Ngoma Usuku
cxÄöz|É ]ÉÜzx V{täxá fxvt Junho – 2009
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CAPÍTULO I – Olá, sociedade. Somos a família Canzar e, por vossa causa, dentro de alguns minutos estaremos mortos. A senhora gigantesca que vêm neste momento é a minha mãe. Ela é determinada e inteligente. Este rapaz de cabeça rapada é o meu irmão mais jovem. É versátil, no sentido mais lato da palavra. O das suíças aparadas veio antes dele. É extremamente inventivo. O sem pêlos na parte superior dos lábios é mais velho dos dois. É um cantor excepcional. O gigante que vêm com as correntes na mão é o primogénito. Entende de escrita como ninguém. Eu vim depois dele. Gosto de animais. A menina que vêem deitada sobre o caixão é filha de todos nós. E, novamente, por vossa causa, ela já não respira. Está morta. E, no fim deste vídeo, nós vamos segui-la.
* Seis meses antes da gravação do vídeo em que a família Canzar anunciava o seu suicídio, os eventos que deram azo a tal atitude impulsiva e radical tiveram sua génese da seguinte forma: – Daniela! O que houve? – perguntou Nazaré Canzar ao ver a neta com a face completamente avermelhada e com o olhar marejado. – Não foi nada, mãe – respondeu ela à avó. – Acho que estou com uma alergia. Já é meio-dia. O sol deve estar a queimar a minha pele… – Não mintas para mim, menina – disse, ao aproximar-se dela. – Sei muito bem quando é que tens uma alergia. Essa vermelhidão toda… Alguém te bateu na escola? – Não, mãe. Não é nada – disse ao tirar a mochila das costas e começar a andar. – Lourenço! – chamou Nazaré Canzar. – Vem ver o estado da tua filha. Em escassos segundos, os dois pares de ouvidos femininos naquela sala captaram o som de solas de sapato a descer os degraus à sua frente. – O que aconteceu desta v… – Lourenço interrompeu-se ao ver a estranha coloração do rosto da rapariga. Antes de se chegar próximo dela o suficiente para passar as mãos em seus cabelos louros, retirou o telemóvel do bolso e disse em tom sério, após a pessoa do outro lado da linha ter atendido a sua chamada: – Kalu, vem com o Zau e o Ambrósio. Problemas com a vossa filha. – Desligou em seguida. – Quem te fez isso? – Eu já disse à mãe, pai. Não foi nada. – O que estás a esconder? – perguntou Lourenço ao abaixar-se e olhar fixamente nos olhos azuis e acinzentados dela. – Por favor, pai. Não fales tão alto, senão o Ndombaxi vai ouvir. Aí sim é que será um problema. – Esqueceste-te que posso ouvir e ver tudo nesta casa? – perguntou uma voz pesada emitida por um dos pequenos alto-falantes na sala. – Desçam para a outra sala, para eu poder te ver melhor. – Não é preciso, papá – disse Daniela ao olhar para uma das micro-câmeras. Antes que pudesse continuar a negar-se a dar explicações, Lourenço pegou-a pela mão e levou-a até ao local onde estava o filho primogénito de Nazaré Canzar. No mesmo instante, Ambrósio, Zau e Kalu entraram pela porta traseira. Ambrósio foi o último a se fazer presente na sala a que todos se dirigiram por parar por alguns instantes para colocar sua viola em um lugar seguro. – O que aconteceu, Daniela? – perguntou com voz pesada um homem entre grades de metal. 2
– Foi lá na escola, papá – respondeu ela ao olhar para as grandes mãos de Ndombaxi. – O que é que eles fizeram desta vez? – perguntou Zau. – Como é que o teu rosto ficou assim? – Eles me chamaram de «pele esquisita» – disse ao colocar as mãos entre as grades de metal, para segurar os dedos de Ndombaxi. – Disseram que, por eu ser albina, a minha pele tem a mesma reacção que a pele do tomate quando posto em água quente. Um deles me deu uma forte bofetada em cada bochecha. O outro atirou-me com gasosa gelada no rosto. Ndombaxi levantou-se irritado e atingiu um objecto com a ponta de suas botas. – Papá, por favor, não faça nada – pediu ela. – Esses miúdos precisam de aprender a respeitar-te – disse Zau ao fazer um sinal para Kalu. – Quem foi? – perguntou Nazaré Canzar. – Os filhos da Dona Anita e o primo deles. – É isso que dá viver com estes selvagens! – exclamou a avó sem se aperceber que dois de seus filhos andavam em direcção à porta das traseiras. – Já foste alvo de zombaria na semana passada. Tens um professor tendencioso. Agora vais estudar em grupo e és agredida? Onde é que estamos? A partir de hoje já não vais à escola aos sábados! – Eles chegaram e fizeram isso sem mais nem menos? – perguntou Ambrósio. – Esses miúdos precisam lá de motivos?! – vociferou Nazaré Canzar. – A mente deles só tem dois neurónios: o Imbecil e o Inconsequente. Estes miúdos têm de ser responsabilizados por isso! – É o que vai acontecer, mãe – disse Ndombaxi ao colocar a chave na fechadura da porta gradeada que criava uma barreira entre ele e sua família. – Não! Tu não vais sair daí, Ndombaxi! Sabes muito bem o que aconteceu da última vez que te alteraste. – É impossível que eu saia daqui, mãe. Não tenho nenhuma chave que abra estas grades. Destruí todas da última vez. Estava apenas a riscar o metal… – Ainda bem – assentiu ela. – Não podemos fazer justiça com as nossas próprias mãos. – Não sou eu quem vai dar uma lição àqueles miúdos, mãe – disse Ndombaxi com sua voz pesada. – O Kalu e o Zau acabaram de sair. Antes que Nazaré Canzar pudesse alcançar a porta, seu sistema auditivo captou o cantar de pneus sobre a estrada e, depois de a ter aberto, sua visão captou a imagem de um carro em alta velocidade no meio de fumo miúdo – Kalu e Zau estavam nele, e dirigiam-se para a escola onde pensavam encontrar os culpados de sua ira. – É por isso que não queria contar nada, kitata – disse Daniela ao dirigir-se para Ambrósio. – Se eles não levarem uma lição agora, vão continuar a humilhar-te. Ninguém foi criado para sofrer humilhações – explicou Ambrósio ao pousar-lhe a mão sobre o ombro. – O que é que o tata e o paizinho vão fazer, pai? – perguntou ao olhar para Lourenço. – O Zau e o Kalu são as pessoas mais serenas desta família, filha – respondeu ele. – Não vão fazer nada que te impeça de voltar a frequentar a escola. Vem, vamos cuidar deste rosto. Enquanto andava de mãos dadas com a menina, Lourenço pensava sobre a engraçada distribuição de nomes carinhosos que ela fizera para os cinco homens que
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cuidavam dela. Ela chamava a Ndomabaxi de papá, por ser o mais velho de todos e por ser aquele a quem ela se via mais reflectida em termos de sentimentos. A Lourenço coube o nome de pai, por ser o que mais ficava sério entre eles e o que mais se dedicava a ajudá-la psicologicamente. Ambrósio e Zau receberam a variação de paizão e papá em kimbundu – kitata e tata respectivamente – por serem os que a ensinavam alguns termos nas mais variadas línguas nacionais de Angola. Kalu era o paizinho por ser o mais novo de todos. – Acha que os meus pais biológicos ainda existem, pai? Ai! – perguntou e exclamou ao sentir o arder da substância que Lourenço lhe passava docilmente sobre a face após se terem acomodado na outra sala. – Nós nem sabemos quem são eles, filha. Mas um dia vamos descobrir. – Ai! E porque é que eles me deixaram naquele lugar? – Talvez não tivessem dinheiro suficiente para poder sustentar a eles e a ti… – Não mintas para mim, pai. Já tenho treze anos. Foi por causa da minha pele. Ai! Tenho certeza. – Não podes usar assim a lógica. Muitas pessoas são condenadas à toa por causa disso. Nem sempre as provas falam a verdade. Podem até falar, mas se não as entendermos bem, vamos tirar uma conclusão errada. – Estás a… ai! Estás a falar de perspicácia para fugir ao assunto. Sabes que não estou assim tão errada. – Também não estás assim tão certa. Como é que estão as tuas notas? – perguntou ao terminar de passar a substância. – Continuam como o Everest, sempre a subir. Estou a compor uma música para o Ambrósio. Queres ler? Antes que Lourenço pudesse pegar a folha de papel que a rapariga tirava da pasta, o cantar de pneus muito perto de sua casa despertou-os para outra coisa. – Me larga, kota! Me larga só! Tô a te avisá! – gritavam os dois rapazes que Zau e Kalu arrastavam com fúria para o quintal. – O que é que vocês irão fazer? – perguntou Nazaré Canzar ao sair com Ambrósio, Lourenço e Daniela. – Vamos dá-los de comer aos porcos – respondeu Kalu com expressão séria. – Por favor, mô kota! Num faz só isso! – pediu um dos miúdos ao ver que o outro começara a chorar. – É tarde demais – disse Zau ao levantar o menino ao ponto deste ver os enormes suínos no interior da pocilga. – Uaué! – gritou o rapaz. – Já num vou baté mais a Daniela! Num me põem só aí! Uaué! Minha manhé! – exclamou ao ser atirado para dentro da pocilga. – Me tira só! Me tira só, kota! Uaué! – E aqui vai o outro! – disse Kalu ao atirar o segundo rapaz. – Minha vida! Vô morré! – exclamou o rapaz ao cair bem perto do enorme focinho de um dos porcos e ao tocar nos seus arrepiantes pêlos negros. – Me tira só daqui! Me tira só daqui, mô kota! Me tira! – Aprendam isso – disse Kalu ao inclinar para frente a sua cabeça e a de Zau (a frase a seguir saiu da boca de ambos) –: Não se metam com a Daniela. Os pais dela são maus. – Me tira só daqui, kota! – exclamou um ao olhar para as suas calças molhadas. – É melhor tirámo-los daí – disse Zau. – Esse já acabou por urinar nas próprias calças. Os porcos não querem viver num sítio tão nojento assim. – Vá! Passem para aqui – disse Kalu ao puxá-los para fora com a ajuda do irmão. – Não se esqueçam do que aprenderam hoje.
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– Vocês vão se arrependé, vão vê! – ameaçou um dos rapazes, depois de ambos terem alcançado a rua. – Se isso acontecer, os meus porcos vão aparecer em tua casa por meio de chouriços e presuntos assassinos – disse Kalu ao fazer um gesto intimidador. – Entrem para a casa, meninos – falou Nazaré Canzar ao ver que alguns vizinhos saíam de suas moradias e alguns jovens se aglomeravam à sua porta. – Já não há nada para ver.
* Ao chegar a noite, enquanto todos jantavam, alguns dos vidros das janelas da família Canzar foram quebrados por pedras. Ambrósio e Zau dirigiram-se apressadamente para o quintal com o intuito de achar os responsáveis por tal acção vândala. Todavia, a única coisa que sua visão captou foi um vulto correndo velozmente por entre as pessoas que passavam na rua. – Acho que foi o Fernando – disse Zau ao entrar para casa com o outro. – Ele foi o único filho da Dona Anita que não conseguimos apanhar. Ele pensa que corre demais. Mas terá o seu dia. – Não façam mais nada! – disse Nazaré Canzar ao apanhar os pedaços de vidro partido com Lourenço. – Deixem as coisas como estão. Qualquer coisa que vocês fizerem nesse caso só vai prejudicar a Daniela. Zau e Ambrósio olharam para a menina. Ela estava triste. Comia lentamente. Não levantava o rosto. – Tudo vai correr bem – disse Ambrósio ao sentar-se ao lado dela. – Não são vocês que estudam naquele sítio, kitata. Será que não há uma escola só para albinos? – Porque pões sempre a culpa na tua pele? – perguntou Ndombaxi por meio dos alto-falantes, visto que proibira a si mesmo de sair das grades que criara por ter cometido um crime horrendo no passado. – Porque a culpa é dela. Raios da melanina! Custava-lhe tanto estar nesse corpo? – Não deixe que as pessoas te transformem, filha – disse a pesada voz no altofalante. – Não lhes dês este prazer. Elas é que têm uma mentalidade fechada. Não precisas de comprar uma chave para entrar onde elas estão. – Talvez se o papá passasse pelo que eu passo… Desculpa, papá. Não é isso que eu queria dizer. Acho que deves passar por piores coisas. – Não tens de te desculpar, filha. Estás só a exprimir os teus sentimentos. Depois do jantar vem ter comigo. Tenho uma música para ensaiarmos. – Como é que é essa música? – perguntou parcialmente alegre. – Acaba de comer e desce. – Mãe, alguém mexeu no meu prato – disse Lourenço ao sentar-se, depois de ter deitado os pedaços de vidro. – Ninguém mexeu no teu prato, filho. Eu estava a controlar. Mas alguém mexeu no meu…
* A madrugada chegara. Mais de um terço dos minutos das três da manhã se haviam passado. O tácito grasnar de patos no quintal despertou Nazaré Canzar. Por ter 5
uma forte desconfiança sobre o que se tratava, acordou quatro de seus filhos da forma menos ruidosa possível. Pisando sobre o chão como se pisassem no mais frágil dos objectos, alcançaram a porta – Ambrósio e Kalu na de entrada e Lourenço e Zau na das traseiras. Ao saírem, Lourenço e Zau meteram-se de cócoras ao avistar um vulto. Parecia um homem, e saía silenciosamente do galinheiro. – Apanhámos! – gritou Zau ao lançar-se violentamente contra ele. Aquele choque repentino com um corpo de oitenta e dois quilos fez o homem cair desorientado. Lourenço agarrou-o pelas pernas ao passo que o irmão tentava desarmar-lhe a afiada faca. Antes que Zau pudesse terminar a acção que empreendia com algum esforço, Ambrósio apareceu e chutou a mão armada do indivíduo. Lourenço e Zau largaram-no ao ver que Ambrósio o pegara ferozmente no casaco e nas calças e se preparava para o projectar. De repente, o homem estava no ar. A seguir, seu corpo bateu ruidosamente contra o chão onde se encontravam bodes, cabras e alguns filhotes destes animais. O indivíduo voltou a ficar desorientado. Notavelmente assustado, viu o vulto do homem que acabara de o lançar para aquele lugar de desagradável odor a pular o muro que os separava usando apenas uma mão e a cair entre as pernas dele. Por ter ficado extremamente intimidado ao ver quatro homens com porte de garanhões a tomarem a atitude de partir para o espancamento, sacou da arma em seu casaco preto. – Parem aí! Parados! – imperou ao fazer aparecer os dentes destratados de sua boca. – Alguém quer morrer aqui, hã? Querem? – zombou ao levantar-se. – Vocês podem ser grandes, mas eu vos furo, hã? Vos furo! Têm medo de bala, né? Têm, né? Passem para aqui! Vamos! Passem! Passem! – imperou outra vez ao passar para o lado em que eles estavam e estes para o lado inverso. – Fiquem bem paradinhos aí, hã? – avisou ao apanhar o saco com os animais que furtava. Correu às pressas para um dos muros da casa. Em movimentos rápidos, atirou o saco com os animais para o outro lado e lançou-se para agarrar o topo da parede. Ele nem sequer viu de onde veio a pessoa que o pegou pelo pé e o arrastou até ao chão. – Gatuno! – gritou estridentemente a pessoa. Quando se virou para olhar, ainda deitado, seus olhos captaram a imagem de uma mulher gigantesca – não, ela não era obesa ou gorda; possuía em seu corpo as mais invejáveis das curvas femininas, mas era quatro vezes maior que uma mulher normal. Seu nome – Nazaré Canzar – podia ser lido com certa dificuldade entre a escuridão da noite e os fracos feixes de luz da lua no robe que trazia vestido. Para evitar derramamento de sangue, a gigantesca mulher pisou-lhe a mão e apanhou o revólver que ele tentava alcançar. – Por favor, num me mata só! – pediu o ladrão. – Juro, já não vou roubar mais aqui. – Calma, meu amigo – disse Nazaré Canzar. – Eu não sou de praticar violência contra as pessoas, mesmo quando justificável – esclareceu ao dar as costas e se dirigir para a porta por ter captado o som dos passos de seu filhos se aproximando rapidamente do corpo do indivíduo. – Mas os meus homens não partilham o mesmo sentimento. Escassos segundos depois de Nazaré ter entrado para a casa, se dirigido até ao seu quarto e deitado para voltar a dormir, o ladrão viu-se amarrado por uma corda grossa que lhe dava voltas ao abdómen e lhe prendia as mãos. Ele já estava quase sem roupas no corpo. Os vizinhos que apareceram espancaram-no por alguns momentos. Depois, Ambrósio obrigou-os a parar.
