela notícia? Seria uma forma de pagar na mesma moeda? E se Márcio lhe contasse tudo sobre Abigail? Ele podia realmente sentir que seu coração havia perdido a paixão que tinha por Sara, mas em alguma parte de seu corpo o sofrimento se fizera hóspede ao ouvir que a mulher por quem se tornara um homem melhor, pertencia agora a outros braços. – Espero que aproveites bem este rapaz, para que te possas tornar mais segura – disse ele com falso desinteresse. – Sabes que eu sempre quis que crescesses longe do teu bairro. Assim serias a melhor pessoa do mundo. – Não digas isso… – Se tivesses crescido longe de muitos dos teus amigos, Sara… Eu vejo como é que são as relações deles e as relações das tuas amigas. Todas acabam ou são interrompidas por algum tempo por causa da insegurança. Talvez se tivesses crescido aqui comigo… – gracejou. – Eu cresci no sítio certo, Márcio. Sabes que é a mim que as minhas amigas vêm como conselheira? Podemos ter as nossas falhas, mas também temos qualidades. E, falando nisso, ele é calmo como tu. Porque razão Sara fizera aquilo? Comparar Márcio com seu novo amor era o cúmulo! A notícia de que ela agora pertencia ao coração de outro já era desalentadora. Porque aumentar o sofrimento daquele coração por mencionar semelhanças entre ele e o homem que lhe recebera o lugar que ele tanto almejara? Márcio já lhe havia contado que estava com outra mulher. Já não havia necessidade de ela vir contar que estava com outro. Teria Sara a intenção de magoá-lo assim como ele fizera anteriormente quando lhe havia falado sobre sua relação com Abigail? Márcio se sentia pior do que Abraão naquele momento – tinha sacrificado tanto a sua verdadeira e única paixão, Sara, como abatera também o bode expiatório que lhe fora oferecido para aliviá-lo da dor, Abigail. Sara não sabia o quanto magoava aquele homem por lhe fazer ouvir aquela notícia, mas Márcio conseguiu camuflar sua dor com expressões de alegria e muitos conselhos. Quando a conversa decidiu não receber mais nenhuma palavra em seus registos, Márcio acompanhou Sara até a saída. Enquanto andavam, Márcio sentiu em seu peito a forte vontade de pô-la em seu colo como fazia antes. Seus olhos almejaram sentir a humidade das lágrimas por instantes, mas ele impediu que tal demonstração de fraqueza fosse presenciada por Sara. Antes de entrar para o seu carro, Sara disse o que sempre dizia quando se despedia dele. – Cuida-te. As pessoas vingam-se.

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CAPÍTULO VI Os dias passaram como um tufão. Encontravam-se já nos finais de Novembro. Nesse tempo, Judith da Cruz conseguiu superar em grande parte o trauma da morte de seu pai, embora seu relacionamento com Victor Luremo tivesse passado por uma crise de afastamento. Júlia Vikeira e Alda Nassembe haviam voltado a entender-se. As coisas pareciam entrar nos eixos para todos, menos para Márcio Nassembe. A vontade de entender o que se passava em sua vida o punha fora de si. Mas ninguém ao seu redor parecia aperceber-se disso, excepto Sandra que várias vezes o apresentou a psicólogos e a psiquiatras, mas nenhum conseguiu diagnosticar com precisão se havia qualquer insanidade em sua mente. Depois de ter trabalhado no projecto que tinha com seu irmão, sua prima e sua amiga, Márcio chegou à casa. Ao trocar de roupa reparou que só havia camisolas sem mangas. Visto que tinha como ideia ir à casa de Júlia dar um livro ao pai da mesma, teve de meter uma das camisas de Narciso que lhe ficou pequena. Alda gozou com ele quando lhe viu vestido daquela forma. Quando chegou à casa dos Vikeira ficou a conservar com André no quarto deste. Duas horas depois, o pai de Júlia convidou-o para almoçar no quintal. Enquanto seu paladar apreciava o delicioso prato, o rádio ao lado tocava antigas canções do Duo Ouro Negro. – Já foste à Muxima? – perguntou o pai de Júlia depois de um tempo. – Não – respondeu Márcio. – A estrada já está boa. Vamos lá amanhã? – Eh! Eu que nunca saí de Luanda? – Então vamos lá no próximo sábado. Vamos sábado e voltamos no domingo. Márcio sentiu-se encurralado, mas como não queria parecer um desmanchaprazeres naquela altura, concordou apenas com a cabeça. Depois de algum tempo Alda, Júlia e uma amiga delas apareceram. Precisavam que Márcio lhes desse o novo terminal telefónico de Sandra, para a convidarem para participar de um jogo conhecido como trinta e cinco. Márcio gozou com a blusa suja da amiga delas e com o cabelo desmazelado de Júlia. Para que não se tornasse na próxima vítima do irmão, Alda denunciou-se, dizendo que sua blusa estava rasgada e que, por ser domingo elas podiam 45


andar daquele jeito e as roupas de Márcio também não estavam em tão bom estado. Antes da ausência delas se tornar efectiva naquele quintal, Márcio deu-lhes o que queriam e entrou para o quarto de André. – Márcio! – chamou André do quintal. – Fala! – respondeu ele do quarto. – Sabes como é que o meu professor de Inglês fala substantivo? –... – Subustantivo! – Eh! – «Alguém aqui pode me dizer o que é um subustantivo?» Eu disse que não sabia – disse André entrando para o quarto. – Você gosta de problema. – Ele é que falou mal. Não tenho culpa de não saber a definição – disse ele apanhando uma peça de roupa de sua janela. – Vou experimentar a blusa da Júlia. Vou ficar todo doido, yá? Márcio soltou uma gargalhada. Sentou-se sobre a cama e pegou o telefone de André. – Márcio... – chamou André depois de ter posto e tirado a blusa da irmã e se deitado na cama ao lado. – Fala. – Estou a esquecer-me de ler os números. Ontem olhei para o número vinte e não sabia o que era. Isso é preocupante, né? E uma vez me esqueci de mover os braços. Quis mexer os braços, mas eles não queriam. Naquele dia fiquei muito mau. – Deves estar a apanhar Alzhaimer. – Achas? – perguntou preocupado. – Estou a brincar. Nem sei se esta doença existe no nosso país! Pronto! – disse ao atirar o telefone para o fundo da cama. – Agora é só esperar. – O que é que fizeste? – inquiriu André com desconfiança ao apanhar o telefone. – Enviei uma mensagem à Sara e à Abigail. – Cê não aprende. A Sara já não está com alguém? E há muito tempo que não falas da Abigail. Se calhar também já está com outro – disse ao entrar na Caixa de Mensagem do aparelho e preparando-se para ler a última mensagem enviada. Estou sozinho e triste em meu quarto pensando em tudo que já vivi contigo e em todos os poemas que já te dei para ler. 2 Coríntios 2:4. Márcio. – Já pensaste se o damo da Sara está ao lado dela? – perguntou André em tom de decepção. – Vais só criar problemas para a outra. – Vibra telefone, vibra – cantarolou ao tirar o seu aparelho do bolso. – É a Sara. Oi, miúda – disse ao atender a chamada. – Oi – respondeu Sara. – Porque estás triste? – Estava a ler algo que me fez lembrar de nós – mentiu. – Não fica triste, está bem? – disse baixinho. – Se queres que eu faça isso, então o farei – falou como criança arrependida por ter feito uma travessura. A voz triste de Sara parecia mostrar-lhe que ela também passava pelo mesmo sofrimento que ele. Para não mergulhá-la em palavras de afecto decidiu trocar de conversa. – Pareces cansada… – Tive de ajudar uma minha amiga. Os preparativos do pedido dela ficaram sobre a minha responsabilidade. A semana toda trabalhei exaustivamente. Ainda bem que tudo acabou hoje.

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– Não era a tua festa de noivado e te cansaste dessa forma. Quando for o teu, como será? – O meu pedido nunca vai acontecer. Vou morrer antes disso. – Então morre comigo. Sara sorriu de forma indecifrável. Estaria ela a entender o que Márcio queria dizer com aquelas palavras? Para não tornar a situação constrangedora, despediu-se dele gentilmente e desligou o telefone. Naquele momento a vontade de ler coisas sobre a antiga relação deles atingiu o coração de Márcio. Havia uma mensagem que ela lhe havia enviado no mês anterior: Nenhuma mensagem minha pode descrever o carinho que tenho por ti, serão apenas palavras, palavras estas que ouvimos sempre. És um grande homem, podes crer. Cuida-te. E a resposta que ele enviou, quase confirmou que a falta da atenção dela lhe punha fora de controlo: Talvez se pudesse chegar bem perto de ti, sentir teu perfume e abraçar-te como sempre sonhei, poderia dizer-te no ouvido que nunca deixaste de ser um anjo. Sonhos corde-rosa. As pessoas são esperançosas.

* Manhã de sexta-feira. Márcio estava a caminho do trabalho. Visto que queria apreciar as pessoas com mais calma, decidiu andar a pé. Pensava seriamente no presente que Abigail lhe dera a algum tempo atrás. Se ela era uma ilusão, como era possível que as pessoas ao seu redor vissem e elogiassem aquela gravata? Ele não se lembrava de ter entrado em sítio algum e a ter comprado. Nenhum de seus familiares ou de seus amigos lhe tinha oferecido aquilo. Era mesmo verdade que Abigail não existia? Mas pensar sobre aquilo lhe dava dores de cabeça. E não estava disposto a enfrentar o mundo, se tudo indicava que ele andava a ver coisas. Na semana em que foi buscar as cadeiras a casa de Marta da cruz para devolvê-las a Alfredo Nkodia, ficou espantado por encontrar apenas o pai deste em casa embora tivesse terminado de falar há alguns minutos com Alfredo e este lhe ter garantido que não sairia de casa. Visto que tinha medo que a resposta lhe fosse causar constrangimento, não perguntou ao pai do amigo sobre a ausência de Alfredo e sobre o sítio em que ele teria ido. Enquanto seus pensamentos se tornavam cada vez mais profundos e confusos, sua visão captou a imagem de um prédio pegando fogo. O incêndio começara no quarto andar e se espalhara até o oitavo. Os moradores atiravam baldes de água contra as chamas. Antes de Márcio continuar a andar, algumas pessoas ligaram para os bombeiros, mas no momento em que estes chegaram o fogo já havia sido apagado por completo.

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Passaram-se alguns dias. Já era Dezembro. Márcio andava às pressas para se encontra com Walter Lourenço Lombo, irmão de Jacinto Lourenço Lombo, o amigo com quem Edgar Nassembe sempre andava. – Vê só, mô kota – disse um jovem bêbado que Márcio nunca tinha visto antes. – A minha dama, só porque lhe comprei um fogão novo, já não mais usar o antigo, eh! Mas o antigo ainda está em bom estado. Isso só pode ser culpa da minha mãe, que me rogou aquela praga. Eu vou matar aquela senhora com feitiço. É isso que dá estar muito perto das mães. É desejo delas que os filhos não progridam! Yá, mô kota. Tô a ir embora. Márcio abanou a cabeça sorrindo. Quando chegou no local combinado com o amigo, reparou que este ainda não havia chegado. Mas a seu lado estavam dois senhores idosos, conversando sobre seus problemas familiares. – Quem em Catete tinha dinheiro para pôr os filhos no Liceu? – perguntou o primeiro idoso ao outro. – Ninguém! Eu é que mandava naquilo. Não é à toa que eu era, e ainda sou, general. Agora aqueles macacos vêm duvidar da minha autoridade naquela casa. A mãe mimou todos filhos, menos o Kaenche que lhe mandei na esquadra para lhe baterem, filhas casadas que vieram só para passear naquele dia também contribuíram. E até perguntaram porque é que eu não peguei uma faca e as matei! Vê só! Eu tenho estrelas, vão me cair. O estudo que tenho é do meu pai. Antes de tentar entender aquela estranha conversa, o telefone vibrou. Depois de Márcio ter recebido a mensagem de Walter Lombo que dizia que não seria possível encontrarem-se naquela hora, Márcio voltou para a casa. Sentou-se sobre sua cama e começou a ler o poema que Sara lhe havia dado no dia que terminaram a relação. Por mais estranho que parecesse, começou a sentir saudades de ter aquela mulher insegura ao seu lado. Sentiu ciúmes por ser outro a aturá-la quando vacilava. Sentiu falta do sofrimento que o invadia quando ela dizia que precisava de um tempo para ver se era mesmo aquilo que ela queria. Era insegura, sim, mas era a insegura dele. No momento em que pegou o telefone para ligar para ela, ouviu três batidas na porta. Ao girar a maçaneta, a pessoa do lado de fora empurrou a porta com violência o que fez com que ele caísse. A pessoa levantou-o e presenteou-o com o forte murro contra o rosto. Márcio voltou a cair. Ainda sobre o chão, a pessoa ficou de pé entre as pernas dele e, ofegante, disse com fúria: – E assim? Esqueces a Abigail? – O que fazes aqui? – perguntou Márcio com a respiração acelerada. – Não sabes lutar? – disse dando um forte pontapé contra coxa de Márcio. – Deixas simplesmente aquela mulher ir? Ficas nos bastidores à espera que tudo aconteça conforme o bel-prazer do tempo! Podes realmente ser chamado de homem? Eu não admitirei que percas esta moça desta vez! E já estás tu a pensar na Sara em tão pouco tempo! – gritou bicando-lhe a outra coxa. – Ela já não é para ti. Qualquer esperança que tenhas, aborta-a. Ainda tens tempo para reconquistar a Abigail. Ela sim é mulher para ti. Esquece a Sara, palhaço! Márcio levantou-se um pouco. Agarrou as pernas do seu agressor e atacou-lhe violentamente o estômago com uma cabeçada, o que fez com que eles trocassem de posição – agora a pessoa estava caída e Márcio de pé. – Tu não podes falar assim da Sara – disse Márcio com evidente ódio. – Já deu para ver que, para além de seres muito parecido comigo, também sabes muito sobre a minha vida. Mas não tens noção de nada do que eu passo – disse em voz alta ao apertar o pescoço do outro contra a parede. – É fácil para ti parar de sofrer – disse com voz rouca. – Demora o quê? Quatro dias? Uma semana? Já pensaste se realmente chegas a amar estas mulheres? Falso! –

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disse ao retirar a mão de Márcio de seu pescoço e contorcê-la atrás das costas do mesmo. – Se não as amo, porque é que as minhas acções que as tornam felizes só perdem o fogo depois de elas me convencerem que já não querem que eu demonstre interesse romântico por elas? – Se as amas, porque é que as tuas acções românticas perdem o fogo? Deus é amor. Deus é eterno. Então o amor também é eterno. – Deus não ama pessoas que provaram inúmeras vezes que não querem ser amadas por ele – arguiu Márcio, batendo furiosamente a parte traseira de sua cabeça contra a testa do outro, fazendo com que este o largasse. – Quando é que a Abigail provou que não quer ser amada por ti? – disse fazendo um sinal de paz com a mão. – Ela... ela não é real. – Como é que podes saber disso? – Tu és real? – Já fui. Antes de teres entrado em coma por causa daquele acidente. – Que acidente? – Lembraste do que viste na casa da Abigail na primeira vez que lá foste? Tu deitado sobre uma cama, ela a chorar... – Sim. O que houve. Em vez de ouvir a resposta que tanto ansiava, ouviu apenas os passos daquele sósia a distanciarem de forma rápida. O homem abriu a porta e fugiu. Márcio foi atrás dele, mas não o encontrou em parte alguma.

* Passaram-se três dias. Era domingo. Na manhã daquele dia Alda, Júlia e André receberam em seus telemóveis uma mensagem de Márcio convidando-os a aparecer na casa de Jacinto. Quando Márcio se apercebeu que usara o novo telemóvel da irmã de Jacinto para enviar aquelas mensagens, deu fortes gargalhadas, pois aquele havia sido o telefone que o Jacinto havia ligado dias atrás para Júlia com o fim de brincar com ela dizendo que a amava mas que tinha medo de dizer aquilo à frente dela. Visto que o número era desconhecido por Júlia e Jacinto disfarçara a voz, ela havia ficado a semana inteira a tentar descobrir a identidade daquele admirador secreto. Quando ela perguntou a Márcio se ele conhecia o número, ele dissera que não, mas agora ele mandara uma mensagem do mesmo terminal. Márcio estava em apuros, e Jacinto também. Quando chegou a noite, Márcio foi à casa de Príscila pois havia sido convidado para uma festa que ocorreria no seu quintal. Ele havia anteriormente pedido a Jacinto, mas este se recusara por causa da falta de vontade que tinha de estar no mesmo sítio que Príscila e suas irmãs. – Boa noite – cumprimentou Márcio depois de lhe terem aberto o pesado portão de ferro. – Oi, como estás? – perguntou a irmã de Príscila. – Entre. Ao entrar, seus olhos captaram a imagem de muita gente dançando no quintal. Quando levantou o olhar para frente, viu uma das sobrinhas de Príscila cochichando-se com outra moça. – Olha, este é o homem que gosta da Príscila – foram estas as palavras que Márcio julgou ter ouvido nos lábios dela.

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Márcio cumprimentou-a e fez o mesmo com algumas pessoas ao redor dela. Visto que não se sentia à vontade, decidiu ficar em pé. – Oi, Márcio – cumprimentou Príscila aparecendo à sua trás. Ela estava – e era muito – linda. Embora fosse mais de uma dezena de centímetros mais baixa do que ele, não deixava de parecer uma princesa (e fora esse o nome que ele pusera em seu telefone: Príscila Princesa). Seu rosto fora evidentemente desenhado por penas de pavão. Seus olhos eram escuros e radiantes. O nariz era delgado. Os lábios inocentemente sedutores. A pele castanha e escura. Seu corpo apresentava um género de meiguice e fragilidade dos ombros à cintura, as partes posteriores eram classicamente atraentes à visão masculina. Príscila levou-o pela mão até uma mesa separada dos outros convidados. Márcio tremia. O que queria aquela mulher? Depois de estarem sentados, falaram sobre vários assuntos: desde seus anteriores empregos até a falta de interesse dele em aceitar cursar no exterior do país. Após terem dançado várias vezes juntos, Márcio apresentou o desejo de se ir embora. Príscila acompanhou-o sozinha até a porta, algo que nunca fizera antes. Enquanto voltava para casa, Márcio pensava na razão de eles terem dançado de forma tão terna. Era como se naqueles passos ritmados, ela tivesse confessado que desejava ficar com ele. Sorriu quando se lembrou que no dia que Príscila o convidara, ele pedira para levar mais alguém, Abigail, mas ela recusou o convite. Agradeceu a Deus por Príscila ter feito aquilo, pois, agora que descobrira que Abigail não passava de uma disfunção de sua mente, teria de mentir sobre o motivo da mesma não ter aparecido com ele, a não ser que contasse a verdade, submetendo-se assim a um possível internamento. Antes de entrar para sua casa, recebeu um telefonema de Alfredo Nkodia, que lhe pediu para aparecer em seu apartamento, visto que tanto ele como Mendes Bundi e Walter Lombo desejavam falar-lhe. – Estamos aqui para resolver um problema muito sério – disse Walter Lombo após Márcio ter chegado e se sentado. – O nosso irmão está a ter um comportamento estranho. – Estás a falar de mim? – perguntou Márcio. – O que foi que eu fiz? – Mesmo antes de estares casado, já és polígamo – atirou-lhe Walter secamente. – Não estou a entender. – Estás sim. Mas antes de continuar, gostaria de lembrar o que fazemos sempre para ter conversas desse tipo. A pessoa que está com o problema só fala depois de aqueles que o querem ajudar terem terminado. Muito bem. O Márcio tem uma relação com uma pessoa que demonstra que sente uma forte paixão por ele. Mas, por recentemente ter descoberto que a Sara está com alguém, decidiu esquecer-se desta mulher, facto este que me põe muito decepcionado com ele. Sinceramente, este não é o Márcio que conheço. O Márcio que conheço assume sempre as suas responsabilidades. Nunca dá para trás, mesmo que a relação esteja por um fio, mesmo que ele tenha descoberto que a namorada esteve aos beijos com o ex-namorado, ele finge não saber da traição para continuar com ela. A não ser que a rapariga ponha um fim à relação, ele nunca pensa em abandoná-la. Agora eu me pergunto, o que está a acontecer com ele? – Talvez tenhas descoberto algo sobre a Abigail que te decepcionou – começou Mendes. – Agora já nem falas dela. Antes, bastava eu tocar no nome dela para rires como um louco apaixonado. Qual é a razão dessa mudança, Márcio? – Eu não tenho nada a dizer – disse a única pessoa que não falara até aquele momento. – Quero apenas ouvir as respostas que o Márcio dará as vossas perguntas.

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– Não sei bem como vos explicar. Andam a acontecer muitas coisas estranhas… Mas vocês têm razão, estou a me desligar da Abigail. Estou a me comportar como aqueles parvos que terminam o namoro sem dizer a outra parte a real razão de estarem a tomar tal acção. Não sei se isso tem algo que ver com a nova relação da Sara. Acho que não estou em condições de agir por mim mesmo por enquanto. Será que vocês poderiam me ajudar? Alfredo, Mendes e Walter não entenderam o que realmente abrangia aquele pedido. Márcio não requisitava conselhos sobre fidelidade; implorava por ajuda médica especializada. Márcio não sabia como expor em palavras que a mulher que Mendes e Alfredo lhe haviam apresentado era fictícia. Pior ainda, não tinha forças para contar-lhes que provavelmente ambos estavam na mesma situação, visto que todos ao seu redor diziam que eles estavam fora do país. E Walter Lombo? Como era possível que soubesse de todos os passos de Márcio? Pertencia ele à realidade, ou estava no grupo das alucinações? Não! Márcio não podia pensar em tal inconcebível coisa. Walter era seu amigo, e era um dos poucos a quem contava tudo o que lhe acontecia quando tinha uma relação romântica. Era normal que ele soubesse tanto sobre o que se passava entre ele, Sara e Abigail. O estranho – o estranho era que Márcio não se lembrava de lhe ter dito palavra alguma sobre o assunto. Tudo começava a perder o sentido para Márcio. Seus três melhores amigos o aconselhavam sobre ser fiel com alguém que até o momento não tinha fortes provas que existia. Ele nem sequer sabia se aquela conversa que estava a ter naquele momento era mesmo real ou apenas outra alucinação. Depois de mais ou menos meia hora de conversa, ele despediu-se do trio e voltou para casa. Ao abrir a porta de seu domicílio no quintal, ouviu soluços de lamento vindo de sua sala. Depois de ter pousado o casaco sobre o cadeirão, colocou as mãos sobre a cintura e ficou observando a pessoa sentada à sua frente que chorava com o rosto enterrado nas mãos. – O que foi? Hoje não me queres espancar? – perguntou Márcio com gozo. – Tu não sabes o que está a acontecer – disse a pessoa ao levantar a cabeça, exibindo um olhar vermelho de sofrimento – mas a culpa é tua. Márcio ficou interessado em saber mais sobre o assunto porque reconhecera aquele olhar. Era o mesmo olhar que ele tinha sempre que a tristeza o atacasse da pior forma. Antes de se aproximar mais de seu sósia e se sentar sobre o tapete como uma criança interessada em ouvir a história de seu pai, tirou a gravata e descalçou os sapatos. – Podes me explicar melhor? – disse batendo-lhe levemente nas sapatilhas. – Estás a perdê-la – disse com voz de lamento. – Estás a perder a Abigail para outro homem. E não fazes nada. Nem sequer te preocupas com isso. – Estou a tentar tirá-la da cabeça. Não posso continuar a viver uma ilusão. – Ela não é uma ilusão! Ela não é uma ilusão… A Abigail é real. E no fundo sentes isso. Só não entendes como é que essas coisas estranhas que aconteceram com ela se encaixam no que chamas de realidade. Mas eu posso te explicar. – Por favor, faça isso. Está a ser pesado viver como um anormal. O sósia levantou-se e deitou-se sobre o chão pondo a cabeça no colo de Márcio e ficou a olhar para o tecto. Depois cerrou os olhos. Suspirou. As lágrimas que esvaía humedeceram as calças de Márcio, o que fez com que este se preocupasse ainda mais. O que acontecera que o fazia sofrer daquele jeito? Contudo, não estava Márcio realmente louco? Como era possível que estivesse a conversar consigo mesmo daquela forma? Não era aquele um claro indício de anomalia em seu sistema nervoso central e periférico? Márcio não queria saber das respostas a tais perguntas. Não lhe interessava

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se estava doente ou não porque sentia que tomaria conhecimento de coisas que o fariam entender melhor o que se passava em sua vida. – Tu não estás aqui – disse o Márcio deitado. – Neste exacto momento estás sobre uma cama de hospital, recuperando-se de um grave acidente que te deixou sem memória. – Porquê? O que aconteceu comigo? – perguntou calmamente o Márcio sentado, segurando fortemente o ombro do outro para que este não fugisse como da última vez que estiveram juntos. – Não te posso dizer. – Porquê? Tens de me dizer, para que eu entenda… – Não te posso dizer porque ainda não te lembraste do que aconteceu. Espero que dentro em breve a tua memória seja restabelecida completamente. – Sinto que me estás a esconder algo. Mas continua… – Neste momento estás deitado numa cama de hospital. E tens uma visita: A mulher a quem amas e que também te ama. – Quem é ela? A Sara? A Abigail? – Por favor, pára de fazer perguntas. Deixa-me apenas falar. O que eu não poder te dizer é porque tu mesmo ainda não te lembraste. Ela está sentada ao teu lado a ler em voz alta alguns poemas que escreveste para ela e para outras. Por acreditar que isso está a ajudar a recuperar a actividade de teu cérebro, ela faz isso todos os dias. E, surpreendentemente, estás a recuperar a memória aos poucos. Olha, agora ela está a ler o poema em que dizes que queres que tu e a Abigail esqueçam tudo o que fizeram no passado e dêem um novo começo à vossa relação. Estou a chorar porque, depois deste teu poema, tu já não fizeste nada. Deixaste as coisas andarem por si. É como se no fundo tivesses dito que este começar de novo significava que a vossa relação devia acabar. – Eu nunca faço isso. – Mas talvez tenha sido isso que ela entendeu. E parece que entendeste que ela entendeu assim quando lhe deste o poema. – Quem és tu para me julgares? – Sou tu. Tu não podes negar a verdade a ti mesmo. Não há ninguém que possa te falar sobre os erros que cometes sem medo de acrescentar ou diminuir alguma coisa a não ser tu mesmo. Eis a razão de a tua mente me ter feito à tua imagem. – És a minha consciência… – Entenda como puderes. Se não queres que a tua paixão pela Abigail desapareça, vai procurá-la. – Não posso. Pelo que me dizes, estas coisas já aconteceram. Não posso fazer nada para mudar o passado. – Continuas a pensar que não te estou a contar a verdade. – Estou só a pensar que isso não passa de um delírio. Porque é que a Sandra te viu no primeiro dia que entraste aqui mas finge que não se lembra disso? – Ela não está a fingir. Tu a viste aqui naquele dia porque era ela quem estava contigo no hospital. Não tens só recebido a visita da mulher que amas e que também te ama. Tu tens família, não? A Sandra foi lá para ver o teu estado. Ao ouvires a voz dela, a tua mente criou uma imagem dela aqui. É mais ou menos como aquela coisa que acontece quando estamos a sonhar… Há vezes que o que acontece no nosso quarto enquanto dormimos aparece no sonho que estamos a ter naquele momento. Há pessoas que normalmente dormem com o rádio ligado, e muitas das músicas que tocam neste período se misturam com as imagens que passam em suas mentes naquele instante.

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– Agora estás a dizer que estou a viver um sonho – disse enroscando o seu dedo indicador nas têmporas do outro para mostrar que não acreditara em nada do que ele dissera. – Se eu consegui ver a Sandra, como é que não consigo ver a pessoa que está a ler para mim agora? – Não sei. Talvez seja por causa da confusão de sentimentos que há em ti agora relativamente à Sara e à Abigail – disse levantando-se. – Aonde vais? – Ela parou de ler. Está a beijar a tua face agora. Ela vai sair. Eu vou fazer o mesmo. Agora vais ficar sozinho. Talvez venhas a te recordar de mais coisas que aconteceram entre ti e a Abigail. Bons sonhos.

* Noite de segunda-feira. A maior parte da família Nassembe se encontrava em casa. Pontes Veríssimo Nassembe – o pai – estava sentado na sala, coberto apenas por uma toalha ao lado de Elisabeth Delina Pereira Nassembe – a mãe. Sandra Zenaida Pereira Nassembe e Alda Letícia Pereira Nassembe – as filhas gémeas – também estavam sentadas perto deles. Márcio Pontes Pereira Nassembe – um dos filhos – estava em pé distante deles. Todos acompanhavam pela televisão as tristes imagens de um casal que acabara de morrer por causa de queimaduras do terceiro grau. Num dos quartos da casa, Narciso Pontes Pereira Nassembe conversava com um amigo sobre os jovens admiradores em potência da música comercial. Por causa da conversa que tivera ontem com seus amigos e seu sósia, decidiu ir até a casa de Abigail. Pelo caminho encontrou-se com Júlia Cândida Pereira Vikeira e Edgar Pontes Pereira Nassembe. – Vais te arrepender amargamente – disse Júlia com evidente ódio. – Edgar, deixa-me só falar com ela por alguns momentos – disse Márcio ao irmão que concordou imediatamente. – Vamos andar um pouco, Júlia. – Eu já sabia que era ele que havia feito aquela brincadeira – disse Júlia depois de se terem afastado um pouco de Edgar. – Você só me confirmou ontem com aquela mensagem. – Tu lhe fizeste o mesmo quando compraste o teu novo telefone. Só não sei se estamos a falar da mesma pessoa. Estás a falar de quem? – Ah! E ainda és cínico! Do Jacinto é claro. – Liga agora para o número para veres se é ele. – Não preciso. Já tenho a certeza – disse voltando para o lugar em que Edgar estava. – Tu é que sabes – disse Márcio ao acompanhá-la até o irmão. – Nos vemos logo. – Aonde vais? – perguntou Edgar. – Falar com a Abigail. Seus passos se aceleraram. O que conversaria com Abigail caso a encontrasse? Muitas perguntas estavam a precisar de respostas. E aquela mulher provavelmente teria algo a dizer. – Boa noite, minha senhora – cumprimentou Márcio beijando as faces da referida. – Boa noite, filho. Os de casa? – Estão todos bem. E a Abigail? – Ela saiu. Ainda bem, porque quero ter uma conversa contigo. 53


Era a primeira vez que ele encontrava alguém diferente naquela casa. Mas Márcio sentia que conhecia aquela senhora há um bom tempo. Era uma mulher de corpo grande; tinha as feições parecidas às de Abigail. Era a mãe de Abigail. – A Abigail contou-me que vais viajar. – Eu disse a ela que provavelmente viajaria – respondeu ele assustado com o que acabara de dizer. Era como se alguém lhe tivesse posto na boca o que falar. Não se lembrava de nenhuma viagem marcada até ontem quando conversou com Príscila. Já que se apercebia que a partir daquele momento não teria controlo sobre seus lábios, decidiu acompanhar a conversa, talvez desvendasse assim alguns mistérios sobre o que se passava em sua vida. – Está bem. Mas, sabes com quantos anos ela está. Não ficaria bem se depois dos quatro anos que passares lá chegares aqui e dizeres que já estás com outra. – Foi por causa disso que lhe disse que temos duas opções. A primeira, ela viaja comigo. A segunda, antes de eu viajar, apresentamo-nos um ao outro às nossas famílias, e depois de dois anos, eu volto para depois fazer o pedido de casamento, e depois de dois anos volto para nos casarmos. – 0K. Mas não seria melhor se se casassem depois de dois anos, em vez de quatro? – Poderia até ser. Mas não acho bem estar casado e depois ficar dois anos separado de minha esposa… Algo que posso fazer é no fim deste ano apresentá-la à minha família. – Está bem. Mas não lhe contes que tivemos esta conversa. – Pode estar descansada. As pessoas comprometem-se.

* Terça-feira. Os dias anteriores haviam ocorrido com extrema confusão. Primeiro, sua irmã praticamente o convencera de que a mulher por quem estava apaixonado só existia em sua mente. Nesta mesma ordem de ideias, Sara, Judith e Sandra lhe haviam dito que os amigos com os quais vez por outra se encontrava para conversar sobre seus problemas estavam a milhares de quilómetros de distância há mais de três anos. Segundo, por meio de alguém que parecia uma autêntica cópia biológica sua veio a saber que sua irmã estava errada e que tudo o que acontecia se devia a um processo de recuperação de sua memória. Terceiro, na conversa que teve com uma senhora que não se lembrava como e muito menos quando a conhecera, comprometerase a apresentar a filha desta como sua prospectiva noiva à sua família sendo esta mesma filha a mulher que não obtivera provas plausíveis de que era real. Se sua irmã estava certa, porque não o internara ainda, mesmo contra a sua vontade? Se seu sósia estava certo, porque via ele pessoas que os outros não viam? Se tudo não passasse de um género de sonho, como era possível uns serem reais para alguns mas ilusórios para outros? Se recuperava apenas a memória, não se recordaria apenas dos factos como haviam ocorrido sem esse género de anomalia psíquica? Porque se recordava de Abigail daquela forma? Teria acontecido algo grave em sua relação? Se fosse verdade que se encontrava em um hospital, há quanto tempo aí estava? Dias? Meses? Anos? Teria Bruno a mesma idade? Estaria Sara casada com outro? Se recuperasse a memória, quem encontraria ao seu lado? Ainda era solteiro? «A mulher a quem amas e que também te ama.» Não se lembrava de ninguém com tais 54


características afectivas. Gabriela não existia em seu coração. Sara só o amava quando ele estava a prestes a perder o amor por ela. Abigail – quem era esta mulher? Não sabia o que havia sentido por ela nem o que ela havia sentido por ele. Teria sido tão forte? Teria sido arrebatador? Ou fora fraco, estranho como um filme que começa com cenas românticas e termina com imagens de terror? As perguntas eram praticamente infindáveis. Sua cabeça aquecia de tanto pensar. Para que não explodisse, decidiu refrescar o espírito com um passeio. O sol tornava o clima morno; era quase noite. Muitas pessoas andavam pela rua. Os carros faziam a normal banda sonora com a voz misturada das conversas dos transeuntes. Quando matar a sede se tornou uma necessidade, Márcio encostou-se a um pequeno grupo de jovens que vendia refrigerantes. Enquanto desfrutava da agradável sensação daquela bebida gelada, sua audição ficou interessada no desfecho do diálogo que dois dos vendedores mantinham. Ambos discutiam sobre uma mulher pobre que apanhara uma enorme quantia de dinheiro, mas devolvera ao respectivo dono. Um achava aquela acção uma tremenda tolice, o outro defendia a nobre a acção. Márcio tentou expor sua ideia, mas a repentina aparição de Mariana à sua frente o emudeceu. Mariana Quilengues era de altura média. Tinha a tez clara. Embora tivesse trinta anos, seu rosto preservara as expressões que tinha desde menina. Seu corpo era parcialmente arredondado. Era uma das poucas mulheres que sabia as coisas mais íntimas da vida de Márcio, tendo em conta que, desde a adolescência, ele a transformara em sua confidente. – O que fazes aqui? – perguntou ela ao estender-lhe a mão. – Estou a espairecer – respondeu ele sem controlo sobre o que dizia. – E tu, de onde vens? – Fui a ver a minha tia. Ela está prestes a dar à luz e não há ninguém para auxiliá-la… – Agora és enfermeira? – perguntou ele ao começar a andar. – Não. Mas posso estar a estagiar – respondeu divertida. – Como é que está a Abigail? – Vou pedi-la em casamento no domingo. – Mato-te antes de chegar o dia – disse com olhar incendiado. – Estou a convidar-te para uma festa e queres ir ao meu funeral? – perguntou com gozo. – Mas é sério. Domingo irei levar os meus pais, os pais dela e ela para jantar… – Nem te atrevas! E, depois, aqui as coisas não se fazem assim. Tem de ir um tio teu e um tio dela. – Ia ser muito formal. Detesto formalidades. – A família dela tem de te conhecer. – Os pais delas já me conhecem. Não chega? – Por isso mesmo. Como é que te vais apresentar como prospectivo noivo dela a alguém que já sabe que o és? – Sei lá… – Mas não te preocupes, por mais moças que apareçam, no fim de tudo serás meu. – Espero que estejas a brincar… – Quem sabe? Depois de deixá-la o mais perto possível de sua casa, Márcio resolveu voltar para os seus aposentos. No caminho, teve uma agradável surpresa: viu Judith tirando as pesadas malas de um carro. – Quando é que chegaste? – perguntou ele ao abraçá-la com alegria.