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– Se não quiseres ficar com poucos ossos inteiros no corpo – falou Ambrósio para o ladrão, em tom parcialmente amigável – vais ter de cantar isso até desapareceres da nossa vista. – Ladrão de galinhas! – disse um dos vizinhos ao empurrar o larápio para o lado. Depois de lhe ser ensinada a melodia, o homem saiu quase nu cantando a memorável canção desde a casa dos Canzar até à parte da rua em que os miúdos deixaram de lhe atirar pequenos objectos: Nessa casa num se roubé Os donos são maué
* – Perdeste a festa de ontem, Daniela – disse Kalu ao preparar-se para sair com os outros três irmãos. – Um louco veio roubar as nossas galinhas. Três das oito que ele quis levar eram das tuas… – Eu ouvi o barulho ontem, paizinho – disse ao beijar a face de Kalu. – Decidi continuar na cama para não ficar traumatizada. Detesto cenas de violência. Fico sem acção quando vejo isso. É como se ficasse paralisada. – És como a mãe – disse Ambrósio ao fazer-lhe festinhas nos cabelos louros. – Bem, temos de ir. Tchau Daniela. Tchau, mãe! – Tchau, filhos! – despediu-se Nazaré Canzar em alta voz, por estar muito distante da sala em que os outros se encontravam. – Porque é que queres fazer fumo a esta hora? – perguntou Daniela após estar perto da avó. – O quintal vai ficar a cheirar a casa de fumadores. Vais arranjar makas com as tuas vizinhas… – Esse lixo já está aqui há muito tempo – respondeu a outra. – Para não me dar o trabalho de levar tanto peso, vou transformá-lo em cinzas. E já sabes como é que essas vizinhas se comportam connosco. – Bastava pedires aos papás para o deitarem por ti – disse Daniela ao ajuntar algumas folhas e esterco de animais à fumaça que se encontrava ao lado de um carro antigo. – Aqueles! Já foram cuidar da vida deles a essa hora! Também não os queria chatear. – Então a mãe é que quer ser preguiçosa – concluiu ao sorrir. – Se eu te disser que está na hora de lavares a louça que eles sujaram, ainda me vais chamar de preguiçosa? – Não – respondeu ao colocar as mãos nos bolsos dos calções que cobriam seus recheados membros inferiores até ao joelho e preparar-se para voltar para o interior da casa. – Aí seria «mandiçosa», a aglutinação de mandona e preguiçosa. – Vem cá! – disse Nazaré Canzar ao começar a correr atrás dela. Daniela soltou um grito alegre e correu mais rapidamente até desaparecer do campo de visão da avó. – Toma conta da casa, menina. Vou à praça – disse ela ao ofegar. – Da próxima vez não terás tanta sorte. – Está bem, avó. Traz tamarindos e ginguengas para mim. Ao alcançar a rua, os olhares masculinos subiam e desciam para Nazaré Canzar; os olhares femininos desdenhavam-na. Enquanto andava, cumprimentava despreocupadamente as pessoas com quem se encontrava até chegar ao mercado.
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– Oi, Nazaré – cumprimentou uma senhora, enquanto escolhia alguns legumes para levar. – Oi, Anita. Como estás? – Estou bem. Só os meus filhos é que chegaram ontem à casa a cheirar a coisas de porco. Sabes alguma coisa sobre isso? – Eles bateram a Daniela. Os pais dela não acharam bem… – Olha aqui! – disse a outra alterada ao seguir Nazaré Canzar para outra bancada. – Quando houver algum problema entre os meus filhos e a tua neta sem cor, falem comigo primeiro, ouviu? Pra evitar problema. Só pra evitar problema! – Quanto custam as ginguengas e os tamarindos, meu senhor? – perguntou Nazaré Canzar com voz serena. – Cada cinco kwanzas – respondeu o senhor ao olhar para a falta de pose de Anita Cuchi. – Se os teus filhos se acham muito homens – continuou a outra ao girar a mão com o dedo indicador levantado e batê-la contra a sua própria coxa – eles que vão ao mato desenterrar batatas e mandiocas! Não se metam com os meus filhos! – Vou levar vinte e oito de cada – disse Nazaré Canzar ao vendedor. – 0K, minha senhora – disse o outro ao preparar um saco. Após ter comprado tudo que queria, Nazaré Canzar voltou para casa. Durante uma considerável parte do caminho, Anita Cuchi seguiu-a com vitupérios. Ao fazer a esquina, Nazaré Canzar levou um susto. Sua casa estava a arder. Daniela – Daniela estava aí dentro. Sem se preocupar se os perderia, deixou os sacos nas mãos de um rapaz e correu para lá. – Mãe, começou tudo a arder – disse Daniela ao ser encontrada fora da casa pela avó à frente da multidão que assistia ao incêndio sem fazer nada. – O que é que começou a arder? – perguntou a avó notavelmente preocupada. – O carro… aquele carro estragado no quintal. – Então o incêndio não está dentro de casa…? – Não, não está. – A botija de gás – disse um jovem – a vossa botija de gás pode explodir. Embora soubesse que era impossível, a adrenalina levou Nazaré Canzar a levar a sério aquela frase. – Fica aqui – disse ela ao pousar as grandes mãos sobre a neta. – Aconteça o que acontecer, não entres aí. Sem desperdiçar mais tempo, Nazaré Canzar andou em direcção à casa. Antes dela desaparecer no meio da fumaça densa, sua neta gritou: – Não entres, mamã! Fica aqui! Dentro da casa, Nazaré Canzar estava aflita – sua respiração era abafada e interrompida pela vontade de tossir. Todavia, sua causa não lhe permitia desistir – seu lugar de morada não podia ir pelos ares. Foi até à parte traseira da casa para ver o raio de alastramento do fogo. Apenas o velho carro ardia – ainda bem que os lugares em que se encontravam os animais era distante daí. As chamas eram enormes. O receio enxertou-lhe vacilações por alguns instantes, mas logo recobrou a sua determinação do princípio – o medo era um inimigo a abater quando se tratava da preservação de seus pertences. Num bravo gesto de coragem, abriu a porta das traseiras e foi para a cozinha. – Quem é que está aí dentro, Daniela? – perguntou uma rapariga que acabava de chegar para ver de perto a origem das chamas e da densa fumaça. – A minha avó, Gina – respondeu de forma fechada, por não poder mencionar o nome de Ndombaxi. – Ela… – Só a tua avó? E os teus pais? – voltou a perguntar a rapariga.
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– Foram à praia – respondeu ao suspirar com o polegar e o indicador espalhados pela testa. – A essa hora? – Eles não foram tomar banho. Foram comprar peixes e… – interrompeu-se para limpar a lágrima que lhe caía do rosto arredondado e não voltou a pronunciar-se. A sensação fresca daquele líquido salino ainda estava em seus dedos quando uma estrondosa explosão foi ouvida. Daniela retirou a mão que a amiga lhe colocara sobre o ombro e tentou correr até ao portão. A velocidade de seus pés foi afrouxada pela aparição de uma senhora gigantesca com uma botija de gás sobre a cabeça – Nazaré Canzar estava bem. Quase uma hora depois, os bombeiros apareceram. A projecção de água contra as chamas e a fumaça durou alguns minutos. Quando o grande carro vermelho e sua sirene desapareceram do campo de visão de todos, alguns tentaram entrar para ver a casa, visto que os bombeiros não lhes haviam permitido isso enquanto aí estavam. – Por favor, está tudo bem – disse Nazaré Canzar ao cobrir a entrada com seu imponente corpo. – Vocês não precisam de entrar. Foi apenas aquele carro velho do meu irmão que queimou. – Não. Nós queremos ajudar-te – disse um homem calvo com um grande bigode, enquanto tentava olhar para o rosto de Daniela. – Deves precisar de uma mão para arrumar o teu quintal. – Não, não preciso – disse Nazaré Canzar com expressão séria ao lembrar-se que aquele homem várias vezes ao dia ficava a observar a sua neta à distância. – Foi só uma coisa pequena. Eu e a Daniela daremos conta do recado, senhor Inácio. Fico-lhe grata pela predisposição – falou ao sorrir. – Entra, Daniela. Tenham um bom dia – galanteou ao fechar o portão. Enquanto Nazaré Canzar apanhava vários pedaços queimados espalhados por quase todo o quintal, Daniela entrou para a casa e foi às pressas até à sala subterrânea. Antes de poder pronunciar qualquer som, uma fera canina atirou-se contra o seu corpo. O peso do animal desequilibrou-a um pouco. – Papá, estás bem? – perguntou ao acariciar de forma tépida os pêlos do animal; era um buldogue, um enorme buldogue. – Porque não estaria? – inquiriu Ndombaxi, deitado sobre uma cama atrás das grades de metal. – Houve um incêndio aí fora… – Eu sei. Vi tudo daqui. – Não tiveste medo? – Por ti e pela mãe? E pelos animais? – perguntou com gozo. – Sim, tive. – Estou a falar de ti – disse ao sentir a língua do cão na palma de sua mão. – Já deste de comer ao Dinake? – perguntou ao referir-se ao animal. – Ainda não. Pega um pouco da ração dele naquele saco. Enquanto ela andava em direcção ao objecto indicado por Ndombaxi, o cão a seguia, mas segundos depois parou a alguns centímetros dela, por causa do comprimento da corrente que trazia em volta do pescoço. – Tu nunca pensaste em voltar a sair daqui, papá? Ir a uma festa? Ver o pôr-dosol? – Posso até já ter pensado (se calhar penso nisso todos os dias), mas sou violento demais para este mundo. Estas grades servem de protecção para muita coisa. – É o mundo que tem medo de ti ou se passa o contrário? – perguntou a menina ao meter a ração sobre o prato do animal.
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– Talvez sejam as duas coisas. Não tenho um bom temperamento. E o tamanho do meu corpo só piora as coisas… – Então depositas a culpa no tamanho do teu corpo…? – Em parte – respondeu, ao deduzir o intuito daquela pergunta. – Porque não posso culpar a minha pele pelo que me tem acontecido? – pôs em cheque ao levar o prato para o robusto animal. – A tua pele não tem nada. Sou eu quem bate nas pessoas. A tua pele não sabe kung fu; são as pessoas que te batem. Isto tem apenas que ver com a visão destorcida que a mente delas possui. – Se eu não tivesse essa pele… – Não serias minha filha. Não serias tão completa como és por seres assim. Serias uma pessoa diferente. As tuas qualidades não seriam as mesmas. – Estás a dizer que os albinos são as melhores pessoas do mundo? – Não. Que os que usam o que aparenta ser um defeito em seu corpo para desenvolver uma personalidade inabalável são as melhores pessoas do mundo. – Volto daqui a pouco para continuarmos. A mãe deve estar a precisar de ajuda. – Tudo bem. Depois traz-me uma resma de papel e dois tinteiros. Os que eu tinha aqui já acabaram.
* – O que aconteceu aqui? – perguntou Zau ao chegar com seus irmãos três horas depois do incêndio. – O carro do vosso tio José queimou – respondeu Nazaré Canzar ao levar restos de legumes e verduras para a pocilga. – Assim já podemos nos livrar daquela tralha que não anda. Ficou aqui uns cinco anos, não? – Como é que o fogo começou? – perguntou Kalu ao dirigir-se para a sucata carbonizada depois de terem pousado os sacos com mariscos e peixes que haviam comprado sobre uma comprida mesa de metal. – Estava a queimar umas coisas sem importância: folhas e galhos secos, sacos velhos e excremento. Fui às compras e quando voltei… o sol havia aterrado em nossa casa. – No princípio, eu vi uma parte pequena do carro a queimar – explicou Daniela ao atirar algumas cascas vermelhas para o balde de lixo. – Tentei apagar com ar e areia, mas não resultou… Depois alastrou-se por todo o carro. Fugi, yá? – Sopraste para o fogo? – perguntou Kalu ao examinar os destroços queimados. – E quem de te deu estas ginguengas? – A mãe, senhor Detective. Se quiser algumas basta dirigir-se para a cozinha. Os segundos entre a última palavra de Daniela e a velocidade que os corpos de Lourenço, Ambrósio e Zau tomaram para poder alcançar a cozinha foram exíguos. – Deixem para mim também! – gritou Kalu do quintal. – Não te preocupes – disse Nazaré Canzar. – Comprei o suficiente para cada um de nós ter quatro ginguengas e quatro tamarindos. – Estes teus filhos só sabem o que é multiplicar, somar e subtrair; dividir é difícil para a cabeça deles – disse Kalu ao apanhar um pedaço de plástico e colocá-lo perto do nariz. – Foi por isso que guardei a nossa parte – disse, ao sorrir. – Queimaste o lixo com gasolina? – Não sou assim tão louca!