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– Estou a chegar agora mesmo. – Como é que foi a viagem? – Vou te contar depois, yá? Agora estou muito cansada. Por enquanto, só estou a pensar em desmaiar na minha cama. – Está fixe. Depois. – Márcio – chamou ela depois dele se ter afastado um pouco. – Diz. – Voltei um pouco magra, né? – Voltaste irmã. Voltaste – respondeu ele sorrindo. Quando seu corpo se encontrou na posição horizontal sobre o sofá de sua sala, mais perguntas foram suscitadas. Mariana Quilengues era realmente apaixonada por ele? E se fosse, teria havido alguma época em que ele correspondera àquela paixão? Será que ela o visitava no hospital? E sua prima? Como viera ele a saber que Judith havia viajado? Não tinha nenhuma recordação a respeito. Seu sósia parecia ter razão. Muitas coisas pareciam ter sentido quando ele pensava que tudo aquilo se devia a um processo de recuperação de sua memória. Mas existiam dúvidas. E eram cada vez mais pertinentes. Se conversasse com Sandra, segundos depois se encontraria em uma camisa-deforças. Alfredo e Mendes não o podiam ajudar, pois faziam parte de suas incertezas. Os outros membros de sua família nada sabiam sobre o problema. E se lhes contasse? Não! A ideia de estar em um manicómio, ainda que fosse em sonho, lhe fazia tremer o espírito. Onde estava o seu sósia quando precisava dele? De repente, seus pensamentos se viraram para a mãe de Sara. Era uma das mulheres mais inteligentes que conhecera. Talvez se pudesse falar com ela naquele momento, voltaria a sentir a paz mental que tanto ansiava. Porém, não tinha nada que pudesse tornar o contacto com exequível. Ao pensar nessa impossibilidade de comunicação, lembrou-se da audaciosa carta que lhe entregara antes da viagem dela. Visto que se haviam passado apenas três meses e alguns dias desde que ele começara a frequentar a casa dela com o fim de conhecer melhor sua filha e que ela viajaria e voltaria provavelmente depois de quatro anos, Márcio decidiu escrever-lhe as seguintes palavras: Por favor, perdoa-me pela ousadia. Mas, se realmente serei namorado de sua filha, achei que a senhora merecia saber mais um pouco sobre este rapaz que aos domingos tem aparecido em sua casa e com muito respeito trocado alguns minutos de prosa consigo. Conseguir a confiança de alguém nunca foi fácil para mim. Todavia, conversar com os mais velhos é algo que aprendi a fazer com tacto e de maneira dignificante. É um pouco difícil explicar o meu modo de ver as coisas: penso muito, falo pouco, nunca procuro agradar aos outros se tiver certeza que isso não me levará a um fim de natureza relevante. Alvos espirituais? Possuo inúmeros. Trabalho neles regular, mas paulatinamente. Contudo, não me entristeço se não os alcançar de forma imediata. O importante para mim é continuar a mostrar ao Soberano do Universo que vou continuar a servi-lo zelosamente «até que não haja mais lua». Quer saber mais sobre a minha família? Somos nove irmãos. Apenas cinco se mantêm firmes na Palavra. O meu pai, quanto a estar na Casa de Deus, é de facto indeciso; a minha mãe é evangelizadora por tempo integral há uma eternidade, tem aguentado os dissabores que ele lhe causa de um jeito louvável… Acho que é o suficiente. Nunca tive problemas graves nos meus relacionamentos com os outros porque prefiro primeiro observá-los e só depois agir de acordo às exigências da situação. Prefiro não intervir na vida dos outros quando eles directa ou indirectamente não me pedem ajuda, visto que não me sinto bem quando alguém se intromete em algo meu sem ter sido 56


previamente convidado. Dificilmente me irrito com as atitudes dos que me rodeiam; ligo pouco para o que os outros dizem porque, como eu mesmo digo, «as pessoas não são assim tão importantes» quando querem que façamos o que lhes agrada, não o que sabemos estar certo. 0K, 0K, não precisa ficar ansiosa – vou já falar sobre as minhas reais intenções para com a sua filha. A Chéldia… desculpe, a Sara gosta de desenhar e pintar, eu também; gosta de escrever poemas, eu também; tem defeitos e qualidades, eu também; conhece uma língua estrangeira, eu também; é inteligente e bonita, eu também (ah! ah!) – poderia eu magoar ou abusar de uma pessoa tão perfeita? Estaria eu a mostrar que fui feito à imagem de Deus se quisesse apenas brincar com os sentimentos dela? Mostraria a minha deliberada atitude de feri-la que fui criado ouvindo e aprendendo os elevados padrões de moral de Deus? Será que… Penso que não preciso fazer a próxima pergunta, acho que a senhora já entendeu o que lhe quero transmitir. Pelo pouco tempo de convivência que tivemos, não sei se é presunção dizer que a senhora gosta de conversar comigo. Eu também aprecio ouvir as suas filosofias de vida. É tudo. Dona Ângela, votos de boa viagem. data.

PS: Luís Vaz de Camões não nasceu em 10 de Junho, mas sim morreu na mesma PPS: Se puder, pode enviar-me alguns materiais de Arte – livros, tintas, pincéis…? PPPS: Obrigado por ter trazido a Sara ao mundo.

Márcio sorriu ao se lembrar da razão de se ter referido a data da morte de Luís Vaz de Camões. Ângela Chele lhe havia dito que Sara Lídia Chele Bernardo viera ao mundo no mesmo dia que o escritor português. Por não ter informações fidedignas sobre o assunto, ele decidiu não contrariá-la no momento. Mas depois de ter chegado à casa e pesquisado, pensou em dar a informação do que descobrira daquela forma. Lembrou-se também do carinhoso nome que criara para Sara juntando dois dos nomes dela. Chéldia – era assim que a chamava. Ao mesmo tempo, Márcio ficou espantado com a precisão com que se recordara daquela carta. Era como se tivesse guardado nos mínimos detalhes cada palavra, cada vírgula. Como era possível? Estaria a mulher no hospital a ler para ele naquele momento? Se fosse verdade, aquilo indicaria que seu cérebro estava capacitado para coordenar pelo menos um de seus sentidos, visto que sua audição funcionava sem problemas. E sua visão? Será que se ele se esforçasse um pouco poderia dar vida a seus nervos ópticos e por fim abrir os olhos, podendo então observar a mulher que estava a seu lado? Não perderia nada se tentasse. Sentou-se sobre o sofá e, depois de ter cerrado as mãos, os dentes e os olhos com fúria, começou a ofegar. De repente, seu corpo começou a tremer de forma violenta; seu batimento cardíaco se acelerou. Quando aquela sensação agonizante desapareceu, tentou abrir os olhos, mas as pálpebras pesavam exageradamente. Era como se estivessem coladas. Não conseguia levantar as mãos. Teria conseguido? Estaria agora no hospital? Seu corpo estava imóvel – nenhum de seus membros respondia ao seu comando. Só podia estar no hospital. Depois de muito esforço, seus olhos começaram a abrir lentamente. Sentiu a ansiedade a invadirlhe o espírito. Finalmente veria a mulher que o amava! Seus olhos se abriram completamente, mas não via nada. Tudo estava escuro. Tentou achar o mais fraco vestígio de iluminação naquele quarto de hospital, mas não teve sucessos. Era como se tivesse perdido a visão. Sim, Márcio acordara cego.

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CAPÍTULO VII Dois dias atrás, julgara acordar pela primeira vez no hospital em que seu sósia lhe dissera que estava internado por tempo desconhecido. Naquela mesma estranha noite, abrira os olhos, mas suas pupilas captaram apenas escuridão. Com medo de confirmar que na sua provável vida real estivesse com o sentido da visão comprometido, voltou às pressas para o seu questionável mundo de recordações. O temor de descobrir que não conseguia enxergar havia paralisado de tal forma os seus pensamentos que não se lembrara de abrir a boca para saber se havia alguém a seu lado. Perdera a oportunidade de saber se havia realmente uma mulher que correspondia ao seu amor. Tarde de quinta-feira. Depois de ter deixado o carro na oficina por causa de certos problemas com os travões, andou até à paragem de autocarros. Minutos depois, com certo de grau de luta pelo lugar, conseguiu entrar para um dos candongueiros. Sentou-se ao lado do condutor. Depois do auto ter entrado em movimento, alguns polícias interditaram a via, por causa da iminente passagem de alguém muito importante e sua escolta. Tentando tirar proveito da situação, Márcio chamou uma das senhoras que vendia mangas. Fez aquilo por três vezes, mas em nenhuma dessas ela o escutara. Quando desistiu de tentar comprar algumas daquelas grandes frutas, entrou e se sentou ao seu lado um senhor alto e magro, de cabelos brancos, que cheirava a cigarro. No mesmo instante que se acomodou, começou a falar com o motorista a cerca do engarrafamento enorme que aquele bloqueio de circulação causava já por vinte e três minutos. Depois da pessoa muito importante e sua escolta terem passado, a via foi liberada. O arrancar acelerado dos carros e das motorizadas quase resultou em acidentes. Enquanto o auto andava, ouviram a revoltante notícia de um pai que matara a filha de quatro anos para mostrar sua devoção a Deus. Ouviram também a notícia da inauguração de um novo hospital. Esta última informação acendeu a língua crítica do

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motorista e do senhor fumante. Ambos protestavam contra aquilo porque achavam que o que país precisava mesmo era de se construírem novas empresas para que se desse emprego a mais pessoas, principalmente aos marginais. Chegaram a depreciar o facto de existirem tantos hospitais mas o atendimento neles ser de má qualidade. No decorrer das críticas, o fumante usou a expressão «fábricas transformadoras», o que chamou a atenção de Márcio. Visto que era a primeira vez que ouvia aquilo, decidiu dirigir uma pergunta ao fumante. – Fábricas transformadoras de quê? – Fábricas transformadoras – disse o fumante, como se estivesse admirado por um homem com aquela idade não saber nada sobre o assunto em pauta. – As açucareiras, por exemplo. Fábricas de massa tomate e outras…. Há quanto tempo não como uma pasta de peixe? Pasta de peixe! Embora Márcio quisesse saber mais sobre o assunto e também quisesse informações sobre o que era uma pasta de peixe, despediu-se dos senhores e desceu do candongueiro. Ao chegar à casa, a vontade de escrever subiu-lhe ao coração. Pegou o computador e sentou-se sobre o cadeirão. Sua mente pensava apenas em coisas sobre Sara e Abigail. Visto que cogitar sobre aquelas mulheres lhe lembrava a doença que Sandra dizia estar a dar cabo da sanidade dele, preferiu não escrever nada. Foi até a Internet e digitou a palavra «esquizofrenia». Os livros de Afonso Pedro, Carlos Freitas, Helena Luís, Ferreira Luís, Kathy Neeb, Harnold Kaplan, Benjamin Sadock além da Organização Mundial de Saúde, Genebra – Divisão de Saúde Mental e o ABC da Saúde foram citados como obras de referência. Quando leu a definição, viu que um dos sintomas que caracteriza esta doença mental é a dificuldade do paciente estabelecer a distinção entre as experiências internas e as externas; há uma dissociação entre o pensamento do doente e a realidade física que o rodeia. Achou curioso saber que o matemático John Forbes Nash, o escritor Jack Kerouac e o pintor Van Gogh foram esquizofrénicos. Ao ler sobre percepções irreais, como cheirar, ouvir, saborear, sentir e ver o que realmente não existe e que a apatia, a falta de vontade, a indiferença emocional, o isolamento social e a pobreza de pensamento, parou um pouco para reflectir no que se passava com ele. Leu também sobre os diferentes subtipos da doença. O paranóide era o que mais se assemelhava à sua situação, pois o quadro clínico deste subtipo é «dominado por um delírio paranóide relativamente bem organizado. Os doentes com esquizofrenia paranóide são desconfiados, reservados, podendo ter comportamentos agressivos.» Levou um susto ao ler que a cura ainda não foi encontrada. O tratamento tem apenas a capacidade de ajudar a tratar os sintomas, e a permitir que os doentes possam levar as suas vidas de forma satisfatória e produtiva. De acordo com a experiência clínica o melhor período para o tratamento da esquizofrenia é com o aparecimento dos primeiros sintomas. Se Márcio estivesse realmente com tal doença, ela já estaria avançada. Leu ainda que em muitos casos, os indivíduos com esquizofrenia foram crianças tímidas, introvertidas, com dificuldades de relacionamento e com pouca interacção emocional. Sentiu-se totalmente em baixo ao ler que um dos factores que pode precipitar uma crise psicótica é o rompimento de uma relação. Seria Sara tão amada por seu coração ao ponto de o fim de seu namoro causar tal disfunção em seu cérebro? Se fosse, não seria amor; seria obsessão, e Márcio não era obcecado por nada. O alívio invadiu-lhe a alma ao saber que, embora um dos maiores temores do esquizofrénico seja o de ser estigmatizado por preconceitos sociais relativos à sua doença, especialmente a ideia de que a pessoa é violenta, intrinsecamente perigosa, estudos recentes mostram que a incidência de comportamento violento nestes doentes e na população em geral é idêntico, se não mesmo inferior.

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Ao terminar a esclarecedora leitura, confrontou-se com um pesado dilema: admitir que era esquizofrénico em seu provável mundo de recordações ou voltar para o questionável mundo real. Na primeira opção, possivelmente seria submetido a um internamento hospitalar que o ajudaria a lidar melhor com a doença, mas assim admitiria estar naquele estado por causa do abandono de Sara Chele Bernardo – coisa que ele achava um absurdo. Na segunda, já estava internado em um hospital, provavelmente cego, confinado a uma cama sem saber se daí sairia algum dia, mas ao lado da mulher que o amava. Nenhuma opção era um mar de rosas. Por isso inventou uma terceira: deixar o tempo fazer as coisas por si. As pessoas fogem de seus problemas.

* Madrugada de sexta-feira. Mesmo com fortes dores de cabeça e ardendo em febre, Márcio dormia com rosto sereno. – Acorda, medroso – disse alguém com voz séria que, por não receber uma resposta, dirigiu-se até a arca, encheu um balde com água gelada e, voltando ao quarto, atirou o líquido contra a pessoa deitada sobre a cama. Márcio levantou-se sobressaltado. Quando viu que era seu sósia quem fizera aquilo, acalmou-se e sentou-se sobre a cama. O sósia fez o mesmo. – O que foi agora? – perguntou Márcio ao limpar o gelado líquido de sua face. – Vieste me contar que sou uma sereia do Pólo Norte? Pelo visto te enganaste. Mesmo me atirando essa água as barbatanas não apareceram. – O teu sentido de humor vai acabar ao ouvires a notícia que te trago. – Posso adivinhar? Já vi que não. Diz. O que é? – A Abigail é tua prima. O rosto de Márcio petrificou-se por efémeros segundos. Uma coisa era ignorar a forma usada por seu sósia para acordá-lo por saber que aquilo não passava de uma alucinação, outra bem diferente era ouvir que a mulher por quem se havia apaixonado dividia os mesmos genes consigo e sua memória reconhecer aquela informação como verdadeira. – Agora entendo a razão de ela ter aparecido na casa da tia Marta na época do óbito. Era um membro da família dela que… – Não – interrompeu o sósia. – Não é bem assim. Ela foi lá apenas para dar os pêsames aos enlutados. Quando voltou para a casa e contou a mãe o nome do teu tio e o da tua tia, aí sim tomou conhecimento do problema. A mãe lhe disse que era prima da tua tia, o que faz da Abigail sobrinha da dona Marta e, por fim, tua prima. – Sim, tens razão. Lembro-me disso. Só não me recordo da reacção da Abigail ao saber disso. – Claro. Tu não estavas com ela nessa ocasião. Mas, dias depois ela falou contigo. E estava a sorrir quando o fez. Talvez estivesse a camuflar a dor, ou simplesmente… sei lá. Ah! Quando voltaste para a casa, enviaste-lhe uma mensagem. «Não podemos ser da mesma família porque, primeiro, preciso continuar a sonhar em ter uma relação contigo e, segundo, estou grávido de ti.» – Sou mesmo louco, não? – disse com expressão alegre. – E depois, o que foi que fiz? – Ainda não tenho informações a respeito. Estás a recuperar a memória paulatinamente… 60


– Ontem… ontem acordei no hospital em que dizes que estou. – E o que aconteceu? Viste-a? Viste a mulher que amas e que também te ama? – Não… – Porquê? Ela não estava por perto? – Se és a minha consciência, como é que não sabes disso? – Já ouviste falar de Freud, não? Id, ego e superego? Pensa em mim como alguém que pode ser estas três coisas… – Trabalhas em part time? – perguntou com gozo. – És técnico médio do meu consciente, tens o mestrado do meu subconsciente e és doutorado em meu inconsciente? – Continua com a brincadeira… Responde à minha pergunta, pá! – Não sei se ela estava a meu lado. Quando abri os olhos não consegui ver nada. Acho que sou cego. – Não pode ser! – Porquê? Tens provas de que posso ver? – Não, mas… Queres tentar de novo? Queres acordar de novo no hospital? – Não me estou a lembrar de nada que já tenha escrito; acho que ela não está a ler para mim neste momento. – Quem te disse? Ela está sempre aí… a cuidar de ti. É como se o hospital fosse a casa dela. – Queres dizer que ela está a abdicar de toda a sua vida… seu emprego… tudo que lhe é importante, por minha causa? Ela não pode fazer isso. Estou a ser um peso para ela… – Cuidar de ti é o emprego dela. – Pára! Pára com essa conversa entediante de romancista. – Tu não entendeste. A mulher que amas e que também te ama trabalha no hospital em que estás internado. É ela quem está a tratar do teu caso. Ela não quis que outra pessoa cuidasse de ti, mesmo sabendo que não mereces isso – disse empurrando o outro com amizade. – Então, queres acordar de novo no hospital? – Estás a me pôr tonto com essas informações. Não me lembro de a Abigail ou a Sara estarem na área da Medicina. Quem é esta mulher? – É a mulher que, sempre que lhe perguntas «quem és?», te responde «aquela que te ama.» – Muito esclarecedora esta resposta – ironizou. – Ela tem nome ao menos? – Se tu não te lembras, como é que eu posso saber? – Porque sabes muito mais do que dizes saber. Só me dás as informações que achas já ser o tempo de eu as receber. Como não sou muito curioso… – Fazes muito bem. Ainda não me respondeste. – Não, por enquanto não quero acordar de novo no hospital. Tenho de reunir força primeiro. – Tu é que sabes. – Se não é nem a Sara nem a Abigail, quem será esta mulher? – Eu não disse que não era nenhuma das duas. Disse apenas que é a doutora que está a cuidar de ti. – O que faz com que possa ser qualquer outra mulher. Será a Príscila? – Pára de olhar assim para mim. Já disse que não sei quem ela é. – Então como é que sabes essas coisas sobre ela? – Porque ela tem estado perto de ti em qualquer hora do dia. A presença dela é constante. Está sempre a fazer exames ao teu corpo às mesmas horas do dia e coisas parecidas. Só em algumas noites é que ela senta e lê para ti. – Então é a Raquel? A Ester? A Mariana?

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– Se quisesses acordar no hospital, ajudar-nos-ias aos dois a saber disso num instante. Mas não queres. Preferes ser Márcio, o Rato. – Troquemos de assunto. Sabes alguma coisa sobre o que aconteceu depois de eu ter dito à mãe da Abigail que a apresentaria como minha namorada à minha família? – Não. Talvez te tenhas casado com ela dois dias depois – disse com gozo. – Torces muito para que eu fique com ela, não é mesmo? Porquê? – Talvez tenha sido a paixão mais verdadeira de que te lembras; a melhor mulher em tua vida… – Se o que dizes é verdade, porque é que eu me lembro dela desta forma? Será que estraguei a nossa relação com algo estúpido? – Também não sei. Mas tenho uma boa notícia para ti. A conversa que tiveste com o Alfredo, o Mendes e o Walter sobre estares a esquecer a Abigail por causa da Sara não aconteceu realmente. A tua memória tem associado cenas do que já viveste com fantasias ou desejos que reprimiste na época. – É bom saber disso. Posso não me lembrar de muita coisa, mas sei que não dedico a minha atenção à outra mulher enquanto estou com outra, mesmo que estejamos com sérios problemas – disse com engraçado tom de responsabilidade. – O que é que disseste? – perguntou apertando fortemente a mão do outro contra a cama. – A minha memória está a associar o quê? – O teu passado com cenas puramente oníricas. Pensa nisso da seguinte forma, as pessoas ficam acordadas durante um período do dia, no outro dormem e têm sonhos. Contigo acontece algo parecido, há períodos em que acordas no hospital, ou seja, os teus sentidos ficam totalmente despertos, e é durante estes mesmos períodos que te recordas de partes da tua vida real. Mas também há períodos em que dormes, sonhas; embora nos teus sonhos apareçam algumas coisas verdadeiras, outras são apenas fruto da tua mente. – E se tudo for fruto da minha mente? E se nenhuma dessas pessoas que acho ser meus familiares, meus amigos, minhas paixões, o meu filho, não forem reais? Talvez eu tenha uma vida muito diferente dessa… – Dizes que sou a tua memória, então sei o que foi real e o que não é, não? – E se te enganas? – Simplesmente confia em mim. Podes fazer isso? – perguntou o sósia com olhar sério e voz rouca. Márcio reconheceu aquela expressão facial e aquela forma de falar. Era a mesma que usava sempre que quisesse assegurar a alguém que o que dizia era verdadeiro. – Confiar em ti é o mesmo que confiar em mim. Chama-se a isso autoconfiança, não? – perguntou com gozo. – Eu sei que confias – disse o outro ao se levantar. – Está na hora? – Está. Depois falamos.

* Tarde de sexta-feira. Márcio estava sentado na oficina à espera de seu carro. Ao seu lado, duas pessoas discutiam sobre Sociologia. Um quis banir o termo «empirismo». Visto que, para ele, todo o conhecimento científico partia de um conhecimento empírico, este termo parecia desvalorizar a real causa de o mundo estar no actual patamar da evolução. No decorrer da discussão, falaram sobre os feitos dos portugueses no passado. Foram mencionados o Reino do Congo, o Reino de Angola, o ano de 1884, 62


o Império Lunda, Henriques Dias de Carvalho, o ouro negro, a Tanzânia e a Conferência de Berlim. Antes de ouvir o desfecho daquela conversa, o mecânico entregou-lhe o carro. Enquanto voltava para casa, viu um aglomerado de policiais e civis saíndo às pressas de um prédio. Mesmo depois de alguém lhe ter dito que as pessoas estavam a fugir porque o prédio tremia, desceu do carro e se aproximou do edifício. E se o prédio desabasse? Ele não tinha medo. Afinal, os loucos não têm vida. – Estou a lutar contra mim mesmo! – disse de si para si. – Condenado à putrefacção. Segundos depois, Márcio recuperou a sanidade e voltou para o carro. Sentiu remorsos pelo que acabara de fazer. Embora o prédio não tenha desabado, aquilo fora uma clara tentativa de suicídio de sua parte. Como pudera descer até aquele mísero estado? A sua vida estava um caos e a desordem estava mancomunada. Que história patética! Um homem termina o namoro com alguém que sem sombra de dúvida é a mulher que mais o complementa. Oito meses depois conhece outra que parece ter a única qualidade que a primeira não tem. Meses depois descobre que tudo o que se está a passar em sua vida não é o seu presente, mas o seu passado, e com a forte probabilidade de não estar realmente aí, mas deitado sobre uma cama de hospital sendo cuidado por uma desconhecida que alguém que diz ser sua memória argue ser a única mulher que realmente corresponde a seu amor e que aquela por quem se apaixonara depois do término de seu namoro com a mulher que mais o complementa é um membro de sua própria família. Pura tolice! Em que mente caberia a concepção de algo assim? Se um dia alguém publicasse uma história parecida, as pessoas que a adquirissem, se houvesse alguma, rasgariam as páginas à frente do autor e o processariam por atentado à integridade da literatura. Mas não era uma história inventada – não era um conto de fadas. Tudo isso acontecia com aquele homem, e não havia alguém ao seu redor que já tivesse passado pela mesma situação para que pudesse recorrer em busca de conselhos. A morte pareceu-lhe consoladora por uns instantes. Depois sentiu remorsos por ter permitido que seus problemas o induzissem a desprezar a maravilhosa dádiva da vida. Zangou-se consigo mesmo por ter autorizado a seu coração o desejo de se tornar um cadáver. «Permitir e autorizar serão a mesma coisa?» – perguntou-se em seu devaneio. As pessoas religiosas argúem que Deus não é o causador do sofrimento. Segundo elas, Ele apenas permite que sucedam coisas más. Permitir não é dar permissão? Só dá permissão aquele que tem certa autoridade sobre algum assunto. E dar permissão é o mesmo que autorizar. Então Deus autoriza o sofrimento a fazer o que faz. É como se o sofrimento tivesse chegado a Ele com uma carta pedindo a permissão de assolar a Terra e Deus ter assinado em baixo que a concedia. Embora estivesse a encarnar o louco, Márcio chegara a um pensamento extremamente lógico. Segundo a história bíblica, houve no mínimo duas reuniões no lugar de morada de Deus em que a criatura mais desprezível de todo o Universo, após ter estudado por muitos anos os humanos, os acusou como sendo intrinsecamente egoístas: a adoração que alguns davam a Deus estava totalmente ligada às bênçãos que Dele recebiam; se parasse de abençoá-los, com certeza desprezariam Seus princípios. Muito antes disso, o primeiro casal de humanos já havia escolhido o lado tolo de tal criatura e, depois disso, a maior parte da humanidade seguiu a mesma acção. A criatura parecia ter razão. Um terço das criaturas angélicas concordava com ela. Deus, sabendo que há no Homem a capacidade de demonstrar lealdade a quem a requer por direito e que no fim tanto a criatura quanto todos que voluntariamente decidem apoiá-la em sua jornada infrutífera serão devotados às cinzas do esquecimento, permitiu que ela pusesse o seu plano em acção contra Job e todas as pessoas que vieram depois dele. Sim, o

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Criador realmente autorizou a criatura causar o mal durante o período da vida de qualquer humano, mas com a garantia de que, no fim de algum tempo, todos os que resistissem a tal ataque serem eternamente felizes, tão felizes que esqueceriam de vez os males que anteriormente os afligiram. Márcio estava com trinta e um anos. Ainda tinha muito tempo para defender tanto a sua integridade como a soberania do Pai. Não era hora de desistir. Na verdade, tal hora nem sequer existe. Ligou o carro e pôs-se a caminho para casa. Minutos depois de o dia ter cedido lugar a noite, saiu com Alda e uma amiga desta para trabalharem no projecto que tinham. Ao andarem pela rua, o senhor a quem Márcio comprara duas camisas ao preço de uma anteriormente, chamou-o. – Ainda não tenho dinheiro – disse Márcio depois de o senhor lhe ter mostrado uma camisa dentro de um saco. – Não. É para ti. É de favor – disse o senhor sorrindo amigavelmente. Márcio sentiu-se encabulado. Aquela pequena acção de generosidade derretera todo o gelo de tristeza e fúria que tinha em seu coração. Seus olhos brilharam como se fosse chorar. Antes de ir para perto de Alda e de sua amiga, agradeceu ao senhor com um tímido aperto de mão. – Eh! Comprou uma camisa nova – troçou Alda. – Nem vais acreditar – disse ele ao guardar a peça de roupa na pasta. – Ofereceram-me. – Que gentil – elogiou a amiga de Alda. – Quem me dera se fizessem o mesmo comigo – expôs Alda. – É incrível, não? Acabo de descobrir que tenho um namorado que me dá camisas – gracejou Márcio. As pessoas são comoventes.

* Madruga de sábado. Márcio estava sem sono, por isso ficou sentado no quintal. A brisa era fria. Visto que havia uma mesa comprida de aço inoxidável perto de sua cadeira, despiu a camisola e deitou-se sobre ela. Sua pele apreciou a sensação gélida do metal. Enquanto olhava para o céu e observava as estrelas sua audição captou o agradável som de uma mulher cantando. Não, ele não via a mulher. Apenas ouvia a música. Faça o que fizeres Não tens mais nada aqui Que te ligue a ele És pra mim Sou pra ti Enfim Nada de lágrimas Sofrimento jamais Só felicidade te prometo Vem sem medo Descobri: amo-te Abigail, te amo 64


As outras vezes que disse isso era mentira Não sabia o que dizia Era só para impressionar Tenho planos De ser uma constante E se estivermos distantes Acredita: tua mão será pedida Por favor, sê minha Ó Abigail Disseste que a idade Te preocupa um pouco Mas que são anos? Não são dias, umas horas e minutos Comparados às coisas que ganharás? Queres casar ou ser feliz? És o que eu quis Vá lá, miúda Assume a luta Ficaremos juntos E se eu viajar? Esperas por mim Ou vens comigo? Em sonho vem me visitar Força, miúda Vem ter comigo Temos de como casados pensar: Sem adultério não há como nos separar A voz parou de cantar. A canção havia chegado ao fim. Márcio lembrou-se que fora o autor dela. Lembrou-se que no dia que a escreveu, Abigail apareceu em sua casa a seu pedido. Depois de se terem sentado perto do computador e o anfitrião ter aberto um documento gravado no PowerPoint, Márcio cantou para ela. A ideia da canção era garantir a Abigail que, por mais distante que estivessem um do outro, ele se manteria fiel. «Temos de como casados pensar, sem adultério não há como nos separar» – com essas palavras Márcio queria mostrar àquela mulher que, mesmo sendo apenas namorados, ele já a via como sua esposa, e não seria por causa do medo da traição que terminariam a relação, porque, segundo o Filho de Deus, apenas a infidelidade pode anular um casamento, e ele nunca tinha sido desleal com mulher alguma, nem com os olhos, nem com o coração. No mesmo dia, Abigail concordou em esperar por ele, caso viajasse. Mas algumas semanas depois, ela voltou a tocar no assunto. Márcio falou persuasivamente com ela, ela pareceu concordar com as ideias dele. No fundo, Márcio sentiu que ela havia feito algo desesperado. «Talvez tenha comprado bilhetes para viajar comigo» – pensou para enganar a si mesmo. Todavia, sabia que era algo que envolvia o fim do relacionamento. Passadas mais algumas semanas, ela tocou novamente no assunto. Desta vez, Márcio decidiu conversar com ela na casa de Alfredo Nkodia. Nesta noite Márcio pensou que o modo conservador dele de namorar sem tocar as mãos, abraçar e muito menos beijar o alvo de seu amor até serem noivos estivesse a contribuir para tal descalabro. Por isso, enquanto falavam, passou levemente os dedos sobre a cicatriz quase imperceptível que ela tinha no ombro. Seus sentidos entraram em choque.

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Se sentiu repugnante por causa daquele efémero acto. Era como se tivesse cometido a pior das leviandades. Abigail piorou o tormento dele por lhe pedir rispidamente que não a tocasse. Márcio encontrou naquele pedido sentimentos de repulsa não de uma mulher que solicitava mais respeito ao namorado, mas de uma que o fazia porque já pertencia a outro. «Talvez fez isso porque o Alfredo está a olhar para nós» – pesou de novo para enganar a si mesmo. No fim da conversa, ela voltou a concordar em esperar por ele. Todavia, ao chegar à casa, Márcio tomou a decisão de não arranjar mais armas para lutar por ela. A preguiça atingiu-lhe o coração. O tempo que resolvesse o assunto. Márcio desceu da mesa de aço inoxidável. Estava um pouco atordoado. Novamente, seu sósia parecia ter razão. A música que ouvira e as coisas que acabara de se recordar nunca haviam acontecido no mundo em que estava. Então como era possível ter memória a respeito delas? O sono imperava. Não estava em condições de pensar por mais tempo. Por isso, abriu a porta de sua casa, entrou para o quarto e entregou-se ao repouso.

* Manhã de sábado. Márcio acordou sem alegria. Antes de confeccionar e tomar o pequeno-almoço com seu filho, permitiu a seu corpo a sensação de passar por um revigorante banho. Minutos depois, saiu com o objectivo de trabalhar em seu projecto. Enquanto andava pela rua com o objectivo de falar aos transeuntes sobre os propósitos do Criador, seu companheiro, um senhor de estatura baixa, aparentando ter mais de cinquenta anos, conversava com ele sobre seu filho adolescente que estava a desviar-se dos princípios divinos. – Eu tenho tentado chamá-lo a razão com calma, sem me exaltar – disse o senhor. – O André contou-me que certa vez foi com mais uns amigos falar com ele sobre isso, mas ele disse que estava bem. – É como a formiga que ignorou o barulho do comboio se aproximando e foi esmagada. O orgulho e o excesso de confiança não lhe deixam ver o perigo iminente – Tio – interrompeu uma menina que conhecia o senhor, pegando na pasta do mesmo –, pode me fazer atravessar a estrada? A minha mãe mandou-me à padaria. – Claro – disse o senhor ao estender-lhe a mão. – Não vão embora ainda – pediu ela depois de estar do outro lado da estrada. – Por favor, esperem por mim para me fazerem atravessar de volta. – Está bem. Depois de terem executado o pedido da menina e antes do senhor ter mostrado a ele uma mulher seropositiva que aparentava ser muito saudável, Márcio viu uma senhora vendendo algo que chamou de rissol gigante. «São pães de chouriço, Márcio» – corrigiu o senhor ao comprar imediatamente um para si e outro para ele. Ambos continuaram a trabalhar até bem perto das doze horas. Embora não tivesse palavras para consolar o senhor devido à situação espiritual em que seu filho se encontrava, apercebeu-se que seu silêncio ao ouvi-lo desabafar tinha um efeito anestesiante naquele coração idoso. Antes de voltar para casa, seus pés o guiaram até a morada de Abigail. Pensou que, se voltasse a conversar com ela, talvez encontrasse mais respostas relativamente à relação deles. Ao chegar, ficou com receio de entrar. Mas seus membros não o obedeciam – abriu o portão e entrou. – Abigail? Estás em casa? – perguntou com voz parcialmente trémula.

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Não obteve resposta. Seus olhos repararam que o quintal estava um pouco diferente. As flores estavam mais coloridas, o verde do relvado era mais alegre, havia até alguns brinquedos engraçados espalhados que faziam um trilho até a parte traseira da casa. Márcio apanhou um dos brinquedos. Curioso – seu filho tinha um carrinho muito parecido àquele em suas mãos. Continuou a andar e, à medida que olhava para o chão, reconhecia todos aqueles objectos. O que se estava a passar? Antes que pudesse dar mais um passo, ouviu a porta da frente a abrir-se. – Papá! Papá! Já chegaste! – gritou alegremente um menino enquanto corria em direcção a ele. – Bruno? O que fazes aqui, filho? – perguntou Márcio atordoado. – Essa é a nossa casa, papá – disse atirando-se ao colo de seu receptor. – Estavas aí dentro com quem? – Com a mamã. – Qual é o nome da mamã? – perguntou extremamente preocupado. – Mamã – respondeu sorrindo. – Vem, papá. Vem falar com a mamã – disse depois de ter descido do colo dele e começado a puxá-lo pela mão. Embora estivesse temeroso, Márcio seguiu o filho. Depois de ter entrado para a casa, suas pupilas captaram a imagem de uma linda mulher trajada de um deslumbrante vestido de noiva. Márcio levou o maior choque de sua vida. A mulher – a mulher era Gabriela Velosa Luvana. De repente, todo aquele cenário desapareceu. Márcio sentiu-se zonzo. Seu coração bateu tão forte que arrancou um grito de suas cordas vocais. Tentou encostar-se a uma das paredes, mas, por não existir nada a seu redor, caiu. Seus olhos se avermelharam. Cada batimento cardíaco lhe era agonizante. Ao levantar-se, reparou que o cenário havia tomado características de seu quarto. Arrastou-se penosamente até a cama e sentou-se sobre ela. O que significava aquilo que acabara de ver? O que faziam Gabriela e Bruno na casa de Abigail? Não – não havia sido um sonho. Mesmo que tivesse sido, quem lhe daria garantias de que não era mais um acontecimento que só agora aparecera em sua memória? «Se fosse realmente verdade, eu teria sido criada pelo teu amor pela Gabriela, não pela Sara» – foram essas umas das últimas palavras proferidas por Abigail na noite que ele lhe contara que não passava de uma fantasia. E só agora Márcio parecia percebê-las. «Gabriela… Abigail… Gabriela…. Abigail…». Não eram esses dois nomes muito parecidos? Para ter certeza do que pensava, Márcio escreveu-os numa folha perto de si. Segundos depois, descobriu algo assustador. Retirando o r e o e do nome Gabriela e o reordenando aleatoriamente obteve «Abgail». Seria coincidência? A diferença entre «Abgail» e «Abigail» – um simples i – era irrelevante. Teria ele realmente criado aquela mulher por causa de Gabriela? Não podia ser. Márcio nem sequer a amava. Se a resposta a esta pergunta fosse positiva, seu sósia estaria errado – Abigail não passava de uma alucinação. Assim, tudo o que lhe dissera sobre o que se passava em sua vida, tudo sobre a recuperação de sua memória, tudo sobre a existência de uma mulher que o amava da forma mais pura possível seria falso, uma autêntica mentira. Depois de ter pegado em um volumoso livro verde e ter lido o significado do nome Abigail (Meu Pai Se Fez Alegre), sua dolorosa desconfiança pareceu ser confirmada. Aquelas palavras o convenceram de que, por sua alma ter fremido de horror ao se dar conta do gigantesco erro que cometera por se envolver com Gabriela naquela amaldiçoada noite e por ter passado vários dias com insónia pensando no que faria se se tivesse de providenciar o casamento de ambos, se desencadeou em sua mente um distúrbio que o levou a dar à luz uma mulher possuidora de todas as qualidades que ela

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não tinha, provavelmente para que pudesse suportá-la e usufruir assim um pouco de alegria em seu lar. A casa de Abigail – aquela era provavelmente a casa que ele vivia com Gabriela e Bruno. Raios! Teriam casado? Porque estaria ela vestida de noiva? Não! Ainda havia garantias de que seu sósia estava certo. Ele não mentiria a si mesmo, pois não? Aquilo só podia ser coincidência. Aquilo era coincidência! – Calma, Márcio. Calma – disse ele de si para si. – Às vezes o acaso parece acontecer de forma premeditada… É como o caso das 129 mulheres que morreram no dia 8 de Março. Tudo parecia estar predestinado para aquele dia. 129 (1-2+9=8); Março é o terceiro mês e escreve-se com cinco letras (3+5=8); a própria palavra mulheres escreve-se com oito letras. Estou a ficar louco. Já nem consigo pensar com lógica… Para tentar entender o que se passava dentro de sua cabeça, foi até o computador e acessou a Internet. Momentos depois apareceu-lhe no ecrã o livro de psiquiatria geral de Décio Gilberto Natrielli Filho. Neurobiologia da Personalidade era o título do compêndio. Márcio leu sobre coisas que no passado acharia entediantes: As concepções da escola hipocrática-galênica resultaram na primeira tipologia desenvolvida na história da medicina e da psicologia. Em seus escritos, o médico Hipócrates de Cós (cerca de 460-377 a.C.) propôs a visão de que o corpo humano contém quatro humores essenciais – fleuma, bile amarela, bile negra e sangue – que eram secretados por diferentes órgãos, possuíam diferentes qualidades e variavam de acordo com as estações do ano, o que ia de encontro com a teoria dos quatro elementos do filósofo pré-socrático Empédocles (500-430 a.C.), a saber: água, terra, ar e fogo. O cérebro era considerado como sendo a foz da vida e seu funcionamento normal exigia um equilíbrio entre os humores. Acreditava-se que a fleuma em excesso conduziria o indivíduo a uma forma de demência, a bile amarela originaria a raiva maníaca e a bile negra provocaria a melancolia. A primeira tentativa de explicar as diferenças de temperamentos e personalidades, que deu início a um incessante estudo de classificações, tipologia e teorias, seria a de caracterizar os aspectos psicológicos em quatro temperamentos: Sanguíneo, Fleumático ou Linfático, Colérico ou Bilioso e Melancólico ou Atrabiliário. Para Platão (427-347 a.C.) um dos importantes filósofos da época, que dividia a alma em três partes: racional, apetitiva (desejos e ganância) e espiritural-afetiva, a loucura ocorria quando a alma apetitiva perdia a influência sobre a alma racional ou quando uma perturbação divina da alma produzia um comportamento destrutivo. O primeiro a descrever efectivamente os afectos de desejo, raiva, medo, coragem, inveja, alegria, ódio e pesar, foi Aristóteles (384-322 a.C.), seu discípulo. A hereditariedade como um relevante factor no desenvolvimento das doenças mentais foi descrita no final do século XIX e início do século XX, por dois psiquiatras franceses, Benedict-Augustin Morel (1809-1873) e Valentin Magnan (1835-1916). Ambos asseveravam que a predisposição poderia activar-se paulatinamente e se transformar em uma doença pela transmissão repetitiva de pai para filho ou por acção de estímulos externos. Esta última informação preocupou Márcio por causa de Bruno. Se estivesse a padecer de alguma doença mental antes de o gerar, seria possível que ele a tivesse transmitido a seu filho? Depois de ter lido que o termo psicopatia foi introduzido por Koch em 1891, confrontou-se com informações sobre o que realmente estava à procura. Ficou a saber que os transtornos de personalidade (TP) assolam todo e qualquer grupo demográfico e desenvolve-se durante a infância ou a adolescência, permanecendo relativamente inalterável ao longo da vida da pessoa, constituindo assim o seu modo rotineiro de agir. Tendo em conta o rigor da responsabilidade exigido para o diagnóstico, a estimativa da

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prevalência para tais transtornos na população geral alterna de 11 a 23 %. Os danos a longo prazo apresentados por indivíduos com estes transtornos englobam, em parte, além das dificuldades nos relacionamentos conjugais e a tendência a ser solteiros, a capacidade para amar. A angústia, a solidão, a sensação de fracasso pessoal causados por este transtorno pode se tornar aparente apenas tardiamente na vida do indivíduo. Em 1923, Kurt Schneider, em sua monografia Personalidades Psicopática, escreveu que as personalidades psicopáticas são «aquelas que sofrem com sua anormalidade ou que assim fazem sofrer a sociedade». Na mesma obra, Schneider descreveu dez tipos de personalidade: hipertímicos, depressivos, inseguros de si (com os subtipos ansioso e obsessivo), fanáticos, necessitados de valorização, lábeis de humor, explosivos, frios de sentimentos, abúlicos e asténico. Conforme Cloringer, a esquiva, que envolve a tendência herdada para a inibição do comportamento em resposta a sinais de punição e frustração (pela ausência de recompensa), no seu estado elevado pode despoletar medo e preocupações pessimistas na antecipação dos problemas, mesmo em situações que não desassossegam outras pessoas. Indivíduos com baixos níveis de temperamento exploratório são retraídos, deliberados, parcimoniosos, austeros, reflexivos e com tolerância para a monotonia. Ao terminar a leitura, os ânimos de Márcio atingiram a serenidade. Era-lhe mais fácil admitir que tudo o que acabara de ver na casa de Abigail era o resultado de uma perturbação mental. A simples ideia de ter qualquer laço afectivo com Gabriela lhe era repulsiva. Aquela mulher não apresentava qualidades para merecer o seu amor romântico – era fria, indiferente e orgulhosa demais para admitir os seus sentimentos. Para enterrar de uma vez por todas aquele assunto, Márcio tomou a derradeira decisão de contar tudo à sua família. Já não lhe importava o processo que decorreria depois daquela acção. O importante era livrar-se daqueles fantasmas de uma vez por todas. As pessoas são corajosas.

* Treze horas de domingo. O clima sonoro na casa dos Nassembe era feito pelas músicas de Dionísio Rocha. Elisabeth Delina Pereira Nassembe – a mãe – estava na cozinha, confeccionando o almoço, Narciso Pontes Pereira Nassembe – um dos filhos –, na companhia de um amigo, entretia seus olhos e cérebro com páginas de livros perspicazes na sala, Sandra Zenaida Pereira Nassembe – uma das filhas – descansava em seu quarto enquanto ouvia a encantadora forma de cantar de Aaliyah e Márcio Pontes Pereira Nassembe lavava a sua roupa no quintal enquanto sua mente preparava as palavras para contar aos seus familiares o que se passava em sua vida. Durante o almoço, Márcio falou tudo a eles, mas apenas em pensamento, visto que a sua garganta só permitia a entrada da comida, não a saída de sons – sim, Márcio não conseguiu contar. Duas horas depois, acordou. Sua cabeça hospedava dores insuportáveis. Levantou-se melancolicamente e dirigiu-se à geleira. Abriu de forma sôfrega o electrodoméstico e pôs o rosto dentro do congelador. Sua sádica ideia era bater brutalmente a pequena porta contra sua cabeça, mas envergonhou-se de seu intento ao lembrar-se que na madrugada em que Bruno estava tão febril que beirou a morte prometeu a Deus que pararia com o vício de ferir a si mesmo. Para se acalmar, foi até o quintal e tirou as peças de roupa que lavara. Depois de algum tempo, dirigiu-se à casa

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de seus pais para passá-las a ferro. Na sala, Narciso falava com um colega sobre o emprego das preposições ao lado do computador. – Deixa-me só engomar estas duas peças, Márcio – pediu Edgar depois de ter saído do quarto de banho. – Só me faltam três para terminar – respondeu Márcio ao acelerar o modo como as passava. Aproveitando-se da situação, Edgar foi até a cozinha, tirou o seu prato e o de Alda e voltou à sala com o fim de almoçar, visto que não tinham feito anteriormente com a família por estarem ausentes. – Alguém pode trazer-me água para pôr no ferro, por favor? – perguntou Márcio, fazendo com que sua mãe se levantasse e atendesse ao seu pedido. Passados alguns minutos, Márcio cedeu o lugar para Edgar. A maior parte da família estava reunida. Estava na hora. Márcio respirou fundo. No instante em que se ia tornar audível, Sandra apareceu na sala. O medo voltou a tomar conta dele. O clima tornou-se opressivo. Por não conseguir lutar com a pressão naquele momento, tomou a decisão dos covardes – saiu. Ao andar pelo quintal, deteve-se por uns instantes. Olhou para si mesmo com expressão de decepção. Perguntou-se porque estava tão formalmente vestido – não sabia porque estava de fato e gravata. A sua aparência era como a daqueles homens que contratam especialistas da moda para os vestirem a rigor. Para evitar esmurrar a si mesmo, deu passos acelerados até ao portão e alcançou a rua. – Vais fazer com que cheguemos atrasados – disse Walter Lombo depois de Márcio ter entrado no carro. – Já estávamos a pensar em deixar-te. – Agora a tecnologia está avançada, já podes pintar os lábios e fazer as sobrancelhas em qualquer sítio – troçou Mendes Bundi. – Não há necessidade de te preocupares com estes detalhes em casa. – Deixem o outro em paz – interrompeu Alfredo Nkodia. – Ele quer estar sexy para a miúda dele. A vítima daquelas piadas ficou a olhar para eles com expressão alegre. Walter Lombo e Alfredo Nkodia estavam sentados à frente – o primeiro era quem conduzia o pomposo automóvel. Mendes Bundi ocupou o banco traseiro com Márcio Nassembe. – Trouxeste o portátil, Mendes? – perguntou Márcio. – Yá, está aqui – respondeu o outro estendo-lhe uma pequena pasta. Márcio abriu-a e ligou a compacta máquina. Enquanto seus amigos conversavam sobre variados assuntos, ele corrigia alguns erros ortográficos e gramaticais que havia cometido nos poemas que havia gravado naquele computador. Os três estavam vestidos da mesma forma que ele. Saltava à vista a suposição de que iam a um evento importante. Embora tivesse um pouco receoso quanto a resposta, tomou a decisão de fazer inquietante pergunta. – Aonde é que vamos? – Estás com medo ou quê? – disse Mendes com sorriso gozoso. – Não te preocupes, vai correr tudo bem. Estás a fazer o que é certo. A resposta não o tornou menos ignorante – Márcio continuou sem saber para onde iam. Todavia, para não despertar desconfiança em seus amigos, cessou com as perguntas. Passado algum tempo, o auto parou. Os quatro desceram e entraram para uma conservatória. Seria o casamento de alguém? Era domingo, portanto, tal ideia era improvável. Todavia, o local estava cheio de pessoas por fora e por dentro, e muitas delas pertenciam à família dele. – A noiva chegou! – gritou alguém, alvoraçando os ânimos de todos. Curioso, Márcio levantou-se para ver o rosto da mulher.

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– Aí vem a tua miúda – sussurrou-lhe Alfredo. Márcio pensou que seu amigo estivesse a brincar. Todavia, ao olhar para a altura da mulher que desfilava cheia de pompa naquele angélico vestido e ao sentir a extasiante fragrância que vinha de seus longos cabelos pretos e de sua encantadora pele mestiça, abaixou o rosto assustado. Antes que o pudesse levantar de novo, suas pupilas captaram a imagem de um lindo par de sapatos brancos femininos. A mulher – a mulher com o vestido de noiva parou bem a frente dele. Com suas mãos cobertas por luvas aveludadas pegou docilmente o rosto de Márcio e começou a erguê-lo. Aquele efémero toque desencadeou tremores naquele homem. – Anda, vamos entrar, querido – disse a noiva, ao enlaçar o braço dela no dele. Márcio ficou respirando de forma exageradamente ofegante, como uma criança que tenta travar o choro com fúria. Não podia ser! O rosto da mulher – a mulher tinha o rosto de Gabriela. A mulher era Gabriela! – Não! – exclamou Márcio de forma estridente, oprimindo o local com ecos. Seu coração bateu tão violentamente que saboreou o gosto de sangue em sua boca. Embora o sofrimento cardíaco fosse devastador, a implacável aversão que sentiu daquela situação lhe deu forças para desfazer-se da gravata e desabotoar a camisa de forma brusca. Quando Gabriela tentou ajudá-lo, gritou cruelmente com ela e tentou sair daquele lugar. Todavia, caiu no processo de fuga. Contudo, ainda no chão, não parou de vociferar como um louco, movendo a cabeça para lá e para cá. De repente, aquelas pessoas e o cenário desvaneceram. Márcio levantou-se apavorado. Sua perna – sua perna parecia partida, por isso caiu. – Doutora! Doutora! O paciente acordou! – gritou uma senhora. Ao ver que o homem prostrado agonizava em dores, a senhora saiu às pressas em busca de ajuda. Passou pelos corredores correndo para ver se alcançava a doutora, mas sua celeridade foi em vão – a doutora não se encontrava em parte alguma. Segundos depois, voltou com um homem de bata branca. Os dois levantaram Márcio e o deitaram na cama.

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CAPÍTULO VIII – Então, senhor Louco? Como é que vai isso? – perguntou alguém, abrindo a janela do local em que estavam. A luz que atravessou a janela daquele quarto incidiu de forma tórrida sobre o rosto do homem deitado sobre a cama fazendo-o despertar. – Tu existes realmente? – perguntou o homem, ao levantar-se de forma espantada. – Seria bom, não? Mas os humanos foram feitos de forma a não permitir que a mente exista à parte do corpo. – Mas estou no hospital…? – Tu estavas no hospital. Olha à tua volta… Márcio vagueou o olhar sobre o local e, aos poucos, aquilo que parecia ser um quarto de hospital adquiriu aspectos do quarto onde passava as noites em sua casa. – O que aconteceu? Estava um homem… um doutor aqui a conversar comigo. – Estavas agitado demais. Ele teve de te dar uma injecção para te pôr a dormir. E se foi uma grande dose, não sei por quanto tempo ficarás no mundo dos sonhos. – Não! Eu preciso sair daqui! – vociferou, ao empurrar ferozmente o outro contra a parede. – Estás sob o efeito de um tranquilizante; isso não é possível – respondeu calmamente. – Tu não percebes. Eu preciso sair daqui. Tenho sido atormentado com imagens da Gabriela – desabafou, ao tirar as mãos dos ombros. – Não sabes o ódio que tenho dela. – Porquê? – Porquê o quê? – Porque é que a odeias? Márcio tentou dar uma resposta que justificasse sua aversão acesa contra aquela mulher, mas engasgou-se nas ideias. – Tu realmente não sabes, pois não? – perguntou o sósia.

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– E tu que pareces saber mais da minha vida do que eu mesmo, sabes? – Apenas tenho vagas informações sobre algo pouco agradável que ela te fez. Foi na época em que estavas para assumir a Sara como tua namorada… – E…? – Disse-te que as informações eram vagas. Já não sei de mais nada. – Posso não ter fortes bases para sustentar o meu ódio por ela, mas sei que seria capaz de cometer uma atrocidade se descobrir alguma coisa que me ligue romanticamente a ela. É tão falsa, tão calculista, tão covarde. – Então é como tu, não? – O que queres dizer? – Normalmente passas a vida a fingir que não sabes das coisas más que os outros, mais propriamente as mulheres pelas quais te apaixonam, fazem às tuas costas. Tu sorris com elas, fazes os possíveis para desviar a conversa quando sentes que elas vão fazer um género de confissão, apenas para convenceres a ti mesmo que aquilo não aconteceu. Isso não é o mesmo que ser falso? Normalmente, quando erras contra elas, pedes desculpas um par de vezes, embora sejam sinceras, fazes isso porque sabes porque no fundo sabes que ela reconhecem obrigação moral e divina de perdoar qualquer um que se mostre arrependido. Calculista, não? Tens tanto medo de sofrer de verdade por causa do amor que em poucos dias te convences que a relação terminou por tua causa e que ela foi a mais perfeita das mulheres. Covarde… – Estás a dizer que somos compatíveis? A Gabriela e eu? Isso é o cúmulo do absurdo! Sabes muito bem que a minha forma de ser covarde, calculista e falso não tem nada que ver com o real significado dessas palavras. Mas ela, ela é tão… sem qualidades femininas… – O que é que te fez acordar? – O quê? – O que te fez acordar no hospital? – Eu… estava a casar com a Gabriela. Sabes alguma coisa sobre isso? – Não. – Fui à casa da Abigail antes disso e quem encontrei? A Gabriela e o Bruno. Tenho medo… Tenho medo de ter feito alguma estupidez na minha vida real. Espera! Eu vi o médico e a mulher no hospital. Eu não sou cego. Eu não sou cego! – Fico feliz por já teres descoberto isso. Mas... encontraste a Gabriela e o Bruno na casa da Abigail? – Agora vês como é que é grave a minha situação. E não tenho respostas sobre se foi um sonho ou algo que aconteceu na minha vida real. E tu? – Vou investigar... Quanto à mulher a quem amas e que também te ama? Chegaste a vê-la? – Não. E tu? – Estou a fazer os possíveis para encontrar qualquer coisa na tua memória que nos dê a resposta, mas está a ser difícil. É como se estivesse tudo bloqueado a sete chaves. – E sabes a razão de tudo estar tão bloqueado assim? – Nada incontroverso. Talvez... – Já não estamos em tempo de probabilidades. Precisamos de respostas incontestáveis. Estou com tanto medo de descobrir coisas sobre mim que prefiro descartar tudo que for incerto. Senta-te aqui – demandou Márcio, fazendo com que seu sósia obedecesse. – Vamos rever tudo que já temos. Talvez a resposta já esteja em nossas mãos, mas ainda não nos apercebemos disso. Qual é a primeira mulher que vi comigo no hospital?

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– A Abigail. Queres dizer que é ela? – Não. E quanto à Abigail, já te apercebeste que o nome dela é formado por quase todas as letras do nome da Gabriela? – Sim, já me apercebi. E depois? – Houve uma vez em que a Abigail me disse que se eu a criei não foi pelo meu amor pela Sara, mas sim por causa da Gabriela. – Ah! Não te lembras da tua própria teoria! A tua memória está mesmo com problemas, pá! – Queres dizer que tu estás com problemas. Que teoria? – É uma teoria maluca em que dizes que só nos apaixonamos por pessoas que tenham no mínimo duas letras existentes no nome da pessoa que realmente amamos, ou seja, só demonstramos interesse romântico por alguém cujo nome é composto por algumas letras existentes no nome do nosso grande amor. Como no caso do Abraão da Bíblia. Ele amava Sara, depois desta ter morrido ficou com Quetura. E muito antes disso teve um filho com Agar. Quetura tem o r e o a de Sara; Agar tem o a, o r e o a. Jacob é outro exemplo. Ele amava Raquel, mas também ficou com Léia, Bila, e Zilpa. Embora não se saiba a quem Esaú mais amava, ele ficou com mulheres que correspondem á mesma teoria: Ada, Oolibama e Basemate… – Já entendi. Mas há vezes em que isso não acontece. – É por isso que eu disse é uma teoria maluca. Para além de tudo ser relativo, tu a criaste com base na tua vida amorosa, embora tenhas encontrado provas nos relacionamentos de outros. Tu provavelmente contaste isso à Abigail no passado, daí o facto dela te ter dito aquilo. Mas, continuemos com o assunto. Qual seria a tua próxima questão? – 0K. A primeira a ser vista comigo no hospital foi a Abigail. A Sara nunca foi vista… Talvez seja ela. – Porquê? – Justamente porque nunca foi vista. Esta mulher… esta doutora está sempre ao meu lado, mas nunca aparece nos meus sonhos como aconteceu com a Sandra e a Abigail quando foram visitar-me. Depois de a Sara me ter contado que está com alguém, já não me lembro de voltar a pôr-lhe os olhos encima. Talvez a relação dela com esse homem esteja a impedir que as minhas recordações fluam normalmente. A dor que sinto por saber que ela está com outro está a inibir as lembranças sobre o nosso relacionamento. – Eu não sei. Não sei se ciúme e raiva são um género de inibidores de memória. – Não conheces as tuas próprias fraquezas… – Não paras com as piadas. Antes de ir, tenho de te dizer que aquela conversa que tiveste com o Mendes, o Walter e o Alfredo sobre estares a esquecer a Abigail por causa da Sara aconteceu da seguinte forma: Por causa da probabilidade de vires a perder a Abigail por causa da tua provável viagem… – São muitos «por causas» numa só frase, não? – Deixa-me falar. Por causa disso, contaste ao Walter que tinhas duas ideias para resolver o problema. A primeira seria a de voltares depois de dois anos para oficializares o vosso noivado e depois de mais dois anos casarem-se. A segunda seria a de viajares com ela para esta tua bolsa de estudo. Ao ouvir essa segunda ideia, ele achou que estavas a ser um pouco inconsequente; levar a filha de alguém para viver contigo num outro país onde não se tem um familiar que sirva de suporte parece de loucos! Então ele chamou o Mendes e o Alfredo para ver se te punham um pouco de juízo na cabeça. Durante a conversa, disseste que o problema da tua provável viagem ainda era novo e que estava em estudo… que não era caso de se levar a sério aquelas tuas

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suposições, visto que as coisas poderiam mudar; tu talvez não viesses a ser realmente seleccionado para a bolsa de estudo ou talvez viesses a convencer a Abigail a esperar por ti. No fim de tudo, o Walter concordou a pagar a viagem da Abigail, caso a família dela aceitasse essa insânia. – Tenho os melhores amigos do mundo. Mas… esclareça-me mais sobre essa viagem. – Já te contei tudo o que sei sobre ela – disse o sósia, abraçando-o. – Quando houver novidades, dar-tas-ei sem teres de me dizer nada. Agora tenho de ir. Vais ficar a dormir por um bom tempo. O que quer dizer que vais te lembrar de muito mais coisas. Preciso aproveitar este momento para descobrir algumas respostas, amigo. – «O presidente precisa de um pouco; orar um pouco, e um pouco de Cícero.» Agora entendo parcialmente porque essa frase apareceu num dos meus sonhos – falou em tom afectivo ao sentir-se comovido com a acção calorosa do outro. – Ai é? Porquê? – perguntou com sorriso maroto. – Cícero disse certa vez: «Existirá algo mais agradável do que ter alguém com quem falar de tudo como se estivéssemos falando conosco mesmos?»

* Passou-se um dia. Era noite de terça-feira. – Boa noite, família – cumprimentou Márcio ao entrar para a casa. – Boa noite – responderam Elisabeth e Sandra. – O Bruno? – Está aí no meu quarto – disse Elisabeth. – Mas não o incomodes. Ele já está a dormir. Sem dar ouvidos às palavras de sua mãe, Márcio entrou silenciosamente para o quarto que estava iluminado apenas pela fraca luz que vinha da sala. Olhou para a cama e viu Pontes Nasssembe dormindo à esquerda do angélico menino. De repente, mesmo de olhos fechados, Bruno levantou os braços como se quisesse abraçá-lo. Efémeros segundos depois, abaixou-os. Márcio saiu sorrindo do quarto e contou aquela engraçada, porém tocante, cena à sua mãe e à sua na sala, estas duas contaram-lhe acontecimentos parecidos àquele. Depois de se despedir delas, Márcio foi para o seu quarto e abriu o computador. O conhecimento sobre doenças mentais começou a fasciná-lo. Doente ou não, sentia agora a necessidade de saber mais sobre a existência dos variados problemas psicológico. A matéria que procurava logo aparece na tela da máquina. A primeira informação que passou por sua retina e jazeu em seu cérebro foi a de que não se pode rotular de forma preconceituosa todos os portadores de distúrbios mentais como sendo loucos varridos e que muitos dos que apresentam uma personalidade estranha ou uma idiossincrasia são doentes mentais. Uma das doenças que tem assolado de forma frenética o mundo de hoje é a esquizofrenia que, com o passar do tempo, afligirá pelo menos uma em cada cem pessoas. Por exemplo, num dos países da América do Norte mais de cem mil novos casos são relatados anualmente. É de se salientar que as pessoas que padecem desta doença apresentam uma personalidade danificada, não uma personalidade dupla ou múltipla. Há casos em que o olhar do esquizofrénico num minuto é dócil, mas no outro já é assustadoramente selvagem. Como acompanhante de seu cérebro totalmente confuso (alucinações, emoções que aparentemente não se harmonizam com a realidade,

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modo caótico de pensar e receios ilógicos) e das vozes interiores apavorantes, está a sua linguagem que, para além de transmitir seus medos, é uma mistura de ideias incoerentes. Não há estudos específicos que provem que a esquizofrenia seja hereditária, mas a predisposição a ela tem uma grande probabilidade de ser. A informação que alarmou os pensamentos de Márcio foi a da descoberta de que o cérebro de pessoas assoladas por distúrbios mentais provavelmente contenha defeitos bioquímicos! Mas, em razão desta mesma descoberta, tornou-se exequível tratar algumas doenças mentais. Para reduzir o trauma cirúrgico, foram desenvolvidos novos medicamentos. Segundo um livro do Doutor Richard M. Restak, quando os doentes mentais eram submetidos a um tratamento com tais medicamentos, em vez exigir o tratamento em quartos isolados, ou em camisa-de-forças, lhes era auferido o prazer andar à vontade. Sim, os medicamentos acabavam com certos tipos de psicoses na totalidade. Por este motivo, milhares de pessoas puderam abandonar os hospitais psiquiátricos e voltar para casa. Embora os médicos não soubessem como os medicamentos operavam, parecia que o uso deles bloqueava os receptores cerebrais que recebem a dopamina. Alguns pacientes melhoravam quando se inibia assim a actividade desta substância química. Mas alguns pioravam quando eram ministrados medicamentos que acentuavam a acção da dopamina no cérebro. O tratamento com medicamentos mostrou-se deveras eficaz, todavia há ainda muita coisa desconhecida sobre a esquizofrenia. Por exemplo, qual a razão de cerca de um terço dos pacientes esquizofrénicos não reagirem aos medicamentos ou a qualquer outro tipo de tratamento? Infelizmente, constatou-se que, no máximo, os medicamentos não para curar a esquizofrenia, apenas ajudam controlá-la, reduzindo ou suprimindo os sintomas mais refractários e agudos da doença. Contudo, o uso destes medicamentos é muito mais confortável que a camisa-de-forças ou uma cirurgia. O uso de tais medicamentos pode levar o paciente a descasar por várias horas, mas se este parar de tomá-los estará a abrir a porta para ser internado em um hospital psiquiátrico. Deveras, a medicação provoca a alguns tonturas, sonolência, inquietação, icterícia, contorções involuntárias da face e da boca, choque, e aumento de peso. A boa notícia é que a maioria destes problemas colaterais pode ser controlada. Por exemplo, em alguns basta que se mude a medicação. Algum tempo depois disto, o esquizofrénico pode estar apto para abandonar o hospital psiquiátrico e levar de novo uma vida normal! Todavia, se ficar sem tomar o medicamento, não importando o tempo, pode ficar sujeito a um novo internamento. Na lista do que pode provocar distúrbios emocionais estão o trigo, o leite, deficiências vitamínicas, o chumbo e o açúcar. Isto levanta a possibilidade de um tratamento nutricional para a esquizofrenia, algo que já obteve certa medida de êxito em tratar a depressão. Linus Pauling, que ganhou o Prémio Nobel, e mais alguns pesquisadores afirmam que grandes doses de vitaminas diminuíram de forma lancinante os sintomas da esquizofrenia em alguns pacientes. Mas será esta a cura? Até o momento, os psiquiatras que defendem isso ainda não conseguiram convencer seus colegas mais ortodoxos de forma incontestável. Quando chegou ao fim da leitura, seu coração bateu forte. Não, não era como das vezes em que apareceu no hospital. Aquela vez ele sentiu uma pontada estranha no peito. Antes de seus pés ganharem vida e o porém na rua, uma voz estranha sussurroulhe no ouvido. – Vá à casa da Abigail. As pessoas são robôs.

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* O automóvel de Márcio andava de forma perigosa. A velocidade com que passava por entre os outros carros quase causava embates violentos. Ao aproximar-se do destino, a manobra irracional que fez pôs os pneus a cantar. – O que é que queres falar comigo? – perguntou ele de forma fria, ao passar pelo portão da casa e encontrar Abigail cuidando do jardim. – Ainda bem que vieste – disse ela com olhar oscilante entre seriedade e tristeza, antes de pousar uma pequena faca sobre um dos vasos e limpar as mãos ligeiramente sujas de terra no avental. – Como estás? – Estou bem. E tu? – Com um pouco de dores de cabeça – respondeu tristemente. – Talvez nem estejas interessado em saber disso, mas chamei-te para te contar que estou com alguém – dardejou. O rosto dele ficou com uma expressão de choque por ínfimos milésimos. O que estava aquela mulher a dizer? Porque o dizia? Ele ficou a ouvi-la por mais alguns minutos. Enquanto Abigail falava, Márcio olhava para ela como se fosse uma estranha. Toda a paixão que sentia por ela começou a transformar-se em desprezo. Tudo que tinha que ver com ela em sua mente passou a ser história morta. Num instante, ele já tinha esquecido todos os momentos que havia vivido com ela – sim, Abigail havia se tornado em mais mulher que Márcio se convenceria que fora uma perda de tempo dedicar-se a tratá-la como uma princesa. Não se preocupou em pedir uma explicação – de facto nem sequer lhe interessava saber o motivo da acção que até o momento lhe parecia a maior das tolices que já presenciara. Consentiu com a cabeça tudo o que ela lhe dizia. As perguntas que Abigail fez que exigiram que abrisse a boca, por causa da forte repugnância que sentia dela naquele momento, Márcio respondeu com mentiras. Antes de se ir embora, olhou para o céu e atirou secamente. – É assim a vida... Entrou para o carro com uma estranha sensação de alívio. Era como se tivesse livrado de um dos maiores pesos de sua vida. Ao mesmo tempo, sentia uma forte dor por causa da perda. Agora conduzia como o mais cauteloso dos motoristas. Seu coração digeria aquela triste notícia numa celeridade surpreendente; aos poucos, a raiva foi-se transformando em compreensão. «Talvez ela tenha feito isso com a melhor das intenções», disse ele de si para si. – Márcio! Márcio! – gritaram duas mulheres, ao bater no vidro se seu carro. Márcio reconheceu-as rapidamente: eram as gémeas Cecília e Antónia Luchazes, vizinhas da mulher que acabava de lhe ferir o coração. – Oi! Como estão? – perguntou ele ao sair do carro. – Estamos mal – respondeu Cecília. – Tu já nem nos procuras. – Eu não sei quando é que vocês estão em casa… – Mesmo que soubesses! – interrompeu ela. – Agora estás mais interessado em outra pessoa. – É – concordou Antónia. – Agora só Abigail e mais Abigail. Márcio tentou sorrir, mas seu rosto petrificou-se de seriedade. Vendo que sua irmã tinha chegado no assunto que ela quis tratar com ele, Cecília dardejou sem piedade: – Sabes que a Abigail será pedida dentro em breve?

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Os olhos de Márcio aumentaram involuntariamente. Por ínfimos milésimos, sua cabeça foi atacada por uma tontura devastadora e seu olhar brilhou como se fosse chorar. – Não, não sabia – respondeu da forma mais natural que seu tom de voz lhe permitiu naquele momento. – Nem acredito que ela te trocou por aquele homem – continuou Cecília. – Acho que és muito mais bonito que ele… Enquanto ela falava, Márcio lia a mensaguem que acabava de entrar em seu telefone: Hoje posso passar aí para falar contigo? Tatiana. – Foi bom conversar convosco – disse Márcio, interrompendo as palavras ferinas de Cecília. – Depois falamos, 0K? Antes do auto entrar em marcha, enviou rapidamente a resposta. Podes sim. Estarei à espera de ti. O que quereria aquela mulher? Tatiana era amiga achegada de Sara Chele Bernardo. No momento, estava interessada em conquistar o coração de um dos amigos dele – Mendes Bundi. Seria para falar sobre ele? Meia hora depois de Márcio ter chegado à casa, a mulher apareceu. Para evitar interrupções incovenientes, ficaram a conversar no quintal. – É verdade – continuou Tatiana. – Eu pedi para ele sair comigo no domingo. – O Mendes aceitou? – Disse que terá uma saída contigo e com os vossos amigos. – Ah! Ele está só com medo! – Medo de quê? – Estava a brincar… Teremos mesmo uma saída. – Vocês é que sabem. E Abigail? Como é que ela está. – Está bem… bem maluca. – Porquê? – perguntou, ao sorrir. – Ela acaba que me contar que está com alguém. – O quê?! – E como se não bastasse, duas amigas dela contaram-me que ela será pedida em casamento dentro em breve. – Meu Deus! Isso é verdade? – Não me interessa confirmar. –Mas é um assunto muito sério. – Ela já me disse que está com alguém; se vai ser pedida… – Quando ela te contou isso? – Hoje. Tatiana ficou desnorteada. – Porque é que ela fez isso? – Eu realmente não sei, mas tenho uma teoria – disse ele, sem se aperceber que tudo o que falaria a seguir seria a explicação que ele e seu sósia procuravam acerca daquela viagem. – Algum tempo depois de termos começado a nos conhecer, contei-lhe sobre a minha provável viagem. Parece que a palavra provável para ela significa definitivo. A partir daí, ela que era a pessoa mais segura do mundo, transformou-se na personificação da insegurança. Durante meses, tivemos conversas sobre o assunto. Ela

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falou o seu receio de um de nós apresentar o desejo de acabar com a relação depois dos quatro anos que eu ficaria lá. Quando lhe disse quem quer que eu curse no exterior não sou, mas a minha família e que não há tantas hipóteses de eu viajar por não ter dado uma «gasosa» à senhora que estava a tratar do meu processo… sabes como é que são essas coisas, dá-se mais atenção a quem nos paga; eu não dei nada, se aparecesse alguém com uma boa quantia podia muito bem ficar com a minha bolsa, bolsa essa que só seria minha se me liguessem a dizer que eu viajaria para o exterior. Bem, quando lhe contei isso, acho que ela pensou que eu estava a desistir da bolsa por causa dela… – E não estavas? – Eu nunca quis viajar, havia escassas possibilidades dessa bolsa ser minha… Acho que os sentimentos que nutria por ela apenas acenderam a minha determinação de… Vamos pensar da seguinte forma: A tua amiga te convence a comprar um par de sapatos que a princípio não gostaste. Por causa de tudo que ela te disse e por causa dos elogios que outras mulheres fazem aos sapatos, começaste a achá-los bonitos. Por não teres dinheiro no momento, pedes à senhora que tos guarde. Voltas à casa para pegar os valores. No caminho de volta para loja, o que pensarias? – Visto que mais pessoas os elogiavam, pensaria que talvez já foram comprados. Mas isso não me impediria de voltar à loja para confirmar… – Está bem. Mas se pelo caminho te aparecesse algo que te chamasse a atenção, algo que realmente gostasses? – O meu interesse pelos sapatos diminuiria consideravelmente, mas visto que assumi um compromisso com a senhora da loja, teria mesmo de voltar para lá. – 0K. Lembra-te que não lhe deixaste nem sequer dez por cento do preço dos sapatos como garantia de que voltarias. Em vez de ires para a loja, compras aquela coisa que te interessa. Mas, segundos depois a tua amiga te liga para saber se compraste os sapatos. Tu dizes a ela que eles já devem ter sido comprados. Contudo, ela insiste tanto que tu vais até a loja. Quando chegares lá e a senhora te disser que momentos depois de teres saído alguém chegou e comprou o par, ficarias triste? – Não. Nem sequer gostava deles mesmo. – Foi isso que aconteceu com a Abigail. Eu lhe disse isso tudo. Mas acho que ela pensou que eu estava a lhe mentir. Por isso, ficou com medo de um dia a minha família falar vir a lhe apontar o dedo por eu não ter viajado por sua causa. Não pude fazer nada. Falei com ela tantas vezes sobre o asunto que desisti te tentar convecê-la do contrário e que a protegeria se tal acontecesse. Passados alguns meses, três dias antes da minha viajem, isto é, hoje, ela me chamou para me dizer que está com alguém. Talvez seja um truque para que eu viaje. Mas como posso viajar se não fui chamado? – É bem feito para ti. Estavas bem com a Sara. Quem te mandou ser precipitado e arranjar a Abigail? – Não fui em quem interrompeu a relação por três vezes por causa da insegurança. Que querias que eu fizesse. Foram oito meses de abstinência – disse com gozo. – Mas foste precipitado na mesma. Espero que não digas a ela que te contei isso quando ela voltar do exterior, sabias que, dias antes de teres ido contar à Sara que estavas com Abigail, eu mais algumas amigas tinhámos lhe convencido a voltar para ti? Espada – aquilo era uma espada maleficamente afiada que espetavam no coração daquele homem. O sofrimento que sentia por causa da infantilidade de Abigail desapareceu de seu peito e foi substiuído pela forte dor que sentiu ao ouvir aque avassaladora notícia. Quem diria! Márcio fez Sara sofrer. Sim, Sara, a mulher que apesar de tudo era a única que mostrou ser definitivamente perfeita para ele. Porque é que ela não lhe contou naquele dia? Porque convidava Márcio e Abigail para as festas