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– Isto aqui cheira a gasolina. Acho que é o pedaço de um bidão. – Podia ser um bidão de gasolina que ficou aí esquecido por muito tempo… – É isso que vamos saber agora. Lourenço! – Fala, miúdo! – respondeu o irmão ao correr pelo quintal enquanto era perseguido por Ambrósio e Zau, por se ter apoderado do saco com as frutas. – Alguma vez viste algum bidão de gasolina aqui em baixo do carro? – Não! As galinhas não iriam querer pôr ovos num sítio com aquele cheiro horrível! – explicou ao sorrir enquanto se esquivava das mãos de seus irmãos. – Já imaginaste um bando de pintainhos viciados em cheirar gasolina? Nenhuma galinha iria querer isso para os seus filhos. Ai! – exclamou ao ser derrubado para o chão pelo peso esmagador de Ambrósio. – Agora são todos meus – pavoneou-se Ambrósio ao receber o saco. – Ei! Eu sou teu mais velho de três anos – disse Lourenço. – Não podes fazer isso ao teu kota. – Mas eu posso – disse Zau ao receber o saco da mão de Ambrósio e distanciarse deles à velocidade de uma flecha. – Porque é que perguntas? – perguntou Lourenço a Kalu, ao levantar-se e começar a correr atrás do outro na companhia de Ambrósio. – Encontrámos um pedaço de bidão a cheirar a gasolina – disse Kalu, ao atirar-se fortemente contra o corpo de Zau. – Falta! – exclamou Zau ao cair e ficar em baixo do corpo do irmão. – Não estavas no jogo. – Entrei agora – disse ao atirar o saco para Nazaré Canzar. – Assim a divisão será mais justa. – Houve alguma explosão durante o incêndio, mãe? – Sim, houve – respondeu ela, ao apanhar o saco. – Porque perguntas? – Porque este carro não tem nada que pudesse explodir dentro ou fora dele. Acho que alguém atirou esse bidão de gasolina durante o incêndio. Alguém quer fazer mal a esta família.
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CAPÍTULO II Enquanto sua família conversava sobre o estranho aparecimento de um pedaço de bidão carbonizado no quintal, Ndombaxi levantava e abaixava alteres em sua sala secreta. As contracções efectuadas por seus músculos davam azo a uma torrente de suor em todo seu corpo. Aquela era uma das poucas formas que tinha para acalmar o seu espírito irascível. Não sabia a razão de ter tal comportamento violento. Tentava apenas controlá-lo. Quando descobriu da pior forma possível que parecia não ter poder para colocar um freio em suas mãos beligerantes, decidiu cortar definitivamente o contacto directo com outras pessoas – o isolamento pareceu-lhe a melhor opção. Ao pousar os alteres por alguns instantes, colocou um CD no leitor para que seu sistema auditivo captasse a letra e a melodia da música com fundo crítico que ele mesmo havia escrito, mas dera a Ambrósio, a Kalu e a uma amiga do primeiro para a cantar: Agradecimentos Pai: Pode parecer estranho o que vos direi Talvez «mesquinho» seja a palavra certa Para o meu comportamento Tentem mergulhar calmamente No oceano de surpresas tristes que vos guardei Falarei sem mais rodeios Mulher, sei que desconfias de toda a conversa Que te faço ouvir quando chego tarde A morte é o que eu mereço Me apercebo que ficas má Quando te trato com leviandade E é por isso que te agradeço Por permaneceres ao meu lado Mesmo descobrindo Que tenho mais de três amantes E que o restante Do meu salário é o que te entrego Olha, quanto ao caso com a tua irmã Eu estava bêbado Antes de mais nada, agradeço, Querida, lamento as feridas Que te causo por não controlar Minha testosterona E gastar mal a grana Sei que não te mereço Por isso, agradeço Oh! Como agradeço! Mãe: Pra quê falar dessa forma querido? Assim me sinto uma santa
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Mas sabes muito bem que o que faço Não é nada semelhante ao comportamento Da madre Teresa de Calcutá Eu já andei com outros homens Já me meti com o teu papá Te agradeço por continuares comigo Mesmo depois de descobrires isso Olha, foi um dos meus amantes que mandou Aqueles mariscos no domingo Estou-te grata por passares comigo Momentos de alegria Principalmente os de tristeza Nem sei como me aturaste Quando fui atacada por aquela doença Tua presença E teu perdão Querido, agradeço Antes de mais nada, agradeço, Querido, lamento o inferno Que te causo por não controlar Minha projesterona E andar em outras camas Sei que não te mereço Por isso, agradeço Oh! Como agradeço! Filho: Pai, mãe Parece que se esqueceram de mim Venham cá Vocês sabem que sou menos Abel Sou mais Caim O l argent Que desaparece das vossas carteiras Não sou o arguido, sou o réu Também cabe a mim a culpa Quando os vossos carros chegam riscados e sem pneus Qual é o filho que traz doze miúdas grávidas à casa Durante um ano? Quem é que vende as jóias da mãe Sem mais nem menos? Quem é a vossa maior decepção? Digam lá! Quem é que baixa e sobe a vossa tensão Mas mesmo assim vocês continuam comigo Dão-me abrigo Vos agradeço por me aturarem Mesmo correndo alguns perigos Antes de mais nada, agradeço
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Mesmo sendo bandido, em vocês penso Desculpem por não saber controlar os meus dez dedos E, às vezes, vos meter medo Sei que vos ponho sempre tensos Mas vocês me aturam Agradeço Oh! Como agradeço! – O Zando estava quente quando fez esse bit – comentou Daniela ao entrar, relativamente à música que acabara de ouvir. – O intro dos pais e o filho a sentarem-se para jantar e depois começarem a rappar foi ideia do Lourenço. – Ficou fixe. Achas que as pessoas vão entender a ideia que tiveste ao escrever essa letra? – Elas nem sequer vão saber que sou eu quem a escreveu, filha – disse ao voltar a pegar nos alteres. – Porque te escondes aqui, papá? Estar na rua é tão bom. – Já falámos sobre este assunto várias vezes, Daniela. Os selvagens não vivem com os domésticos. – Nem mesmo quando se sabe que os domésticos também podem vir a ser selvagens? – Continuas a falar do que elas podem fazer-me. Preocupa-me mais o que posso fazer a elas. – E se eu fizesse o mesmo? E se eu decidisse esconder-me de tudo e de todos? – dardejou ao atirar uma pequena bola vermelha para o buldogue amarrado ao seu lado. – Não precisas de fazer isso. Não seria por necissidade se o fizesses; seria por imitação… Seria pelo desejo de fazeres algo que faço. – E não é isso o que os filhos fazem? Eles imitam os pais, não? – Onde é que vais buscar estes argumentos? – perguntou ao sorrir. – Tenho bons pais. Não ficas triste por te punires desta forma? Já saíste da prisão há muito tempo, mas continuas a viver numa dentro da tua própria casa… e no sentido literal. – Se fico triste, é apenas para me tornar numa pessoa melhor. Uso este sentimento doloroso para aumentar a pouca serenidade que tenho. – Deves ser claustrófilo… se é que essa palavra existe – disse ao olhar directamente para os olhos castanhos do gigante. – Só pode ser isso… para gostares de estar fechado nesse lugar! – Como já te disse várias vezes, é para o bem de todos. – Mas não para o teu. – Pensa nisso como um sítio em que entrei para ser reabilitado. – Ah! queres lidar melhor com a tua raiva por não lidar com pessoa alguma! Mas são elas a causa da tua ira! Como é que se aprende a conduzir uma bicleta por meio de livros? Simples, não se aprende. É necessário que se suba numa e se caía várias vezes. – Eu lido com vocês aqui. Para o resto das pessoas estou morto. Acredita, querida, eles estão muito bem sem mim. – Mas eu não! Não posso passear contigo… – Miúda, não deixes que a sociedade te ensine o que te faz feliz e o que te torna infeliz. Porquê?
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«As tristezas deste mundo produzem a morte.» – 2 Coríntios 7:10.
* Algumas horas depois da conversa abrasiva com Daniela, com a excepção de Kalu, toda a família Canzar saiu, deixando Ndombaxi com o sentimento de solidão à flor da pele. Era assim todos os dias da semana. De segunda à sexta, Daniela ia à escola, Nazaré Canzar e os seus quatro irmãos iam para os seus empregos. Aos sábados e aos domingos, quando não estavam na Casa de Deus ou a cuidar de algum trabalho doméstico, iam a diversos lugares para divertir-se. E ele – ele ficava sozinho, talvez solitário. Se não fossem a escrita, os inúmeros livros que tinha para ler, o prazer que tinha em suar ao fazer exercícios e o forte amor que tinha por Daniela, talvez já tivessse posto fim a sua vida. Para fugir um pouco de seus pensamentos, resolveu descansar um pouco. – Alguém me contou sobre o incêndio – disse uma rapariga que estava na sala superior com Kalu. – Foi algo mínimo, Ivone – respondeu ele ao levantar-se do cadeirão onde ambos estavam sentados. – Queres que eu te faça algo para comeres? – Yá, pode ser. – Vou pegar alguns ovos no quintal. Volto já. Segundos antes de seu sistema auditivo parar de capatar o som das pisadas do anfitrião, a rapariga levantou-se e começou a andar pela casa. Ela sempre sentiu uma presença estranha naquele lugar. Era como se fosse observada por alguém que não conseguia ver toda vez que ali entrava. Aquele seria o dia em que desvendaria o mistério. Ndomabaxi observava-a na maioria das vezes que ela aí estivesse. Mas naquele dia ele dormia. Ele nunca se sentira seguro quando ela estava aí. Sempre que entrasse para a casa dos Canzar e fosse deixada sozinha por alguns instantes, ela vasculhava o local como se procurasse algo extremamente importante. O que seria? A rapariga andou pela sala e olhou para as fotos da família, reparou nos peixes dentro do grande aquário, tocou na estatueta de marfim e, ao fazer a esquina, interessouse pelo pequeno arco metálico sobre o chão. Puxou para si o pequeno arco e este veio com uma portinhola de madeira. Para onde daria aquela entrada? Desceu as escadas às escuras em busca da temerosa resposta. Quando estas terminaram, sua visão captou a imagem da fraca luz no local sendo refletida por grades de metal. Ao aproximar-se, olhou para cima e viu inúmeros monitores. Num deles podia ver Kalu enxotando as galinhas para retirar alguns ovos. Mas ao abaixar a cabeça, assustou-se. Um homem – havia um homem aí. Estava deitado. Parecia dormir. Mesmo com a fraca luz, dava para ver as feições dele: tinha uma expressão séria, sobrancelhas e pestanas levemente compridas, não tinha barba nem bigode – era bem-parecido. Sua idade rondava entre os trinta e cinco e os quarenta. O tamanho do corpo era exagerado, mas proporcional. Ela reconheceu-o. Seus olhos – ele abriu os olhos. – Daniela? – perguntou ao levantar-se por sua visão não poder definir os contornos avassaladores daquela mulher. – Mãe? – voltou a perguntar por não ter obtido resposta. – Ndombaxi… Então não continuas na prisão.
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– O que disseste? – perguntou ele ao dirigir-se para o interruptor. – Ivone?! – sobressaltou-se ao poder vê-la no desaguar célere da luz sobre o local. – O que fazes aqui? – O Kalu pediu-me para lhe fazer companhia… O que fazes tu aqui? – A minha mãe vive aqui… – Sabes muito bem o que quero dizer. Todo mundo pensa que estás preso! – disse empolgada. – Como é que…? – O Kalu não te pediu nada do que disseste. Tens andado a te oferecer a ele. Vejo tudo isso quando vens falar com ele. – O que é isso? Ciúmes por eu estar a andar com o teu irmão de vinte e dois anos? – dardejou a rapariga, alheia à informação de que a alguns metros daí uma fera canina a observava com olhar feroz. – Tu tens dezoito… mas… não vem ao caso. Porque teria ciúmes? – A cadeia tornou-te amnésico? – perguntou, com olhar parcialmente sedutor; ainda estava empolgada. – Continuas espevitada. Por favor, volta para a sala, antes que o Kalu se zangue contigo. Não faria bem a tua já manchada reputação. Mas, por favor, não diga a ninguém, a ninguém mesmo, que estou aqui. – O Kalu nunca se zangaria comigo. – Eu sou irmão dele… – Eu sou mulher… – Por favor, faça o que te peço. – Eu vou… mas com a promessa de voltar – disse, depois de ter cogitado por alguns segundos e começado a trilhar o caminho de volta para sala de onde saíra de forma furtiva. – Preciso entender por que estás aqui. – Não te posso dizer. Não entenderias. Porquê? «Para ter compreensão, é necessário afastar-se do mal.» – Jó 28:28.
* O domingo estava prestes a ceder o lugar para a segunda-feira. Mesmo depois de se terem passado tantas horas, Ndombaxi não deixava de pensar no que se passara na tarde do mesmo dia. Aquilo não podia ter acontecido. Ninguém podia saber que ele já não era um presidiário. E tal ninguém incluía principalmente Ivone Tchivela – a toxicodependente. Ivone Lando Tchivela era peculiarmente atraente. Seus olhos eram grandes e fugazes. Seus lábios tinham um cor-de-rosa acastanhado que aprazia à visão masculina. Possuía um busto magro que terminava em estonteantes curvas em seus membros inferiores. Todo seu corpo era embelezado por sua pele morena. Era linda por fora. Por dentro parecia que se corrompia. Desde os dez anos que alimentava uma paixão surreal por Ndombaxi. Escrevialhe cartas. Enviava-lhe presentes. Tudo porque um dia ele fora o único que se predispusera a resgatar o animal de estimação dela das mãos de um dos ladrões mais temidos do bairro vizinho. Depois de alguns anos, por razões desconhecias, ela começou a entregar-se a narcóticos e a frequentar lugares em que haviam coisas que davam prazer apenas a quem não tem elevados princípos religiosos. Tornou-se extremamente impulsiva e rebelde. A submissão ao seu pai tornou-se coisa do passado.