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que ela dava? Apenas para ver como ele estava feliz e sofrer? Não, não podia ser verdade. Márcio não havia machucado a sua princesa daquela forma. Raios! Só agora Márcio entendia a razão do olhar triste que ela punha sobre ele e o motivo de ela estar sempre rodeada pelas amigas quando os via juntos. Não era um simples arrependimento. Ela sofria pior forma. O que é que Márcio faria agora? A sua Chéldia havia passado por agonizantes momentos por causa dele. A Palavra de Deus tinha a solução: Olho por olho – sofrimento por sofrimento. – Quando é que ela volta? – Na sexta-feira. Porquê? O que é que vais fazer? – Não te preocupes com isso. Vai tudo acabar bem. – Espero bem que sim. Tu e os teus amigos deviam desmarcar essa saída com o Mendes, assim ele poderia sair comigo. – Não sei. Não depende só de mim… – Está bem. já que é assim… Olha, está na minha hora de ir. – Gostei da visita. A próxima vez serei eu a ir a tua casa. Depois de se ter despedido dela, Márcio trancou-se em seu quarto para pensar bem no que faria com o que acabava de descobrir sobre Sara. – Tu não podes fazer nada – disse o seu sósia com olhar incendiado. – Por onde entraste? – Não troques de assunto. Sabes muito bem que não preciso de portas. Qualquer ideia que tenhas sobre voltar a estar com a Sara, aborta-a, e fá-lo agora. – Não posso fazer o que me dizes. Eu a fiz sofrer. Preciso pagar por isso. – Tu não sabias que ela sofria… – Mas agora sei. Isso muda tudo. Tudo! – Ela está com alguém, e está muito feliz. Não faças nada para te arrependeres depois. – Tu me conheces muito bem, não? Seu sósia concordou com a cabeça. – Então entendes porque tenho de fazer isso. – Vais sofrer se o fizeres. – É esta a ideia. – Estás a pensar em fazer uma estupidez – disse, empurrando o outro contra a parede. – Isso vai contra todos os princípios que tens! Estás a te deixar levar por sentimentalismo. – Neste momento, só as palavras de Antoine de Saint-Exupery fazem sentido: «Só se vê com o coração. O Essencial é invisível aos olhos». – Queres agir de forma imatura porque queres. Tens força suficiente para te impedires. – Lamento. Vou fazê-lo na mesma. – Tu é que sabes. Tentei te avisar. Sabes que isso é o teu passado e que podes ter agido dessa mesma forma. Não era melhor agires como adulto’ – Se é o meu passado, não tenho nada a perder. – Já não tenho nada a te dizer. Vou-me embora. – Espera! Já sei tudo sobre a viagem. – Eu também – disse com expressão séria, depois continuou com tom indiferente. – Tu continuas a dormir no hospital. O tempo que estás aqui a ver a passar em dias, não passam de alguns minutos que estás a sonhar por causa do tranquilizante que te injectaram. Algumas coisas de que te lembras não aconteceram no mesmo dia. Desde o dia que a Abigail te contou que está com alguém até ao dia que as gémeas te conteram sobre o seu pedido de casamento passaram-se sete dias. Só depois de três é

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que tiveste esta conversa com a Tatiana. Vais te lembrar das coisas como se estivessem a passar dias ou semanas, mas na verdade, no hosspital o tempo está a passar a velocidade lenta dos segundos. Ainda tens muito tempo para sonhar. Talvez venhas a te lembrar de mais coisas. O cenário tornou-se escuro por alguns instantes. Quando voltou a existir luz e sombra, seu sósia já não estava no quarto. Sem se assustar, reparou que suas roupas que usava agora eram diferentes das tinha vestido há instantes. Antes de sair, permitu a seu corpo a sensação de um banho quente, tomou o pequeno-almoço com seu filho e assinou um cheque Minutos depois, Márcio entrou para o banco. As filas para o atendimento eram longas. Enquanto esperava, seu telefone tocou. – Fala, Mendes! – disse ao atender a chamada. – Você sabia muito bem da ideia da Tatiana ao ir conversar contigo – falou a pessoa da outra linha. – Ei! Eu não fiz nada! Vocês não tinham anulado a vossa saída? – Sim, seria no dia 8, dia das mulheres. Pensei bem e… – Não querias que passasse a ser o dia dos filhos – gracejou. – Ah! Agora, sabes o que é que ela fez hoje? Pediu-me em namoro. – Eh! E tu? – Disse que não. Não foi aquele não áspero. Expliquei-lhe daquela forma menos dolorosa, sabes? O problema agora está com a Débora. No domingo passado, a família toda dela me convidou para almoçar, das treze às vinte. Desde a irmã dela mais velha até à menor, a conversa era só que ela tinha de ficar comigo. Só faltou o pai dela me dizer isso! – Estás tramado! E eu então! A Tatiana foi me contar que no dia que eu fui contar a Sara que estava com a Abigail, ela estava a preparar-se para me dizer que queria voltar para mim. – Eh! Isso é loucura! Vais morrer, não? Olha, depois falamos. O meu telemóvel está a ficar sem carga. – Yá, está fixe. Porque estou seriamente a pensar em matar o gajo que está com a Sara. – Eh! Eh! Depois falamos. – Yá, depois. Márcio ficou por mais algum tempo no banco. Depois de ter sido atendido, resolveu ir falar com Walter Lombo. No caminho lembrou-se que dias depois de Abigail lhe ter contado que estava com outro homem, Mendes foi falar com ela com a intensão de saber se não era um plano para ver se ele desistia da ideia de não viajar por causa dela, viagem esta que nunca foi confirmada. Mas Abigail disse-lhe que era verdade, que se apaixonara realmente por outra pessoa, e que aquilo não tinha nada que ver com a bolsa de estudos de Márcio. Ao ouvir aquilo do amigo, Márcio confirmou que já estava na hora de eliminar de uma vez por todas todos os sentimentos que tinha por ela. Segundos depois, chegou ao destino. Enquanto falava com Walter Lombo, apercebeu-se que o acontecia naquele dia era o complemento do que ele se lembrara no dia anterior. Todavia, o facto de que Abigail seria pedida em casamento era ignorado, era como se ainda não tivesse acontecido ainda. – Você está a pensar em voltar para a Sara? – disse Walter, depois de ter ouvido tudo o que o amigo tinha para lhe contar. – Não, não, não. Eu vou já dar a minha opinião: Eu só contra isso. A Sara é insegura, Márcio. – As pessoas mudam. Talvez ela já tenha amadurecido.

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– Esquece a Sara, Márcio. Há tantas moças aí. – A Príscila é muito infantil, ainda não está em altura de assumir um relacionamento. A Raquel é autoritária, não haveria submissão em casa. Gabriela… já nem falo dessa. A Eugénia só quer algo daqui a muito tempo. A Mariana pensa que eu ainda tenho de passar por muitas mulheres para depois ser dela. Além do mais, a Sara… – Não! Não me fales mais da Sara. É melhor pensares bem. Só vais arranjar mais sofrimento. Momentos depois, Márcio entrou para o seu carro e os pneus alcançaram a estrada. Enquanto pensava no que fazer para compensar Sara pelo mal que lhe havia feito passar, apareceram duas mulheres que lhe contaram a ele algo sobre a Abigail que o chocou. Enquanto conversava com elas, Márcio controlou seu sofrimento. Quando se despidiu daquelas mulheres, enviou a seguinte mensagem a Mendes: Acabaram de me contar o que talvez não disseste para me proteger, amigo: a Abigail será pedida em casamento. Alguns segundos depois, Mendes ligou para ele. – Ei! Eu não sabia de nada – disse o amigo com tom de tristeza, surpresa e consolo. – Ela não me tinha dito isso quando falamos sobre o novo relacionamento dela naquele dia. – É. Mas é o que me disseram agora – respondeu Márcio com camuflada tristeza. – Tens certeza que isso é verdade? Quem te contou? – Foram duas pessoas que tiveram o maior prazer em fazê-lo. Visto que eu nunca lhes tinha dado muita confiança… – Então queriam vingança. Mas é melhor confirmares isso. – É o que vou fazer… nunca! – disse para mostrar ao amigo que o assunto Abigail já não lhe interessava. Para trocar de assunto lembrou-se de algo que a sua irmã lhe havia dito no dia anterior. – Comé, a Sandra me disse que naquele shoping irão passar um filme fixe no domingo. Se o carro do Walter estiver pronto, vamos. Se não estiver, pões um filme no teu computador aí em casa para afogamos as nossas mágoas – disse com graça. – Está fixe. Olha, a Tatiana me convidou para ir a um pedido no sábado. – Ei! E eu? – Nós vamos no carro da Sara, se ela chegar mesmo na sexta-feira. E parece que os lugares já estão todos ocupados. – Xé! Eu tenho que ir para te proteger. Se bem que a minha real intenção é outra… – Já deu para entender. – É, vou lá como tua protecção e para tentar reaver a Sara. Vou ligar agora para a Tatiana. – Não há makas. – Ei! Porque não me convidaste para o pedido? – perguntou Márcio, depois de Tatiana ter atendido a chamada. – Porque a pessoa que me estendeu o convite disse que eu poderia levar apenas uma pessoa. Quem te contou isso? – O Mendes, claro. – Aquele! Não sabe guardar segredo. – Somos amigos. Ele não pode fazer isso. Será que não há um espaço para mim?

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– O carro da Sara só leva seis pessoas: o namorado dela, um casal, eu e o Mendes e ela mesma. Como é que irias? Disseste-me que o teu carro e o do Walter estão no mecânico – Arranjar-se-ão formas. – Não sei. Eu vou falar com a minha amiga. Se der, vais… – Está bem. Mas lembra-te que se eu não for, o Mendes não vai. – Chantagem? – Não. Simples brincadeira. Tenta, irmã. – Yá. Depois te dou a resposta. Passado algum tempo, Márcio encontrou-se com Walter Lombo perto da porta deste. – Já sabes da nova da Abigail? – Já me contaste. Esqueceste? – Não, não é essa dela estar com alguém. Contaram-me a pouco que ela será pedida em casamento dentro de poucas semanas. – O quê?! – perguntou Walter, sentando-se sobre o passeio. – É verdade – confirmou o outro, sorrindo. – E agora, o que vais fazer? – Estou à espera que a Sara volte… – Ainda com esta conversa? Ela não é para ti. – Está certo que ela fez muita coisa errada, mas não posso rotulá-la como amor impossível por causa disso. Embora tenha me traumatizado com a sua insegurança, e eu ainda ter medo de, se ela voltar ficar comigo, fazer a mesma coisa, a Sara merece o benefíco da dúvida como todas as pessoas. Além disso, Bertrand Russell disse: «Temer o amor é temer a vida e os que temem a vida já estão meio mortos». – Estás a usar a lógica de forma errada. E tu sabes disso. É melhor confirmares se essa história da Abigail é verdadeira. Talvez ainda possas voltar para ela. – 0K. Vou fazer o que me pedes. Vou confirmar esse assunto, mas não vou deixar de pensar em algo para fazer a Sara voltar para mim. As pessoas são teimosas.

* Dias depois, as gémeas confirmado que Abigail seria pedida em casamento. Mesmo não se lembrando de a ter visto antes Márcio encontrou-se com a sobrinha da última. Tentou perguntar-lhe sobre aquele assunto, mas desistiu. A palavra das gémeas bastavam. Na verdade, ele quis ter certeza sobre o assunto por talvez viesse a perder de foco o seu objectivo primário: reaver a mulher que provou ter sido feita de sua costela. Enquanto saíam da Casa de Deus, Márcio e Jacinto Lombo discutiram amigavelmente sobre quem iria no banco da frente do carro de Walter. Ao ver Judith da Cruz, o primeiro decidiu andar a pé com a prima que, depois dele lhe ter contado que a gémeas confirmaram o pedido de casamento de Abigail, o aconselhou a não fazer nada a respeito. Depois de ter chegado à casa, ligou para Walter Lombo que lhe aconselhou a mesma coisa. Márcio pareceu acatar as palavras de seus amigos por alguns instantes, contudo minutos depois ligou para Abigail, mas esta não atendeu. Para tentar acalmar a fúria que sentia por ter confirmado aquele assunto, decidiu ir à casa dos Vikeira para saber a razão de Júlia não se ter feito presente à Casa de Deus, todavia, a caminho da casa de

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seus tios, mudou de ideias. Ligou para Victor Luremo, o homem que andava com Judith da Cruz, mas que no momento estavam a passar por sérios problemas em seu relacionamento, para saber se podia conversar com ele naquela hora. Ainda no caminho para a casa de Victor, voltou a ligar para Abigail. Desta vez ela atendeu. – Oi! Como estás? – perguntou ela com felicidade infantil. Porque estaria ela feliz? Porque não sofria como ele? Seria uma felicidade falsa? – Oi. Estou bem – respondeu ele. – Na última vez que falámos, eu não consegui falar o que estava em meu peito. Por isso, resolvi escrever. Achas que posso passar aí? – Onde é que estás? – Por baixo do prédio azul, mas daqui a doze segundos estarei aí. – 0K. Daqui a pouco. Depois de se ter encontrado com Victor e este ter brevevemente entrado para casa para pegar a a carteira, começaram andar de forma célere. Ainda no caminho Victor ligou para Judith e lhe contou para onde iam. Esta disse que também queria ir para dizer poucas e boas a Abigail, mas aquele era um assunto apenas para homens que sofriam por causa das mulheres, não de mulheres que por razões incompreensíveis terminavam uma relação. Quando chegaram ao destino, Victor pediu dois beijos a Abigail. Márcio estendeu a mão para ela de forma fria. Ela parecia doente, seu corpo emagrecera consideravelmente. Márcio sentia repugnância. Para evitar uma loucura, entregou-lhe um envelope que continha um poema de cinco páginas onde, em parte, dizia que ele passaria apenas a ser sua amiga e que ele voltaria para Sara e foi-se embora. – Existem mulheres muito estranhas – comentou Vitor Luremo, ao voltarem para casa. – Ela te explicou a razão de ter feito isso? – Nem sequer sei se ela realmente o fez! Além disso, não me interessa ter certeza sobre nada nessa história. O poema que lhe dei vai explicar tudo o que tenho no coração neste momento. Vais lê-lo, quando chegarmos à minha casa. – Mas a Abigail… – Abigail? Quem é a Abigail? – Cê é rápido, yá? – disse sorrindo. – Ainda agora já a multiplicaste por zero? – Não quer ser amada, é apagada. – Vocês falaram anteriormente sobre esse assunto? – Sim, mas como ela falava numa língua que não conheço, não percebi nada – disse com gozo. – Queres dizer que, por ela já não estar contigo, não ouves nada do que ela diz! És cruel. É uma pena ela já não estar contigo. – Mas isso não vai acontecer contigo. – Porquê? – Não vieste comigo por acaso. Resolvi este meu problema para que pudesses resolver o teu com a Judith. – Ai é? – O tempo vai dar a resposta. Chegámos. Senta-te aí. Vou pegar o poema. Momentos depois, ele apareceu com cinco folhas A4 e entregou-as ao amigo. O título estava a vermelho, o resto das letras, a preto. O estilo de letra era o Script MT Bold.

Palavras por palavras… Aconteceu: O príncipe tornou-se monstro outra vez

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O culpado – não sei se foste tu ou se fui eu Sei apenas que meu lado esquerdo se desfez Mas já não é por tristeza ou desânimo Nem sequer é angústia Não é por se terem desabado os meus planos Desta vez meu coração dói apenas por fúria Sim, raiva, ira, vontade de causar destruição Desta vez o Cupido não trouxe a mulher errada Eu é que insisti mesmo sabendo em que daria esta relação Em pedras de gelo transformaste os sentimentos teus Eu fiz o mesmo com os meus A tua provável paixão por mim queimaste Eu a minha em veneno afoguei Verem outro homem para ti teus olhos deixaste Eu – raios! – que voltes para mim talvez esperarei Mas que nunca me perdi em teu perfume prefiro fingir Que minha amiga sempre foste prefiro pensar Sim, é isto que tu és: uma amiga Não uma paixão sem lume Uma amiga, Não uma mulher que prefere me perder A enfrentar o mundo É, uma amiga, Não a causadora deste ódio profundo Que lugar ocupo na tua vida agora? Que lugar ocupei? Pensaste mais em mim, em ti ou nos de fora? Acho que nunca saberei Mas continuo a ver medo em ti Continuas assustada Teu receio parece não chegar ao fim É como se procurasses fogo no fundo da água Sim, Se fizeste o que fizeste por causa do que penso É como se Procurasses fogo no fundo da água É como se Quisesses achar sal numa colmeia É como se Procurasses um tigre devorado por uma zebra É como se Quisesses achar no mundo real fadas e sereias Sei que o que disser não fará nenhuma diferença Mas isto foi um caso de traição Ou de falta de confiança? Não te enganes, O amor não desaparece por existir outra presença

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Mas não me refiro a mim Refiro-me a alguém que tenhas amado Ou amas de verdade É ele que está em teu peito? Acho que ele pensa em ti Porque não o tens a teu lado? Será medo? Vaidade? Quanta força usas para ter um amor de volta? Será que dás todo o teu sangue Ou apenas derramas algumas gotas? Porque te deixas vencer pelos obstáculos? Porque permites que a tristeza saia sempre a rir? Porque não amas mais E esqueces um pouco os cálculos? Sim, Porque não deixas simplesmente a relação fluir? Mesmo que eu use todos as palavras que existem Tu nunca me darás nenhuma resposta Sabes quando é que O amor e o medo se entendem? Quando o perdão tem sempre uma cadeira Mas a desconfiança não passa da porta Quando a persistência está viva Mas a desistência está sempre morta Quando a paixão está sempre firme Mas a desilusão torta Quando o carinho está desperto Mas o desprezo nunca acorda. Quem quer que seja este homem É melhor do que eu Quem quer que seja este jovem Tem argumentos mais fortes do que os meus Te sentes mais segura com ele Não – ele nunca vai viajar para longe de ti Sentes que és a única no coração dele Ele nunca te fará pensar que Fizeste uma escolha ruim Mas se fizer, perdoa-o Tenta te concentrar nas qualidades, Não nos defeitos Tenta ver o arrependimento, não o erro Pensa no bem que ele já te fez, esquece o fracasso Não ligue para a falta de êxito, pensa no sucesso Talvez eu não tenha sido feito Para ficar com alguém Talvez eu não tenha aptidão para o romance Talvez a minha felicidade Está em não amar ninguém Talvez o melhor Seja estar longe do feminino alcance

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A solidão Me compreende mais do que qualquer rapariga Os meus poemas São menos melindrosos que o namoro As amizades que tenho Não produzem tanta intriga E nenhum livro Me faz sofrer por abandono Há casais que namoram Para que depois se tornem só amigos Há amigos que convivem Para que depois se tornem namorados Eu – visto que nunca tive namorada E nunca pertenci ao coração de ninguém Sinto que estou realmente feliz com… Deus sabe quem Aprendi dos dois mundos: Sei andar sozinho e andar aos pares Sei o que é ser romântico e o que é ser amigável Sei que os humanos só amadurecem Quando estão juntos Como disse a Sara Tavares: «Isso é uma composição saudável A gente não pode viver uns sem os outros» As relações perfeitas Não foram feitas para acabar As grandes amizades Só foram criadas para começar O que é o amor? Onde vive a paixão? O respeito – quem o conhce de cor? Haverá alguém Que saiba cuidar bem deste coração? Existirá alguém Que sem falares nada te compreenda? Alguém que não tenha medo de teu olhar? Terá o mundo alguém Que diga o teu nome na rua enquanto anda? Alguém que quando suspira É apenas para te chamar? Existirá alguém Que já fez os planos dos presentes Que te dará durante anos? Alguém que quer ficar contigo, Não importam os danos? Terá o mundo alguém Que só por tocar tua sobrancelha treme? Alguém que só te ama se o amares E se quiseres que ele te ame? Haverá? Sim, existirá?

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Mas Talvez não seja deste alguém que estejas à procura Provavelmente é essa a razão De tentares me oferecer amargura Talvez seja a tua idade que até agora te tortura Mas, Amiga não podias tentar este suicídio Noutra altura? Sei que o certo às vezes parece chato E o errado é sedutor E que há dias em que o leão É mais manso que o gato E que o ódio é menos destrutivo que o amor Contudo, Até hoje ninguém Conseguiu enganar o coração Ninguém Foi capaz de destruir seus próprios sentimentos Ninguém Conseguiu esquecer por completo uma paixão Ninguém – Ninguém conseguiu fugir ao amor sem tormento Os únicos que conseguiram isso Ou não amaram Ou a sua vitória foi falsa Ou realmente não se apaixonaram Ou o prémio que obtiveram foi uma farsa Mas não ligues para estas frases Se te parecerem um pesadelo É apenas o que digo Sempre que estou com dores de cotovelo O que estás a sentir enquanto lês este poema? Como está o teu batimento cardíaco? Teu rosto está com uma expressão de desinteresse Ou de pena? Não importam as respostas, Não sou eu Quem está no teu íntimo Não é a mim Que tens de prestar atenção Não é a mim Que tens de dar a mão quando chega a noite Não e a mim Que tens de ajudar a achar alguma solução Não é a mim Que tens de jurar fidelidade até a morte Agora estás tão longe Acho que sempre estiveste

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Agora já não é para mim Que teu pensamento foge Acho que do chato do Márcio te libertaste Achas que já não há nada a fazer? Tentámos de tudo? Será que o verdadeiro amor Más coisas sobre nós irá dizer? Não será este final um pouco bruto? Independentemente do que responderes Concordarei contigo Agora cada um está livre para fazer o que quiser Meu coração já não corre perigo Terminada a paixão Volta-se para o nosso verdadeiro amor Desmanchada a ilusão Recupera-se a relação Que nunca nos trouxe tamanha dor Os braços antigos nos aceitam, Embora um pouco decepcionados (Perdoa-me, Chéldia, por ter sido precipitado Se te consolar Também nos fizeram sofrer Não, como tu a ela não cheguei a amar Foi fácil tirá-la da mente e esquecê-la) Amiga, desculpa-me por só te ter dito mentiras Quando me contaste sobre ele Mas te contar verdades já não me anima Entenderias bem se te pusesses na minha pele Os lobos não uivam para a lua Se ela já não tiver brilho Os grilos não cantam na rua Se a noite já não estiver no seu trilho A abelha só faz mel na sua colmeia Não se colhem uvas Se na estação das flores se cortou a videira Foi divertido Vou me convencer que não passou de um sonho Sim, por ti ainda estou apaixonado Mas não sei se continuarei assim por Anos, Meses Ou segundos Estou feliz por ti Agradeço-te por teres sido tu a pôr o fim Conforme disse alguém: Tudo está bem quando acaba bem

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Alguns minutos depois de Vitor ter terminado a leitura do poema e os dois terem terem tido mais dois dedos de conversa, o primeiro voltou para a casa. Márcio entrou para seu quarto para ver se tomava algo para amenizar sua dor de cabeça. – Não podes dormir ainda – disse-lhe seu sósia. – Estamos a meio de um processo. Falta pouco para descobrirmos quem é a mulher a quem amas e que também te ama. Tens de voltar alguns meses para podermos saber disso. Há coisas que nos estão a escapar… – Já não defendes mais a Abigail, pois não? – Só ajo de acordo com os sentimentos e as memórias que tens; no momento era ela a especial no teu coração, não podia fazer nada contrário a isso. – 0K. Mas não me apetece voltar a passar pela cena em que tenho de me encontrar com ela. – Não te preocupes. Os déjà vu estão a ser inibos. Lembrar-te-ás apenas de coisas que aconteceram antes ou depois disso. – Estás a mentir. – 0K. Algumas cenas serão repetidas. A tua mente te diz que estás em meados de Março, quando a maioria destas coisas aconteceram. No entanto, teremos de voltar para 30 de Dezembro do ano passado. Vá lá. Temos pouco tempo. Daqui a pouco o efeito do tranquilizante passa e, como te lembraste deste último poema, quer dizer que ela está ao teu lado. Não queres ser surpeendido pois não? – Antes de ires, tens mais algo sobre a minha viagem? – Ainda bem que perguntas. Disseste algo ao Walter que me intrigou: «A Príscila é muito infantil, ainda não está em altura de assumir um relacionamento. A Raquel é autoritária, não haveria submissão em casa. Gabriela… já nem falo dessa. A Eugénia só quer algo daqui a muito tempo. A Mariana pensa que eu ainda tenho de passar por muitas mulheres para depois ser dela.» Tu estás com trinta e um anos, a Príscila com vinte e oito, a Eugénia com com trinta e um e a Mariana com trinta. Não achas estranho elas ainda terem estas características com a idade que têm? – O que queres dizer? – Algo está errado nisso. Ou elas não sabem o que a velhice ou as lembranças que tens sobre elas são de alguns anos atrás. – Isso é estranho… – Falaremos sobre isso depois. Talvez as respostas estejam nas lembranças que terás a seguir. O cenário voltou a escurer. A primeira luz que viu foi a de seu telefone a vibrar. Era uma mensagem de Mendes. Dormi pessimamente mal. Eu e a Zélia combinamos falar hoje depois de sairmos da Casa de Deus. Estou com medo, mas tem de ser. Márcio lembrou-se que no dia anterior, Mendes Bundi lhe havia contado que o homem que pedira Zélia Mayala em casamento estavas prestes a receber uma resposta ao seu pedido. E pelo visto, seria uma resposta positiva. Mendes e ela haviam tido uma conversa em que ficara claro que os dois pensavam que, por casa da grande diferença de idade, aquela relação não poderia ser levada a vante. Mas, mesmo assim, as mensagens de texto que enviavam um ao outro aumentavam o risco de virem a ficar juntos. Como é que agora ela dizia que iria aceitar o pedido daquele homem execrável? Antes que Márcio pudesse enviar uma resposta para consolar seu amigo, seu telemóvel voltou a vibrar. Era de novo uma mensagem de Mendes, mas a data era

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diferente – era de 31 de Dezembro, o que queria dizer que sua memória já não tinha nada para lhe mostrar sobre o dia 30. Está duro, boy. Perdi a Zélia. Meu coração está a doer muito. Estou revoltado com a vida. Raio de vida! O que faço? Raios! O homem execrável conseguiu o que queria. Antes que pudesse fazer qualquer outar coisa, chegou outra mensagem. Desta vez era de 11 de Março. Dá para ver que ainda gostas dela. Mas o meu conselho é: deixa fluir. Não te precipites. Sara chega sexta-feira, segundo a Tatiana. Não penses mais na Abigail. Depois falamos. Márcio lembrou-se que aquela era a resposta à mensagem que enviara minutos antes, sobre o que fazer com a sua vontade de voltar a ter Sara como sua namorada. Em segundos, deu conta que sua memória havia pulado as cenas em que conversava com Abigail e as gémeas sobre aquele irritante assunto. Ainda bem para ele. Ao olhar para o visor do telefone, Márcio notou que o canto em que vinha escrito quarta-feira, mudou rapidamente para sexta-feira. Sexta-feira! Era o dia previsto para a chegada de Sara. Sem pensar nas consquências, ligou rapidamente para ela. – Boa noite – respondeu a pessoa da outro lado da linha. – Oi! Chegaste bem! – Sim, cheguei. – E como é que correram as coisas aí? – Ainda estou no aeroporto… e muito cansada… – 0K. Ligo para ti mais tarde. Sara estava de volta. Era hora de atacar. Para dividir sua alegria com alguém, enviou uma mensagem a Mendes. She is here! Sara is here! Falei com ela há pouco. A conversa demorou trinta e quatro segundos. Estou em vias de cometer uma loucura! Ao lembrar-se que Tatiana estava extremamente apreensiva sobre o que Márcio faria com Sara, também enviou-lhe uma mensagem. Pareces estar muito preocupada com o que vou fazer. Mas fica descansada: Sou o pior dos cães, não ladro nem mordo. Boa festa amanhã, irmã. Alguns segundos depois, o cenário tomou a aparência do quarto de Sandra. Márcio estava sentado sobre a cama da irmã ouvindo um de seus CDs. Para preparar o caminho, enviou uma mensagem a Sara. Aviso: Vou ligar para ti para te contar uma surpresa daqui a cinco minutos. Espero que não te incomode. Cumprimindo justamente com o tempo de espera que dissera, ligou para ela. – Oi. Já estás em casa? – perguntou ele muito calmamente. – Já, já estou. E a maioria das minhas amigas também. Enquanto eles conversavam, Sandra entrou para o quarto com o intituito de procurar os seus medicamentos para o estômago. Márcio olhou para expressão facial da irmã – parecia irritada, provavelmente porque pensava que ele conversava com Abigail. 91


– Fizeste alguma loucura enquanto estiveste fora? – gracejou Márcio. – Não, não deu. Aquele país está numa disputa tão acirrada pelo poder político, que todos os civis ficam apenas trancados em suas casas. – Chato. Antes de te contar o que quero, ouve isto. Márcio enconstou o seu telefone ao lado do leitor de CDs de Sandra. No mesmo instante o clima foi invadido por uma melodiosa canção que, em resumo, desejava boas vindas à uma amiga, na verdade a um amor, que, depois de tanto tempo de ausência, voltou para ficar com seu parceiro. – Seja bem vinda a Angola, Sara – disse ele, depois da música ter terminado. – Obrigado. – Bem, aí vai a novidade… Consegui a minha vaga na Faculdade! – Verdade! Parabéns, Márcio. – Obrigado, Sara. Depois falamos. Márcio desligou rapidamente o telefone. Deu risadas ao ver que mentira sobre a novidade. Como pudera ser tão covarde? «Devia haver uma lei que condenasse os medricas», disse de si para si. Olhando para seu telemóvel, a data mudou para 18 de Março. Sem que escreve nada, apareceu a informação «mensagem enviada» no visor. Para saber o que tinha acabado de enviar e para quem o havia feito, foi até à Caixa de Saída. Num instante, apareceu a última mensagem enviada. Sara Chele Bernardo era o destinário. Amanhã será um dia especial: farei vinte e dois anos e também um discurso na Casa de Deus. Obs: Estou a ler o teu poema «Visita inesperada». Estou a pensar seriamente em te convidar para sair. Não demorou muito e a data mudou para 24 de Março. Márcio lembrou-se que minutos antes havia conversado com Mendes para saber se Sara sairia no dia seguinte. Num ápice, apareceu-lhe a resposta no telemóvel. Ela está com dor de dente, então não vai à Faculdade. Envia-lhe uma mensagem, boy. Mostra quem manda! Aquele era o encorajamento de que Márcio precisava. Desconsiderando as consequências, escreveu e enviou as seguintes palavras para ela: Preciso te dizer que tenho amarrado meus pés, minhas mãos e minha boca para não correr para ti, te pôr no colo e te dizer: Quero cuidar de ti. Deixa-me ser te médico, Chéldia. O visor mostrou a data de 29 de Março. Márcio tinha em suas mãos o telefone de Walter Lombo que estava a alguns metros dele, mexendo no computador. Até o momento ele não tinha sido directo com relação ao que queria com aquela mulher. No dia anterior, Mendes Bundi lhe havia dito que ele, Márcio Nassembe, não podia mostrar a Sara Chele Bernardo que a queria de volta se nunca se pronunciasse. Lembrando-se disso e aumento o facto de que a adrenalina lhe descontrolava o bom senso, cometeu a maior insensatez de sua vida. Escreveu rapidamente uma mensagem no telemóvel do amigo e enviou-a. Minha boca quer falar o que sente por ti e meus ouvidos querem ouvir o que sentes por mim. Será que podíamos nos encontrar neste domingo?

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A resposta chegou algum tempo depois. Márcio, agradeço a gentileza, mas não é possivel. Eu tenho compromisso com alguém, e não acho certo sair com outra pessoa. Espero que entendas. Raios! Sara tornara-se segura. Ele gostou de saber daquilo. Sentiu ciúmes por não ter sido quando estava com ele. Ao mesmo tempo, sua consciência comelou a pesarlhe. Só agora dava conta que havia descido ao nível do Diabo quando esteve com o Filho de Deus – tentara alguém que merecia mais respeito do que qualquer outra coisa. Apenas depois de ter recebido uma resposta à altura, é que se retirou. Demónio! Para tentar acabar com aquelas dores de cabeça, foi até o quarto e adormeceu. Minutos depois, despertou. Sentiu necessidade de ar fresco. Vestiu rapidamente as peças de roupa ao lado da cama e foi até à rua que estava desértica. Após ter dado alguns passos. Viu uma multidão de meliantes correndo em sua direcção. Antes que pudesse fugir, foi atingido por uma bala no tórax e pisoteado por aquela gente toda. Perdeu os sentidos na hora. Quando despertou, viu-se numa ambulância. Algumas partes de seu corpo estavam ligadas à máquina perto de si. De repente, ouviu-se o barulho da sirene do carro de bombeiros em alta velocidade. O enorme carro parecia estar fora de controlo. Antes que o condutor da ambulância pudesse mudar de caminho, o carro de bombeiros bateu violentamente contra o lado direito do veículo, fazendo com que alguns dos paramédicos caíssem sobre Márcio e alguns ferros lhe penetrassem na cabeça. Márcio acordou assustado. Havia sido um pesadelo. Deduziu que aquilo só podia ser por causa do que fizera a Sara, por isso ligou para lhe pedir desculpas. Ela aceitou-as prontamente. Márcio sentiu um enorme alívio. Mas aquilo não durou muito. Seu coração começou a bater de forma dolorosa. O rosto ficou banhado de lágrimas de suor. Sua respiração tornou-se ofegante. Ao sentir em suas veias tamanha angústia, pensou que o efeito da anestesia que lhe fora administrada no hospital tivesse terminado. Portanto, estava na hora de acordar e conhecer a misteriosa mulher que correspondia ao seu amor da maneira mais conspícua possível. Para aumentar suas suspeitas, o cenário escureceu. Quando abriu os olhos, todos seus sentidos ficaram surpreendidos. Suas mãos estavam fortemente amarradas atrás de uma cadeira, sua boca sabia a sangue, seu nariz estava em estado hemorrágico, seus olhos viam seu sósia parado à frente de si com uma arma e seus ouvidos captavam o estranho barulho de duas pessoas sentadas atrás de suas costas. Parecia que alguma coisa tapava a boca delas. – Márcio, Márcio, Márcio – dizia seu sósia, aproximando-se. – Quão tolo és, meu rapaz. – O que estás a dizer? – Não te apercebeste que tudo era um truque? Estás sob meu controlo. Posso fazer qualquer coisa contigo… Todas as recordações que tinha sobre o homem à sua frente passaram-lhe rapidamente em sua cabeça: A entrada sorrateira em sua casa; ele a chorar por Márcio estar a menosprezar Abigail; as lutas acirradas de ambos – tudo. No mesmo instante, lembrou-se da frase de Alexandre Dumas: «O homem erra quando se convence de ver as coisas como não são. O maior erro ainda é quando se persuade de que não as viu, tendo de facto visto.» – Tu és realmente… real – disse extremamente contrariado. – Podes chamar-me de rei se quiseres. – Já aprendeste a fazer piadas?

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– Não. Faço melhor do que isso… – Porquê? O que foi que te fiz? – Não precisas de respostas sobre isso – disse de forma desafiadora, com seus olhos muito próximos dos olhos do outro. – Precisas apenas de escolher qual delas vai viver – alardeou, ao puxar as duas pessoas que estavam atrás de Márcio. Márcio olhou para as duas pessoas. Eram mulheres, e estavam amarradas como ele. Eram – eram Sara e Abigail. – O que vais fazer? – perguntou assustado. – Já te disse. Escolhe uma delas. Quem odeias mais? – Nenhuma – respondeu de forma triste, ao reparar que aquele homem olhava repetidas vezes para o relógio enquanto conversavam. – Tens de escolher uma. Vou perguntar de novo – disse apontando a o cano da arma para elas. – Quem odeias mais? Esta? Ou esta? – Porque queres que te minta? Não odeio nenhuma dela. Cada uma fez o que julgou melhor para mim e para ela mesma. Podem ter sido acções mesquinhas, mas foi o que elas pensaram. Não posso odiá-las por isso! – 0K. Vou ser condescendente. Quem amas mais? Márcio não respondeu. – O que sentes pela Abigail. Ainda gostas dela? – Não como antes. – Se ela te pedisse para voltar, voltarias? – Não sei. Dependeria dos factos que ela me apresentasse. – Factos. Interessante. Mas agora, neste exacto momento, tu ama-la? – É como a brasa apagada, não deixou de ser carvão. – Quero um sim ou não. – Não. – Então posso acabar com ela? – Não! – gritou ele, ao levantar-se. – Senta-te, ou acabo com as duas. Senta-te! Senta-te… Márcio obedeceu. As mulheres choravam. Ele sentia-se impotente. – E quanto a Sara? – perguntou, despenteando-a com o cano do revólver. – As mesmas perguntas… Ainda gostas dela? – É impossível deixar de gostar dela. Ela é… muito parecida a mim. – Não estou a falar de admiração. Falo de amor. Verdadeiro amor. – Ela está com alguém, a chama tem de ser apagada. – E se não estivesse? – Não sei. Se ela quisesse voltar e se mostrasse mais madura… – Tu ama-la? – Não como antes. – Sim ou não. – Não. – Então não tenho escolha. Vou matar a duas – disse com o braço estendido na direcção delas. As mulheres gritavam abafadamente. – Por favor. Não sei quem és, mas… por favor, não faça isso. Elas são minhas amigas. Minhas amigas… – Ah! É esta a forma que tens para dizer que o teu coração é bígamo? Amas as duas? – Entendeste muito bem o que quis dizer.

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– Tu é que não estás a dar as respostas que quero! – vociferou, ao empurrar violentamente com o pé as cadeiras das duas mulheres para o chão. – Quem amas? Responde! – imperou, ao apontar o revólver para a cabeça das duas. – A Abigail? – Não! – gritou com fúria e com o olhar marejado. – A Sara? – Não! – Continuamos na mesma. As duas morrem. – Não! – disse ele, dando passos de aproximação. – Escolhe antes a mim. Deixaas em paz, por favor… – Escolha sensata – disse friamente, aproximando-se à velocidade relâmpago do outro apontando-lhe o cano para o peito. – Aponta para aqui – disse Márcio, ao abaixar-se. – A minha cabeça tem mais problemas que o meu coração. – Com prazer. Márcio fechou os olhos. A seguir, ouviu barulho de um objecto batendo contra o chão. Seu sósia abraçou-o de forma esmagadora. – Estás livre agora – disse em tom de orgulho. – O quê? – Estás livre agora. Tinhas de ter a certeza sobre o que sentes por estas mulheres andes de acordares. Márcio olhou para seu sósia admirado. Segundos depois, as mulheres desapareceram. Não passara tudo de um plano. Ainda estava no mundo dos sonhos; nada do que se passara aí era real. – Porque fizeste isso? – inquiriu Márcio de forma feroz, ao empurrar o outro. – Já te disse: Tinhas de ter a certeza sobre o que sentes por estas mulheres andes de acordares. Agora que já sabes que isso, estás pronto para acordar sem te assustares com a pessoa que encontrarás ao teu lado – disse de forma paternal, ao olhar para o relógio em seu pulso. – Quer dizer que já descobriste quem é a mulher? – Tu também já descobriste. Abigail, Ester, Gabriela, Mariana, Príscila, Raquel e Sara. O nome que possui letras para todos os outros nomes é o nome dela. Deus! O tempo acabou. Vais acordar. Pensei que daria para falarmos sobre a tua real idade quando estas coisas aconteceram e sobre a idade que tens no hospital. Raios! Ao dizer isso, aqueles sintomas agonizantes vieram ao corpo de Márcio. Tudo ao seu redor começou a ficar desfocado. Mas desta vez ele não se deixou abater pelo sofrimento. Parecia feliz. – Porque te ris? – perguntou o sósia. – Descobriste o nome? – É a Sara… – Não. Gabriela é o nome.

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CAPÍTULO IX A mulher sentada perto do homem deitado sobre a cama de hospital estava ansiosa. Apesar do que a Medicina dizia acerca do caso dele, ela se manteve esperançosa. Havia o risco dele morrer a qualquer minuto e, se sobrevivesse, perderia grande parte – ou toda – sua memória. Desde o acidente que o deixara naquele estado há sete meses atrás, não se havia visto o abrir de seus olhos ou ouvido som algum de sua boca. Mas tudo mudou naquele dia. Depois de ter terminado uma cirurgia, ela havia entrado em um local para lavar as mãos. Minutos depois, outro cirurgião encontrou-a e contou-lhe que o seu «protegido» havia recentemente dado um intervalo à morte. Todavia, tiveram de voltar a pô-lo a dormir por causa do caos que disseminava. – Márcio, acordaste! – exclamou, ao levantar-se e pousar sobre a cadeira o fascículo em suas mãos. – O que é que fa… – pigarreou em seguida, para que pudesse recomeçar sem rouquidão. – O que é que fazes aqui? – Aquilo que os médico fazem. Cuidar de seus pacientes – respondeu em tom emotivo, ao desligar algumas máquinas conectadas ao corpo dele. – Sai daqui! – vociferou de forma ameaçadora. – Não quero que cuides de mim! Não! Não me toques! – Márcio, querido – disse baixinho, ao sentir-se profundamente magoada – não te lembras…

Antes que pudesse terminar de falar, sua garganta foi emudecida pela entrada repentina de duas enfermeiras. Eram Mery Nkodia e Helena Bundi. – O que se passa, Doutora? – perguntou Helena em tom de preocupação exagerada. – Márcio! Oh! Meu Deus! Márcio, acordaste! As duas mulheres cuja presença era recente naquele quarto aproximaram-se rapidamente do homem deitado sobre a cama. A outra mulher ficou atrás delas encostada a uma parede com o olhar marejado. Enquanto elas faziam o que ela não conseguira fazer por causa da relutância dele, saiu de forma subtil. Enterrou o rosto em suas mãos. Não acreditava que aquele homem a havia tratado daquela forma. Logo ela!

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Não – ela não! Antes que pudesse continuar a julgá-lo, lembrou-se que seu cérebro havia sido danificado gravemente – sua memória não era a mesma. Meia hora depois, as enfermeiras saíram. – Como é que ele está? – perguntou-lhes a mulher. – Muito estranho, Doutora – respondeu Helena. – Está a falar de coisas que já aconteceram há muito tempo como se tivessem acontecido ontem. – Bem, o reconfortante é que ele está melhor que antes – consolou Mery. – O que é que ele falou? – voltou a perguntar a mulher. – Falou sobre o Bruno e… – E? Não tens de me esconder nada, Helena. E? – Sobre a Sara e a Abigail. – Não falou nada sobre mim? – Disse que te… – É melhor a Doutora entrar – disse Helena, para cortar o comentário ferino de Mery. A mulher respirou fundo. Helena tocou-lhe calorosamente no ombro. Efémeros segundos depois, entrou. – Voltaste para? – perguntou Márcio, ao tentar levantar-se. – Fazer a minha parte – disse friamente, ao ajudá-lo. – Já te disse que não preciso da tua ajuda – disse ao se sentir confortável; era como se aquele pequeno toque que a mulher dera entre sua coluna e o travesseiro lhe tivesse tirado de agulhas e colocado em plumas. – Pára de agir como criança. Sou eu quem cuida de ti neste hospital, quer queiras, quer não. Márcio sentiu-se estúpido. Porque tratava mal aquela mulher? Nem sequer sabia. Ela estava preocupada consigo, cuidava dele. Não merecia aquela displicência. Acalmou-se. Após alguns segundos, fez algo que para a mulher se tornara raridade: chamou-a pelo nome carinhoso que havia criado exclusivamente para ela. – Briell, desculpa. Estou um pouco assustado, é só isso. Podes dizer-me o que aconteceu comigo? – Não te lembras? Não te lembras de nada? – Por isso é que te fiz a pergunta – respondeu de forma melancólica. – Foste baleado e pisoteado por um grupo de marginais – começou ela em tom de tristeza; Márcio pôs a mão dentro do roupão e sentiu uma protuberância na pele de seu peito que deduziu ser a cicatriz deixada pela entrada do projéctil. – O peso deles sobre ti fez com que alguns ossos do teu corpo fossem fracturados, principalmente os da tua perna direita. – Ele tocou na terceira divisão de seu membro inferior e sentiu uma grossa camada de gesso a cobri-la. – O pior foi… O pior foi quando – seu próprio choro interrompeu-a. Márcio lembrou-se do que havia sonhado no dia que tentara Sara a voltar para si. Não foi um sonho. Ele havia se recordado do acidente que o deixara naquele estado. A cena do choque brutal entre o carro de bombeiros e a ambulância que o levava era agonizante demais para aquela mulher; não conseguia falar daquilo formalmente. – Não te preocupes – consolou ele. – Já me lembrei de tudo. – Como? – perguntou espantada. – Já me lembrei de tudo. Um bando de marginais estava a ser perseguido às altas horas da madrugada pela polícia. Eu estava na rua… Acho que eles me confundiram com um dos policiais e alvejaram-me…

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– Oh! Meu Deus! Quer dizer que a tua memória não sofreu tanto assim. Do que mais te lembras? – perguntou empolgada, enquanto cuidava de uma grande laceração que ele tinha muito perto dos olhos. – Lembro do meu filho. Bruno! Onde é que ele está? – Com os teus pais… Ele está bem. Não te preocupes. E o que mais? – inquiriu ansiosa, ao ignorar o facto de ele ter dito «meu filho» e não «nosso filho». – Lembro-me das conversas que tive com os meus amigos. Como é que eles estão? – Estão todos casados. E tinhas razão, o Alfredo foi o primeiro. – Eu sabia – disse sorrindo. – Quer dizer que sou o único solteiro? Eles devem estar a rir-se de mim, não? Estas últimas perguntas quase soltaram lágrimas do rosto da mulher. – Márcio – disse, ao terminar de cuidar da laceração –, não te lembras, querido? – Do quê? – perguntou, ao sorrir. – Tu e… – interrompeu-se, ao reparar em sua mão. Raios! Estava vazia. Devia tê-lo esquecido no quarto de banho. – Eu e? – Nada. Continua… As pessoas esquecem-se.

* Após ter efectuado alguns exames de rotina em seu corpo, a mulher abandonou a sala de Márcio Nassembe. Estava triste. Contudo, aquela situação havia suscitado em sua mente uma ideia mirabolante. O único inconveniente seria a falta de cooperação dos outros trabalhadores da clínica, principalmente de Mery Nkodia e Helena Bundi. Por isso, resolveu informá-las indirectamente sobre seu plano. – Mery e Helena, podem vir a até aqui, por favor? – pediu ela, ao reparar que elas conversavam com outras pessoas. – O que foi, Doutora? – perguntou Helena. – É alguma coisa sobre o Márcio. – É. Mas não é nada sobre a saúde dele. Quero vos pedir um favor. Não lhe contem nada, absolutamente nada, sobre mim. Tudo relativo à Doutora aqui tem de ser restrito para ele. – Porquê? – perguntou Helena. – Quero estimular a mente dele. Quero que ele a parte responsável por sua memória seja exercitada… – Quer que ele se lembre das coisas por si mesmo – resumiu Mery. – Exactamente – concordou a mulher. – E se ele perguntar alguma coisa sobre a Doutora? – inquiriu Mery. – Não podemos mentir. – Não estou a pedir que mintam. Peço-vos que omitam. – Qual a diferença? – desdenhou Mery. – Mentes quando das informações falsas; omites quando não dás nenhuma informação, nem verdadeira, nem falsa – explicou a mulher seriamente. – Se, mas só se, ele perguntar, podem responder-lhe. Podem fazer-me esse favor? As duas concordaram com o olhar e com a cabeça.

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– Doutora! – gritou um enfermeiro do outro lado, dirigindo-se apressadamente na direcção delas. – Precisamos da sua ajuda na outra sala. Um miúdo de três anos acaba de chegar com um garfo colado à cabeça. – Helena, o Márcio quer falar contigo. Mery, pega o anel que deixei no quanto de banho e vem ter comigo – disse de forma rápida imperativa, ao acompanhar os apressados passos de retirada do enfermeiro.

* – Ei! Estou de volta – disse Helena, ao entrar para o quarto depois de quase uma hora desde que a informação de que aquele homem queria falar com ela lhe fora dada. Teve de parar antes em outros quartos para assistir a outros pacientes. Mas agora estava aí, olhando para seu amigo que havia estado em estado vegetativo há alguns meses atrás. Era miraculoso ele estar vivo. Sua memória não era mesma. Não se lembrava das coisas mais recentes. Tudo que se lembrava era de um passado relativamente distante. Por isso, ela precisava ter tento para não vazar informações que lhe pareceriam absurdas, principalmente por causa do pedido que sua chefe lhe havia feito. Antes de voltar a falar, respirou fundo. – Queres falar comigo? – Sim – respondeu ele com sorriso fingido. – A Gabriela me disse que os meus amigos estão todos casados. Quando é que isso aconteceu. Até onde me lembro, o Mendes está triste por não ter ficado com a Zélia, o Walter, o Alfredo e o Jacinto não têm ninguém… – Márcio – interrompeu educadamente. – Estas coisas de que falas aconteceram há dez anos atrás. Ele sentiu-se tonto. Antes de se tornar audível, sua mente deu sustento ao comentário de Helena por passar rapidamente uma das mensagens de texto que enviara à Sara: «Amanhã será um dia especial: farei vinte e dois anos e também um discurso na Casa de Deus. Obs: Estou a ler o teu poema «Visita inesperada». Estou a pensar seriamente em te convidar para sair.» – Vinte e dois anos – tugiu ele em tom de surpresa. – É tão estranho… – Uma parte de teu cérebro… – Não! Não estou interessado em explicações da ciência. Quero apenas saber coisas sobre a minha vida que não necessitam de estudo algum. Quero acontecimentos… – Pareces a Doutora Gabriela a falar… – O quê? – Nada. Quais são as tuas perguntas? Não posso ficar aqui a te contar tudo que aconteceu há dez anos – gracejou. – Também vou querer saber o que aconteceu nestes dez anos. Mas, por enquanto, diz-me: Como está a Sara? Helena ficou constrangida. Seus grandes olhos castanhos não conseguiram esconder o quão espantada estava. Como podia ele perguntar por aquela mulher depois de tanto tempo separados? Havia se esquecido completamente de tudo que acontecera com ela? – Ela está bem… bem casada. Tem três filhos maravilhosos. Márcio passou a língua por cima de seus dentes antes de continuar com o inquérito. – Eu não matei o namorado dela? – gracejou. – Sou mesmo um rato. E tenho recebido visitas dela?

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– Algumas vezes. Ela vem sempre com ele. – Porquê? Tem medo de me fazer alguma malícia? – Nem com a pancada na cabeça melhoras – disse, ao sorrir. – Falando sobre isso, o que aconteceu aos outros homens que estavam comigo na ambulância comigo? – Dois deles não aguentaram. O motorista está bom. Saiu daqui há alguns dias. O homem que conduzia o carro de bombeiros perdeu o emprego… – Porquê? Excedeu ao número de faltas consecutivas previstas pela lei? – perguntou com graça. – Não. Foi linchado. As pessoas que viram o acidente foram contra o carro e lhes deram uma enxurrada de pauladas… – As pessoas são más. Pôr-se no lugar de Deus é a pior coisa que uma criatura Dele pode fazer. É o mesmo que seguir o exemplo do Diabo: ser um ladrão. Deus já disse que cada um pagará por sua acção, não importa quanto tempo demore. Porque nos adiantarmos a Ele? Ele não é homem para que se pense que não cumprirá com o que prometeu… – Essa é a tua, e a minha, forma de pensar. Mesmo sendo a mais pura verdade, muitas dessas pessoas não sabem disso, e se sabem, naquele momento esquecem. Não! Não estou a tentar defendê-las. Estou a apenas a falar sobre como é que elas provavelmente vêm as coisas. – «Provavelmente» … Isto me lembra a Abigail… – Tu não queres falar sobre ela, pois não? – Porque não? – Depois da asneira que ela fez contigo… – «Estou só a falar como é que elas provavelmente vêm as coisas.» Podes tentar fazer isso com ela? – Posso. Mas não vai deixar de ser uma asneira. – 0K. Ela estava com vinte e cinco anos na altura. Antes de lhe ter contado sobre a minha provável viagem, que ela entendeu como exequível, ela era a mulher mais segura do mundo. Chegava até assustar de tanta segurança. Depois de lhe contado, aquilo deve ter feito um grande estrago em seus sentimentos e pensamentos. Quando depois lhe contei sobre a história de a bolsa não estar garantida por não ter pagado nada, aquilo não lhe convenceu. Era como se estivesse a dizer que não iria por causa dela. – E não era bom? Que mulher não adoraria que um homem desistisse de algo importante por causa dela? – Talvez uma mulher sensata. – Estás a tentar desculpá-la. – Não. «Compreender» é a palavra. Pensa comigo. Depois de eu ter lhe dito aquilo, a sua credibilidade em mim era nula. Só lhe entrava na cabeça a informação de que a viagem era um facto e que eu desistia dela por sua causa. E se um tempo depois de eu não ter aceitado a bolsa, ela visse outro? Ela provavelmente pensou muito nisso, por muitos dias, na realidade, meses. O único receio que ela tinha, e mo contou verbalmente, foi o de um dia a minha família dizer que o Márcio não tinha melhores condições de vida por se ter recusado a cursar no exterior por causa dela (como se o dinheiro significasse verdadeira vida!). Não era melhor interromper uma relação o mais cedo possível visto que o futuro da mesma parecia extremamente obscuro. Não o certo o que ela fez, mas foi assim que ela pensou… provavelmente. É como quando desejamos fazer algo que sabemos estar errado, só vemos o que nos é vantajoso. Neste caso, ela pensou que seria mais vantajoso para mim do que para ela. – Acordaste a pensar bem demais para quem perdeu partes do cérebro…

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– Verdade? – Só uns pedacinhos de nada. – Deu para entenderes o que a levou a fazer isso? – Um pouco. Mas não deixa de ser uma parva. – O importante é que entendeste. Espera! E sobre ela ser da minha família…? – Ah! Isso? Falaste com alguns familiares teus e descobriste que é uma história de afinidade muito estranha: o avô de sei lá quem era amigo íntimo do teu avô, eram como irmãos, por causa disso, os filhos de ambos se consideravam primos, e os filhos desses… essas coisas. – Entendi. E ela? Também está casada? – Casou-se mais ou menos dois anos depois da asneirada. – E a família Bundi, como é que vai? – O Mendes já está casado… – A Gabriela contou-me. – A Salomé e eu também. – Deus! E a Nassembe? – Todos casados. – Deixa-me adivinhar: menos o Narciso… – Certo. – Quantos anos tem o Bruno? – Três. – Espera! Como é que podem ter passado dez anos e o meu filho não ter crescido? – Tu não tinhas filho nenhum há dez anos atrás. – Estás a confundir-me… – Na verdade é o teu cérebro que o faz. O Bruno só apareceu muito tempo depois disso, e… – Helena – interrompeu Mery Nkodia entrar discretamente –, a Doutora precisa de ti. – Já vou. – Então, como é que vai isso, senhor Ressuscitado? – perguntou Mery após a saída da colega. – Estou com as ideias misturadas. – Não te preocupes. Isso passa. – Como é que está o teu irmão? – O Alfredo? Está bem… casado. – Porque é que vocês só falam em casamento? E sempre da mesma forma? – Os amigos imitam os hábitos uns dos outros. – Então também estás casada. Toda a família Nkodia está casada! Isso é o caos – gracejou. – Sabes alguma coisa sobre o que fiz depois de ter descoberto que a Sara queria voltar para mim no tempo em que fui lhe contar que estava com a Abigail? – Não me lembro muito bem. Mas tentaste voltar com ela, mesmo sabendo que já tinha alguém. – Sou mau, não? – Não sei. Mas tu só tentaste isso por havias perdido a Abigail; se estivesses com alguém, nem sequer terias pensado nisso. Márcio ficou admirado com aquele comentário. Mery Nkodia havia resumido da melhor forma possível aquela abominável acção dele. «Sofrimento por sofrimento», havia dito isso quando Tatiana lhe contara sobre os angustiantes momentos pelos quais

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Sara Chele Bernardo passara. A única forma lógica vista por sua mente calculista foi a de pagar por sofrer mesma forma – sofrer uma flagrante e fria rejeição. – E depois pediste para ela voltar para ti depois da Telma te ter dito que a relação dela ia muito bem – continuou Mery. – Claro que ela diria que não. Qualquer pessoa com um pouco de moral o faria. E sabias que este teu pedido não seria aceite. Insististe apenas para diminuíres a dor que sentiste ao saber que ela havia sofrido ao tomar conhecimento que estavas com outra. – Podes parar com isso? O resgate foi pago – brincou. – Já não lhe devo nada. – Agora posso dizê-lo: Tu és mau – disse com graça. – Mas foi bom para ti, aprendeste a não ser precipitado. – Precipitado? Não, não, não. Não precisas de comentar nada. Tens a tua ideia sobre o significado desta palavra, não te vou contrariar. – Bem, tenho de ir. O trabalho aqui nunca pára. Quando tiver uma brecha voltarei aqui para continuarmos. – 0K. Podias trazer comida da próxima vez, não achas? – Verei o que posso fazer, senhor Apetite.

* Já eram vinte e duas horas. Antes disso, o almoço e o jantar que lhe foram entregues foram engolidos com alguma dificuldade. Sua boca e sua garganta tinham alguma dificuldade em digeri-los e sua cabeça doía quando triturava os alimentos. Ao olhar para um seus braços, viu uma estranha mancha negra e deduziu logicamente que anteriormente era alimentado de forma intravenosa. Quando seus olhos já estavam parcialmente ébrios de sono, uma mulher entrou. – Não durmas ainda – disse ela. – Porquê? Vais operar-me agora? – Não sejas rude. – Antes de voltar para casa, leio sempre um dos poemas que me deste. Queres ouvir um? – Antes de acordar, eu sonhava sempre com estes poemas. Foram eles que me fizeram lembrar de muita coisa. – Eu sei. Usando uma das máquinas aqui, pude ver que tua a actividade cerebral aumentava grande mente nas partes que achávamos mortas sempre que eu lia para ti. És realmente apaixonado pela palavra escrita. Chamei a isso «paixão literária». – Obrigado por seres tão atenciosa. – Não tens de quê. Então, queres ouvir? – Para quem escrevi este? – Para mim. – 0K. Linda como o Universo Bronzeada com o sol Vestida com o luar Vinhas calçada de estrelas Para me amar Momentos universais foram desenrolando-se

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Seguidos por beijos galaxiais A tua corroa de saturno – Era o que mais me fascinava Com o umbigo de Neptuno – A minha face se embriagava Lembras-te de quando vinhas Carregando a luz da noite nos teus lábios Com um olhar sereno? Aqueles dias tatuaram meu coração Teus olhos – Marte e Júpiter – Faziam correr de novo o amor em minhas veias; A minha ideia era de sempre te ter Mas às vezes me perguntava: «Será que me odeias?» Até hoje continuo te amando Mesmo que o que mais gostes É estar na Via Láctea descansando Está chegando o dia Em que te oferecerei jasmim E tu serás tão linda e toda só para mim Sem dizer qualquer outra palavra, a mulher abandonou o quarto, deixando Márcio a pensar por vários minutos sobre quando e porque escrevera aquele poema para ela. Depois caiu no sono. – É esse o miúdo que disseste ser um dos teus três pretendentes? – perguntou de forma zombeteira um rapaz apontando para Márcio. A rapariga concordou com o olhar. Márcio reconheceu-a prontamente: era Gabriela Velosa Luvana. Mas o seu aspecto era o de uma menina, uma menina de mais ou menos catorze anos. Seus olhos percorreram o local em que se encontravam – era uma escola, e estava cheia de adolescentes. Antes que pudesse dizer algo a ela, o rapaz pegou-a pela mão e entraram numa das salas. Embora tivesse ficado parcialmente triste por vê-la a andar com outro, alegrou-se por saber que aquela era a primeira vez em três anos que ouvia que ela também pensava nele de forma romântica. Desde que se apaixonara por ela aos onze anos apenas o seu cintilante olhar e sua forma de meiga falar com ele lhe mostravam algum interesse para além da amizade. Mas agora, agora Márcio tinha uma confirmação verbal! Para interromper a construção de seus castelos aéreos, um de seus colegas avisou-o que um dos professores que dariam o teste naquele dia já se dirigia para a sala. Márcio correu e acomodou-se em sua carteira. Os enunciados foram distribuídos. Fez uma breve oração antes de começar a resolver as questões. Em menos de uma hora, resolveu aquela prova de História e saiu apressadamente. Foi até a janela da sala onde Gabriela se encontrava e discretamente ajudou-a resolver partes do teste que não sabia. Aquela era uma acção que ele mesmo reprovava – Deus odeia a mentira e o roubo, Márcio sabia disso. Havia se deixado cegar por sua paixão pueril e ignorado alguns princípios que dia após dia ouvia na Casa de Deus. Sua consciência pareceu perdoar103


lhe, mas avisou que, se cometia deslizes como aquele por causa de uma rapariga, era porque sua paixão por ela era mais forte que o amor que tinha pelo Soberano – e isso era a pior coisa que se podia sentir. – Estás de volta – disse seu sósia, ao pousar sua mão sobre o ombro dele –, só que muito mais jovem. Achaste a poção da juventude? – Como assim? – Vem comigo. Enquanto andavam, o cenário transformou-se num quarto de espelhos. Márcio olhou para si relativamente surpreso. Ao mesmo tempo encantou-se com aquela imagem. Via um rapaz de treze anos de idade ao lado de um homem de trinta e dois. Ele era o rapaz e seu sósia, o homem. Inacreditável – eram a mesma pessoa, mas em diferentes faixas etárias. – Como é que está o mundo aí fora? – perguntou o sósia. – Não era suposto desapareceres depois de eu acordar no hospital? – Podes viver sem a tua mente? – Não é isso que quero dizer. A minha mente devia deixar de mostrar alucinações… – Isso é um sonho, podes ver tudo e mais qualquer coisa. – Não estás a entender… – Claro que estou – falou seriamente. – A tua mente está com problemas. O acidente deixou num caos. É necessário muito trabalho para que ela volte a estar como antes. É a explicação mais simples que te posso dar. – A Mery, a Helena e a Gabriela disseram-me que as lembranças que tenho são de uma década atrás. – Agora temos de recuperar o que aconteceu durante estes dez anos. – Estavas errado. – Sobre? – Eu amar a mulher do hospital. Nunca gostei da Gabriela. – Acabas de te lembrar que te apaixonaste por ela quando tinhas onze anos, malandreco – disse, ao passar os dedos de forma festiva na cabeça do rapaz. – Pode ser. E depois? Não quer dizer que eu a ame. Se eu tinha vinte e dois anos na altura, como é que posso me lembrar do Bruno? Eu fiquei com aquela mulher aos vinte e sete. – Não sei… – A Helena disse que perdi partes de meu cérebro. Isso deve ter afectado a minha memória. Meu Deus! E se perdi tudo sobre esses dez anos? – A Gabriela ajuda-te a lembrar – disse o sósia, ao desaparecer. – Muito bom dia – cumprimentou Gabriela depois dele ter acordado. – Bom dia. Como é que vocês faziam para me pôr limpo? – Disseste? – Como é que vocês faziam para eu não cheirar a suor de sete meses? – Eu te lavava – respondeu divertida. – Tens advogado? – Para? – Vou processar-te por assédio. – Ah! Então vais ter de pedir ao teu que acrescente mais uma prova ao processo; está na hora do teu banho. – Não! Prefiro matar todos os insectos do mundo com o meu odor corporal. – Não sejas tímido. Faço isso todos os dias. – Fazias. Eu não estava consciente na altura.

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– Estás com o pé engessado. As tuas mãos não têm força suficiente para te esfregares. Ser-te-ia doloroso… – 0K. Mas vais fazê-lo com os olhos vendados. – E se eu esfregar em alguma ferida? – Se o fazes há sete meses, já o deves conhecer de cor e salteado. – 0K, senhor Menina Envergonhada. Vamos a isso. Meia hora depois, Márcio voltou para seu quarto. – E quando é que se come aqui? – perguntou ele, ao acomodar-se. – Vou buscar – respondeu Gabriela, ao sair. Segundos depois, apareceu com uma bandeja. – Isso tudo? – perguntou ele de forma alegre. Gabriela colocou cuidadosamente a bandeja sobre o colo dele. Ao ver que tinha dificuldades em pegar o talher e levar o alimento à boca, decidiu ser prestável. – Posso dar-te de comer, ou o orgulho vai falar mais alto? – Podes. Enquanto se sentia como um bebé indefeso ao lado daquela mulher, começou a reparar atenciosamente em sua figura. Os lábios eram finos e cor-de-rosa. Os olhos castanhos eram grandes e brilhantes. Os cabelos – os cabelos acastanhadamente escuros eram compridos e sedosos. «Bem, ao menos tem bom gosto: não usa cabelos postiços», pensou. Para Márcio, toda mulher que deixasse apenas que seu cabelo natural bem cuidado ocupasse sua cabeça merecia extrema consideração. – Quando é que vou receber visitas? – perguntou ele depois de algum tempo. – Não sei. Quando elas vierem – respondeu com calma fingida. Raios! Se alguém viesse visitá-lo, todo seu plano iria por água abaixo. – Porquê? Ainda não contaste a ninguém que deixei o túmulo? – Na verdade, ainda não? – Porquê? Estás a raptar-me? – brincou. – Mais ou menos. Acho melhor te recordares de algumas coisas antes de voltares a ter contacto com os teus familiares… e os teus amigos. – Se me encontrasse já com eles, acho que isso aceleraria o processo. – Márcio, há coisas que… há pessoas muito importantes para ti de que não te lembras. E se elas aparecessem aqui e vissem que tu não as reconheces? Como é que elas se sentiriam? – Elas sabem que sofri um acidente… – Está bem, está bem… Dá-me um prazo. – Como? – Dá-me um prazo. Se até ao fim da mesma parte da tua memória não for recuperada, vamos usar a presença deles como método alternativo. – Eles estão a sofrer. Ainda pensam que estou… – Vamos fazer-lhes uma surpresa. Não é disto que gostas? – Sabes que não me podes convencer usando os meus gostos como armas. – Desculpa-me – disse, ao pegar-lhe a mão. – Dá-me um prazo. – Duas semanas – disse, ao pensar que poderia vir a ter as mesmas alucinações que tivera em seus sonhos. O melhor seria garantir que sua mente estava sã antes de enfrentar o resto do mundo. – Está bem assim? – Estava a pensar em uma, e tu me dás duas? – Presunçosa. E se alguém vier me visitar por acaso? – Isso sim pode ser um problema. Esperemos que ninguém o faça.

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– O plano é teu. Serás a única culpada se falhar. Acho que a Helena e a Mery já devem ter contado a alguém. – Falei com elas ontem. Está tudo controlado. Vamos deixá-los a pensar que continuas inconsciente por mais duas semanas. Aproveitaremos esse tempo para garantir que o teu quadro clínico está estabilizado. – Este lugar é muito distante da casa dos meus pais. – Se é! Estamos nas profundezas do Futungo. – Como se chama esta clínica? – G.N. – Nunca ouvi falar. – Veio a existência durante os dez anos de que não te lembras. – Tens aí uma foto do Bruno – Tenho sim – disse ela, ao vasculhar rapidamente sua bolsa. – Está aqui. – Está um homem! E quem é a menininha ao lado dele? A namorada? – disse com graça. – Ele tem três anos e ela, um. Seriam processados por casamento precoce e incesto. – Porquê? São primos. Gabriela segurou seus sentimentos para não esvair-se em lágrimas. Como é que ele não se lembrava dela. – Não. São irmãos – respondeu com voz trémula. – Então é tua filha. Como se chama? Ela ficou paralisada por alguns instantes. – Gaílsa. – Lindo nome. E estás com o pai dela? – Gabriela, precisamos de ti – disse um homem corpulento de bata branca. Pela maneira informal que ele se dirigira a ela e olhar encantado que Gabriela lhe deitou em seguida, Márcio deduziu ser ele o pai da menina. Melhor para ele – não tinha de se culpar por ter caído duas vezes na tentação de se envolver sexualmente com ela. – Volto quando puder – disse ela antes de desaparecer de seu campo de visão. As pessoas são ocupadas.

* Passaram-se horas. Como na noite anterior, Gabriela voltou para ler um poema de boa noite. – Sem sono? – Estava à espera de ti. – Sabias que eu viria? – Habituei-me a dormir ouvindo o que escrevi. Quando é que te dei estes poemas? – Há quatro anos atrás. – E porque não lês os que escrevi mais recentemente. – Seria bom, se mos tivesses dado. – 0K. Quero perguntar-te algo. – Força! – Não, fica para outra altura.

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– Tu é que sabes. – Tens aí algum outro poema que eu tenha escrito para a Sara? – perguntou, ao deduzir que ela leria mais um inspirado nela mesma. – Sobrou apenas um. – 0K. Pode ser. Adeus, Gabriela (Olá, Sara) Márcio: Tua pele sedosa não cheguei a acariciar Tuas mãos não percorreram meu rosto Minha boca não confirmou o sabor da tua Não cheguei a te abraçar Não cheguei a ouvir: «Márcio, é de ti que eu gosto» Minha voz foi capaz de te pôr na lua? Espera, Já não é tempo de te fazer perguntas Antes que a Sara fique uma fera Vou me despedir de ti Espero que as lágrimas não sejam muitas Juntas cresceram as nossas almas Me apaixonei apenas por ti E acho que também não te apaixonaste por outro Mas nunca te pronunciaste Em relação aos teus sentimentos Eras dura, fria, fingida, reservada Isso me causava tormento Eu sempre dei bandeiras Sobre o que enchia meu coração Fogo, desejo, amor, nada de jogos Tu tinhas sempre um jeito De me pôr fora de acção Agora não vou ter medo De te enviar esta mensagem Em que peço para nos encontrarmos Para eu me despedir de ti Adeus, Gabriela Não está a ser fácil dizer isso mas Adeus, Gabriela Pus o meu amor por ti Em stand bypor muito tempo Esperei demais por ti Mas não me arrependo De deixar as letras subirem Do filme deste namoro que foi Vivido em silêncio Adeus, Gabriela Adeus, Gabriela

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Gabriela (ao telefone): Oi, Márcio Recebi a tua mensagem Que história é essa De estarem a te roubar de mim? Nunca te dei motivos para pensares que te amo E se dei Podes atirá-los à uma barragem Hidroeléctrica Perdoa-me por ter feito isso Desculpa a minha inocência Seja feliz com ela Tire de teu coração a minha presença Márcio: Obrigado, miúda Assim me deixas mais aliviado Estava a me sentir um adúltero Mesmo contigo não sendo casado Boa noite Dorme bem Tenhas sonhos cor-de-rosa Não boicote Mas nenhuma Paixão. Gabriela, força! Alô, minha Chéldia? Já não vou perguntar o teu estado Porque sei que estás bem Olha, Sara, O que acabei de fazer agora Você nem tem noção de como me doeu Mas saiba que já não me pesa a consciência Quando digo: Olá, Sara, Seja bem-vinda ao meu coração Não precisas fechar a porta depois de entrar Serás a única, a amada Não há porque duvidar, Vacilar ou pensar em me trocar Sou todo teu Versão limitada do Romeu Só para ti Teu baby De noite e de dia Olá, Sara Olá, Sara Sara (ao telefone): No momento

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Me sinto um pouco encabulada Ao falar contigo Mas não te preocupes Isso passará no domingo Vou te confessar o meu sentimento puro Vais ficar a saber finalmente Qual será o nosso futuro Márcio: Obrigado, princesa Estou com uma forte dor de cabeça Por causa do que já te disse Por favor, No domingo apareça Sei que será fixe Estou decidido a ficar contigo Sem resmungos Sem queixas Não te vou magoar O sindicato do amor não me deixará Aqueles versos ficaram a gravitar como brasas em volta da mente de Márcio. Permaneceu calado por alguns segundos. Gabriela ficou a olhar para ele de forma perscrutante. Seria possível que aquele poema lhe recordasse do que sentia por ela? – É por isso que não gosto de ti – disse, ao fixá-la. – Agora me lembro, sempre foste covarde. – Não – disse ela de forma defensiva. – Só achava não ser ainda o tempo certo para estarmos juntos. Não tínhamos idade suficiente. Casarias comigo com vinte e um anos? – Não sei. Não custaria nada tentar… – Para vivermos onde? Tinhas um emprego fixo? – Podíamos namorar até eu arranjar essas coisas. – Estás louco! E se houvesse um deslize e eu ficasse grávida? – Não foi isso o que aconteceu? Gabriela ficou em choque. O que queria ele dizer com aquilo? – Como assim? – perguntou assustada. – Não foi assim que o Bruno veio ao mundo? – Vamos embora? – interrompeu o mesmo homem corpulento da vez passada, ao entrar sem permissão. – Vamos – disse Gabriela, ao estender-lhe a mão delgada ao lançar um olhar incendiante sobre Márcio. – Desculpa-me se disse algo errado – tugiu Márcio, minutos depois de ela ter abandonado o quarto. As pessoas são sensíveis.