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Todos seus hábitos, bem como suas amizades, mudaram. Certa vez, chegou a Ndombaxi a informação que ela fizera um aborto. Talvez fosse apenas um boato. Mas com a triste imagem que ela projectara às pessoas, era difícil não acreditar naquilo. Mesmo que não o tivesse praticado, as mentiras não surgem do nada. Eventualmente houve algo macabro da parte dela que levou a transpiração daquela notícia. Ndombaxi havia sido preso dois meses depois de salvar o animal de estimação dela. Mas a paixão continuou. Trimestralmente recebia cinco cartas dela. Ninguém sabia daquilo. Pelo menos até onde os dois sabiam. Os guardas da prisão permitiam apenas que ele visse o envelope e o nome dela escrito num canto, depois o rasgavam à sua frente. Como eles diziam: «Vamos atiçar a fera!» O paradoxal era que eles não sabiam o favor que lhe faziam. Não podia ter contacto nenhum com aquela menina. E o único que lhe estava disponível era consumido por homens fardados. Parecia estar tudo bem. Tinha apenas de se preocupar em cumprir com sua pena. Não precisava de pensar em ninguém, exceptuando sua mãe, seus irmãos e sua dócil filha. Contudo, ao acompanhar a sua presença regular naquela casa por causa de Kalu, a preocupação era uma constante em seu cérebro. Todavia, tudo estava bem, porque ela nunca o tinha visto aí. Mas agora que voltou a encontrá-lo, para além de recear ter problemas com seu irmão menor, Ndombaxi Canzar sentia medo de ser atormentado pelas acções disfuncionais dela. Pelo amor de Deus! Ele tinha trinta e nove anos! E era alguém perigoso. Afora a possibilidade de ela contar que ele estava aí, como era possível a presença de uma menina de dezoito anos assustar-lhe tanto? Para amainar a fúria que lhe subia à cabeça, pegou um caderno azul e releu um de seus mais antigos poemas. Facécia do meu eu Eu «fui» um ser humano Mereço morrer por não ter sido útil Fui unicamente inútil Por ter estragado o futuro de outrem Nem o não-merecer mereço Sinto desprazer no que sou Por pecar impenitentemente Meu cérebro pergunta-me: «Morte, vida – Qual é a tua ceia preferida?» Não! Nenhuma delas mereço Talvez a aglutinação delas: Morvida… Mas… Não! Nem isso me serve Por tentar parar de me aviltar Muitos dias oro sem parar Mas, depois de deixar o ruim me evadir Lá estou eu estupidamente a transgredir Sonho constantemente em livrar disso Metam-me num saco de vermes Penetrem as maiores das catanas nos meus olhos Passem uma serra nos meus órgãos genitais Espalhem sal sobre o meu corpo 17
E deitem-me às piranhas, por favor Quero livrar minha alma! Porfia é a única coisa que sei causar Emano lixo com o meu falar Louvor à devassidão dou constantemente Álacre devia eu ser, mas, não, sou só tolo Grandes homens, peço-vos um favor, concedei-mo: Invalidem-me na Terra, arranquem-me a pele Obriguem-me a desistir de ser um reles humano Minha mente quer me pôr são Mas para mim ela está a tugir Não a ouço Mesmo depois de tantas lamúrias Minha estupidez não chega à sua raia Continuo a praticar o que é imoral Minha vida tornou-se escória Não! De forma alguma! Não existo Por amor a Deus (o que pareço não ter) Auxiliem-me a despedaçar a fúria e a violência Estou a prejudicar milhares de pessoas Aspirjam-me petróleo e botem-me fogo! Causo neste planeta mordaz ignomínia O nojo que sinto da hipocrisia deste mundo Não atinge o que eu tenho por mim A vil sabujice em mim põe-me a esmo Quero suicidar-me Quero triturar-me Causem-me carnificina Quero ser… Espera! Esqueça tudo o que disse Talvez isso para ti signifique parvoíce
* Manhã de segunda-feira. Como acontecia em dias com aquele, ninguém estava em casa dos Canzar, ninguém, excepto o homem que encerrara a si mesmo numa espécie de jaula zoológica. A jaula – a jaula tinha tudo o que precisava. Havia uma sala, um lugar para dormir e um quarto de banho. Havia espaço suficiente até para um ginásio. Ele já estava aí por mais de nove meses. Mas em nenhum outro dia se sentira tão só e desesperado como naquele. Ao olhar para um dos monitores à frente de si, captou a imagem do portão da frente da casa a abrir-se. Era uma rapariga, e chorava amargamente. Ivone Tchivela – a rapariga agitada era Ivone Tchivela. Ela entrou a correr para o quintal com a mão a cobrir a boca. Havia uma inundação de lágrimas em seu rosto. Quando alcançou a porta da frente, reparou que estava fechada. Bateu. Não houve resposta do interior. Bateu 18
novamente. Não houve reciprocidade de sons. Deslizou tristemente a mão sobre a porta enquanto se abaixava de forma paulatina. Ficou sentada com a cabeça sobre as coxas e os dedos entrelaçados à frente dos joelhos. Soluçava de forma descompassada. Ndombaxi seguia estas imagens num outro monitor. O que teria acontecido? – Ndombaxi – chamou ela com voz chorosa –, por favor, abra a porta. Como era possível ela saber que ele a conseguia ouvir? Ontem – ela estudou bem o local quando esteve com ele ontem. – Por favor – pediu ao levantar-se –, preciso de conversar. Dói tanto! Por favor… O homem por trás das grades de metal apiedou-se, mas apenas por meros milésimos. O contacto com o exterior não podia ser efectuado. Fora ele quem fizera tal regra, e não via motivos para quebrá-la. Ivone Tchivela arregaçou um pouco a comprida manga de sua camisola. Foi então que Ndombaxi viu. Sangue – a rapariga sangrava pelos pulsos. Alguém a teria cortado? Seria automutilação? Uma encenação para poder estar com ele? Irascíveis não se comovem com facilidade. A diferença entre eles e os insensíveis é ténue. Ivone precisava de mais do que algumas lacerações para receber a atenção dele. Ela pôs a mão num dos bolsos das calças e tirou um pequeno embrulho. Abriu-o sofregamente, enquanto chorava. Ndombaxi levantou-se – sua mente reconheceu aqueles movimentos. Ela iria drogar-se. Ele não podia permitir aquilo – não no seu quintal. – Pára… Ivone pára! – Ndombaxi! – exclamou ao levantar-se. – Podes abrir-me a porta? – Já viste onde é que estou. É impossível que eu chegue à porta e ta abra. – Como é que oiço a tua voz tão perto? – Há vários alto-falantes espalhados pela casa… O que houve contigo? – Comigo…? – perguntou ao olhar para os pulsos. – Tive uma discussão com o pai… Fiquei tão irritada! Tranquei-me no meu quarto e cortei os pulsos. Queria morrer… Ele arrombou a porta e continuou a gritar comigo. Saí daquela casa às pressas, só para não o ouvir mais… – Então continuas a sangrar… Vais desmaiar se não estancares o sangramento. – Desmaiar? – perguntou com sarcasmo. – A ideia é morrer. – Ivone, vá a um hospital. Olha, há um centro médico do outro lado da rua. – Não! Há um bem mais perto. Tu podes curar-me. Lembro-me que és enfermeiro… – Era enfermeiro. Amarre as tuas mangas em volta dos teus pulsos. – Não! Quero que sejas tu a fazê-lo. – Isto não é possível, miúda. Vais morrer. Faça o que te digo. – O meu pai é tão estúpido. Pensa que não sei viver a minha própria vida. A minha própria vida! Porque é que ele não percebe o que faço? Se é meu pai devia entender-me. É suposto o criador entender a sua criatura, não? – Pára de falar. Pára o sangramento. – Se não o podes parar, mas ninguém o fará. Vou ficar sentada aqui… – O corpo não vive sem sangue, Ivone – disse ele, sem reparar que aquela rapariga lhe fazia comentar a mais óbvia das lógicas. – Esta regra não tem excepção Pelo menos para os humanos… Não brinques com algo tão sério. O que estás a tentar provar? – Nada. Se não saíres vou ficar aqui até morrer… – Estás a ser estúpida. Não ganhas nada com isso… Talvez estejas a precisar de uma surra… ou de ajuda espiritual.
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– Cala-te! Vou me embora daqui… – disse ao levantar-se e a principiar a correr em direcção ao portão. – Vou morrer num beco qualquer! – vociferou ao desaparecer de todos os monitores. – Precisas deixar os teus vícios e fazer o que Deus pede de ti – disse ele, mesmo sabendo que ela já não o ouvia. Porquê? «O código escrito condena à morte, mas o espírito vivifica» – 2 Coríntios 3:6.
* – Que horas são? – perguntou Daniela, após ter terminado de ensaiar uma canção com Ambrósio no quintal. – Dezanove e quarenta e três – respondeu ele. – Então o papá já deve estar prestes a terminar a conversa com o senhor Hermínio. – O que achaste do que aprendeste hoje, Ndombaxi? – perguntou o senhor que fazia companhia ao homem por trás das grades de metal. – «Mas quanto aos covardes… o lugar destas pessoas é o lago onde queima o fogo e o enxofre, que é a segunda morte.» Estas palavras fizeram-me pensar, Hermínio. – Em quê? – perguntou o outro ao retirar os óculos. – Tenho me escondido de meus problemas… Tenho sido um covarde. Não me tenho dado oportunidades para demonstrar coragem. – O que pensas fazer? – Nada… por enquanto. Para o meu espírito demonstrar coragem é usar a força. Tenho de aprender a me conter por mais um tempo. O problema são as pressões da Daniela. Ela quer muito que eu saía daqui. Ouviste algum choro na rua hoje? – Não. Por que perguntas? – Para além de ti e da minha família, mais alguém sabe que estou aqui. É a Ivone… – Como é que…? – Ela já andou a estudar este lugar há algum tempo. Pudera! Nasceu e cresceu a brincar com os meus irmãos aqui. É curiosa… e maluca. Hoje ela cortou os pulsos. Ficou a sangrar aí fora… Depois saiu a correr. – Espero que não lhe tenha acontecido nada. Mas se ela te encontrou, é por que no fundo querias que mais alguém soubesse do teu real paradeiro. Este teu esconderijo não é propriamente um lugar secreto… Inacessível é a palavra. Estás aqui porque queres ser encontrado. – Eu podia muito bem trancar-me aqui e dar uma chave a cada membro da minha família para abrir a porta de cima… mas não achei necessário. Quero apenas isolamento, não privacidade fanática. – E se ela disser a mais pessoas que estás aqui? – Acho que… tenho a certeza que ela não o fará. Ela tem o desejo doentio… obsessivo de me ter só para ela. Enquanto não for propriedade dela, não divulgará essa informação a ninguém. – Estás tão calmo a falar sobre isso – disse ao passar o polegar sobre o seu aparado bigode. – Estás a gostar? O que sentes por ela? – O mesmo que tu: humanismo.
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– Estás a esconder-te atrás de um sentimento nobre? Não, não te estou a atirar a ela. Estou só a fazer perguntas para saber o que tens aí dentro. – Quantos dos meus irmãos têm namoradas? – Nenhum… E? – Quantas mulheres vês a entrar e a sair daqui? – Nenhuma. Mas agora já sei da Ivone… – O Kalu é o mais jovem de todos nós. Ainda está a aprender a lição… – Que lição? – As mulheres são nossas irmãs – disse ele em tom sério ao fazer o outro sorrir. – Estás vivo todos os dias, não? – Sim – respondeu ele ao ver o outro levantar-se e a arrumar a sua pasta, sem entender a razão da pergunta. – Então Deus tem demonstrado ser teu amigo? – perguntou ao estender a mão para o outro, para despedir-se. – Sim – respondeu ao apertar-lhe a mão com amizade. – Diz-me, que tipo de amigo não vai à casa do outro? – pôs em cheque ao voltar a colocar os óculos. – Ainda não estou preparado para sair daqui e frequentar a Casa Dele – respondeu ao entender finalmente o objectivo daquelas questões. – Para além de Deus, muitas pessoas que te conhecem ficariam felizes. – Como já disse, ainda não estou pronto. Porquê? «Decidi o seguinte para mim mesmo: Não ir ter convosco novamente em tristeza.» – 2 Coríntios 2:7
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CAPÍTULO III Enquanto sua família cuidava de seus afazeres dentro de casa, Lourenço Canzar limpava a guarida dos animais no exterior. Os pequenos suínos de várias cores amamentando-se despreocupadamente enquanto ele arrumava o local faziam-no sorrir. Segundos depois, dirigiu-se para o sítio em que estavam os caprinos. Antes de entrar, certificou-se que o mais selvagem dos bodes continuava amarrado a uma das árvores do local. Deixou suas pupilas fazerem o reconhecimento do estado do temido animal. O bode era enorme. Tinha pêlos brancos levemente acastanhados. Os chifres – os chifres eram assustadores. Os olhos pareciam a materialização da fúria e da amargura. O animal espumava num dos cantos da boca. – Não sei como é que tens coragem de entrar aí – disse Hermínio ao passar por trás dele. – Basta ignorá-lo – explicou o outro. – Como é que correu o estudo com o Ndombaxi? – Foi muito bom – respondeu Hermínio ao colocar a mão sobre o ombro de Lourenço e esticar o pescoço para poder enxergar o animal. – Porque não limpas isso numa hora com mais iluminação? Já são vinte e onze… – Estou muito ocupado nas outras horas… – Trabalhas! Esqueci-me… Bom, até amanhã. – Até amanhã, Hermínio. Bem, hora do suicídio – disse ao atirar-se para dentro do local, após o outro ter desaparecido de seu campo de visão. Enquanto andava sobre excrementos e restos de alimentos, seus olhos vasculhavam o estado dos animais. Pareciam todos saudáveis. Distraiu-se com a engraçada cena de dois cabritinhos que tentavam chocar os seus chifres contra uma lagartixa que os esquivava sem dificuldades ao andar sobre as paredes. Sua audição não o alertou quando um enorme animal acastanhado aproximou-se dele e mordiscou-lhe a camisola. – Uou! – exclamou ao virar-se. – Isto não é comida para ti. O animal – o animal era uma das fêmeas caprinas no local. Mas não era como as cabras comuns. Tinha o pescoço longo e membros superiores compridos. Estava prenha. – Como é que vão os teus filhos? – perguntou ele ao passar-lhe a mão sobre a gigantesca barriga. O animal abaixou a cabeça e um som estranho saiu de sua boca. Lourenço abaixou-se e fixou o seu olhar no dela. Os olhos do animal eram grandes e iluminados. Aos poucos, as pernas traseiras dela enfraqueceram. Sua barriga tocou o chão. As pernas dianteiras entortaram-se parcialmente. Lourenço ficou preocupado. – O que se passa, criança? – perguntou ele ao acariciar-lhe a longa face. O som que saiu em seguida da boca do animal como resposta não explicou pouca coisa: – Mééé! – Mãe! – exclamou ele. – A cabra vai parir! Passados alguns segundos, o animal estava rodeado pelos olhares da família Canzar. A cena era emocionante, dramaticamente emocionante. Envolto em uma placenta, um pequeno animal deslizou para fora da barriga da cabra. Todos os outros animais estavam quietos. Era como se se apercebessem da sublimidade daquele momento. Minutos depois, um outro animalzinho saiu do ventre dela nas mesmas condições. Ela passou a língua sobre eles de forma maternal até a placenta desaparecer. As mães são carinhosas. O pai deles assistia a tudo amarrado à uma árvore. Embora
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fosse destrutivamente selvagem, seu olhar ameaçador tinha naquele momento um brilho marejado – era como se se sentisse comovido com a vinda ao mundo de mais dois filhos seus. Daniela deixou cair uma lágrima de seu rosto arredondado. Nazaré Canzar abraçou-a. Ambrósio dedilhava em sua viola uma melodia melancólica. Kalu improvisava um coro. Todos eles estavam apaixonados por aquele momento. Porquê? «Deus fez os animais. E Deus viu que o que havia feito era bom.» – Génesis1:25.