* – Continuas a inibir a tua ideia de lançar um livro sobre a tua infância na Costa do Marfim? – perguntou Márcio, sem olhar para o rosto da mulher que andava com ele 109


na rua àquela hora da noite, após terem posto um saco de lixo no local em que devia ser posto. – Continuas a não querer ajudar-me? – perguntou Sara, ao exibir um sorriso vencedor. – Não é tão difícil quanto parece. Tu tens apenas de escrevê-lo. As correções ortográficas, a capa e outras coisas relativas a isso serão feitas por outras pessoas. É assim que as coisas funcionam. Se és escritora, escreves apenas. Os outros que tiraram cursos para as outras coisas farão o resto. Não queres que eles fiquem sem emprego, pois não? – Se ajuda viesse de alguém conhecido seria melhor… – Também ando ocupado com os meus livros. E não sou eu quem os corrige. É o Narciso quem faz isso. Estás é a querer a minha companhia. – E depois? – Não quero morrer tão cedo. Para o teu marido conversar com um homem também é infidelidade conjugal. – Estás a exagerar. – Apraz-me fazê-lo – respondeu com uma vénia, esta acção fez Sara Chele Bernardo sorrir. – Bem, estamos de volta – disse, ao dar proridade para que ele abrisse a porta. Márcio conteve-se por alguns instantes. Olhou de forma examinadora para a casa – era a casa onde se encontrava com Abigail. Rapidamente concluiu que estava de volta ao mundo dos sonhos. Empurrou a porta e deixou Sara entrar na sua frente. Da janela dava para ver um casal conversando – eram Gabriela e o homem corpulento que vira por duas vezes no hospital. A primeira parecia ter o ventre relativamente sobressaído – parecia grávida. – Entramos? – perguntou Sara. – Vamos lavar as mãos primeiro. Minutos depois de terem realizado o seu intento, ouviu-se um grito. Márcio e Sara correram desesperadamente para dentro da casa. – O que foi? – perguntou Márcio parcialmente sem fôlego, ao olhar Gabriela com as duas mãos a segurar a enorme barriga. – Acho que ela vai nascer hoje – disse Gabriela, ao segurar a mão do homem corpulento. – Liga para o vosso hospital, Rogério! – imperou Márcio ao homem corpulento. Enquanto Rogério cumpria a ordem dada, Márcio olhou para a mão esquerda dele e mão esquerda de Gabriela – ambas tinham um anel na no dedo indicador. Eram casados? Só podiam ser casados! Márcio lembrou-se da vez em que encontrara Bruno e Gabriela de vestido de noiva. Então aquela não era a casa de Abigail. Era a casa de Gabriela e Rogério. – Vai ver quem é, Márcio – disse Sara, ao ouvir uma buzina do lado de fora da casa, fazendo com que os pensamentos dele fossem interrrompidos. Ele correu. Segundos depois, entrou ofegante para a sala e pôs Gabriela no colo. – É a Abigail. Já não temos tempo para esperar pela ambulância do hospital. Ela está aí fora com o carro dela. Com a ajuda de Rogério, alcançaram rapidamente o auto. – O que foi? Ela está a ter o bebé? – perguntou Abigail, assustada. – Sim – respondeu Sara. – Abre a porta. – Já tinhas ido. Voltaste para? – perguntou Rogério sentado no banco de trás ao lado de Gabriela e Márcio depois do auto estar a andar por alguns minutos.

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– Esqueci-me das chaves de casa. Deixei o Aníbal e os miúdos no quintal e voltei para pegá-las – respondeu Abigail. – A ideia de dar este almoço entre as nssas famílias foi boa – continuou Rogério sem qualquer conexão com o assunto anterior. – Foi ideia do Márcio – respondeu Gabriela ofegante. – Finalmente teve uma ideia que o fizesse gastar algum dinheiro. – Chiu! Não precisas de falar – dissse Rogério pousando-lhe a mão na testa. – Poupe as energias. – Acho que não será possível. As bolsas rebentaram. – Estamos a alguns quilómetros de metros do hospital. Com esse engarrafamento, nem a ambulância nem nós chegaremos a tempo. Vou descer para pegar alguns materiais. – Faz isso, amigo! – disse Márcio assustado. – Voa! – Acho que ele não vai chegar a tempo – disse Gabriela totalmente molhada com o suor que se precipitava de seu rosto. – Como é que isso foi acontecer. Só tem sete meses ainda. – Não se pode prever tudo, amiga – disse Abigail ao descer e tirar o casaco que tinha vestido e estendê-lo sobre o chão. Sara e Márcio fizeram o mesmo com suas as roupas. Gabriela ficou deitada com a cabeça sobre o colo de Márcio com os joelhos apontados para o céu. Sara e Abigail posicionaram-se convenientemente para o lado em que a pequena criança viria. Estafantes minutos depois, ouvi-se o choro míudo de um nascituro – a criança nascera viva! E era linda. Os cabelos eram lisos e muito escuros. Os olhos brilhavam ao tom da lua. Os quatro olhavam extasiados para ela no colo da mãe. – Acho que vou ter de lhe trocar de nome – disse Gabriela. – Que nme darás agora – perguntou Márcio, ao tocar a testa da menina. – Vou dar a junção dos vossos três nomes. Vou chamar-lhe… Márcia Gaílsa. – Hora de acordar, menino – disse Mery ao abrir a janela do quarto de hospital. – Bom dia. – Bom dia, destruidora de sonhos. – Estavas a sonhar com o quê? – perguntou cheia de curiosidade. – Com o dia que Márcia Gaílsa veio ao mundo. Agora entendo porque a Gasbriela ficou triste por não me ter lembrado da filha dela. Foi um dia marcante demais para ser esquecido. – A Doutora vai gostar de saber disso… – Vou gostar de saber o quê? – perguntou Gabriela, ao entrar para o quarto. – Bom dia, Mery. Bom dia, Márcio. – Bom dia, Doutora – respondeu Mery, ao abandonar o quarto. – Bom dia, Gabriela - respondeu Márcio. – Lembrei-me do dia em que a Gaílsa nasceu. – A sério?! E? – Só lhe deste o nome de três pessoas. Tu também estavas lá. – Não te preocupes com isso. Em casa ela é chamada de Briell, como a mãe. Não te lembraste de mais nada? – Não. Espero que me desculpes por me ter esquecido disso e… Acho que fui bruto contigo ontem. – Não te preocupes. O problema não é teu. É culpa do acidente. – Podes me dizer quando é que eu escrevi o poema Linda como o Universo?

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– Estavas com dezasseis anos na altura. Porquê? – Curiosidade. E o Adeus Gabriela (Olá, Nádia)? – Estavas com vinte. Querias provar a Sara que esquecerias qualquer mulher se ela decidisse ficar contigo. Como eu era a mais perigosa… – «Perigosa»? – Tinhas dito a ela que podias livrar-te de qualquer mulher, mas não saberias o que fazer caso voltasses a te encontrar comigo. Há três anos que não me vias… – Então eu gostava mesmo de ti? Porque não me lembrei disso nos meus sonhos? – Que sonhos? – Um género de flashes. Tudo o que lias para mim enquanto estava com alguns sentidos desligados desencadeava uma enxurrada de lembranças na minha mente. – Já me tinhas dito isso. Talvez porque a raiva que sentias de mim naquele tempo inibiu qualquer sentimento benigno que tivesses por mim. Preciso de te fazer inúmeros exames hoje. – Vai ser um dia cansativo então? – Prometo que te vais divertir. – O Rogério não se vai importar? – O Rogério? Porquê? És meu paciente. Além do mais, eu sou a dona do hospital… – Por isso é que és tu quem me dá banho? – Como assim? – Não sei muito sobre hospitais, mas não deviam ser as enfermeiras a fazer isso? – Queres que eu chame uma delas? – Não! Está bem assim. O que aconteceu depois da Márcia Gaílsa ter nascido? O Rogério chegou com ajuda? Ela veio ao mundo prematuramente… e era ao ar livre. Precisava de uma incubadora… – Ela está bem até agora não? O Rogério chegou com um grande grupo de médicos minutos depois – disse ela o fazê-lo sentar-se na cadeira de rodas. – As minhas mãos… Quando é que elas vão ficar boas? – perguntou com aura de tristeza. – Já chamei um ortopedista. Não são só as tuas mãos. A tua perna, as tuas costelas. Foste pisado por uma multidão, lembraste? – Sem falar da brutalidade do outro acidente… – Não te preocupes. O pior já passou. Vais ficar bom – consolou, ao saírem do quarto. – Como podes ter tanta certeza? – Sou eu quem está a tomar conta de ti. – E Deus? Esqueces-te dele? – perguntou, ao reparar nas inúmeras pessoas que iam e viam ao longo do corredor. – Não, não me esqueço. Já tens esta informação na tua mente. Não preciso de te lembrar que o que acontece se deve a acção do poder ou a permissão Dele. Estaria a ser chata se o fizesse. Mencionei apenas a mim para… – Me dar confiança e para mostrares que estou entregue em boas mãos – concluiu ao sentir as dedos dela entre seus ombros e a cadeira de rodas. – Doutora – interrompeu uma voz masculina –, viu a Helena? Precisamos dela no Bloco Operatório. – Ela já está lá há quatro minutos, Doutor Rogério – gritou Mery, ao passar apressadamente com alguns balões de soro.

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Márcio sentiu-se intimidado pelo olhar selvagem lançado por Rogério segundos antes deste endireitar as luvas e a máscara que trazia nas partes supostas de seu corpo neflim e se dirigir para a sala de operações. – O Rogério quer dar cabo de mim. – Está a ser pesado para ele olhar para ti. – Porquê? – Não te lembras do que aconteceu? Parva! Como podias lembrar-te? É um assunto delicado. Falaremos dele noutra altura. – 0K. Espera! Se era de noite, como é que podia haver engarrafamento na via? – Estás a falar de…? – O dia em que a Márcia Gaílsa nasceu. Como era possível existir trânsito àquela hora da noite? – Sabes como é que são as estradas alcatroadas aqui. Estão sempre a ser destruídas e arranjadas a qualquer hora do dia. – «Se se pode lucrar com isso…», acho que assim que eles pensam. Vais fazer-me os exames todos sozinha? – Não. Cada pessoa especilizasse numa área. Uma ou outra tem mais de uma especilidade. Embora seja uma destas, vamos falar com alguém que lida com isso todos os dias. É uma amiga nossa. Pedi-lhe para guardar segredo. Ninguém pode saber do teu novo estado por enquanto… – Não precisas de me lembrar disso… – 0K. Estamos a nos dirigir para a sala dela neste momento. Precisamos de opiniões especializadas sobre o os danos desse traumatismo craneano – disse com graça, ao passar-lhe a mão sobre a cabeça, antes de entrarem para o elevador. – Ir de elevador não me pode causar taquicardia ou acelerar o meu ritmo sinusal? – Andaste a comer livros de Medicina nos teus sonhos? – perguntou com graça. – Mais ou menos. Sonhava com coisas estranhas. Acreditas que tinha inúmeras alucinações? – De que tipo? – A Abigail não era real. Havia sido criada por causa dos meus poemas. Havia um homem muito paracido a mim com quem eu conversava. A casa em que a Abigail vivia uma hora era dela, outra era tua. – Muito estranho. Temos realmente de ver até que ponto o teu cérebro ficou comprometido. Achei tudo muito esquisito quando me perguntaste pelo Bruno mas não te lembraste da Gaílsa… – Devo me ter esquecido de muito mais pessoas. Por exemplo, os meus irmãos e os meu amigos já devem ter filhos, não? – Todos eles – respondeu ao toque da abertura do elevador. – Não me recordo de nenhum deles. Os meus pais, como é que eles estão? – Que idade tinham eles nos teus sonhos? – Secenta e tal. – É a idade que eles têm agora. Eles estão bem. Algumas coisas de que te lembras são recentes; lembras-te de como algumas coisas eram antes do acidente. Isso é bom sinal. Não, não vai. – «Não, não vai» o quê? – Não vai te fazer mal andares de elevador. É aqui – disse, ao virar a cadeira dele para uma das portas do corredor. Márcio levantou a cabeça e olhou para a porta. Na parte superior estava escrito em letras grandes: Dr. Quilengues. – Disseste que ela era nossa amiga. Não me lembro de uma Doutora Quilengues.

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– Talvez os primeiros nomes dela te refresquem a memória: Sara Chele.

CAPÍTULO X – Estás mesmo vivo! É verdade! – exclamou a mulher de bata branca sentada na sala em que Márcio acabava de entrar com Gabriela. – Sara – disse ele com sorriso confuso, ao ver a mulher levantar-se para se aproximar dele. – Pensámos várias coisas bárbaras sobre a Doutora Gabriela quando ela nos disse que estavas bem. Parece um milagre. – Não te esqueças – lembrou Gabriela –, ninguém pode saber disso, pelo menos por enquanto. – Maldito motorista – disse Sara, ao referir-se ao condutor do carro de bombeiros que deixara Márcio naquele estado enquanto passava o dedo sobre a estranha cicatriz que ele tinha do lado esquerdo da cabeça. – Olha para o que ele te fez! – vociferou em baixo tom ao tocar-lhe na longa cicatriz que se estendia de um olho para o outro. – É incrível não teres ficado cego. – Tivemos de ser astutos para que ele não perdesse a visão – comentou Gabriela, fazendo Márcio pensar na razão de ter acordado cego na primeira vez que despertara no hospital. – Mas não é sobre o que já fizemos que viemos para falar, Sara… – Eu sei, eu sei – admitiu a outra. – Teremos de ver o estado do cortéx e, se necessário, acederemos aos lóbulo occipitall. Vamos ao trabalho. Enquanto era preparado para os exames, Márcio olhava fixamente para Sara. Era elegante. Seu tom de pele era agradavelmente negro e brilhante. Os grandes olhos castanhos-escuros não haviam mudado. Que susto levara! Aquela não era Sara Chele Bernardo. Era Sara Chele Quilengues, a irmã mais velha de Mariana Chele Quilengues, uma das mulheres que ele citara em seu poema E se eu me perder…? Até onde se lembrava, Sara Chele Quilengues foi sempre a mulher que conversava mais abertamente com ele. Suas ideias sobre os problemas da humanidade em geral se complementavam. Era como se um lesse a mente do outro. Eram os melhores amigos no que tangia a atacar um problema com subtileza e inteligência. – Ainda te recordas da Abigail? – perguntou Márcio, ao encontrar-se dentro de uma grande máquina.

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– Sim – respondeu Sara da outra sala. – Porquê? – Andei a lembrar-me de coisas sobre ela durante uns tempos. – No princípio, quando me contaste sobre ela e sobre a sua idade, fiquei revoltada no íntimo. Mas depois considerei bem o assunto e vi que saberias tirar a melhor parte daquela relação; conclui que aquilo te amadureceria ainda mais. – Sempre me compreendeste, não? E depois dela ter tomado aquela atitude esquisita, o que fizeste? – Nada. Relaxei. Ela deve ter passado noites atormentadoras por causa da tua viagem. E se depois de trocares a viagem por ela, ela visse alguém melhor? Ela deve ter pensado nisso. Acho que ela não suportaria agir com tanta insensatez. Para prevenir, tomou a acção que tomou. – É sempre agradável conversar contigo. É como se falasse comigo mesmo. – Assim me deixas com ciúmes – disse Gabriela, que estava ao lado de Sara. – Não gostas de conversar comigo. – É diferente – respondeu ele. – Cada um com o seu dom. – Tu és boa em convencer-me, ela é boa em entender-me. As pessoas têm diferenças. Somos todos diferentes, e estas diferenças nos complementam. – Pensei que o acidente lhe fosse tirar a boca grande – comentou Sara com graça. – Parece que só lhe piorou – disse Gabriela. – Vamos ter de inventar um botão no pescoço dele para o silenciar. – Não dizes nada a estes abusos, Márcio? Márcio?! Meu Deus! Ele não está bem. O ritmo cardíaco está acelerado. – Temos de descer, rápido! Márcio! Oh! Meu Deus! Márcio! As pessoas são imprevisíveis.

* – Gabriela, Gabriela, acorda – tugiu o homem deitado sobre a cama, ao tocar na cabeça dela. Ela não acordou. Ele decidiu parar de tentar despertá-la. A sensação de sentir os sedosos cabelos dela era sublime demais para ser interrompida em tão pouco tempo. Olhou para o relógio e viu que eram duas da manhã. «Impossível!», disse de si para si. «Eram mais ou menos nove horas quando entrei na sala da Sara Quilengues. E era quarta-feira. Quer dizer que já estamos na quinta-feira? O que aconteceu?» – Márcio? – tugiu Gabriela ao despertar. – Márcio! Estás bem. Obrigado, meu Deus! – O que aconteceu? – O teu coração… Perdeste os sentidos. O que aconteceu antes disso? – É estranho perguntares isso a mim, não? – Por favor, tenta lembrar. Estava tudo bem contigo. Não há registos de qualquer anomalia no teu cérebro. Talvez seja alguma recordação… – Não sei… Estava dentro daquela máquina a conversar convosco e de repente… – De repente…? – Lembrei-me do nome completo da tua filha: Márcia Gaílsa Luvana Nassembe. Eu estava contigo na conservatória a registá-la. – O que é que isso tem de grave?

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– «O que é que isso tem de grave?»! Sou teu amante? É por isso que o Rogério me olha daquela forma? Se eu fosse a ele já me teria injectado qualquer coisa venenosa. Como é que podes cuidar de mim à frente dele? Não tens princípios? Quer dizer, eu também não tenho. Afinal, sou um amigo traidor. – Márcio, pára! Pára! – vociferou com voz e expressão facial austeras. – Tu não podes dizer essas coisas. – Porquê? A verdade dói? – Não. A mentira que tem tudo para ser verdade magoa mais do que qualquer outra coisa. – O que queres dizer? – perguntou, ao olhar para os olhos marejados de Gabriela. – Essas coisas de que falas… não são verdades. São mentiras. São coisas criadas pela tua mente… – Então qual a razão dela ter o meu nome? – Vais te lembrar por ti mesmo. – É lógico pensar nisso: ela é minha filha. Tivê-mo-la antes de ficares com o Rogério? – Não te lembras bem do Rogério, pois não? É meu primo. – Teu primo? – perguntou desconcertado. – Porque razão ele me odeia? – Ele não te odeia. Só não consegue te encarar como antes. – Porquê? – O acidente que tiveste… A mulher dele estava num carro ao lado da ambulância. Ela morreu… Tu sobreviveste. – Meu Deus! Devo recordar-lhe aquele acidente com a minha presença. Ele está a sofrer. – Vai passar com o tempo… – Preciso falar com ele – disse, ao levantar-se. – Não. Deixa as coisas como estão. – Ele está a trabalhar a esta hora? – perguntou ao pegar uma muleta. – Está à minha espera aí fora. Ele está sempre pronto para me apoiar. – Ele te m filhos? – Não. A mulher dele… A mulher dele morreu grávida de três meses. – Depois de eu falar com ele, vou me matar – disse ao dirigir-se para a porta. – Não diga isso nem a brincar – disse ao pegar no braço dele. – Por favor, não causes problemas… – Não vou. O máximo que ele pode fazer é bater-me. E acho que ele não teria coragem de bater num aleijado. – Tens de lhe dar tempo para se habituar a ideia. – Que ideia. – Não sei. Disse apenas para te impedir de saíres daqui. Por favor. Márcio conteve-se. O olhar de Gabriela era hipnotizante. Tocou levemente no rosto dela. Ela era linda. Se as mulheres por quem se apaixonara anteriormente eram anjos, ela era o modelo usado para a criação delas. Se as outras eram princesas, foi por causa dela que se havia inventado a palavra. Sim, Márcio sentia que se apaixonava por aquela mulher. – Porque tens este rosto tão belo? – perguntou com olhar infantil. – Não sei. Só os meus poderiam te dar a resposta. – Porque tens cabelos tão lisos? – Para as tuas mãos encontrarem prazer. – Porque tens olhos tão mágicos?

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– Para enfeitiçar-te. – Porque tens o nariz tão pequeno? – Para saberes que só sinto o teu cheiro. – Porque tens as orelhas tão macias? – Para saberes que o que oiço de ti me agrada. – Porque tens lábios tão finos e cor-de-rosa? – perguntou, ao aproximar-se do rosto dela. – Porque… Porque… – tentava dizer, ao fechar os olhos. Antes que Gabriela pudesse impedi-lo, Márcio abriu a porta e saiu. Raios! Traída pela sedução barata de um homem com problemas de memória. Ela jurou não cair novamente no mesmo truque. Mas seria possível? Aquele homem despertava nela sentimentos tão fortes em poucos segundos que qualquer outro homem teria de levar uma década para conseguir o mesmo. Já não pensou em sair para travar aquela loucura. Rogério estava muito perto do quarto. Àquela altura já deviam ter-se visto. Márcio olhou para o homem corpulento sentado à sua frente. Sem dizer nada, começou a aproximar-se dele. Rogério levantou-se com expressão ameaçadora. Márcio, embora com a perna engessada, andou mais rápido e afogou-o no forte abraço. Os dois esvaíram-se em lágrimas. As pessoas partilham os seus sofrimentos.

* Nove horas e meia de quinta-feira. Márcio estava a ser levado por Gabriela a dois pisos acima do andar onde ele passava as noites. – Tens certeza que o elevador não teve nada que ver com aquilo de ontem? – perguntou ele, ao aproximarem-se da porta do referido. – Os desmaios só acontecem quando há pouco oxigénio no cérebro… – Para isso terias de ter desmaiado aqui, não enquanto de fazíamos os exames. – Falando nisso, o que é que diz a tomografia? – A operação que te fiz na época do acidente eliminou a probabilidade de acontecer o pior ao teu cérebro – respondeu, ao entrarem para o elevador. – O teu coração e alguns dos teus ossos é que precisam de atenção neste momento. – Foste tu quem me fez a operação? – perguntou admirado. – Como é que conseguiste fazer uma cirurgia depois de te terem dado uma notícia tão desconcertante? As tuas mãos não tremiam? – Tenho nervos de aço, além de ser a melhor nessa área. Sou boa em reprimir os meus sentimentos. A vida ensinou-me isso. – Devia haver uma lei médica a proibir que os pacientes sejam operados por alguém de sua própria família ou um amigo próximo. – Se existe, infringi-a – disse com falso cepticismo. – E fá-lo-ia outra vez. – Queres que me dêem um tiro novamente? – perguntou com graça. – Se te trouxer de volta a memória – respondeu, ao saírem do elevador. – Vamos falar com outro teu amigo. – Essa uma clínica de amigos? – De alguns. Eu sou a chefe, contracto apenas os bons. Se alguns deles são nossos amigos e familiares, quem me pode processar? Márcio olhou para escrita da porta onde haviam parado: Dr. Nankova.

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Nankova? Dos dez Nankova que conhecia, apenas um estava de mãos dadas com a Medicina. – Ricardo! – exclamou, ao entrarem para a sala e verem um homem elegante de tez muito clara, olhos verdes e cabelos escuros sentado atrás de uma secretária de madeira perfeitamente polida. – Márcio! – disse o homem, ao levantar-se rapidamente. – Só há quinze minutos atrás é que a Doutora Gabriela me disse que o paciente muito importante que era imperativo eu atender hoje és tu. Como é que estás? – A melhorar, amigo. A melhorar. E tu? – Estou a navegar em prazeres – respondeu em tom gozoso. – Disseram-me que estás com problemas de memória. Duvidei na hora! Pergunta de teste – disse em tom de desafio –: Qual é o verdadeiro nome do Bill Gates? – William Henry Gates III, foi o homem mais rico do mundo por treze anos – respondeu o outro para participar da brincadeira. – A última vez que ouvi falar dele, Gates tinha sessenta biliões de dólares em sua conta bancária. – Viu, Doutora? A memória dele está impecável. Outra pergunta, ainda do ramo da informática: Quem inventou o termo informática? – O francês Philippe Dreyfus. – Parem com isso – disse Gabriela, ao sorrir. – Pergunta-lhe se já ficou noivo alguma vez. – Nunca! – respondeu Márcio rapidamente. – Teria de ter feito primeiro um plano para dar um sumiço ao marido da Sara. – Vês? – perguntou Gabriela com expressão parcialmente séria. – Mano, os teus parafusos estão desapertados – gozou Ricardo em tom de alguém que deita a toalha ao tapete, ao abaixar-se diante dele para ver melhor o seu rosto e as suas mãos. – O que é que vocês dois querem dizer com isso? Gabriela e Ricardo entreolharam-se. Nenhuma resposta foi ouvida. – Vamos parar com isso – falou a voz feminina naquela sala. – Viemos aqui para tratar de coisas sérias. Que ideias tem para resolver o problema das mãos dele, Ricardo? – Precisamos de um Raio X primeiro. – Trouxe muitas chapas neste envelope. Entrega-lhe Márcio… por favor.

* Final da tarde de quinta-feira. Márcio estava optimista. Segundo Ricardo Nankova, o médico ortopedista do hospital em que se encontrava, seus dedos actualmente pouco funcionais tinham uma grande probabilidade de voltarem a ser como antes, erectos e operantes. Minutos depois de ter pedido uma Bíblia a Gabriela e esta ter atendido ao seu pedido, Helena entrou para o seu quarto. – Essa clínica está mais quente hoje – comentou ela, ao pousar uma bandeja ao lado dele. – Como assim? – Está cheia de casos estressantes a entrar e a sair em tão poucos segundos. Ainda há pouco, entraram dois loucos a sangrar do pescoço e da cabeça com uma mochila cheia de armas! Tivemos de chamar a polícia… sem eles saberem é claro. Esse é o trabalho mais difícil na face da Terra. – Pensei que fosse o dos advogados.

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– Continua a sonhar… – Está mesmo aquecido aqui. Diz-me, com quem a Judith está casada? Com o Victor? – Sim. – Bom para eles. Na terça-feira falei com a Gabriela sobre a nossa estupidez em termos tido o Bruno por causa da brasa da paixão. Ela ficou irritada com aquilo. Sabes porquê? – Tens de perguntar isso a ela, não achas? – disse para se desviar do assunto. – Eu devia estar dentro de uma cadeia. Como é pude cometer o mesmo erro duas vezes? – A que te referes? – Aos dois filhos que tenho com ela. Como é que me deixei levar pela carne. «A carne é fraca.» Por isso é que tem de se fazer bife com a minha? – A tua personalidade não mudou – disse, ao sorrir. – Preciso ir embora, antes que o Rogério decida despedir-me. – Ele pode fazer isso. Quem manda é a Gabriela. – Eles são primos. Os genes da chefia estão divididos. Depois falamos. Segundos depois da saída da enfermeira, Márcio voltou a sua atenção para as páginas da Bíblia. Seu interesse era saber mais sobre a Sara e a Abigail retratadas naquele livro divino. Passados vários minutos, chegou a uma conclusão. Sua vida teve uma percentagem, ainda que mínima, da vida de Abraão e Nabal. Quanto ao primeiro, a época em que perdeu Sara foi uma das piores de sua vida. Quanto ao segundo, sua esposa Abigail havia feito um enorme sacrifício para que David não acabasse com a vida dele. A Sara e a Abigail da vida de Márcio também lhe fizeram passar por coisas parecidas. Todavia, já não era época de cogitar sobre aquelas coisas. Aquelas duas mulheres estavam casadas e felizes e eram suas amigas. O importante agora era descobrir se ele realmente sentia alguma coisa por Gabriela visto que anteriormente sua consciência lhe dissera que ela era mulher que correspondia ao seu amor da forma mais humanamente conspícua. Sem se aperceber, adormeceu, embalado por seus pensamentos. – Oi! – cumprimentou uma mulher. – Queres dançar comigo? – Só se for a próxima – respondeu Márcio. – Aquela jovem aí no canto pediu primeiro. A jovem – a jovem a quem ele se referia era Gabriela. Estavam numa festa de casamento, provavelmente de um de seus amigos. Gabriela aproximava-se dele com muita pompa. O corpo esbelto estava torneado por um incrível vestido vermelho. Ela abraçou-o. Ele fez o mesmo. O perfume dela inebriou o olfacto dele. Parecia que dançavam nas nuvens. Mesmo coberta pelo sedoso tecido, Márcio podia sentir a pele de textura impecável dela com sua mão esquerda, ao passo que a mão direita sentia mais ainda aquela divina maciez ao pousar sobre seu pescoço delgado. Ela era linda demais para existir numa sociedade tão carente de beleza. Era inteligente e compreensiva. Sabia os seus limites. Sim, ela era uma mulher. Era Gabriela, a Mulher. – O que foi? – perguntou, ao despertar ao toque de Mery. – Não tocaste na sobremesa. Estás a perder o apetite? – Nem penses nisso – respondeu ao tomar rapidamente uma pêra da bandeja deixada anteriormente por Helena. – Estavas a sonhar? – Porquê?

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– As imagens da minha cabeça apareceram nesta máquina? – Estavas a sorrir com os olhos fechados. – Sim. Estava a sonhar. E nem imaginas com quem! – Com quem? – Com a chata da Gabriela. – Ei! Apenas eu tenho o direito de chamá-la assim. – Novamente: Porquê? – Ela passava a vida a querer que eu me esforce mais aqui na clínica. Sei que não faz por mal, mas não deixa de me chatear. E tu que tens para chamá-la assim? – Tudo! Ela tem um comportamento restritivo que me irrita. – Deve ser para o teu próprio bem. – Talvez se ela fosse mais aberta no que tange aos seus sentimentos, eu não teria de me apaixonar pela Sara ou outra mulher… – E como é que amadurecerias? Estes relacionamentos ajudaram-te a ser um homem melhor. E tens de concordar comigo quando digo que foi melhor assim. Não tinhas autonomia suficiente para assumir um relacionamento sério. Tinhas apenas a disposição. Ela foi mais madura em relação a ti neste sentido. Não a culpes, amigo. – Se ela fez as coisas por estas razões, então é a mais sublime das mulheres em minha vida. Mas se não… É isso! Como é que não pensei desta forma? – Que forma? – Que homem de trinta e um anos recebe uma bolsa de estudos? Até onde sei, nenhum. – De que falas? – Nos meus sonhos, eu tinha trinta e um anos… – Um ano a menos que agora. – Não interrompas. Eu tinha trinta e um anos e ganhava uma bolsa que complicou a minha relação com a Abigail. Eu devia ter achado aquilo absurdo! – Nem sempre vemos falta de lógica nos sonhos, mesmo que estes estejam repletos dela. – Quando a Sara voltou de viagem, tentei contar-lhe que queria reatar tudo, mas lhe disse que finalmente havia conseguido entrar para a faculdade. Eu entrei para a faculdade com quase vinte e dois anos, não com quase trinta e dois. – Que queres que eu diga? Que foste um autêntico nabo em não teres dado conta disso? – perguntou com graça. – As lembranças estavam tão mescladas que não me apercebi. Logo vou ter de ter uma conversa muito séria com o meu cérebro – disse em tom de gozo. – Como é que está o teu casamento? – Vai muito bem. Só agora é que pensaste em falar sobre a minha vida? – Tenha pena do João Esquecido, sim? Tens filhos? – Quatro? – Meu Deus! Isso é perigoso! Estás a pensar em dar um golpe de estado com eles? – Não gozes. A Príscila tem seis. – Não acredito em ti! – Quando eu te der uma martelada dessa cabeça e te lembrares mais rapidamente de tudo, acreditarás. – Não pode ser… a não ser que dois sejam meus… – Querias! O pai dela te partiria em dois. – A bomba atómica não foi criada por acaso; o seu real objectivo era ajudar os mais fracos a vencer os mais fortes.

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– Falas à toa. Era de criar penteados mais lindos e originais para as mulheres. – Pioraste! – exclamou, ao dar uma gargalhada. – A conversa está boa, mas tenho de ir. Já devem estar à minha procura. – Tá fixe. Bom trabalho. – Obrigada. – Não te vais ainda – disse Gabriela ao entrar com uma viola e alguns papéis na mão na companhia de Helena. – Acompanha-nos nesta loucura. – E os outros pacientes? – perguntou Mery sem perceber bem a ideia. – Temos cinquenta enfermeiros e trinta e dois doutores nesta clínica. Não serão uns míseros dez minutos da nossa ausência que a farão ruir – respondeu Gabriela, ao entregar-lhe uma das folhas. – Não te preocupes – disse Helena. – Já tratei de tudo que tinhas de tratar. – 0K. E esta folha é para. – Vamos cantar com o Márcio – explicou Gabriela ao entregar uma folha ao referido. – A Helena fará de Sara e tu serás amiga que conta ao Márcio. Eu vou tocar a viola. – «Querias voltar» – disse a voz masculina, ao contemplar o título da música no papel em sua mão. – Já escrevi esta música há muito tempo. Não sei se ainda me lembro do tom… – Não sejas desmancha-prazeres – pediu Gabriela com expressão infantil. – Nós fizemos isso um milhão de vezes quando uma de nós dava uma festa em casa. – Não me lembro... 0K, 0K. Vamos lá. Segundos depois de Gabriela ter começado a dedilhar a as cordas da viola, Márcio mergulhou com sua voz na melodia. Ontem conversei Com a tua amiga E eu não sei se ouvi bem As dicas que ela me deu Falámos um pouco Das intrigas Entre ela e alguém Que é um amigo meu Mas ela fez cair Um dilúvio de meus olhos Tempestades e tsunamis Aconteceram quando ela disse que Quando eu fui para te contar Que eu estava com outra Tu te preparavas para falar Que querias voltar Para mim Tu querias voltar Sofri quando ouvi Que querias voltar E eu que pensei Que ficaste feliz Ao saber que desisti De tentar estar contigo, miúda 121


Eu festejei Dancei, cantei De tanta alegria Até espalhei à minha família Aos meus kambas E quando tu davas bodas Pedias para eu ir com ela Se estava tudo tão bem Como é que a tua amiga vem E me diz: Tatiana: Miúdo, Quando foste lhe contar Que estavas com outra Ela se preparava pra falar Que queria voltar Pra ti Ela queria voltar Tens mesmo de ouvir Que ela queria voltar Márcio: Agora diz a verdade, moça, yeah Eu quero ouvir da tua boca Que essa tua amiga é mentirosa, yeah Eu não te fiz essa coisa Por favor me diz Sara: É verdade sim Aconteceu assim Quando vieste me contar Que estavas com outra Eu me preparava pra falar Que queria voltar Pra ti Eu queria voltar Perdeste, baby Eu queria voltar – Foi fácil ou não? – perguntou Gabriela depois de terem coberto a atmosfera com palmas. – Foi, foi fácil – respondeu ele. – Bem, agora nos vamos embora, Mery. Há mais coisas que precisam da nossa atenção – disse Helena, ao deduzir que sua chefe queria ter uma longa conversa com aquele paciente. – Lembraste-te de alguma coisa? – perguntou Gabriela ao sentar sobre a cama dele segundos depois das enfermeiras terem saído. – Escrevi esta música há dez anos atrás na época em que a Tatiana me contou isso tudo que está escrito aí.

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– E o que fizeste depois? – Tentei voltar para ela, mas bati contra o iceberg de Sara, a Segura. – E depois? – Depois… depois… – Vá lá, depois… – Não pressiones. Depois eu voltei a ter o teu número. – Como? – «O que farei quando reaver o número da Gabriela?» – Sim, este verso está no teu poema E se eu me perder…? Como é que voltaste a ter o meu número? Antes disso, como é que o perdeste? – Não sei. Simplesmente sumiu da agenda do meu telefone. Achei que tivesse sido a Sara que o apagou depois de eu ter-lhe dado o poema Adeus Gabriela (Olá Sara). Mas ela me disse que provavelmente fui eu mesmo que o apaguei de raiva – disse, ao sorrir. – O número simplesmente desapareceu. Quanto a como voltei a tê-lo… Encontrei-me contigo quando ia ver as listas sobre os testes de ingresso para a faculdade. – Continua… – Tinhas dito que também havias testado. Acho que era o curso de Gestão. – Sim. – Depois eu te pedi o teu número e tu ficaste com o meu porque o teu último telefone havia perdido… – E depois? – Nos contactávamos raramente. Tu enviavas cumprimentos para mim por meio do Edgar, visto que ele estudava perto da Universidade em que estavas. Não tinhas conseguido entrar em Gestão. Não ficámos colegas. Se bem que fiz Língua Portuguesa no período nocturno… – Estás a ir muito bem. E depois? – A Sara… A Sara começou a ligar para mim depois de algum tempo, não me lembro bem da razão. – Talvez para ter esperança de voltar para ti, caso o seu namoro terminasse. Já havias disseminado o teu vírus maligno para que o seu coração ficasse inseguro com aquela tua tentativa de ter uma conversa a sós com ela. – Queres dizer que resultou? – Tu é que tens de te lembrar disso. – Eu fiz apenas a coisa. As consequências vieram aleatoriamente… – Mas para o teu benefício. – 0K. Sou culpado de compartilhar a mesma mesa com o Tentador. Não vais ficar a culpar-me por isso toda a vida. – Não te estou a culpar. Estou a ajudar-te. – A fazer o quê? A sentir-me culpado? – Não – disse ao pousar-lhe a mão sobre o ombro. – Estou a ajudar-te a recuperar a memória. – Parece-me mais vingança. Mas está bem. Já não me lembro de mais nada. Talvez mais tarde. Gabriela…? – Sim? – Tu já chegaste a me amar alguma vez? – Porque me perguntas isso? – Nos meus sonhos, havia um clone meu que se fazia de minha consciência que dizia que és a mulher que amo e que também me ama.