* Manhã de terça-feira. Lourenço trabalhava fora de casa. Enquanto cuidava dos sistemas operativos dos computadores da empresa, uma mulher apareceu por trás dele. – Hoje não me escapas – disse a mulher. – Não estou a fugir da polícia – gracejou ele ao reconhecer a voz, enquanto se levantava. A mulher que parecia ser muito alta na posição abaixada em que ele se encontrava, num instante adquiriu uma estatura menor – Lourenço era doze centímetros mais alto do que ela. Ela tinha uma altura média. Tinha um corpo recheado. Cinquenta e um anos era a sua idade. Estava trajada de uma blusa vermelha de mangas compridas. As calças apertadas eram de cor creme. Os sapatos tinham a mesma cor da blusa. O cabelo estava preso por um grande gancho preto. Ela usava de jóias – as orelhas, o pescoço e os pulsos estavam enfeitados por algumas. – Hoje vais ter de ir jantar à minha casa. Quero apresentar-te a minha filha. – Sabes muito bem que isso não vai dar certo. – Não faz mal nenhum arriscar. – Tu é que sabes… – E as coisas em tua casa? Como é que vão? – perguntou ao seguir os longos passos dele entre os biombos. – Estamos a ir bem. Só há alguns problemas com a minha filha. – A tua filha… que não saiu de ti. O que se passa com ela? – Tem sido alvo de preconceito. Preconceito extremista! Já chegaram a agredi-la fisicamente. – Esperemos que um dia a mente das pessoas justifique o cérebro que lhes foi posto. – E quando isso acontecer que nome daremos ao preconceito? – perguntou com graça ao sentir o aparelho num dos bolsos de suas calças vibrar. – Pós-conceito – respondeu ao sorrir. – Tenho de atender – disse ao retirar o telemóvel de seu bolso. Ao olhar para o nome marcado no visor, surpreendeu-se: Ndombaxi. – Fala, irmão – disse ao atender a chamada. – Estás muito ocupado aí? – perguntou a voz pesada do outro lado da linha. – São só nove horas! Ainda tenho muito que fazer. Tens algo…? – Pede uma despensa ao teu chefe e corre para aqui. – Ele vai me matar! Os computadores não estão em rede com as impressoras. E eles imprimem muita coisa por aqui. Talvez eu possa sair daqui depois de duas ou três horas. – Alguém entrou aqui e abriu a porta dos estábulos – explicou a voz do outro lado da linha. – Todos os animais estão na rua.
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* – Agarra o pato! – gritou um menino, ao correr atrás do anatídeo com outros rapazes. – Wilson! – chamou Ambrósio ao reparar que alguns cabritos se dirigiam para a estrada. – Orienta estes miúdos, 0K? Apanhem todos os patos e galinhas e levem-nos para a minha casa. – Tá fixe, tio Ambrósio – respondeu o robusto rapaz. – Vamos, vamos. Ei! Não bica o animal! Wilson Luango era um menino de dez anos que tinha uma estranha amizade com Ambrósio Canzar. Há três anos, ele era um dos rapazes que atirava pedras às árvores na casa dos Canzar, para tirar manga. Todavia, conseguia escapar sempre que os donos da moradia saíam para apanhá-lo. Contudo, desde o dia em que Ambrósio o agarrou em flagrante delito e o jogou para a pocilga, cresceu um enorme respeito entre ambos, embora o miúdo tivesse gritado como se estivesse prestes a ser decapitado. Agora, mesmo não partilhando o mesmo sangue, ele tratava a Ambrósio como se fosse seu tio. As pessoas são peculiarmente os seres vivos mais esquisitos. A alguns metros daí, Ambrósio corria desesperadamente atrás da cabra que havia dado à luz na noite passada. Ela estava tão perto da estrada e um automóvel vinha em alta velocidade. Não havia como alcançá-la. A distância entre ela e Ambrósio era mínima. Mas a distância dela com o terreno alcatroado era menor ainda. Embora ele estivesse em movimento mais célere que o animal, o carro era mais rápido. O embate era inevitável. O coração de Ambrósio bateu forte – suas orelhas tremeram com a batida cardíaca. Olhou para estrada, para o carro, para o animal, para a estrada, para o animal. Oh! Não! O carro – parem o carro! Numa área mais distante, Kalu e Zau apanhavam o resto dos animais – alguns porcos, galinhas, cabras e filhotes dos mesmos. Um pouco mais distante ainda, um bode selvagem corria como um cavalo furioso. Ele já tinha atacado ferozmente algumas pessoas que o tentaram deter. Ele era selvagem. E os selvagens são indomáveis. Uma corda – ele tinha uma corda amarrada ao pescoço. Alguns miúdos tentavam apanhá-la, mas fugiam assim que ele parasse e lhes mostrasse os chifres afiados e o olhar assassino. Num salto, o animal pulou para a capota de um automóvel e passou para o outro lado da rua. Depois de correr por mais alguns minutos, parou ao lado de uma árvore. No mesmo instante, no meio da multidão alvoroçada, que não dera conta que um dos donos do animal vinha de forma veloz atrás deles, um dos jovens que foi atacado pelos seus chifres apareceu com um grande pau. O jovem preparava-se para atacá-lo. Quando viu que o pau se abaixava violentamente para atingir o bode e que aquilo só pioraria a fúria do animal, Lourenço estendeu a sua mão à frente do pesado pedaço de madeira. Um dos pregos da ripa arrancou-lhe um pouco da pele do dedo anelar. O jovem ficou assustado. A expressão facial de Lourenço era mais selvática que a do animal. Ele largou o pau. O lábio superior de Lourenço moveu-se involuntariamente. Ele estava notavelmente irritado. O rapaz desculpou-se e ficou parado a observá-lo. Lourenço deu às costas e olhou para o animal. Saiu fúria das ventas do bode. Lourenço deu um passo à frente. O animal abaixou a cabeça e mostrou-lhe os chifres. Lourenço continuou a dar passos. O animal raspou o chão com os seus cascos agressivos. Lourenço recuou. Alguns jovens fizeram uma roda em volta dele e do animal. Lourenço não notou que um dos jovens era um de seus irmãos. O bode correu para a frente e tentou atingi-lo com uma marrada. Ele era ágil – esquivou-se dos chifres.
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O animal espumou. Seus olhos ficaram mais vermelhos. O medo tomou conta das mãos de Lourenço – seus dedos tremiam. O animal veio em direcção a ele de novo. Mas desta vez Lourenço não conseguiu esquivar-se. Os chifres assassinos atingiram-lhe o estômago. Ele desequilibrou-se. Todavia, agarrou ferozmente à cabeça do animal. O bode tentou soltar-se. Ele aumentou a força do abraço. Era uma luta de titãs. O corpo de Lourenço foi para esquerda. A cabeça do bode parecia estar a sair do lado oposto. De repente, alguém agarrou as pernas do animal e, com o peso de Lourenço, o bode tombou. Ambrósio – Ambrósio apareceu para ajudar. Enquanto amarravam as pernas do animal, Lourenço notou que a camisa do irmão estava parcialmente manchada de sangue. Lourenço fixou o olhar luminoso no olhar cegante de Ambrósio. A expressão – a expressão nos olhos de Ambrósio era triste. – O que aconteceu? – perguntou Lourenço ao beirar a rouquidão e a gaguez. – É a cabra dos dois filhotes. Ela… ela foi atropelada. Porquê? «Ninguém sabe quando a hora da desgraça vai chegar. Como aves que caem, de repente... nós também podemos cair na desgraça quando menos esperamos.» – Eclesiastes 9:12.
* Alguns minutos da hora vinte se haviam passado. Lourenço Filipe Canzar estava triste, preparando-se para bater a porta da mulher que na manhã do mesmo dia o convidara para jantar. Desde a hora que deixou sua família até ao momento em que se encontrava, seus pensamentos melodramáticos estavam ligados ao seu animal de estimação que morrera de forma drástica naquela manhã. Quando viu a enorme cabra estendida sobre a estrada empossada de sangue, a dor lhe fez desviar o olhar rapidamente. Todavia, na direcção em que fixara os olhos, observou Zau a aproximar-se em alta velocidade com uma faca – o animal só estava semimorto, precisava ser degolado para servir de consumo. Zau cortou parcialmente o músculo do pescoço do animal – a cabra deu finalmente o seu último suspiro. Lourenço estava abatido. Com algum esforço, Kalu, Zau, Ambrósio e mais alguns jovens arrastaram o animal até à casa dos Canzar. Lourenço trancou-se em seu quarto com os dois filhotes dela. Após terem pendurado o animal de cabeça para baixo e lhe retirado a pele, as partes para consumo foram aproveitadas, o resto foi para o lixo. Quatro horas depois, Lourenço acordou. Sua cabeça doía. Saiu do quarto com os cabritinhos no colo. O cheiro que saía da cozinha era intenso. Toda aquela situação dava voltas ao seu estômago – estava enjoado. Desde a infância que não permitia que a carne dos animais que ele mesmo criava entrasse em sua boca. Certa vez, quando tinha onze anos, havia uma das fêmeas dos suínos que estava cheio de piolhos. Para que não passasse os pedicúlidas aos outros animais, seu pai comprou um estranho líquido para exterminá-los. Lourenço, felicíssimo com a ideia, rapidamente deu um banho ao animal com aquela substância. O animal adoeceu alguns dias depois por ter bebido um pouco do líquido enquanto era esfregado. O suíno teve de ser sacrificado. Lourenço ficou fora de casa por um dia ao saber que seu animal preferido fora morto. Quase vomitou quando sua avó lhe deu um pouco da carne para provar. Agora um de seus caprinos estava na mesma situação. Enquanto sua família apreciava a tenra carne do animal, ele saiu e foi até a casa onde se encontrava à porta, mesmo contra a sua vontade de conhecer a filha de sua colega.
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– Lourenço! – exclamou a colega ao abrir-lhe a porta e a preparar-se para abraçá-lo. – Vieste mesmo! – Às vezes o impossível acontece – disse com graça ao ser afogado pelos braços da senhora. – Entra. Lourenço extasiou-se com o interior da casa. Era estrondosamente grande. Alguns vasos e quadros peculiares a adornavam. As cores espalhadas pelos objectos presentes davam uma vivacidade invejável ao local. – Senta-te aqui – disse a mulher ao apontar para um assento volumoso. – Vou para a cozinha. Antes que a mulher desaparecesse por completo de seu campo de visão, seu olfacto captou um inebriante aroma navegando sobre a atmosfera. Quando voltou o seu rosto para o lado, viu a aproximar-se de si uma cópia aprimorada da anfitriã – a filha de sua colega vinha em sua direcção. Os sentidos dele ficaram embasbacados. A mulher era linda. Seus cabelos compridos eram lisos e tepidamente avermelhados. Seu admirável busto estava coberto por uma blusa detentora de um preto lustroso assim como o cinto em volta de sua cintura que, na companhia de seus apetecíveis membros inferiores, estava coberta por um par de calças rosa pálido. O modo como andava em suas sandálias de salto alto era de cortar a respiração. Tinha provavelmente trinta e dois anos. – Oi – cumprimentou ela ao estender a mão principesca e sentar-se. – Chamome Sandra. – Chamo-me Lourenço – disse ele ao repetir o gesto. Ao apertar a mão aveludada daquele homem, Sandra reparou no brilho que saía de um dos dedos da outra mão dele. O olhar dela ficou frio. Disfarçou um sorriso e largou a palma de Lourenço. – Vou à cozinha ver se a minha mãe está a precisar de ajuda – disse parcialmente constrangida ao levantar-se. – 0K. Vou estar aqui toda a noite… Ela dardejou-lhe com o olhar antes de entrar para o lugar em que sua mãe estava. – Não quero conhecê-lo, mãe – disse ela ao abrir a geleira e retirar um copo de iogurte. – Porquê? – perguntou a senhora ao encher dois copos com vinho tinto. – Não quero ser a amante de ninguém. – O quê? Amante? Ele não é casado! – Ai não? Olha para a mão dele! – imperou ao colocar uma colher dentro do copo em sua mão. A mulher espreitou por alguns instantes os movimentos do homem em sua sala. Num gesto engraçado, ele balançou a mão esquerda sobre sua cabeça. Foi então que sua colega viu. Um anel – ele tinha um anel no dedo anelar da mão esquerda. Louco! Como era possível alguém pregar uma partida infantil daquelas? A mulher foi ter com ele. – O que é isso na tua mão? – tugiu ela ao bater-lhe levemente na cabeça. – Ah! O anel? Tive uma briga lá na minha rua – explicou ao sorrir. Seus pensamentos deduziram que Sandra os observava. – Briga? O que é que isso tem que ver com usares um anel? – Alguém me atingiu com um prego neste dedo. Para não ferir a sensibilidade da tua filha, decidi cobrir isso com uma curita, mas ficava feio. Resolvi pôr um anel. É mais prático e nem se nota que tenho uma ferida. – Uma ferida? Ah! bom! – disse ao dar-lhe as costas. – Volto já.
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Lourenço continuou a sorrir de forma inaudível. Nenhuma mulher se atreveria a manter contacto com alguém com um comportamento tão imaturo. Segundos depois, ele preocupou-se – raios! Sandra voltava com uma caixa de primeiros socorros. – O que vais fazer? – perguntou ele, parcialmente intimidado. – Cuidar de ti – disse ela ao retirar-lhe o anel numa lentidão sedutora. – Não tens me… Não tens medo de tocar nas mãos de um estranho? Posso ser um assassino… ou o Jack, o Estripador… – Um estranho que faz a minha mãe rir tanto não pode ser um estranho mau – disse ao limpar-lhe a parte lacerada com álcool. – O que és? – interrompeu-se ao perceber que sua pergunta fora tola. – Em que trabalhas? – perguntou ao sentir o leve arder da substância incolor em seu dedo. – Sou a gerente de um banco – respondeu, ao colocar o algodão usado num canto da caixa e retirar um pequeno adesivo branco. Lourenço sentiu-se zonzo ao reparar na forma como ela movimentava os lábios. Enquanto ela colocava lentamente o adesivo de forma anular em seu dedo, ele arrependia-se de ter aceite o convite para jantar com elas. Raios! Agora seu coração queria participar do jogo daquela mulher. Porquê? «Ela é turbulenta e obstinada. Fez a sua face atrevida… Seduzi-o com a maciez de seus lábios.» – Provérbios 7:11, 13, 21.
* Alguns minutos antes da madrugada ter início, Lourenço Canzar chegava fisicamente à casa, mas seu espírito – seu espírito vagueava entre os caminhos da morte de um de seus animais e da encantadora mulher que acabara de conhecer. O jantar havia sido animado. A conversa entre os dois teve sentido do princípio ao fim – sim, ela era inteligente. Era uma pena que, para ele, aquele seria o primeiro e o último contacto que tiveram. – Ainda estás acordado, Ndombaxi? – perguntou ele ao dirigir-se para a cozinha. – Sabes que não durmo tão cedo – respondeu a voz pesada nos alto-falantes. – Sobre o que aconteceu de manhã... – disse ao destampar as panelas sobre o fogão. – Chato! – exclamou ao sentir o cheiro que saía de uma das panelas. – Esqueci-me o que vocês comeram ao jantar. Viste quem fez aquilo? – O filho da Dona Anita, o Fernando... Ele e mais alguns miúdos. – Este miúdo passou dos limites! – exclamou ao apertar a unha do dedo polegar contra a pele do dedo médio. – Conseguiu evocar o meu pior lado. Contaste isso à mãe? – Contei a todos... – E o que é que fizeram? Penduraram o miúdo de cabeça para baixo? – ironizou secamente ao dirigir-se para a sala. – Não fizeram nada. Mas amanhã vamos ter uma reunião familiar. Só não a tivemos hoje porque tu... Onde é que foste? – Fui à casa de uma minha colega. Ela quis que eu conhecesse a filha dela... – E como é que correu? – Levei um anel para fingir que sou casado. Elas descobriram o truque... E acho que ela já estava apaixonada por mim antes mesmo de me conhecer. A mãe dela teve ter lhe entulhado um kibuto de informações sobre mim... – Sabes o que é que os Canzar fazem nestas situações?
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– Atiram a rapariga aos porcos... – Convencem a rapariga que já a amam e que querem casar com ela. Envia-lhe uma mensagem a dizer que queres namorar com ela daqui a uma semana. Três dias depois pede-a em casamento. Mostra-lhe que a coisa é séria. Ela vai fugir a sete pés! As mulheres não estão preparadas para assumir uma relação séria em tão pouco tempo. Nunca estão. Assim terás o caso resolvido no mínimo em três meses. – Tu és realmente diabólico! Mas gostei da ideia... – Não atires o diabolismo a mim – disse ao sorrir. – Foste tu quem me deu esta dica há algum tempo. Olha, o Kalu desconfia que o Fernando está envolvido no caso do bidão de gasolina. – Se ele estiver certo, este miúdos está mesmo a precisar de um correctivo a Lourenço. – Mantém-te frio, irmão. Estou a começar a ter uma ideia para acabar de uma vez por todas com esses ataques de vandalismo. Desde que nos mudámos para aqui que essa família não nos deixa em paz… – E pensar que a Dona Anita foi a melhor amiga da mãe no passado… – O comportamento podre tanto dela como do marido– disse ele, com seu jeito rude de falar – é desnatural… – Talvez ela se comporte assim por causa dele. Ele a espanca com um martelo às vezes, e tem álcool no corpo assim como o oceano tem água. – Ela também bebe, e muito antes de os dois terem ficado juntos. São tão repulsivos. Não têm nada de social… Um barulho de risadas estridentes interrompeu a conversa dos dois. Lourenço espreitou discretamente da janela e viu três jovens na parte de cima do muro que rodeava sua casa. Eles estavam posicionados sobre a cabeça de um camião. – Lourencito! – chamou um. – Foi boa a carne do cabritinho? – desdenhou ao sorrir, enquanto os outros urinavam para dentro do quintal. – Amanhã há mais, boelo! As gargalhas irritantes que seu sistema auditivo captou em seguida fizeram-lhe tremer o lábio superior – zangou-se. Antes que pudesse abrir a porta para vociferar ameaças, o camião pôs-se em andamento. – Não precisas de fazer nada – interrompeu-o Ndombaxi ao fazer com que Lourenço largasse a maçaneta. – Vamos resolver isso. – Não posso continuar de braços cruzados, Ndombaxi. Eles mexeram onde não deviam. Amanhã o dia será quente. Porquê? «Agora se riram de mim, os que são mais jovens do que eu, cujos pais eu teria recusado pôr com os cães do meu rebanho.» – Jó 30:1.
* – Pai, hora de acordar – disse Daniela ao passar pelo corredor ao lado do quarto de Lourenço. – Que horas são? – perguntou ao levantar-se. – Cinco e dezassete! – exclamou ao entrar apressadamente para o quarto de banho por reparar que Nazaré Canzar tentava ultrapassá-la. – Amanhã acorda mais cedo, avó. Assim vais poder usá-lo primeiro. – Porque é que o meu telefone não me despertou? – perguntou Lourenço ao pegar o aparelho ao lado de sua cama. – Pudera! A carga acabou.
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– Ontem chegaste tarde – disse Nazaré Canzar ao vê-lo sair do quarto com o telefone e um carregador de baterias. – Tiveste trabalho extra? – Vocês comeram a minha cabra ontem. Não podia ficar a ver. – Deus fez os animais para serem comidos por nós. Porque és tão sensível com eles? Porque é que os crias? – Porque gosto. – Vais deixar que eles envelheçam até morrer? És tão estranho… – Não fales comigo. A minha barriga é que não aguenta digeri-los. – Mas não saíste apenas por causa da cabra. Onde é que foste? – perguntou ao ver que Kalu, Zau e Ambrósio saiam de seus quartos. – Ele foi à uma festa, mãe – intrometeu-se Zau. – E nem sequer nos levou. – Enganas-te – disse Kalu. – Ele foi ver a Adélia, a miúda dos lábios malucos. – Vão tomar banho! – disse Lourenço ao travar uma gargalhada. – Vocês parecem muito inteligentes quando estão calados. Basta abrirem a boca… –Então onde é que foste? – voltou a perguntar Nazaré Canzar. – Fui jantar fora. Uma colega me fez um convite. – E ela não tentou nada? – perguntou Ambrósio ao empurrar Kalu que tentava tirar-lhe a toalha. – Ela é muito kota! – disse Lourenço. – Mas a filha… a filha precisa ser analisada cientificamente – explicava ele, despreparado para ouvir o grito que aconteceria a seguir. – A natureza estava a criar uma espécie superior de humanos… – Avó!!! – gritou Daniela do quarto de banho ao fazer com que o susto tomasse conta de todos. – O que foi, filha?! – perguntou ao correr para a porta. – Há uma cobra aqui! Num ápice, todos ficaram aglomerados à frente da porta. Ambrósio preparava-se para arrombá-la. Lourenço interrompeu-o. – Espera! – disse o segundo filho de Nazaré Canzar. – Estás vestida, filha? – perguntou ao fazer sinal para os outros passarem para trás de si. – É claro que estou! – gritou ela. – A cobra tentou violar-me! – disse com sarcasmo. – Claro que não estou vestida, pai. Atirei-lhe a minha toalha em cima. – E onde é que estás? – Sobre a sanita. Pai! Pára de fazer perguntas e tira esse animal daqui! – gritou de forma histérica. – Entras tu primeiro, mãe – disse Lourenço. – Mas, por favor, não mate a cobra. – Consegues chegar até à porta, Daniela? – perguntou Nazaré Canzar. – Yá! Diz aos papás para se virarem. A seguir, a rapariga desceu da louça sanitária e esticou-se de forma ágil até alcançar a maçaneta. Não podia sair porque a toalha estava posicionada à frente da porta. – Entra com cuidado, mãe. A cobra está mesmo aí à frente. Nazaré Canzar entrou e olhou para o ofídio – era preto e esguio; devia ter uns trinta centímetros. Ela sacudiu a toalha. O animal rastejou-se para perto do bidé. Nazaré Canzar cobriu a neta e saíram do local. – É grande? – perguntou Lourenço, com curiosidade infantil. – A tua filha é exagerada – respondeu a mãe. – É uma cobrinha… Lourenço entrou com um talher e um pequeno frasco. Suas pupilas levaram alguns segundos para encontrar o animal. Ele estendeu o talher e o ofídio mostrou a língua. Ele prendeu a cauda do animal com um dos dentes do garfo. O animal tentou
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morder o metal, mas mordeu a sua própria pele. Lourenço sorriu. Levantou-o e o colocou no frasco. – Hoje será um bom dia – disse ao sair do quarto de banho. – Já podes entrar, Daniela. Uma hora depois, sentaram-se todos para tomar o pequeno almoço. Após algum tempo, saíram todos. Ao andar pela rua, Lourenço deparou-se com Fernando. Ele estava do outro lado da esquina a andar com outros miúdos. Ivone Tchivela estava com ele. Provavelmente iam à escola. O rapaz tinha um ar rebelde. Lourenço tentou ignorá-lo, mas ele fez um gesto zombador com uma lata de spray na direcção deste. Lourenço olhou para si mesmo. Reparou nas sapatilhas que tinha calçado, nas calças jeans azuis escuras e na camisa branca de mangas curtas que tinha vestido e sentiu o peso da mochila preta em suas costas – se corresse para alcançar Fernando apenas perderia tempo e ficaria empoeirado sem necessidade. Entrou num candongueiro e o miúdo desapareceu de seu campo de visão. – Ei! Querem ver algo espectacular? – perguntou Lourenço, depois de estar no seu local de trabalho há três horas. – O quê? Mostra – disse um colega ao fazer sinal para que os outros se aproximassem. A seguir, Lourenço abriu sua pasta e retirou um frasco de dentro dela. As mulheres ficaram arrepiadas. – És maluco! Guarda isso! – imperou uma. – Queres aparecer no Ecos e Factos como o homem que morreu por brincar com uma cobra, né? – perguntou outra. – Tens trinta e sete anos. Pára de agir como uma criança – disse um senhor idoso, ao bater-lhe levemente na cabeça. Horas depois da amostra do ofídeo aos seus colegas, Lourenço tomou o caminho de volta para a casa – o dia laboral estava terminado. – Ei! Lourenço! – chamou uma mulher, antes que ele pudesse passar para o interior de outro candongueiro. – Entra para o meu carro. – Dona Elisa – disse ele ao dirigir-se para o automóvel em que ela estava. – Esse favor vai precisar de retorno? – Porque é que pensas que quero sempre algo em troca? Eu não te estou a vender a minha filha. – Mas foi o que me pareceu ontem enquanto jantávamos – disse ao entrar para o carro. - «Vocês dariam um belo casal.» Que espécie de mãe és tu? – Uma que quer ver a filha feliz e o colega… felicíssimo – explicou com graça ao meter o auto em movimento. – A Sandra é perfeita para ti. A conversa em torno da filha de Elisa continuou por todo o caminho. As coisas que ela falava sobre Sandra, Lourenço tentava ignorar, mas entravam-lhe nos sentimentos, corrompiam sua falta de interesse por ela. Minutos depois, pediu para que ela parasse o auto. – Vais ficar aqui? – perguntou Elisa. – Não é um pouco distante da tua casa? – Sim, é. Mas tenho algo a resolver aqui. – 0K. Amanhã nos vemos. Antes que seu sistema auditivo deixasse de captar o som agradável do motor daquele carro, ele bateu o portão à sua frente. Segundos depois, alguém apareceu para abri-lo. Era Fernando, o vândalo.
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– O que fizeste ontem em minha casa? – perguntou Lourenço, notavelmente irritado. – Nada! – respondeu ele ao correr em direcção para uma porta, fazendo com que Lourenço o seguisse. – O que é que queres aqui? – perguntou ele, com voz alta. Antes que pudesse responder, seu visão captou a imagem de alguns jovens a saírem da casa com alguns paus e garrafas na mão. Lourenço ficou naquele local hostil por quinze minutos. Depois voltou para o seu lugar de morada com uma expressão cruel em seu rosto. Ao entrar para a casa, Daniela levantou-se às pressas para abraçá-lo, mas interrompeu-se ao ver o estado macabro em que ele chegara. – Pai, a tua camisa está rasgada e toda suja… A frase que ela ouviu a seguir fez-lhe tremer o espírito: – O Fernando corre o risco de nunca mais ir à escola. Porquê? «Na minha ira e no meu furor, eu pisei e esmaguei… ; o seu sangue manchou a minha roupa, que ficou tingida de vermelho.» – Isaías 63:3.
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CAPÍTULO IV A alguns quilómetros da casa dos Canzar, Ambrósio preparava-se para gravar mais uma de suas músicas revolucionárias. À vista superficial, ele se parecia muito a Ndombaxi. Tinham quase a mesma musculatura – sim, embora fosse o terceiro filho, Ambrósio era relativamente maior que Lourenço, o segundo. Uma das diferenças entre ele e o primogénito era que Ndombaxi tinha ligeiramente um tom de pele mais escuro. Diferentemente do irmão, Ambrósio usava barba, mas uma barba bem aparada, peculiarmente desenhada. Outra era que Ndombaxi era beligerante com as mãos, ele era com a voz. – Este mambo está hot, nigger – disse Zando, o dono do estúdio, ao terminar de ler as folhas em suas mãos. – Acho que vais ser processado se alguém ouvir isso! – Andei à espera desse momento há muito tempo – disse Ambrósio. – Que momento? – perguntou a elegante rapariga ao seu lado. – De um dia em que eu estivesse com muita raiva, para poder droppar no bit com mais agressividade – respondeu ele, ao receber as folhas das mãos de seu amigo roliço. – Ensaiaste bem a tua parte do fado, Irene? – Yá, está tudo fixe aqui – respondeu a rapariga elegante, ao dar um gole de água. – Tens mesmo de cantar a parte da Maria com aquele tom de fado, como a Mariza, ouviu? – disse, ao referir-se à fadista de Portugal. – E a tua parte de Jesus Cristo, Kalu? – Até vão pensar que levamos o estúdio até ao céu para conseguirmos essa voz – respondeu o irmão, enquanto brincava com uma guitarra. – Bem, vamos a isso! – disse Zando, ao fazer com que todos entrassem para uma sala e se posicionassem perto de um grande microfone preso ao tecto. – 0K. Vamos seguir a ordem, primeiro o Ambrósio, depois o careca Kalu, e por último a miss Irene. – disse ele, do outro lado do vidro, enquanto mexia em inúmeros botões. – Deixa-me preparar o sample de fado… Está fixe. Podem cair na coisa! O silêncio conversa sobre… Não é para falar sobre banalidades Que neste momento canto para ti Mas é para falar sobre as falsas doutrinas Que sem querer descobri Quando vais à igreja Quantas vezes ouves o nome de Cristo? E quantas vezes eles dizem o nome de Deus, O Ser Bendito? Porque é que fazem o sinal da cruz Quando acabam de orar? Se Deus merece adoração exclusiva Então porque é Jesus que está no cimo do altar? Se a teoria do dízimo está certa Porque é que ainda existe pobreza neste planeta? Espera! Não posso fugir do foco
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Preciso apenas de te falar de Cristo E saiba que não será pouco Ensinam-te a adorar a pessoa errada Tens a certeza que andas na luz? Se não concordas Com nenhuma das minhas palavras Ouça então as vindas da boca de Jesus: «O Pai é maior do que eu Tenho os poderes que tenho porque ele me deu As coisas que vos digo Não falo de minha própria iniciativa Invoquem o nome Daquele que me enviou Pois é ele que me glorifica» Conseguiste entender, Descobrir e perceber Os pecados que esses líderes religiosos Andam a cometer? Será que nos fazem adorar o Filho Porque confundem-no com o Pai? Ou não entendem bem as Escrituras Porque estão na mão de Belial? O que pensas? O que achas? Porque não dizes nada? Não sabes as respostas? Não precisas de martelar a cabeça pois O silêncio conversa… O silêncio conversa… O silêncio conversa… O silêncio conversa… Pois o silêncio conversa sobre tudo A ausência de som confessa o quão profundo É o precipício da apostasia Chamar o Senhor de Menino Jesus E a mãe dele de Virgem Maria Quando na verdade um poderoso rei já é E a outra teve outros filhos com José A adoração não é para mãe nem para o filho Parem com essa profanação Antes que cheguem os verdadeiros sarilhos Não há dúvidas, O que se ouve é Senhor Jesus por toda parte Chegaram ao cúmulo da apostasia Quando disseram que Deus é uma trindade É como dizer que tudo o que Cristo pregou foi heresia Maria foi a mãe dele na Terra Mas será que merece ser adorada? Em caso negativo
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Então porque é que é idolatrada, Pintada, rezada e invocada Se o próprio Jesus Quanto a esse assunto não disse nada? E mesmo que falasse Não seria para repetirmos 50 ave-marias Quando pecássemos Forneçam a verdade que liberta a nós leigos É disso que precisamos Por favor, Parem de adaptar as doutrinas Quando há dinheiro em causa Façam o obséquio de ensinar o que está escrito Não a vossa própria palavra Vou pôr Maria a conversar convosco Visto que a vossa atitude a tem posto chateada: «O fim de Babilónia, a grande Está próximo Fugi dela enquanto há tempo O que vós fazeis é profano Suja o nome Daquele que é Eterno Vou perguntar-vos algo sem lógica Se encarais o que fazeis como certo, Porque é que o nome de uma de vós Rima com diabólica?» E não digo mais nada pois O silêncio conversa… O silêncio conversa… O silêncio conversa… O silêncio conversa… Pois o silêncio conversa sobre tudo A ausência de som confessa o quão profundo É o precipício da apostasia Chamar o Senhor de Menino Jesus E a mãe dele de Virgem Maria Quando na verdade um poderoso rei já é E a outra teve outros filhos com José A adoração não é para mãe nem para o filho Parem com essa profanação Antes que cheguem os verdadeiros sarilhos
* – O meu irmão fez o quê? – perguntou Ambrósio de forma exaltada, ao chegar à casa com Zau e encontrar dois carros de patrulha e alguns policiais a fazer um inquérito a Lourenço na presença de Daniela, Nazaré Canzar e Zau.