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– Dê-lhe os meus agradecimentos. Mas porque precisas de palavras, se vês as minhas acções? – Porque não tens um anel no dedo como as outras? Não és casada? – Escondi-o de ti. – Porquê? Não vou matar o teu marido. – 0K – disse ela ao retirar um anel da pasta. Márcio olhou bem de perto aquele adorno brilhante. Pegou a mão dela no processo. – Este anel… Não é um anel de casado. Estás noiva? Não, não respondas. Impossível! – O quê? – Eu reconheço este anel. Fui comprá-lo com a Sandra e a Alda. Eu te dei este anel. Gabriela olhou para ele com os olhos radiando lágrimas. Ele se lembrava. Márcio se lembrava! A sua ideia de tocar aquela música que ele escrevera para a Sara, embora lhe causasse um pouco de ciúme, surtira o efeito esperado. Para confirmar o que pensava, ele passou o dedo polegar sobre a fina sobrancelha dela e perguntou: – Somos noivos?

* Final da tarde de sexta-feira. A noite passada se demonstrara reveladora. A mulher que mais desprezara no mundo de seus sonhos era, afinal, a mulher com quem estava prestes a se casar. E não seria por cortesia ou por obrigação. Desde sua adolescência que amava. Era incrível e revoltante tomar conhecimento que seu forte amor por ela se transformara em ódio em suas lembranças. Como era possível ele não ter dado conta dos sinais que evidenciavam isso – as repetidas aparições dela vestida de noiva em seus sonhos? Aquilo estava claro desde o princípio. Se não gostasse dela, porque a mencionaria no seu poema E se eu me perder…? como se ela fosse um perigo à integridade de seu amor por Sara Lídia Chele Bernardo? Amava-a – amava-a de forma superlativa. Na verdade, era a origem de seu amor. Foi ela a primeira a apresentar-se como seu complemento peculiar. Era ela o modelo de comportamento que ele procurava inconscientemente nas mulheres pelas quais se apaixonara no passado. Era ela a rainha, a rainha de seu coração. – Porque é que não me disseste nada? – perguntou Márcio minutos depois de ter sido submetido a um tratamento às mãos de Sara Quilengues. – Pensei que fosses te lembrar sozinho – respondeu Helena. – E me deixaste falar mal dela? Devias vacinar-te contra a maldade. – Ela mesma também não te contou… – Não queres assumir as culpas? – Se as tivesse… – Ontem a Mery me disse que tens nove filhos… – Então ela tem vinte e quatro! Tenho três; duas meninas e um rapaz. – Qual deles vai atacar os Estados Unidos? – gracejou. – Eles são amigos dos teus filhos. Com o sentimento terrorista que a Márcia e o Bruno têm, acho que em breve – ripostou.

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– Chateias-me. Essa coisa de estarmos noivos… Eu pedi-a mesmo em casamento…? As famílias se sentaram, alguém leu a carta e eu ficou como tolo no meio? Helena meneou a cabeça em sinal de concordância. – Duvido! – exclamou ele. – Porquê? – Essa cena é tão triste. Tão corriqueira. Não inventei algo melhor? – Caíste de pára-quedas sobre o quintal dela vestido de fato e gravata. – Sério? – Querias! Não me lembro como é que foi. Pergunte à Doutora Gabriela. – Chata… Se estamos noivos, quer dizer que teremos de nos casar e que eu concordo com isso… Irónico demais. – Porquê? – Nos meus sonhos, ela foi sempre a mais desprezada… Houve uma cena que para fugir de me casar com ela, atirei-me ao chão e fiquei a espernear e a gritar como uma criança totalmente desvairada. – Estranho – disse, ao sorrir. – O facto de pensar que ela foi o teu amor platónico por mais de quinze anos devia ter tido alguma influência nas tuas lembranças. Quanto as outras? Será que as amavas mesmo tendo esse sentimento indestrutível por ela? – Ela não estava comigo. Manda em meu coração quem está ao meu lado, não quem eu quero que esteja… – Então não as amavas. – Desculpa-me. Expressei-me mal. A coisa funciona assim, e acho que se dá do mesmo jeito em qualquer humano, queres ficar com alguém, mas este alguém não quer ficar contigo, o que fazes? – Luto com tudo que for razoável para que ele queira? – E se ainda assim ele não quiser? – Desisto. Procuro alguém que corresponda aos meus sentimentos. – E se nesta procura achares alguém assim, o que acontece com o primeiro alguém? Tu esquece-lo? – Faria os possíveis de não demonstrar qualquer sentimento romântico por ele. Procuraria apagar de uma vez por todas o que sinto por ele. – E conseguirias? – Não sei. Mas tenho certeza que enquanto estivesse com outro, o meu amor por ele permaneceria apagado. – Porquê? – Tenho princípios. Não me posso deixar governar pelos meus sentimentos, por mais fortes que eles sejam. – Mas é o que sentimento avassalador… é provavelmente o teu sentimento mais puro, o sentimento que tens pelo teu verdadeiro amor. – Por eu estar com outro, deixou de ser puro. Tornou-se algo corrompedor. Já não é certo amá-lo… ou demonstrar que o amo. – Se o teu relacionamento acabasse e ele te dissesse que agora quer ficar contigo? – Não sei… – Se te dissesse (e se te provasse!) que sempre te amou, mas achava imaturos terem de ficar juntos naquela altura? – Porque é que ele não disse isso naquela altura? – Terias aceitado isso? – Não. Provavelmente tentaria demovê-lo dessa ideia, mas…

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– Eu sei, eu sei; estamos a fugir do assunto. Por causa dos princípios que tens, só podes demonstrar amor por quem está contigo, mesmo que isso apague o que sentes por alguém que demonstrou ser a pessoa mais especial do mundo para ti… – Então fico com alguém por causa dos princípios e não por causa do verdadeiro amor? – Não! Tu agora o amas, mais do que qualquer outro homem no mundo. Eis a razão de esqueceres o amor que tinhas pelo outro… – Amor que pode reacender a qualquer momento… – Só se este com quem estás te abandonar e ele te provar que realmente te ama. – Estás a defender-te com lógica. Porquê? Era só dizeres duas ou três palavras e bastava. – Às vezes é necessário que tiremos algo das pessoas que elas mesmas já pensam, mas como não estão na situação, criaram ideias de juízes insensíveis. – Queres atingir-me? – perguntou com ar de desafio. – Não. É só a verdade. – Pareces ter razão. Mas só pareces mesmo. Talvez eu tenha dito isso porque nunca passei por uma situação igual… Tens uma forma estranha de ver as coisas. – Então a vida é estranha. Helena… esta pergunta está gravada há muito tempo: Eu vou mesmo casar? – Porquê? Tens medo? Cervantes disse: «Aquele que perde a saúde perde muito; aquele que perde um amigo perde ainda mais; mas aquele que perde a própria coragem perde tudo.» – Não, não é medo. Só acho que não me sinto preparado… por enquanto. Ainda não me lembro bem das coisas que aconteceram. E se a Gabriela não for… a Mulher? – O que te recordas sobre ela? – Que a amei muito tempo antes de existirem Saras, Príscilas ou outras em minha vida… – «Amei». O que é que sentes por ela agora? – É este o problema… Não sei. – Admiração? Paixão? Amor? – Mais do que isso – respondeu ele como se alguém lhe tivesse posto as palavras na boca. – Estás mesmo a lembrar-te das coisas. Era assim que respondias quando só namoravas com ela… Eu te perguntava se sentiste o mesmo pelas outras… – Helena, precisamos de ti – interrompeu Mery com ar de tensão. – O que foi? – perguntou a amiga. – Estão para chegar inúmeros pacientes. E um deles… – interrompeu-se ao olhar para Márcio – um deles é a Márcia Gaílsa. As pessoas ficam tensas.

* Vinte e três e dezoito. Um homem com duas bizarras cicatrizes na cabeça e no rosto pegava ao colo uma linda menina ao lado de uma mulher de bata branca. – Os olhos dela são bonitos – disse Márcio, ao passar o dedo polegar sobre a sobrancelha da filha.

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– Os genes dela copiaram bem os originais – disse Gabriela, ao olhar ternamente para ele. – Porque querias assustar a mamã e o papá – perguntou Márcio à filha. – Ela tem os mesmos problemas respiratórios que o Bruno – respondeu Gabriela. – É de família. Será que ela me reconhece? – Talvez. Ter aceitado ficar no teu colo já é bom sinal. – Quem veio com ela? – Apenas eu. Havia saído para pegá-la na casa da tua mãe. Depois de termos chegado à casa minha casa ela começou a arder em febre, depois a respiração... – Não precisas de continuar a contar. Lembro-me muito bem dessas coisas. Para além das lembranças que tenho do Bruno, a minha mãe me contou várias histórias sobre os ataques que os nove filhos dela tiveram quando crianças. – Eu tenho apenas dois. Nem imagino o trabalho enorme que ela e o teu pai tiveram. – Sem falar da angústia... O bom é que sobrevivemos todos aos atentados terroristas dos brônquios – disse, ao fazer festinhas na pequena barriga da filha. – E se alguém souber e vier para aqui? – Não vai acontecer... Estás preocupado porque...? Márcio hesitou por alguns intantes. Não sabia por onde começar. Porque aumentar mais no trabalho e na preocupação que aquela mulher tinha por ele? – Acho que sou louco – disse ele com informação vaga. – Pelas ideias que tens, é difícil ver-te a reconhecer isso apenas aos trinta e dois anos. – Não... Estou a falar a sério, Gabriela. Nos meus sonhos eu lia muitos livros sobre doença mental... Tinha alucinações... – Já fizemos estes exames com a Sara Quilengues, não? Podem ser... inconclusivos... por enquanto. Mas vamos aproveitar o tempo das duas semanas que nos restam para ver o quão estabilizado está o teu quadro clínico... – Queres dizer «o quão louco não estou» – disse de forma triste. – Eu aperto-te os parafusos – disse com voz infantil, ao imitar uma chave de fendas com os dedos sobre a cabeça dele. – Ela dormiu. – Ainda bem. Está na hora de irmos. O Bruno já deve estar a pensar que fomos raptadas por extraterrestres. – Com é que ele está? Gabriela ficou calada por alguns instantes, depois tornou-se audível. – Está num dos quartos ao lado. – Queres dizer aqui na clínica? – Sim. Porque... – interrompeu-se para pousar a filha sobre a cama em que estava sentado. – Ele podia te ver... e depois contar ao mundo todo e arredores. – Ele deve estar a dormir a esta hora. Posso vê-lo? Nem que for de longe... – Coisa que o teu filho não sabe fazer é dormir cedo. Mas... aguenta-te. Podes vê-lo quando estivermos a sair... – Espera! Ele não vai me reconhecer se eu estiver disfarçado – disse, ao encostar-se de forma viril para ela e pegar em sua bata. – Posso usar isso e uma daquelas coisas que os enfermeiros usam na cabeça. – Tu é que sabes... Saíram do quarto. Segundos depois, entraram em outro e viram Rogério sentado ao lado de um menino.

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– Ele está a dormir – disse Márcio, ao aproximar-se. – Como é que conseguiste esta maravilha? – perguntou Gabriela ao primo. – Entendo um pouco de crianças – respondeu Rogério. – O que estás fazer? – perguntou Gabriela ao ver Márcio a levantar o menino. – Eles vão dormir comigo hoje. – Márcio... O toque daquele homem sobre seus cabelos lisos e castanhos, interromperam a fala de Gabriela. Ela sentiu um pouco da temperatura da mão dele sobre sua testa. O que poderia fazer? Também eram filhos dele. – Está bem – disse ela em redenção. – Rogério, podes levar o Bruno para o quarto do Márcio? Alguns segundos depois, apenas um casal apaixonado se encontrava naquele quarto. – Queres castigar-me? – perguntou Márcio, sem saber a razão de ela ter se desfeito da presença de Rogério e Bruno. – Contrariaste-me. Eu cedi. Vais ter de dar algo em troca. – Não tenho dinheiro. Há sete meses que não trabalho. – Algo simples – disse ao retirar um fascículo de sua bolsa. – Quero te ouvir a ler para mim. – Preferia que me cobrasses uma quantia exorbitante. – Vá lá. Eu li para ti por muito tempo. – Então não és filantrópica. Ajudas para ter algo em troca. – Não cries argumentos para te esquivares. Vá lá... lê para mim. Os daquela mulher – os olhos daquela mulher eram poderosos. Márcio recusou-se a continuar na negação. – O quê? – disse ao ver a data em que tinha escrito o poema. – Eu tinha dezassete anos quando escrevi isso para ti. Não tens um mais recente? – Eu quero ouvir esse – disse, ao repetir o olhar que não admitia rejeição. – 0K – disse ao pô-la sentada junto dele e ao fechar o fascículo. – O que estás a fazer? – Não preciso de o ler. Conheço-o de cor. Não sou o que te faz mal (Sou o que te faz bem) Não sou eu… Não! Não sou eu O homem que se nega a ser teu Romeu Não sou eu O aroma flóreo que a teu nariz causa irritação Não! Não sou eu O presente desleixado que alguém te deu Não sou eu A disciplina que na escola só te causa complicação Não! Não sou eu O animal repugnante que à tua frente correu Não sou eu A emissora que nunca toca a tua canção 128


Não! Não sou eu A tristeza que este mundo te ofereceu Não sou eu O trauma que, às vezes, te leva à solidão Não! Não sou eu Esta doença enraivecedora que te apareceu Não sou eu O arder chato do sabão Não! Não sou eu A ferida emocional que te doeu Não sou eu A glândula que, às vezes, te impede de sentir paixão Não! Não sou eu A carta mal escrita que alguém te escreveu Não sou eu A pessoa que magoou o teu sensível coração Sou eu… Sim! Sou eu O perfume que aromatiza o corpo teu Sou eu O afável e lindo batom que te deixa assim Sim! Sou eu O turbante esbelto que você mereceu Sou eu O penteado que te deixa como a flor de jasmim Sim! Sou eu o bom cheiro do cozido que você concebeu Sou eu A alegria que sentes quando vês o teu jardim Sim! Sou eu A exuberante roupa que você escolheu Sou eu O creme que deixa tua pele como um belo boletim Sim! Sou eu O volume extasiante do teu corpo, sim, sou eu Sou eu O neurónio que te faz pensar em mim Sou eu A magia deste teu olhar nazireu Sou eu O homem que te amará até o fim

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CAPÍTULO XI Meiados da madrugada de sábado. Translucidamente aflito e com a ajuda de uma muleta, um homem andava rapidamente por entre o corredor de uma clínica com uma menininha ao colo. Ela parecia estar a perder os sentidos. O choro miúdo que tentava externar não era perceptível. Algumas de suas lágrimas caíam entre as mãos do homem que a carregava desesperadamente. As lágrimas – as lágrimas eram tépidas, mornas, transmitiam sofrimento. A pele – a pele estava superaquecida, a febre era alta. – Gabriela! – exclamou ao empurrar as portas de um dos quartos com violência. – Acorda! – O que foi? – perguntou ela ao descer da cama num salto pouco gracioso. – Oh! Meu Deus! Gaílsa! – Ela está tão quente – disse ao entregar filha às mãos dela. – Hiperpirexia…? – disse ao passar a mão sobre a testa da menina. – O que é isso? – inquiriu extremamente preocupado, ao acompanhar a mulher para uma outra sala. – A temperatura dela está elevadíssima – disse ao pousá-la sobre a cama para a examinar – e isso pode… oh! Deus!... pode ser letal.

* Cinco e quarenta e dois. O corpo sem vida de uma menina estava rodeado de gritos de lamento. Seus pais choravam sem consolo. As pessoas que também a conheciam faziam o mesmo nos corredores e fora da clínica. Porque morrera? Porque deixara que um ser tão alegre e inofensivo perdesse a vida? Não havia razão para tamanha crueldade – não havia razão humana para aquela crueldade. As pessoas são

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imperfeitas, e adoecem. Qual a razão? As duas primeiras pessoas no princípio da história da humanidade fizeram asneira. E isto não é história inventada. O Absoluto diz que isso aconteceu. E Ele não é um ser corrompido como os humanos para que se desconfie de suas palavras. A mulher desobedeceu à uma ordem simples por querer realizar o seu desejo de ser extremamente independente de qualquer outro ser – apenas por pensar que sua beleza era de tal forma divina que a submissão a alguém lhe impossibilitava os horizontes da grandiosidade e do glamour. O homem desobedeceu porque preferiu fazer as vontades da mulher – era ossos dos seus ossos, e o amor que tinha por ela era tão grande que suplantava o amor que tinha pelo Criador, mesmo sabendo do capacidade Deste de poder realizar qualquer acto de bondade para ele. Como criar uma outra mulher depois daquela ter morrido. O egoísmo e o amor mal direccionado venderam o mundo ao sofrimento e à desgraça. Repulsivo, não? Um bom pai diz aos seus dois filhos adultos e maduros para cuidarem das roupas deles assim como eles cuidam das suas e, por causa da ideia descabida de um amigo, decidem usar as mesmas como panos para se limpar o chão. Dois filhos adultos! Impensável… impensável. Por causa desta asneira, a filha indefesa daquele casal perdeu a vida. As doenças atacam as pessoas, e as pessoas nem sempre têm como contra-atacar. Se não fosse a forte e sustentada fé que garante que tudo isso acabará dentro em breve, a ideia de todos os humanos receberem uma granada descavilhada como presente instantâneo seria bemvinda. As pessoas revoltam-se.

* Noite do mesmo dia. Márcio e Gabriela encontravam-se no mesmo quarto que Márcia Gaílsa. A temperatura da menina havia abaixado. Agora dormia com expressão angélica. – Estás bem? – perguntou Gabriela ao ver Márcio a passar a mão repetidas vezes sobre a própria testa. – Estou a sentir uma forte dor entre as sobrancelhas. – Chama-se mesófrio… Este lugar entre as sobrancelhas…. Chama-se mesófrio – disse ao passar de forma deslizante – 0K. Se o nome fosse a cura para essas dores… – Deve ser dessa agitação toda – disse de forma meiga, ao pousar-lhe a mão delgada sobre o rosto. – Talvez o teu toque cure – disse, ao sentir a agradável temperatura da palma dela sobre sua face. – Ou talvez tenham de me descerebrar – gracejou. – Aqui há todo material disponível. Se quiseres mesmo que te retiremos o que tens dentro dessa cabeça… – Acabou-se a comida neste clínica? – disse, após ter levantado e alcançado a testa da filha. – Comes demais – reparou, ao dirigir-se para onde estava. – Deves ter vários estômagos aí dentro. – Poligástrico é a palavra. – Eu sei. Parece que vamos ter de fazer também uma cirurgia para deixar só um nesta barriga, ou ainda vamos à falência.

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– O meu estômago está bem como está. Como é que está o casal que perdeu a filha? Ela tinha… quatro anos, não. – Sim, tinha. Sabes como é que são essas coisas. Ninguém fica bem ao ver a própria filha a morrer. Fizemos tudo ao nosso alcance… Eles trouxeram-na tarde. É um milagre ela ter vivido tanto tempo com a doença que tinha. – Que doença? – Sida. Ela tinha Sida – disse, ao tocar na estranha cicatriz que ele tinha na cabeça. – Triste. Podes tocar-me de novo aí onde tocaste? – Porquê? – Toca… – Aqui? – Sentiste? – O quê? É outra vez a história da metade do osso que está a vaguear aí dentro? O TAC e as outras radiografias não mostraram isso… – Não. Sentiste agora? – Sim. A tua cabeça está a pulsar. – Para ser mais explícito: o meu coração está bater tão forte por estares ao meu lado que está a causar explosões nas minhas veias. E se nos casássemos? – O quê? – Sei que não é a altura certa para fazer isso mas… Antes que Márcio acabasse de falar Helena e Mery entraram e pegaram-na cada uma em um braço. – O que é isso? – perguntou revoltada. – Confie em mim – pediu ele. – Vai com elas. Minutos depois, ela voltou vestida de forma estonteante – um majestoso vestido vermelho cobria o corpo dela; se se pudesse levantar os seus pés do que tinha calçado, ver-se-ia que as sandálias tinham o nome «Briell» gravado. – Eu sei que há muitas coisas das quais não me lembro – disse ele, depois de alguns momentos de silêncio – mas descobri, amo-te. Sentes que isso é verdade? – Sim, sinto. – Pode até ser que fiz e ainda faço inúmeras coisas que te incomodam, mas eu posso mudar. Unicamente por ti, eu posso melhorar. Podes fechar os olhos? – Porquê? – Podes fechar os olhos? Ela obedeceu em seguida. – Agora abra-os. Ela não contrariou a ordem. – Gabriela, queres casar comigo? – Eu… – interrompeu-se ao ver o brilhante anel que ele pega na mão dentro de uma caixinha vermelha aberta. – Sim, aceito. Mas já tenho um anel de noivado. – Eu estava morto… por sete meses. Aquele não conta. Este é do novo homem à tua frente. – Como é que fizeste isso? Onde é que arranjaste o dinheiro…? – Não é importante. Agora que já aceitaste casar comigo, que tal casarmos mesmo? – O quê? Agora? – Quando e onde quiseres. Espera! Não há conservatórias nas clínicas. – Quem disse isso? O dinheiro pode mover muitas coisas. – Como assim?

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– Se Márcio e Gabriela não vão à conservatória… – … a conservatória vem até Márcio e Gabriela. As pessoas são românticas.

* Tarde de domingo. Depois de ser atendido por Sara Quilengues e Ricardo Nankova. Márcio Nassembe voltou para o seu quarto, para que pudesse ficar mais tempo com seus filhos. – Então ela respondeu que sim? – perguntou Mery, para confirmar o que acabara de ouvir de Márcio. – Já sabes disso não? E que hipóteses tinha ela? – Convencido. – O estranho… o estranho foi que de manhã tive um sonho em que pedi a Sara em namoro quase da mesma forma… – Sim, mas a única coisa que usaste com a Sara foi o anel. O vestido e as sandálias não entraram… e como disseste, foi para pedi-la em namoro, não em casamento. – Repeti-me. Detesto isso! Gosto de superar-me. – Não é tua culpa. Tu é que não te lembravas que já o tinhas feito. – Tens razão… E o CD e o poema com as iniciais do nome dela? – Não te preocupes. Ela vai encontrá-los em casa. – Falando em casa… Tenho uma casa própria? – Também não te lembras disso… Juntaste dinheiro suficiente desde os vinte um anos para isso. – Sim… Lembro-me. Fui precavido. – Convencido – disse, ao fazer uma careta ao amigo. – Se todo adolescente pensasse em fazer uma conta a prazo, acho que os seus problemas na vida adulta seriam resolvidos com menos dificuldade. – Concordo. O que é que ela quis dizer com aquilo da conservatória? – A ideia é dela, não a vamos estragar. – Se for para o bem das pessoas curiosas… – Não, não. Não lhe vou perguntar. Deixa as coisas como estão. Dentro em breve a curiosidade acabará. – Papá – interrompeu Bruno –, tens uma feída no olho. – Um carro assassino tentou derrubar o papá – explicou ele de forma infantil, ao pôr o menino no colo. – Mas os gengibres e as quizacas da mamã me deram forças para derrotá-lo. – Num gosto de gengibe… nem de quizaca. – Se deram força ao papá, também vão dar a ti. Não queres ter força suficiente para defenderes a Gaílsa meninos que vão queres ficar com ela? – Não. – 0K. E força para poderes endireitar um ferro muito, muito torto? – Quero. – Foi fácil. Antes o papá também não gostava de uma coisa… – De quê? – De ovo. E sabes porquê? – Não.

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– Quando era pequeno, tive um sonho em que um ovo gigante falou. Desmaiei no sonho. Acordei com um terrível medo de ovos. – Medo de ovinhos? – É! Acreditas? Aquela coisa branca e pequena! Por muitos anos fiquei ser comer uma boa omeleta. – Omeleta? – É quando o ovo anda de muleta, como o papá. – Mentiroso! A mamã não fita ovo com muleta. – Se sabias o que era uma omeleta, porque perguntaste? – inquiriu ao fazer cócegas na barriga do menino. – Para o papá falá – disse, ao sorrir. – E o que é que te fez voltar a comer ovos? – perguntou Mery. – Paasados alguns anos, o cheiro deles ao serem estrelados ou cozidos começou a corromper a minha fobia. Na verdade, foi porque fui à casa da Gabriela e, para não parecer um desmancha-prazeres à frente do cunhado dela, devorei o almoço que ele me ofereceu. – Obrigaste-te a comer algo para não seres mal encarado? – Era um adolescente naquela altura. – Até agora ages assim… – 0K, intrometida. Não gosto de dar trabalho as pessoas. Aquilo de que não gosto são só caprichos meus. Se não os realizar uma vez ou outra não morrerei, não é mesmo. – A atitude é nobre. Não sei se faria a mesma coisa. – Agóia já gosto de gengibe e quizaca – disse Bruno –, mas num como mais ovo.

* Manhã de segunda-feira. Bruno Iélcio Nassembe brincava alegremente no infantário com as outras crianças. Embora estivesse sem a companhia da irmã naquele dia, a diversão tinha a mesma áurea. – Bruno, como estás? – perguntou um senhor que acabava de entrar com uma menina. – Tô bem – respondeu a voz infantil. – E você? A tua vida tá boa? – Também está boa. E a tua mamã? – Tá a trabaiá. – E o teu papá? Já melhorou? – Num chei. Mas ontem ele bincou comigo na clínica. A expressão que o rosto senhor tomou a seguir demonstrou espanto. Seria verdade? Ou o miúdo sonhara apenas com aquilo? Para dissipar as dúvidas, pensou em fazer uma visita a Márcio Nassembe. – Brinca bem com a minha sobrinha, ouviu, Bruno? Tchau. – Tchau.

* Prenúncio da tarde de terça-feira. Márcio e Gabriela estavam parados diante de uma porta.

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– Doutor Octávio Quinguiri – leu ele para ver se se lembrava do rosto ao qual aquele nome pertencia em sua memória. – Vamos entrar. – Márcio! – exclamou o homem dentro da sala ao captar a imagem da entrada do casal. – É bom ver-te, amigo. – Octávio… – divagou Márcio – … tu é que me deste aqueles livros sobre Psiquiatria Geral, não? Décio Gilberto Natrielli Filho, lembraste? – Sim, mas isso foi a mil anos atrás. – A sério?! – A memória dele está com problemas – explicou a única voz feminina naquela sala. – E andei a ter alucinações… Não agora, nos meus sonhos. – Interessante – disse o outro. – De que tipo? – Alucinações do tipo dos esquizofrénicos. – Eram sonhos… É normal que aparecem coisas que não correspondam à realidade. – Está bem – cortou a voz feminina. – Isso não isenta o facto de o examinares. – Falou a Chefe. Vamos a isso.

* Noite de terça-feira. Márcio se despedia de Gabriela. – Porque achas que é comigo que deves ficar – perguntou ela, ao retirar-lhe o gesso da perna. – És primeira a quem demonstrei interesse sincero. – Resposta vaga. Os nossos primeiros amores não são necessariamente eternos. Seja sincero. És bom em sê-lo. – Correspondes ao meu amor. – E a mulher dos teus sonhos? Também sou eu? Seja sincero. – A mulher dos meus sonhos… Se é dos meus sonhos só existe nos meus sonhos. Não é real. É algo criado por mim. A realidade não se cria, vive-se. – Podes desenvolver mais? – Criei um cônjuge perfeito para mim, com as qualidades desejáveis e os defeitos aceitáveis. Mas este cônjuge… esta mulher não tem rosto nem nome. Não tem uma história, não tem tom de pele exacto nem idade… – Então qualquer uma que aparecer com este perfil idealizado é bem-vinda…? – A expressão «qualquer uma» é meio depreciativa, mas é isso mesmo. O que farias se o homem que amas te abandonasse? – Ele nunca faria isso. – Obrigado. Mas se fizesse? Acabariam todos homens da Terra? Já não haveria algum que pudesse conquistar o teu a amor? – Há sempre pessoas que podem conquistar o nosso amor… Queres dizer que amamos a imagem do cônjuge ideal em vez de a pessoa que está connosco? – Talvez no princípio… para protegermos o nosso coração. Temos de saber que o mundo não vai acabar se ele nos deixar. Mas depois, quando vemos o nosso amor ser perfeitamente correspondido. Quando sentimos calafrios na barriga ao sentirmos o perfume dela na rua, quando nos sentimos pequenos e apaixonados ao olhar para os seus olhos lucipotentes, quando olhas para trás a cada vez que se abre e se fecha uma porta para ver se ela, quando gastas saldo como um louco, quando… quando mergulhas na

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relação por teres sentido segurança, a mulher dos teus sonhos ganha rosto (lindo e angelical) – disse ao passar a mão sobre a face dela – ganha nome (Briell), ganha uma história (é a melhor doutora do mundo), ganha tom pele (clara… e sedosa) – disse ao pegar-lhe as mãos – e ganha idade (trinta e dois). – Lindo. Mas com isso queres dizer que se eu te deixar e o marido da Sara fizer o mesmo com ela, o teu amor por ela voltaria. – Porque pensar sobre isso agora? Não é interessante. Viver este momento é o que conta. Tu não me deixas, eu não te deixo. Tu me amas, eu te amo. Não há lugar para separações. – Mas se houver, vais esquecer-me? – perguntou com expressão infantil. – Tu não queres que isso aconteça… então não vai acontecer. Faz a tua parte – disse carinhosamente, ao passar-lhe o dedo sobre a sobrancelha –: ama-me hoje… amanhã também… para sempre. – E o que ganho em troca? – Surpresas, felicidade, compreensão… e amor infinito. – Prometes? – Sim. Estás com medo de alguma coisa? – Tenho raiva dos acidentes que acontecem na vida. Tenho medo de te perder por causa de uma bala perdida ou qualquer outra coisa… – Isso não podemos controlar. Deves ter passado um mau bocado com essa história toda que aconteceu comigo. – Foi traumatizante… – Talvez precises que te apertem alguns parafusos também – gracejou ao tocar-lhe os sedosos cabelos. – Vou deitar isso – disse, ao levantar-se. – Daqui a pouco estarei de volta – disse, ao referir-se ao dia seguinte. – Se me encontrares a dormir, basta atirar-me um balde de água gelada. – Eu sei como te acordar. Escassos minutos depois de Gabriela ter saído, a vontade de dormir dominou-o completamente. Quando se encontrava perdido no mundo dos sonhos, uma figura masculina apareceu em seu quarto. Depois de ter reparado o local, puxou de uma seringa em seu bolso e injectou o estranho líquido da maneira mais indolor possível e saiu. As pessoas são assassinas.

* Continuação da noite do mesmo dia. Gabriela entrava agora para o quarto de Márcio. – Dormiste mesmo? – disse ao aproximar-se do homem deitado sobre a cama. – Se eu tocar no teu pescoço…? O pescoço – Deus –, o pescoço estava frio. As batidas do coração eram imperceptíveis – bradicardia. Ele precisava ser socorrido urgentemente. Não – ela não podia perder aquele homem outra vez. Não aguentaria viver com o sofrimento. O estridente grito que ecoou pelos corredores inteiros que emanou de sua garganta foi angustiante: – Enfermeiras!

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* Tarde de quarta-feira. Márcio estava com o corpo morno. Embora sua respiração e seu batimento cardíaco parecessem ter voltado ao normal, ele não acordava. Fez-se muita coisa para o acordar, mas foi tudo infrutífero. Ele não ouvia, não sentia nada. Gabriela estava ao lado dele. Não, ela não chorava. A amargura da cena exauriu-lhe as lágrimas. O seu homem havia voltado ao mudo dos sonhos e com poucas esperanças de se recuperar. Quem fizera aquilo? A análise feita ao sangue dele indicou a presença de veneno. Teria alguém descoberto? Alguém fizera o assunto transpirar para fora daquela clínica? Quem o contara? Não! Não podia ser. Ela havia sido tão cuidadosa. Porque pensava naquilo? Não era hora de ocupar seus pensamentos com análises de Sherlock Homes. Precisava pensar em como salvar aquele homem, com ou sem esperanças.

* Márcio abriu os olhos, mas logo teve a sensação que o que via não era real. Teria voltado ao mundo dos sonhos? Só podia ser. Há realidade não apresenta uma mulher vestida de negro num cavalo a galope sendo seguida por um homem enorme vestido da mesma forma. Quando o cavalo se encontrou a alguns metros dele, o homem enorme pegou a mão da mulher vestida de negro, para que ela pudesse descer do animal. Depois montou ele mesmo o animal e saiu a galopar. Os cascos do animal – os cascos velozes do animal pareciam pisar violentamente ossos sobre o ar, o que causava um género de faíscas aterrador. Segundos depois, ambos desapareceram, o que fez com que o cenário escurecesse um pouco mais. A mulher deu alguns passos na direcção de Márcio. Quando estava bem perto dele, removeu o capuz que cobria seu rosto e disse secamente: – Podes chamar-me Morte. Márcio deu dois passos para trás, a mulher deu dois para a frente. Márcio ficou estático. A mulher ficou a andar lentamente à volta dele, reparando-o como os felinos fazem antes de atacar suas presas, enquanto se locomovia da forma menos célere que se possa imaginar, começou a conversar com ele. – O que se passa? O que temes? – O teu nome… – É apenas um nome. Os nomes pelos quais somos chamados não nos identificam verazmente. – É este um nome que te foi dado, ou é aquilo que és: uma assassina? – Uma assassina? – perguntou, ao dar em seguida uma rizada com brio maléfico. – Não. Uma assassina, não. Eu não faço nada. Eu apenas aconteço. – Tu matas as pessoas – disse em tom de afronta. – Estás em todos os sítios: nos campos de guerra, no corpo dos doentes, nas estradas… Tu atacas todos. – Assim? – perguntou ela, ao bater-lhe ferozmente contra parede colocando muito perto do pescoço dele uma longa espada bizarra. Depois sorriu com brio maléfico e o soltou. – Eu não mato ninguém. Apenas aconteço. Sou eu quem dá os tiros nas guerras? Transmito alguma doença? Sou eu alguma condutora maluca nas estradas. Vocês fazem as asneiras. Eu apenas aconteço. 137


– Se assim tão inocente, por que serás destruída? – Não posso realmente ser destruída. Apenas não vou acontecer. E isto só para aqueles que continuarem fiéis. – Tu serás destruída. E tens medo disso. Caso contrário não matarias tantas pessoas neste século. A tua destruição está cada vez mais próxima. – Inteligente, mas não o suficiente. Porque se dá imortalidade há alguns e eternidade a outros? Talvez não morra mais ninguém quando as doenças e a vossa imperfeição desaparecerem. Mas continuarão a ser de carne e sangue. E carne e sangue são perecíveis. Posso não acontecer, mas estarei aí. Se deixassem de nascer crianças deformadas em Hiroshima e Nagasaki, dir-se-ia que já não existem bombas atómicas? – Aconteces… O que sentes quando alguém é atropelado e não morre? – Não tenho sentimentos. Sou como um evento. Não tenho escolha: ou aconteço, ou não aconteço. Não fico atrás de vocês para ver a minha próxima vítima. – Queres ser amada pelos humanos? É esta a tua ideia ao termos esta conversa? – Não preciso dos vossos sentimentos. Fui criada, tenho um trabalho… Como o choque que apanhas quando pões uma faca dentro de uma tomada, sou Morte, a Consequência. Os vossos sentimentos em relação a mim não mudam em nada o que faço, assim como a electricidade não procura paz de espírito por ter sido a causa da morte de alguém. – Porque estás aqui? – Para acontecer… Antes que o frio na espinha de Márcio se dissipasse, seu sistema auditivo captou o som de passos a aproximarem-se atrás de si. Era outra mulher, mas vestida de forma diferente. Seu vestido tinha cintilantes tons de verde e das cores do pôr-do-sol. O caminho por onde pisava perdia a escuridão emanada pela Morte e ganhava deslumbre – flores, grama e árvores cresciam. Cada passo seu fazia com que a mulher de preto se afastasse de Márcio. – Oi – cumprimentou a mulher depois de estar bem perto dele e a outra mulher estar a alguns metros distante de ambos. – Podes chamar-me Vida. Ele ficou em êxtase por alguns segundos. Quando seus sentidos se restabeleceram, fez a primeira pergunta que lhe veio à mente. – És irmã dela? – inquiriu ao, apontar para a mulher atrás de si. – Temos o mesmo Criador. – Não pode ser. Deus não criaria algo tão horrível quanto a morte. Eis a razão de Ele fazer os anjos e os humanos para serem eternos. – Ele também disse ao homem e à mulher que morreriam se comessem do fruto de certa árvore. Esta ordem não teria qualquer sustento se eles não conhecessem a morte. Os animais sempre morreram. – Qual de vocês foi criada primeiro. – Não há como te responder de uma forma que o teu cérebro humano entenda. – Tente... – Ao criar a eternidade, Deus criou a mortalidade. – Não pode ser. Deus já existia muito antes da criação de qualquer outra coisa. Se existia, vivia; tinha vida. Portanto, a Vida foi criada primeiro. – Errado. Existia a imortalidade. – Qual é a diferença? Imortalidade significa apenas vida indestrutível. – O adjectivo muda tudo. Se fosses imortal entenderias. Vida é vida. Imortalidade é imortalidade. – Então o que és?