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– Ele agrediu um rapaz – respondeu um dos policiais, sem olhar para para o homem que lhe fizera a pergunta. – Vire-se! – imperou ele a Lourenço, ao tirar um par de algemas do cós. – Que provas têm disso? – disse, ao receber as algemas da mão do policial. – E, por favor, olhe para mim enquanto falo contigo. Isso não tem nada a ver com a farda de sargento que estou a usar neste momento – explicou calmamente, ao fazer com que o policial reparasse nas estrelas que ele tinha nos ombros –, mas não podes tocar no meu irmão enquanto estiver aqui. Vocês vão pegar o rapaz que diz que ele fez isso, e tragam-no aqui… ou esperem até terem um mandato. – O miúdo está na outra carrinha. Ele também vai connosco. – Ainda bem – disse Ambrósio, ao endireitar o revólver em sua cintura e dirigir-se para o auto azul-escuro. – Fernando – disse, ao abrir a porta e captar a imagem de um rapaz com um grande inchaço na testa –, precisamos de conversar, rapaz – declarou, ao retirá-lo gentilmente do carro. – Vamos todos entrar meus amigos. Isso é uma coisa que podemos esclarecer da forma menos barulhenta e burocrática possível. O rapaz ficou intimidado. Antes de Ambrósio chegar, ele estava tão confiante que Lourenço iria parar atrás das grades assim como o seu outro irmão irascível. Agora o plano parecia ir por água abaixo. Ele precisava pensar em algo, e tinha de ser rápido. Porquê? «Para o malvado, fazer o mal é divertimento.» – Provérbios 10:23.
* Minutos antes das vinte e duas horas, a querela inusitada na casa dos Canzar chegou ao fim. Entre fardas azuis e verdes, boinas, algemas, revólveres, roupas rasgadas, inchaços na testa, manchas de sangue, suor e tremeliques, a situação foi resolvida. O miúdo falou tudo. Nada como um homem forte com um revólver à cintura e uma voz firme para resolver as coisas, principalmente quando ele tem um vídeo que mostra alguns dos actos de vandalismo que o rapaz praticou contra os animais de sua família. Fernando Cuchi tentou provar que Lourenço havia entrado em sua casa e o agredido como um louco. Falou sobre o filho de Nazaré Canzar usar um pedaço grosso de madeira para atingir-lhe a fronte e que de forma insana esmagou-lhe a mão esquerda. (Lourenço nada dizia – não se defendia, olhava apenas para o rapaz com uma expressão ferina. Era assim desde criança, preferia sofrer maus-tratos a abrir boca quando alguém o acusasse sem provas.) Quando Ambrósio se levantou da mesa como a pior das feras assassinas e o colocou contra a parede, o mancebo cantou a verdade assim como os Kafala solfejam as suas canções. Entre a gaguez e o corpo todo a tremer, contou que seus amigos fugiram quando Lourenço os ameaçou com uma cobra que trazia num frasco. Por não se sentir intimidado, ele tentou apanhar um dos pedaços de vidro das garrafas espalhadas pelo chão. Num acto impulsivo, para se defender, Lourenço pisou-lhe a mão que imediatamente foi cortada pela ponta afiada do fragmento envidraçado. Ao retirar o pé e tentar ajudá-lo, o rapaz agarrou-lhe na camisa branca e deu-lhe uma cabeçada, fazendo com que a roupa de Lourenço ficasse manchada de sangue. Durante alguns minutos, Lourenço defendeu-se de seus golpes adolescentes, mas quando Fernando pisou no frasco e matou a cobra de forma propositada, o punho pesado do Canzar enraivecido contra sua testa o fez cair de forma descurada. Antes de atingir o
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chão, sua fronte foi lacerada por uma pedra. Fernando ficou estatelado – não se movia; parecia desmaiado... ou morto. Seu agressor circunstancial tentou prestar-lhe ajuda pela segunda vez, mas o grupo de rapazes voltou com mais adeptos. Dois deles rasgaram-lhe a camisa enquanto tentava escapar-se. Com alguma luta, ele soltou-se e correu até o segundo portão onde a visão de todos deixou de captar a sua imagem após alguns segundos. Os mancebos tentaram alcançá-lo, mas ele era ágil e rápido demais para ser apanhado por eles. Ao voltarem para a casa de seu amigo, notavelmente preocupados com Fernando, encontraram-no a esfregar o grande inchaço que tinha na testa com um pedaço de tecido – ele não tinha desmaiado realmente, fora um truque para não voltar a apanhar golpes tão rochosos quanto o murro que lhe atingira a testa. Foi neste exacto momento que ele teve a ideia de inventar que fora brutalmente atacado por um adulto desvairado. Quando seus pais chegaram, o primeiro terminal telefónico a ser discado por Anita Cuchi foi o da polícia. E tudo o resto foi acontecendo como ele tinha previsto. Os policiais pegaram-no em casa e pediram para que ele mostrasse a casa do agressor. Senão fosse o aparecimento imprevisto de Ambrósio e sua habilidade de extrair a verdade a qualquer pessoa, Lourenço teria passado alguns momentos de angústia na prisão. – Já tinhas falado disso ontem com o Ndombaxi, Lourenço – disse Ambrósio, ao aproximar-se de seu irmão que estava perto da casa dos animais. – Não devias ter ido à casa deles! – Foi mais forte do que eu. A ideia veio no momento. Eu não premeditei aquilo. – Mas o mal já está feito. Mais uma razão para as pessoas desse bairro nos odiarem. – Às vezes precisamos tomar uma atitude. Não somos o tapete dessas pessoas. – Para eles, qualquer atitude desta família é um crime, um caso judiciário! Manter a calma produz bons resultados em situações como essa. – Tenta te pôr no meu lugar, irmão. Um estúpido estraga uma das coisas que mais amas no mundo e vangloria-se à tua frente com urina. O que fazes? Por mais que te contenhas, há raiva dentro de ti... e a raiva leva-nos a praticar tolices. – Entendo-te. Sei que só estás a expressar os teus sentimentos... a desabafar. Não é essa a tua forma de pensar. Conheces muito bem o provérbio: «A pessoa que se mantém calma é sábia, mas a que facilmente perde a calma mostra que não tem juízo.» Em outra parte se diz: «Se vocês ficarem com raiva, não deixem que isso faça com que pequem.» – Não me estou a defender. Digo-te apenas como aconteceu... – Eu sei disso. Já o reconheci, não? Mas da próxima vez, guia-te pelo cérebro, não pelo coração. Lourenço passou as mãos sobre o rosto e sobre a cabeça antes de seu sistema auditivo captar as próximas palavras de seu irmão. – Fizeste bem em não deixar que ele fosse preso. – Quero me fazer crer que o que ele passou hoje vai mudá-lo um pouco. – As pessoas más precisam de mais do que um galo na testa e uma mão quebrada para mudar... – Se não for isso, algo vai atingir aquela cabeça, para ver se começa a pensar melhor. Ele terá de amadurecer em algum dia. – Vais ter de esperar muito por isso, mano. A convivência que ele tem em casa e com os amigos não é nada boa. Nada do que ele vê e faz parece contribuir para que ele melhore...
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– Hoje deu para conhecer mais um pouco aquele miúdo. Eu vi o que é que lhe põe medo... Se for assim, ele corre o risco de sofrer muito. Porquê? «O que amedronta ao iníquo – isto é o que chegará a ele.» – Provérbios 10:24.
* Manhã de quarta-feira, Ambrósio estava em seu carro na companhia de Daniela e mais uma rapariga. – Olha o Estêvão! – exclamou Gina, enquanto o carro andava lentamente devido ao congestionamento do trânsito. – Chama-o, Daniela! – Posso chamá-lo, kitata? Podíamos dar-lhe boleia… – Para aonde é que ele vai? – Mwene uya bu xikola – respondeu Daniela em tom alegre, para dizer que o rapaz ia à escola. – Estuda no mesmo sítio que vocês? – Sim! – responderam as duas. – 0K. Chamem o rapaz. Meio minuto depois, Estêvão estava dentro do carro. Enquanto o auto andava sofregamente, Ambrósio escutava atentamente a conversa daqueles três adolescentes. Falavam sobre as notas, os professores, os amigos, sobre quem já namorava – sobre tudo que lhes vinha à mente. Ele notou que ,naquele momento, Daniela estava mais feliz, mais radiante. Era como se dentro daquele carro, por estar a conversar com aqueles dois jovens, ela se esquecesse de todos os problemas que tinha na escola e em casa. A vida não era fácil para aquela rapariga – na verdade, a vida não outorga facilidades a ninguém; até os que se acham, ou são tidos como, privilegiados têm problemas terríveis. Naquele momento – naquele momento Daniela sorria, tocava nas pessoas ao seu lado e não recebia um olhar preconceituoso. Gina encostava em sua orelha para lhe segredar algo sem qualquer sentimento de repulsa. Sem parecer estar a ser coagido, Estêvão pegava na mão dela e fingia ser o quadro onde o professor de matemática explicava de forma austera a resolução das tarefas. Ambrósio queria que aquele momento durasse eternamente. Todavia, o mundo fora dos sonhos não é assim – a vida é cheia de desprazeres. O auto parou. O portão da escola dos meninos estava bem à frente deles. Os três desceram e se despediram de Ambrósio. Minutos depois, ele chegou ao seu local de trabalho onde horas a fio cumpriu com suas obrigações de forma ininterrupta. – Largaste tarde hoje – disse Irene, ao aproximar-se do carro parado à frente de sua casa. – São só vinte e duas e quarenta e três – disse o homem dentro do auto com expressão cansada. – Sabes que, às vezes, nem volto para a casa. – Fizeste muitas operações hoje? – perguntou ela, após ter entrado paro carro. Travaste algum autocarro com as mãos? – O habitual. Estava tão ansioso à espera que aquilo acabasse para chegar à casa e descansar. E tu? O que fizeste? – Preparei-te uma surpresa – contou ela, ao ficar em silêncio por algum tempo depois disso.
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– É melhor começares a falar já. Sabes que não sou curioso… E podia te fazer cócegas até contares aquilo que nem tu mesma sabes que sabes. – Pára! Pára, ó! – imperou ela com voz alegre, ao sentir os rápidos movimentos dos dedos dele sobre sua cintura. – Vais ter problemas com a mina mãe se ela te vir a fazer isso. – Porquê? Ela quer ser presa? – perguntou com graça. – Espera! – ordenou ele, ao espelhar-se um sorriso brilhante em seus lábios carnudos em seguida. – A surpresa… Será que…? – É isso mesmo – disse ela, ao imitar a expressão do rosto dele. – Falei com o meu pai… e vamos lançar o nosso disco! Num acto impulsivo e infantil, Ambrósio abriu a porta do carro e saiu a gritar de forma desvairada. Irene escondeu o rosto dentro do carro. As pessoas nas roulotes ao lado olhavam espantadas para aquele homem gigantesco fardado a correr e a soltar uivos como um adolescente com as hormonas à flor da pele. – Isso é verdade? – perguntou ele ofegante, após ter voltado a entrar para o automóvel. – É sim – respondeu ela, com vergonha de olhar para a cara dele. – O teu namorado já sabe? – O Zando? O telefone dele só dá desligado. Nem sei onde é que ele está. Se ele é meu namorado tu és a segunda mulher – disse, levemente amuada. – Foi só uma brincadeira – desculpou-se com falso arrependimento. – Continuas a não querer ficar com ele? – Continuas a não querer voltar para a Patrícia? – dardejou ela, para fugir ao assunto. – As mulheres são irmãs, Irene… – E os homens são só amigos – concluiu com sarcasmo. – O Zando ao menos prova ser uma boa pessoa. Eu sinto que ele depende da tua doce voz para viver… – Pára de lhe fazer os baixos! – imperou, ao bater-lhe amigavelmente no ombro. – A Patrícia também pode ter melhorado, não? – Baby, as pessoas não mudam; apenas inibem os actos… – Estás a dizer isso para te defenderes. Na Bíblia há um assassino impiedoso que se tornou no mais devoto dos cristãos. – Ele não era assassino. Apenas perseguia os seguidores de Jesus e os punha na prisão. – 0K. Mas ainda assim o meu argumento é válido. – Chata! – disse, ao bater-lhe levemente na cabeça. – Porque tens tanto medo dela? – Porque é uma mulher. As mulheres põem medo até a elas mesmas. – Tu não tens medo de mim… – És um caso raro, assim como a minha mãe e a Daniela. Vês? As mulheres são irmãs, filhas… e mães. – És decididamente o homem mais covarde que conheço. – Cada um vê as coisas conforme a sua posição lhe permite. – Falaste sobre a Daniela… Como é que ela está? Aquelas cenas com os colegas dela e o professor malandro…? – É difícil diagnosticar aquela situação. Mas por enquanto está tudo bem… desde sábado. Ei! Ela disse que tem uma letra para mim. Espero que ela esteja acordada quando eu chegar. – Uma letra? Bom…
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– Yá, uma das poucas coisas boas que tenho diariamente é chegar à casa e ver a alegria naqueles olhos azuis. Embora sofra, aqueles olhos parecem não ligar… – Ela é inteligente. Sabe que a felicidade não depende do que a maioria acha, mas de se fazer o que é certo. Após mais alguns minutos de conversa, Ambrósio despediu-se da amiga e voltou para a casa. Ao passar o portão e colocar o pé sobre o chão do quintal, reparou que o lugar estava às escuras. Andou por alguns metros e alcançou a porta. Quando se encontrou no interior, seu telemóvel vibrou num dos bolsos de suas calças. – Fala, Zau – disse, ao atender a chamada com felicidade. – Já estás em casa? – perguntou a pessoa do outro lado da linha. A voz era fria e triste. – Já. Isso está tudo escuro. Onde é que vocês estão? – No hospital. A mãe teve uma discussão com a Dona Anita. A tensão dela subiu. Sangrou pelo nariz e agora está desmaiada. Depois falamos – disse, ao desligar. – Raios! – praguejou, ao deixar cair o aparelho com violência. Porquê? «Embora eu aguardasse o bem, chegou o mal; e eu esperava a luz, mas chegaram as trevas. Estou cheio de confusão e tremo de medo; esperava que a noite me trouxesse alívio, mas ela só me trouxesse pavor.» – Jó 30:26; Isaías 21:4.