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– Eu existo... depois deixo de existir. – Se existires ininterruptamente, deixas de ser tu? – Se for no corpo de eternos, não. Se for no corpo de imortais, sim. – Tu nunca deixas de existir realmente. Por mais pessoas que morram, a vida continua a existir, isto é, sobram pessoas, animais e plantas a respirar. – Como te disse. Eu existo… depois deixo de existir no corpo dos viventes que me podem perder. – Neste vosso trabalho, quem está a ganhar? Quem tem mais do seu lado? – A Morte. – Não pode ser. Senão a humanidade não alcançaria os mais de sete biliões. – Mais de sete biliões estão vivos. Quantos estão mortos? – O que sentes quando morre uma criança? – perguntou ele, ao dar-se por vencido relativamente ao assunto anterior. – Não podes ajudá-la? Não a formas de voltares a entrar em seu corpo? Ela é uma criança. Crianças não merecem morrer. – Ninguém merece morrer. Eu apenas existo… depois deixo de existir. Não tenho nenhum poder de decisão no assunto. – E aquelas pessoas que parecem ficam em coma profundo e depois se recuperam? Não nenhum pouco do teu dedo nisso? – Se ele se recupera é porque não deixei de existir dentro dele, que é o contrário do que acontecerá aqui. – O que acontecerá aqui? – Deixarei de existir… O calafrio voltou a passar entre as vértebras de Márcio. Antes que pudesse se sentir recuperado do choque, o chão arrastou a ambos para junto da mulher vestida de negro. Ele ficou no meio das duas. À sua esquerda, o cenário parecia a mais linda das paisagens naturais já concebidas. À sua direita, atmosfera era aterrorizante – a escuridão governava, apenas os feixes eléctricos que relampagueavam e trovejavam criavam clareza suficiente para se distinguir a imagem de uma mulher com uma longa espada em sua mão. – Isso é que é estar entre a vida e a morte – disse uma terceira mulher. Esta mulher – esta mulher não tocava o chão. Estava provavelmente a um metro em cima deste. Seus pés não empreendiam locomoção, mas ela se movia, aproximava-se deles. Suas roupas tinham um brilho cegante. O chão voltou a ganhar vida e arrastou Márcio para perto da mulher. – Podes chamar-me Imortalidade. – E o que fazes tu? – Sou propriedade exclusiva. E apenas observo. – Como assim? – Sou restrita. Para os biliões de seres que existem na Terra e para as centenas de milhares que existem no Céu, apenas cento e quarenta e quatro mil e dois me têm como posse. – Há imortalidade na Terra? – Não. Vocês precisam de muita coisa para estar vivos. Comem, bebem, respiram… Eu sou para quem é auto-suficiente. – És um género de mãe para a Vida e a Morte? – Temos o mesmo Criador. – Por isso mesmo. O Criador possui imortalidade. Provavelmente por tua causa pensou em criar diferentes formas de vida… – Se for este o caso, sou a inspiração, não a mãe. – Como é que é estar no corpo do Ser mais poderoso do Universo?

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– É sentir o verdadeiro sentido das palavras pureza e santidade. – É uma responsabilidade? Isto é, sentes medo de falhar? De deixá-Lo menos imortal por alguns segundos? – Não tenho sentimentos. Sou propriedade exclusiva, não uma empregada por tempo integral. – Se nehuma de vocês tem sentimentos ou desejos, porque duas de vocês querem dar cabo de mim? – São as propriedades do teu corpo que farão que uma aconteça e outra deixe de existir. Elas cumprem apenas com os seus papéis. O que ocorre quando o cérebro pára de trabalhar? Humanos morrem… – Se ela tirassem folga hoje… – Engraçado. Quando é te vais cortar e te isentarás de sangramento? Nunca. Causa, consequência. Corpo disfuncional, morte eventual. – Eventual? Então há esperança de eu não morrer? – Não sou eu quem decide. É o teu próprio corpo que o faz. – Tenho filhos. Posso ao menos…? – Todo tipo de pesssoa morre. E não se escolhe hora para isso. Abel morreu prematuramente. Estevão, Jonatã… Muitos morreram da mesma forma. É assim desde o princípio. Enquanto não chegar o fim, nada mudará. – Então o que fazes aqui? – Estou aqui para observar… Mesmo antes da mulher ter terminado de falar, seus pés haviam tocado o chão. Num ápice, a mulher vestida com tons de verde e cores do pôr-do-sol apareceu à frente dos dois. – Aprontem-no! – vociferou a mulher distante dos três. – O que vão fazer? – perguntou ele, ao sentir-se ameaçado. As duas mulheres ao lado de Márcio entrelaçaram os seus braços nos braços dele – uma à sua esquerda, outra à sua direita. Ambas ficaram de costas voltadas para Morte e com os rostos prostrados – Imortalidade tinha o pé esquerdo posicionado para frente e o direito para trás, como se estivesse a andar, Vida estava numa posição simétrica à desta –, ao passo que ele olhava fixamente para ela e para a cintilante espada em sua mão. O simples toque daquelas mulheres tornou imóvel o corpo dele – não conseguia soltar-se. – O que vocês vão fazer? – voltou a perguntar. A resposta pouco perceptível ao seu entendimento que ouviu a seguir tornou-lhe gélida a circulação sanguínea – Morte vociferou de longe a sua parte da mesma, Imortalidade e Vida sussurraram-lhe ao ouvido as suas deixas: – Para acontecer… – …para deixar de existir… – …para observar. A lâmina da espada de Morte tornou-se maior. O aumento daquele afiado pedaço de metal fez com que Márcio visse refletido nele o rosto de Abigail. Ele entrou em transe. Naqueles minutos de inactividade seu cérebro trabalhava. Havia uma mais algo para além de Abigail naquela imagem. Um papel – ela tinha um papel na mão. O que ela lia naquela folha a audição dele captava. Não viajarei Ficar… Ficar…

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Viajar… Ficar… Viajar? Não, nunca pensei E as dicas que te dei Que te tiraram a alegria Fui eu mesmo que inventei Por te pôr insegurança Podes me castigar Mas se temos esperança Tive mesmo de arriscar Perdão Conceda-me, por favor, e então Não Me considere como uma decepção Cessy, Porque Não viajarei As malas não farei nunca Não viajarei Foi só uma ideia maluca Não viajarei Ei, Cessy Liga pra mim Para entenderes que Ficar… Ficar… Viajar… Ficar contigo eu quero e sei Que gravemente errei Sei que a culpa será minha Se me negares como rei Se não quiseres ouvir O rádio podes desligar Mas, por favor, entenda É o meu coração que vai falar: «Princesa, És a tal, tenho certeza Essa prova foi sem querer. Surpresa! Não vou viajar!» Não viajarei As malas não farei nunca Não viajarei Foi só uma ideia maluca Não viajarei Ei, Cessy Liga pra mim Para entenderes que

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Nosso barco do amor não afundará Ainda tenho de um anel te colocar Abigail para conquistar Baby para abraçar Princesa para respeitar E Cessy para amar Abigail para conquistar Baby para abraçar Princesa para respeitar E Cessy para amar Não viajarei As malas não farei nunca Não viajarei Foi só uma ideia maluca Não viajarei Ei, Cessy Liga pra mim Para entenderes que Ainda tenho de um anel te colocar Continuado a ver as imagens reflectidas na lâmina, Márcio viu a si mesmo e a seu sósia conversando com furor. – Agora podes ver que a culpa é toda tua? – perguntou seu sósia, Ao dar fortes passos de fúria em sua direcção. – Esta música… Quando é que a escrevi? – perguntou com amargura. – Não sei. Só sei que deste a ela para contares o que realmente aconteceu. – Estás errado. Tens de estar errado. – Não, mas o fizeste. E dás-te de inocente? – disse, ao bater ferozmente o seu punho contra a face do outro. – Não pode ser – disse ao recuperar-se do ataque, enquanto ainda estava caído. – Tem de haver uma explicação… – Esta é a explicação! – vociferou. – Parece ser. Se eu não ia realmente viajar por que contei o mesmo aos meus amigos e à minha família? – Para dares sustento à tua mentira! – Resposta ilógica – disse, ao levantar-se. – Lembro-me… – interrompeu-se para limpar o sangue que saía de seu lábio inferior – lembro-me que a Judith também viajaria para uma bolsa de estudo. Tratámos os mesmos documentos. A bolsa é real. – Então porque escreveste isso? – Não sei. Talvez estivesse tão preocupado com ideia de a perder que inventei isso. Achei melhor dar-lhe uma mentira, já que ela não conseguia lidar com a verdade: eu não iria viajar, não fui chamado para isso. Mas ela só entendia «não quero viajar por tua causa». – E foi aí onde erraste! – vociferou, ao atacar o outro com outro murro. – Esta tua mentira estragou tudo. Fizeste-a pensar que tudo não passou de um teste! – Foi um acto de desespero… – Não! Não te justifiques? «Não podes controlar tudo». Lembras-te destas palavras?

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– Sim. São dela. Disse-me isso… depois de eu lhe contado esta verdade inventada… – Imaginas, no mínimo, como é que ela se sentiu manipulada? Fizeste asneira! Foste tu quem fez a asneira! Ninguém gosta de ser provado. Fizeste-a pensar que, como tivestes desilusões no passado, querias ter a certeza que ela não era como as outras. – Foi sem querer. A ideia não era essa. Só queria demovê-la... – «Não podes controlar tudo». Foste tão tolo. Enfraqueceste mais ainda os sentimentos que ela tinha por ti. – Tens razão. Nada justifica esta minha acção, nem o forte medo de perdê-la. Agi como um tolo. – Foste um tolo! Lembro que deste algo a ela para ler depois do poema Palavras por palavras. – Também me lembro. Era algo para ver se ela me contava a verdadeira razão dela ter feito o que fez. Mas ela não me disse nada. – Porque querias saber? – A mulher que amas te diz que está com outro, e uma semana depois te dizem que será pedida em casamento. O que sentes? Repugnância! Talvez se ela me explicasse o verdadeiro motivo, deixaria de sentir que não a perdoei por completo. – Não é ela quem tem de ser perdoada. Tu és o culpado. – Já me fizeste ver isso. Não precisas de mo repetir. Abigail... O que te fiz eu? Sou tão bárbaro... – Exactamente. Eis a razão da Morte te fazer o que te vai fazer. – Por favor, espere – pediu ele, ao ver que seu sósia desaparecia gradativamente. – Raios! – vociferou, ao ser sozinho. – Então foi isso o que aconteceu? – perguntou friamente uma mulher atrás dele. Márcio voltou-se para ter contacto visual com seu novo emissor. – Alda! O que fa…? – interrompeu-se ao ver o olhar gélido que a irmã lhe lançava. – Triste, muito triste – comentou outra mulher aparecendo atrás dele. – Júlia! – exclamou ele. – Brincaste com os sentimentos dela? – perguntou a última. – O que fiz… fi-lo. Não há razões para me defender. – Porque jogaste as culpas todas sobre ela? – voltou a perguntar a última. – Nunca fiz isso. Eu apenas vos contei o que aconteceu… – De uma forma que punha a ti como inocente e a ela como a pior das mulheres – comentou a voz feminina que se mantivera calada até o momento. – Lamento que o resultado tenha sido este. – Lamentas? – exclamou Júlia com agressividade. – Tens noção do que ela passou enquanto tu te davas de vítima? – Sei que sou culpado. Queres que arranque o coração para to provar? – Fazê-la pensar que aquilo não passou de uma prova! Que absurdo! Não pensaste um pouco ao menos? – continuou Júlia. – Nunca se deve mentir. Nunca! – acrescentou Alda. – Se tinhas tanto medo de perdê-la, porque não deixaste as coisas levarem o seu ritmo normal? Se ela não ficasse contigo, provaria que não era mulher certa para ti… – Ou que não eras o homem certo para ela – concluiu Júlia. – «A mera opressão pode fazer o justo agir como tolo», disse o Rei Salomão – comentou Márcio. – Os sentimentos se sobrepuseram a razão. Pensei que aquela seria a única ideia para mantê-la comigo. No fim de tudo, foi a pior.

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– Porque não pensaste na possibilidade dela agir dessa maneira? Fizeste de propósito, não é? – dardejou Júlia. – Sei que errei, 0K? Mas não digas que foi um subterfúgio para me afastar dela. É insano. Tão insano quanto a minha mentira. Eu não soube agir sobre pressão, e isto estragou tudo. Talvez se nunca lhe tivesse contado sobre a viagem… – E porque lhe contaste? Porque não ficaste com a boca fechada? – inquiriu Júlia novamente. – Simplesmente não sei. Quis apenas partilhar com ela algo que se passava comigo. Não vejo o futuro… Mas se não tivesse contado, talvez nada disso teria acontecido e ainda estaríamos juntos. – Talvez tenhas de aprender a não contar tudo às pessoas – reflectiu Alda. – Está aí uma coisa que não sei fazer. A sinceridade é tão minha amiga quanto minha inimiga. – Não tem que ver com sinceridade – corrigiu Alda. – Tem que ver com só falar as coisas nos momentos adequados. – E quando é isso? – perguntou ele. – Quando sabemos que haverá mais benefícios do que prejuízos – respondeu a irmã. – E como saberemos disso? – Os teus sentimentos e o clima da situação dir-te-ão isso. – Querendo ou não, as informações são divulgadas e estamos sujeitos a ouvi-las – comentou ele. – Se isso mudará ou não alguma coisa em nossos sentimentos dependerá (e muito!) da idoneidade de nossa personalidade e, eventualmente, da confirmação de tal assunto. Não faria isso se soubesse de antemão que a Abigail seria fragilizada. – Guarde as teorias para a Morte – disse Alda em tom seco, ao desaparecer com Júlia. – O que te impede de procurares a Sara? – perguntou Jacinto, ao colocar-lhe a mão sobre o ombro. – Estou com a Gabriela. A Sara está casada… – Deram-te informações erradas. – O quê? O que queres dizer com is… – interrompeu-se ao ver que o amigo desaparcera. – Tu não podes voltar para Sara – imperou Walter, ao aparecer à sua frente. – Ela é insegura. – As pessoas merecem voltar a tentar. – Ela já teve todas as oportunidades possíveis – comentou Alda, ao reaparecer. – Ela é fraca. Não tem suporte – disse André. – Ela provou que está a mudar – contradisse Sandra. – Ela te fará sofrer de novo – dardejou Judith. – Ela foi feita para ti – admitiu Victor. – Ela agiu de forma imatura no passado. Agora será diferente – argumentou Helena. – Ela precisa de mais espiritualidade – redargiu Júlia. – Ela é a Sara, boy. A Sara. A tua Chéldia – disse Mendes. – Porque me estão a dizer estas coisas? Já não penso nela. As circunstâncias impossibilitam isso. É tarde demais. – Ao menos tentámos – disseram todos, ao olhar para o céu. – Adeus, Márcio. De repente, as imagens na lâmina desapareceram. – Agora já aconteceu – disse Morte, com olhar tenebroso.

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– O que queres dizer? – perguntou ele ao reparar que ainda estava preso entre os braços de Imortalidade e Vida. – Estou morto. Não pode ser. Não há vida após a morte… Se tudo em meu corpo tivesse parado de trabalhar não estaria a ter estas alucinações… – Quem disse que estás morto? – perguntou Morte, ao ranger os dentes no fim da questão. – Disseste que estás aqui para acontecer… – E vou acontecer. Mas também já aconteci. Aconteceu o que estava previsto para te fazer ver quem foi o culpado no se passou contigo e com aquela mulher. – Abigail – tugiu ele, ao reparar finalmente que a mulher vestida de preto tinha as feições de Abigail de Vasconcelos. – E também já deixei de existir – disse Vida. – Sara – disse ele, ao reconhecer a voz. – Deixou de existir a ideia que só existe a Gabriela para ficar contigo – continuou Vida. – Agora só precisas de observar – disse Imortalidade. – Gabriela… – Temos de acabar com isso! – vociferou Morte, antes de lançar secamente. – Vou acontecer! – Por favor… – Não podes mudar os acontecimentos, Márcio – disse Vida. – Não importa o que peças. Isso é inevitável. – Não estou a clamar por misericórdia. O que vocês vão fazer, façam-no bem… e depressa. Perdi o interesse em tudo, depois de ter ouvido essas coisas sobre a Abigail. O Bruno e a Gaílsa estarão bem com a Gabriela. – 0K. Então rápido será – vociferou Morte ao lançar a longa espada na direcção dele. Antes que a ponta daquele pedaço de metal cortante lhe trespassasse a zona cervical, ele tugiu com os olhos fechados: – Perdoa-me, Abigail. – O que disseste? – perguntou Vida. Ao abrir os olhos, Márcio viu a extremidade afiada da lâmina bem perto de seu pescoço. A espada ficara imobilizada, pairando no ar. – Pedi desculpas a Abigail. Morte apareceu à velocidade de um trovão à frente dos três e removeu a espada da frente dele. – Muito bem – disse Imortalidade. – Agora estás preparado para ver isso. Antes de ouvir qualquer outra coisa, sua cabeça foi coberta por um grande capuz negro posto por Morte. Ele se sentiu a sufocar. Tentou lutar, mas em vão. Perdeu os sentidos. Imortalidade e Vida libertaram-no. Como uma folha à deriva, seu corpo inerte ficou a pender contra a gravidade.

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CAPÍTULO XII A mulher de bata branca ao lado da cama do corpo do homem que fora envenenado há dois dias não acreditava no que via: o pequeno monitor à sua frente apitava e mostrava uma linha vermelha horizontal contínua. Seu batimento cardíaco parara. Não podia ser verdade. Ela tentara tudo. Até recorreu à diálise na esperança radical de eliminar o veneno! Ela estava a perdê-lo, assim como acontecera há sete meses. Mas desta vez não estava disposta a entregar as coisas às mãos do cruel destino. Como se estivesse possessa, Gabriela começou a tentativa de ressurreição com choques eléctricos contra o peito dele. Ao ver que o monitor não sofria alterações, aumentava cada vez mais a voltagem. Seus cabelos molhados de suor e lágrimas ficaram em estado caótico – sua face estava coberta deles. Os doutores e as enfermeiras ao seu lado assistiam a tudo aquilo imóveis – percebiam que já não havia nada que pudesse ser feito. A boca dele – a boca e os olhos dele abriram-se de repente. A expressão no rosto de Márcio era de susto. Antes que pudesse sentir a presença da funcionalidade de seus sistema respiratório, sentiu em suas orelhas a forte batida cardíaca provinda de seu peito. Ele estava bem. As pessoas ressuscitam.

* Fins da noite de segunda-feira – três dias haviam passado desde a volta milagrosa de Márcio Nassembe ao mudo dos vivos. Durante este período, ele não falara

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nada – suas cordas vocais haviam sido comprometidas. Ma aquilo terminaria naquele dia. – Para onde vais com esta bandeja? – perguntou Rogério, com expressão séria. – Vou levá-la ao Márcio – respondeu Gabriela. – Porquê? Há meia hora que levaste uma. – Ele gosta (e precisa) de comer. – Não. O que queres é ficar mais tempo com ele. Por quanto tempo isto vai durar? Tens de acabar com isso. Antes de se tornar audível, Gabriela pousou a bandeja sobre uma cadeira e puxou-o para um dos quartos. Os dois não viram o homem que passou com as mãos nos bolsos atrás deles. – O que queres fazer? – perguntou ela. – Estou a viver a minha vida. Está na hora de viveres a tua. – Se com isso queres dizer que tens uma vida feliz, não vejo razão para me teres procurado. – Não fales sobre o passado… – Estava tudo tão bem. Ele estava em coma, e éramos felizes. – Eu sou feliz com ele. Só sou feliz com ele. – Mentira! Ele é mau, e tu sabes disso. – Porque dizes isso? Ele nunca te fez nada que… – Ele levou a minha mulher. E agora leva-te a ti. – Ele não me está a levar. Ele sempre me teve. – Dividida… Ele sempre te teve dividida. Ainda podemos voltar a ser o que éramos. Vocês já não estão casados. – Mas voltamos a ficar noivos. – Eu soube disso. Estás louca! E quando ele descobrir? Achas que ainda vai ficar contigo? Mais dias ou menos dias, ele vai recuperar a memória… Esquece o Márcio. Vamos voltar a ser o que éramos. – Parte de mim quer isso. Só que é uma parte dez mil vezes pequena em relação a parte que não quer. Eu quero ficar com ele. – Não! Tu queres ficar comigo. Só precisas de um empurrão. – Não me estás a entender… A frase dela foi interrompida pela entrada de um grupo de serviçais encarregados da limpeza da clínica. Visto que não tinha mais nada a dizer um ao outro, abandonaram o local. Fora do quarto, ela viu que a bandeja que deixara sobre a cadeira havia desaparecido. Ao deduzir que alguém pensara que alguém a havia esquecido aí, foi procurar o pedaço de metal no lugar mais provável – a cozinha. Ao vê-la desaparecer de seu campo de visão, Rogério decidiu fazer o que já devia ter feito há muito tempo. – O que fazes aqui? – perguntou ele com sua voz pesada, ao entrar para o quarto e ver um homem segurando uma seringa ao lado de Márcio. – Vou matar este homem – tugiu a figura masculina desconhecida. – Quem te deixou entrar? Porque estás com roupas de enfermeiro? Temos guardas aqui… e há policiais na zona. Estragarias apenas a tua vida – disse Rogério. – Porque o queres matar? – Por causa dele o meu irmão foi assassinado. – Que teu irmão? – Por causa daquele maldito acidente, as pessoas mataram o condutor do carro de bombeiros à pancada. Por causa deste mísero pedaço de carne sem sentido – disse ao apontar a seringa para o braço de Márcio que parecia estar a dormir.

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– Não faça isso! Deves estar mancomonado com algum dos guardas para poderes entrar aqui. Desde o primeiro envenenamento dele que aumentamos a segurança. Deves ser tu que o envenenaste… Não! Não faça isso! Serás preso em seguida. – Até os guardas chegarem ou mesmo até tu te aproximares de mim, já injectei o veneno. Só quero a morte dele. Só isso. Depois pode acontecer qualquer coisa.

– A minha mulher… a minha mulher também morreu naquele acidente. Ela estava a seguir a ambulância para ver onde o levariam. Ela estava grávida… – Não quero saber da sua história… – Só te estou a tentar dizer que também quero a morte dele. Mas não desta forma. – Não te aproximes! Estava tudo bem para mim quando ele estava em coma. Não passava de um vegetal. Mas não! Ele teve de se recuperar. Ele tem de morrer. Ainda bem que o Bruno gosta de falar.

– Não te vou deixar fazer isso. – Os milésimos entre a ponta da agulha e a pele dele e os segundos entre o teu corpo e o meu não te dão esta…

Sua frase foi interrompida pelo forte empurrão que Márcio lhe deu em seguida. Ao desequilibrar-se, sua face bateu contra o rochoso punho de Rogério. Ao investir em revide, Rogério prendeu-o com um de seus enormes braços enquanto Márcio lhe passava uma seringa. A pequena pontada que o homem sentiu em sua coxa a seguir foi a introdução de uma agulha que introduziu tranquilizante em seu corpo. Escassos segundos depois, desmaiou. Rogério arrastou-o até um dos cantos do quarto e amarrou-o com frenesi. Depois andou até a porta e trancou-a à chave. Voltando-se para Márcio, estalou as falanges de seus dedos e fez soar a sua pesada voz numa frase curta. – Precisamos de conversar.

* Noite de quarta-feira – haviam-se se passado quase dois dias desde a conversa de Márcio com Rogério e a apreensão do homem que queria tirar a vida ao primeiro. A voz do primeiro já se havia restabelecido. Enquanto Gabriela empurrava a cadeira de rodas em que ele se encontrava, a vontade de contar tudo o que havia descoberto sobre os acontecimentos de que não se lembrava deu corda à sua garganta. – Aonde é que vamos? – perguntou ao ver que se aproximavam de uma das saídas da clínica e ao repara que o local estava com poucas pessoas. – É surpresa – respondeu ela. – Estás vestida de forma diferente… e estás sem a bata branca. E me pediste para pôr este fato e esta gravata… Estamos a falar de casamento? – Já que queres estragar a surpresa: Sim. – Aqui na clínica? Como é que isso será? – Convidei o teu tio… Ele é conservador, lembras-te? – Gabriela, não podemos fazer isso. – Porquê? – perguntou ela, ao parar de empurrar a cadeira ao meio do corredor e posicionar-se à frente dele, tapando-lhe assim a visão da porta. – Lembrei-me de tudo. Nós somos divorciados… – E agora queremos casar de novo. – Não, não queremos. Tu queres. – Pediste-me em casamento, lembras-te?

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– Porque não sabia que havias traído os votos que fizeste quando nos casamos. Tinhas um amante, o Rogério. E deitaste as culpas todas em mim… e pediste o divórcio. Para o teres mais perto de ti, puseste-o a trabalhar contigo aqui, na G. N., isto é, na Gabriela Nassembe, com a mentira dele ser teu primo, para não se levantarem quaisquer suspeitas. E ainda o convidavas para ir à nossa casa! Um homem casado! Sei que isso não é importante mas… tu tinhas um marido, ele tinha uma mulher… Eis a razão de eu me lembrar que não gostava de ti. – Isso já passou, querido. Já não estou com ele há muito tempo. – Desde o meu acidente, para ser mais específico. – O problema é novo. Acalma-te. Dê tempo a ti mesmo para pensares melhor. Resignei-me. Descobri que te amo. E tu também me amas. – Depois de ter descoberto que planejaste o fim do nosso próprio casamento e que te querias casar de novo sem eu saber… – Foi o Rogério que te contou isso tudo, não? – Também. – Aquele cão! – Mas antes disso, já me tinha lembrado dessas coisas. Tive um sonho estranho em que conversei com a vida, a morte e a imortalidade. Elas me mostraram o passado. A minha mente recordou-se. Esta clínica também é minha. Por isso leva o meu nome. Tu deste poderes ao Rogério aqui dentro… – Ele é competente. Mereceu-o. – A casa da qual me lembro como pertencendo à Abigail é na verdade a casa em que eu, tu, o Bruno e Gaílsa vivemos. Nos casámos… e foi por amor de ambas as partes. Mas te transformaste. Agora és muito ligada ao dinheiro. Mudaste tanto! Achas que com ele podes resolver qualquer coisa. Podes te divorciar num dia e casar no outro? As coisas não são assim! Tu podes ficar com o Rogério, ele provou que te ama. – Não! Quero ficar contigo! – Em cima de mentiras? – Queres julgar-me? Tu? Eu quero fazer algo bom por causa de uma mentira. Tu causaste uma catástrofe… por causa de uma mentira. Eu menti para ficar contigo. Tu mentiste e acabaste sem o amor da Abigail. – Tens razão. Sou um monstro – disse com sarcasmo. – Não preciso de me juntar a outro. – E os teus filhos? Sabes que não poderás ficar com eles, não sabes? – És um monstro, mas és uma boa mãe. Eles serão bem criados. E tenho apenas um filho. A Márcia Gaílsa é fruto da realização das tuas fantasias com o Rogério. Foste boa em ter lhe dado o meu nome , o da Sara e o da Abigail. Ela não tem culpa de nada nisto tudo. Para evitar escândalos, registeia com o meu nome. Como já disse, és uma boa mãe. Eles estão entregues em boas mãos. – O quê? – perguntou ela, admirada com o que acabara de ouvir. – É assim? Desistes tão facilmente dos teus filhos? – Eles não precisam de ser negociados por pessoas desconhecidas num tribunal. Prefiro evitar isso. – Mentira! Tu mentes. Já sabes tudo sobre a Sara. E estás morto para voltar para ela. – Não preciso de voltar para ela. Ela vem ter comigo – disse ele, ao fazer um sinal para que Gabriela olhasse para trás em direcção a porta. O seco som dos sapatos altos de Sara Lídia Chele Bernardo contra o chão emudeceu a garganta de Gabriela Velosa Luvana. Márcio Pontes Pereira Nassembe

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olhou para ela com satisfação. Ela passou por Gabriela e inclinou-se para beijar a face de Márcio, após ter cumprimentado a primeira. – Oi. Está tudo bem contigo? – perguntou ela com voz angélica. – Estou cheio de cicatrizes… – Eu disse para te cuidares, não? – perguntou de forma engraçada, ao passar-lhe a mão sobre uma das faces. – O que é isso? – perguntou Gabriela, em tom de revolta. – Estou a viver a minha vida – respondeu Márcio. – É hora de viveres a tua. És uma excelente pessoa… – …mas não o suficiente para ficar contigo – concluiu Gabriela, ao afastar-se. – Porque não me vieste visitar, Sara? – perguntou Márcio. – Eu vim… durante cinco meses. Depois tive de viajar. Não era confortável te ver naquele estado. – O teu marido? Como é que ele está? – Ele… – Sara interrompeu-se ao olhar para Helena que lhe fez o sinal a indicar que ele não se recordava de algumas coisas. – Nunca cheguei a me casar. Fiquei noiva… mas não me casei. – Eu sabia. Só quis ter a certeza. Há uma grande confusão em minha mente. Porquê? – Porquê o quê? – perguntou, ao sorrir sem se aperceber do homem que se andava a certa distância na direcção deles, com um grande livro aberto sobre as mãos. – Porque não te casaste? – inquiriu ele, com o intento de saber se foi devido à insegurança dela. – Existem três tipos de homens: os imprestáveis, os incompatíveis e os incríveis. Lidei com os dois primeiros por muito tempo. – E agora? Estás com alguém? – Desisti de tentar achar o homem ideal para mim a meio do caminho. Foram muitas desilusões – respondeu ela ao ver que o número de pessoas conhecidas no corredor continuava a crescer. – É o mesmo que fiz às mulheres. Estou até com a ideia de imitar a Deus. Ele tirou uma costela de Adão e fez Eva que era perfeita para ele. Acho que terei de fazer o mesmo. – Não precisas de fazer isso. A mulher perfeita para ti já existe. – Márcio Pontes Pereira Nassembe – chamou o homem com o grande livro aberto sobre as mãos –, aceita casar com Sara Lídia Chele de Sousa Bernardo? – Tio Nassembe – disse Márcio, ao reconhecer a voz do irmão de seu pai. Visto que estava de costas voltadas para este pediu a Sara que endireitasse a sua cadeira de rodas. – «Tio Nassembe» não é resposta – gracejou o homem com o livro aberto. – É sim ou não. – Sim, aceito. – Sara Lídia Chele de Sousa Bernardo, aceita casar com Márcio Pontes Pereira Nassembe? – Sim, aceito. – E os anéis? – perguntou Alfredo Nkodia no meio do número das pessoas que aumentava a cada segundo enquanto Márcio e Sara assinavam o livro. – Onde estão os anéis? Rogério, que estava ao lado de Gabriela, pôs a mão na bolsa dela e tirou uma pequena caixinha. Embora Gabriela não concordasse com aquilo – pudera! seriam os anéis para o casamento que ela planeajera com aquele homem –, ele andou até o casal e

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entregou-a a Márcio que em poucos segundos colocou um no dedo de Sara e esta colocou o outro no dedo dele. – Foi você quem planejou isso? – perguntou Gabriela, ao pisar ferozmente o pé de Rogério. – Eu dei apenas parte da ideia. Ele deu o resto. E foi bom assim – respondeu ele com ar despreocupado. – Agora podes ser realmente feliz. Tu não eras para ele. Ele não era para ti. – Espero que aguentes o desprezo eterno que receberás de minha parte. – Sei que não será assim, miúda. Sei que não será. – O que estamos aqui a fazer? – perguntou Edgar com voz forte. – A festa é lá em cima! – concluiu Sandra. – Quem vai ficar a cuidar da clínica? – perguntou Narciso. – Nós ficaremos – respondeu Rogério, ao piscar o olho para Márcio. – Podem ir. Está tudo controlado. – Só estou a ver a tua família aqui – tugiu Sara bem perto do ouvido dele. – Não convidaste a minha? – Seria um tolo se não o fizesse. Estão todos no terraço à nossa espera. – És mesmo louco – disse com graça. – E se eu não tivesse aceitado casar contigo? – Aí eu teria mesmo de tirar uma costela para formar uma mulher que aceitasse. – E eu acabaria com ela num instante!

As pessoas casam com o seu verdadeiro amor.

* Passados sete meses, a recuperação total de Márcio Nassembe era um facto, exceptuando as fortes dores de cabeça que surgiam em períodos indiscriminados. No primeiro fim de semana depois de ter voltado para a casa, ele e Sara Nassembe deram uma grande festa alusiva a todos que estavam casados – no fundo, para Márcio foi com o fim de poder encontrar-se com Abigail de Vasconcelos Quiende e confirmar que ela estava feliz; e como lhe soube bem confirmar isso! Tiveram de se tomar inúmeras medidas para se garantir que a integridade física de Márcio não voltasse a sofrer ataques homicidas. A sentença dos anos de prisão para o homem que o tentara assinar por duas vezes foi pesada demais para ser mencionada. Durante alguns dias da semana, Gabriela deixava Bruno Iélcio e Márcia Gaílsa na casa do casal. Márcio descobriu que a casa de que se lembrava como pertencente a Abigail, era na verdade uma um novo empreendimento seu, que teve início quando Gabriela Luvana divorciou-se dele depois de o ter convidado cordialmente a abandonar a casa em que viviam. Todos os seus sobrinhos e filhos de seus amigos também tiveram direito a um evento festivo assim como os pais de seus amigos, os de seus primos, os seus próprios e os de Sara, bem como os de algumas mulheres que passaram em sua vida. Foi meio estranho para ele voltar a conhecer pessoas que já conhecia desde o seu nascimento. Até chegou a conhecer a mulher com quem Narciso provavelmente se casaria. Num dos dias em que passeava com Sara, viu de longe Gabriela e Rodrigo conversando alegremente num restaurante. Tudo parecia estar bem para todos que assim o mereciam.

*

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– Porque continuaste apaixonada por mim depois de tanto tempo – perguntou Márcio, ao entrar com Sara no colo. – Acho que te dei um poema em que reconheci que és a pessoa perfeita para mim. Só contigo podia viver um conto de fadas. Sei que foi duro para ti suportar a minha insegurança, mas agora estou aqui, madura e toda tua. – O passado já lá vai – disse ao pousá-la ao sentat-se sobre o cadeirão, contnuando com ela em seu colo. – Alguns dos teus amigos estiveram contra o nosso relacionamento? – Assim como alguns teus também estiveram… Mas o que é realmente importante? Somos nós quem está a viver a história, não eles. Os meus amigos ouviram a história segundo a minha palavra, os teus ouviram segundo a tua. É normal que eles tomem o partido daquele que eles têm mais afecto. – Está sempre a tentar entender as pessoas – disse, ao passar-lhe a mão sobre o rosto. – Às vezes erras nisso. – A real ideia não é entendê-las. É pensar em algo que me deixe em paz com elas… – O que é isso? – perguntou ao ver um envelope sobre o cadeirão à frente deles. – Vai buscá-lo – disse ele, ao fazer que ela obedece e voltasse rapidamente para o colo dele. – É um poema que escrevi para ti há muito tempo, antes de termos terminado. Nunca chegaste a lê-lo. Acho que recitei-o para ti apenas por meio do telemóvel. É um género de profecia que só agora se cumpre. – Deixa-me ver. Enquanto lia o poema a seguir, Márcio passava-lhe o dedo sobre a deslizante sobrancelha. E quando terminou a leitura, afogou-o num quente e extasiante beijo. Não me trasforme em… Não me transforme em Um anjo descartável Não faça de mim uma Paixão que com o tempo perde o valor Não me transforme em Um desejo perdível Não faça de mim um Amor que serve de esconderijo para a tua dor Não pense em Transformar-me num depósito de lágrimas Sara, não te escondas atrás de mim Não pense em Fugir deste sentimento usando os meus pés (me amas?) Chéldia, não te ponhas a pensar que para isso sou a solução, o fim Não me use Como teu protector contra os que te peseguem Tu és forte, consegues te defender Não tente criar Um Márcio que te salve de todos os que ficar contigo querem Tu és perfeita, não podes perder Me transforme em 152


Teu amigo inseparável Faça de mim uma Pessoa importantíssima para ti, por favor Me transforme em Teu namorado insubstituível Moça, faça de mim um Homem perfeito, teu único amor Fim

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