* Faltavam poucos minutos para o dia terminar – era quase quinta-feira. A família Canzar voltava afadigada para a casa. As ruas estavam povoadas por poucas pessoas. A escuridão era cortada em alguns locais pelas incandescência das lâmpadas das casas, a fluorescência das lâmpadas dos compridos candeeiros à beira da estrada e a fraca luz dos distantes astros no céu. – E qual foi a reacção da mãe? – perguntou Ambrósio, enquanto suas mãos pegavam o volante e seus olhos captavam a imagem de Nazaré Canzar dormindo com a cabeça deitada sobre o ombro de Daniela no banco de trás. – A mãe ficou a olhar para ela a sorrir... Não falou nada – respondeu Zau, que estava sentado ao lado dele. – Como é que aquela senhora teve a audácia de ir falar aquelas coisas à mãe sabendo que o filho dela não tem razão nenhuma? – A Dona Anita precisa de um tratamento de choques – disse, ao voltar o olhar para a frente. – As pancadas que o marido lhe dá devem estar a enlouquecê-la. A que horas ela foi fazer o escândalo? – Não sei. Não estava em casa. Só a Daniela é que... – interrompeu-se, ao olhar para a menina e ver que ela dormia. – Se ela estivesse acordada nos diria. Mas acho que foi por volta das dezoito. A mãe continuou bem até às vinte e uma... – E onde é que estava o Kalu? – perguntou, ao acenar para um homem fora do carro; o homem acenou em resposta e continuou a andar. – Ele já devia estar em casa àquela hora... – Foi acompanhar a louca da Ivone ao hospital. Acho que ela tinha de fazer um exame... – Ivone? Outra vez essa miúda?! Eu já falei tantas vezes com ele! Essa miúda é atrofiada... no sentido mais tóxico da palavra.
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– Não sei o que ele quer ou faz com ela – disse, ao reparar que se aproximavam do portão da casa em que moravam. – Só me parece ser interessante. Por isso, não me meto no assunto. – Interessante? – perguntou, ao olhar para o retrovisor e ver que o auto em que estavam Lourenço e Kalu os seguia. – Ela só aumenta os problemas que já temos neste bairro! Há muito tempo que venho a pensar nisso, ainda não falei com o resto da família mas... acho que temos de mudar de casa. – Deixa-me contar-te um segredo – disse, com olhar de piada –: todos temos essa ideia. E já começamos a trabalhar nela. O Lourenço tem uma casa para nos mostrar no sábado. – Ainda bem. Estou farto de aturar o comportamento desprezível dessa vizinhança – declarou, desprevenido para as imagens que veria a seguir. – Há muitos anos que convivemos com barulho... e mais barulho. A conversa que o Ndombaxi quer ter connosco ficou para quando? – Olha para aquilo! – imperou Zau, ao reparar no célere desaguar da luz dos faróis do auto sobre os muros da casa. – Quem fez isso? – perguntou Ambrósio, ao descer com o irmão. As paredes estavam completamente sujas de spray. Alguém havia escrito inúmeras coisas nelas – coisas como «Os kazumbi têm de voltar para o seu mundo» e «Os gorilas e a kilomba vão morrer». – Desçam para ver! – disse Ambrósio, ao ouvir a buzina do carro de Kalu. – Porque é que pararam? – perguntou Lourenço, depois de ter descido do auto e começar a dar passos na direcção deles. Antes de olhar para o barbarismo nas paredes, reparou nos lindos rostos de Nazaré Canzar e de Daniela a dormirem. – Que disparates são estes? – vociferou Kalu, ao aproximar-se dos três. – Deixem isso assim – disse Lourenço, ao abrir o portão. – Já é meia-noite. Acordem a mãe e a Daniela. Vamos tratar deste assunto... quando der. Ambrósio, Zau e Kalu ficaram espantados com a rápida resolução que Lourenço havia tomado. Normalmente, ele comentaria inúmeras coisas antes de chegar a tal ponto. Todavia, parecia que se resignava – que pedia uma absolvição pelo que fizera a Fernando. Seu espírito havia atingido o limite da fúria muito recentemente; não queria cometer o mesmo erro. Manter a calma por ignorar o problema pareceu-lhe o mais apropriado. Depois de estarem todos em seus quartos, os sonhos que invadiram suas mentes foram parcialmente agradáveis, exceptuando os da mente de Ambrósio. Patrícia – Patrícia Quela apareceu no seu mundo onírico. Aquela mulher era produtora de uma paixão que ele reprimira há muito tempo. Quando descobriu que não havia nada que os pudesse ligar como homem e mulher, ela decidiu afastá-lo. Ele era cavalheiro e inteligente – não fez nada, apenas aceitou. E, até ao momento, não passavam de pessoas que se cumprimentavam quando por acaso se encontrassem. Porque razão seu cérebro trazia à tona aquelas imagens que já deviam ter sido objectos de destruição? Durante algumas horas, girou de um lado para o outro da cama com insónia e dores de cabeça. Depois adormeceu por alguns minutos. Madrugada de quinta-feira – quatro horas e quarenta e sete minutos. Ambrósio acordou mais cedo naquele dia. Alguns minutos depois, estava pronto para sair. Quando se encontrou no exterior do quintal, olhou de novo para as paredes pintadas com spray. Entrou para o carro para acalmar-se. O sopro extasiante do ar condicionado em sua face o fez navegar em serenidade. O auto entrou em andamento – seus problemas ficaram para trás – pelo menos até ao fim da terceira esquina.
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Enquanto seu carro fazia a curva, seus olhos desviaram-se para o portão de Patrícia Quela. «Talvez a Irene tenha razão», disse de si para si. Talvez aquela mulher tivesse mudado. Seria possível? Mulheres com um modo de vida como o dela não mudam tão rapidamente. Se fossem como as comuns lagartas, a sua metamorfose para borboletas levaria séculos, mesmo se se lhes injectasse algo para tornar o processo mais célere. Estaria ele a exagerar? Teria aquele protótipo de ser feminino entrado em um casulo e se transformado numa mulher de verdade? Não – não era possível. Mas já se haviam passado oito anos desde a sua separação. Talvez ela já tivesse deixado as discotecas e o seu jeito desregrado de viver. Sim, pareceu lógico pensar assim para Ambrósio, embora soubesse que estava a ser induzido pelo optimismo sem base de Irene. – «A Irene não conhece bem a sua cliente» – metaforizou ele em seus pensamentos. – «É uma advogada que defende uma pessoa com a qual só teve contacto visual por raras vezes; nunca houve contacto verbal, nunca conviveram. Ela nunca ouviu a forma dela de pensar imatura e o jeito de agir oco.» Todavia, como se quisesse provar a si mesmo que seus comentários eram desarrazoados, Ambrósio parou o auto. Pareceu-lhe reconhecer algum movimento humano nas janelas da casa dela. Seria possível que ela fosse sair àquela hora? Era muito possível. Ela vivia sozinha. Podia entrar e sair a qualquer hora. Segundos depois, o portão do outro lado da casa abriu-se. Foi então que ele viu. Praticamente nua – a mulher estava praticamente nua, e saía na companhia de um homem. Ambos sorriam com frenesi inebriante. Ele tentava endireitar as calças de ganga que lhe caíam até aos joelhos. Ambrósio ficou enojado. Antes de ligar o auto e desaparecer entre a escuridão da madrugada e o luzir da lua, disse para si mesmo de forma sarcástica e seca. – Eureka! Porquê? «Eu descobri: Mais amarga do que a morte [achei] a mulher que ela mesma é redes de caça, e cujo coração é redes de arrasto, [e] cujas mãos são grilhões. Peca aquele que é capturado por ela.» – Eclesiastes 7:26.
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CAPÍTULO V – Wanange kyebhi? – cumprimentou Daniela ao ofegar num grito alegre, enquanto tentava alcançar a porta do quarto de banho. – Nganange kyambote – respondeu Zau ao sorrir por ter conseguido ultrapassála em seguida. Antes que ela pudesse tocar na maçaneta, ele entrou rapidamente e fechou a porta. – Hoje é quinta-feira, tata – arrazoou Daniela ao tentar demover o outro. – Eu tenho educação física. Tenho de chegar cedo. Já são seis e dezoito. – Não inventes argumentos. Sou eu quem te vai levar… – Vais encontrar um dos teus bancos rasgados – ameaçou amigavelmente ao bater na palma de Lourenço como se os dois tivessem combinado alguma coisa. – As meninas têm prioridade nesta casa – lembrou Lourenço ao retirar alguns pequenos pedaços de esponjas do cabelo dela. – Só se elas correrem mais que os pais – gritou o irmão do quarto de banho. – Se ela fizer algo maluco não terás como responsabilizá-la – avisou o outro ao cumprimentar Kalu com o olhar. – Vamos ver a mãe – disse Daniela ao endireitar a toalha que cobria seu corpo peculiarmente recheado. – Tens uma mancha preta aqui – reparou Lourenço ao pousar-lhe a ponta do dedo indicador sobre a parte traseira do pescoço. – Parece estar inchado – disse ela ao colocar o seu próprio dedo no local tocado pelo outro. – Parece inchado… – Parece ser uma erupção – conjecturou Kalu ao abrir a cortina para que pudessem entrar para o quarto de Nazaré Canzar. – Bonito! – disse Daniela com sarcasmo. – Mais uma erupção cutânea. Sou a rainha das erupções cutâneas. Só me falta ter lúpus! – exagerou ao reparar que seu campo de visão era ocupado pela imagem de sua avó sentada sobre a cama. – Hoje perdeste a corrida ao quarto de banho? – perguntou Nazaré Canzar com expressão alegre mas cansada ao receber os beijos de sua neta sobre sua face. – O tata fez batota: usou a velocidade máxima – disse com tom e expressão engraçadamente amuados. – E a mãe? Como estás? – Oh! Aquilo foi só um bocadinho de sangue. Acho que o meu corpo viu que havia líquido vermelho a mais e decidiu diminuir um pouco. É esse o mal de se ser grande: tem-se muita coisa a mais – disse com alegria para quebrar o olhar de preocupação que punham sobre ela. Enquanto seus irmãos, sua filha e sua mãe conversavam no quarto da última, Zau se apressava em aparar as suíças e eliminar a barba hirsuta. Ao olhar para o espelho, fixou o olhar para o seu rosto. Seus olhos, como os de seus irmãos e sua mãe, eram grandes e castanhos, mas o olhar – o olhar era diferente. Embora não fosse propositado, seu olhar transmitia sedução; era como se fosse a versão aprimorada do olhar cegante de Ambrósio e do olhar luminoso de Lourenço. Ele não deixava o cabelo crescer muito – demoravam apenas cinco dias para o cortar. O queixo era firme. A pele era morena. O corpo era volumoso. – Um dia desses ainda caso comigo – disse em tom de piada, ao contrair um de seus bíceps à frente do espelho. Ao terminar de aparar-se, abriu a torneira e os pêlos na pia ajuntaram-se. Retirou-os e colocou-os num guardanapo. Deu alguns passos e atirou o pequeno pedaço
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de papel no balde ao seu lado. Todavia, antes que pudesse ficar debaixo do chuveiro, sua atenção foi atraída por alguns grunhidos no quintal. Para que seu cérebro pudesse ter imagens sobre o que se passava aí fora, colocou os pés sobre o bidé e olhou por uma das gelosias. Um homem de preto – havia um homem de preto parado no quintal. Ele observava os animais. As suas mãos realizavam movimentos – atirava o que parecia ser pó para dentro da pocilga. Depois parou e começou a dirigir-se para a saída. Zau reconheceu-o. Aquela forma de andar pausada, os cabelos brancos, o porte atlético – Constantino Canzar, o homem era Constantino Canzar. Zau tentou gritar para que ele parasse, mas lembrou-se que isso atrairia a atenção de sua mãe, seus irmãos e sua filha. E a última coisa que Constantino Canzar desejava no mundo era ter contacto com a mãe deles. Antes que pudesse voltar a amarrar a toalha para sair do quarto de banho, o telefone por cima de uma caixinha de madeira tocou. Ele desceu para pegar o aparelho. Olhou para o nome marcado no visor e sorriu. Atendeu a chamada e por alguns segundos não ouve diálogo, ficou apenas a ouvir a respiração lenta da pessoa do outro lado da linha. – A vossa casa não está em bom estado – disse a voz da pessoa que efectuara a chamada. – Ouvi falar de um incêndio… – Está tudo bem aqui, Constantino. E tu? – A vida anda em linha recta… depois faz curvas… depois volta a andar em linha recta. – Queres dizer que estás bem. Quando é que vais deixar de visitar os animais e entrar para visitar as pessoas dessa casa? – Viste-me? Há realmente algo forte que nos une, rapaz! – Não queres falar sobre essa força aqui dentro. – Não. Estou a voltar para a minha casa. Não quero ouvir o Lourenço… ou a tua mãe. Apenas tu me compreendes… – Mas sabes que não aceito nada do que fizeste. Os meus irmãos vêm as coisas de forma diferente. Eles sofreram mais do que eu nesse caso. – E tu? Quanto foste atingido? – Foi o Constantino que fez as coisas. É a sua vida. Tenho os meus próprios problemas. Não gosto de ocupar a minha mente com as quedas dos outros… quando a ideia é julgá-los. – Sempre foste o mais sensível dessa família. Tens um bom coração, rapaz – disse ao fazer com que o outro se apercebesse que a conversa tomava um rumo conclusivo. – A minha maldade fica aqui dentro – disse ao bater levemente no peito. – Espero que ela nunca saia. – Depois falamos – despediu-se ao preparar-se para terminar a ligação. – Desculpa-me por ter estragado a vossa vida. – Estás desculpado desde o dia que o fizeste. Porquê? «Meu pai, tu és o amigo íntimo da minha mocidade! Deve-se ficar ressentido por tempo indefinido ou ficar vigiando [algo] para sempre?» – Jeremias 3:4,5.
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Depois de ter deixado Daniela na escola, Zau dirigiu o auto até ao seu local de serviço. Antes de passar para a parte de dentro do local, cumprimentou o homem fardado à sua esquerda e, num movimento rápido com os olhos, pôde ver a sua imagem reflectida nas portas opacas à frente si – a gravata estava direita, a camisa não tinha nenhuma nódoa, o preto brilhante das calças e dos sapatos não acarretavam qualquer poeira; estava tudo perfeito. – Bom dia, colegas – cumprimentou ao distribuir o olhar para as sete pessoas posicionadas atrás do mesmo número de computadores e de balcões. – O nosso tesoureiro chegou – disse uma linda mulher que só agora aparecia no campo de visão dele. – Bom dia para ti também, Rosalina – falou com engraçado sarcasmo ao reparar na forma pomposa como ela se aproximava dele. Ela tinha a tez escura, mas delicadamente cintilante. Os olhos eram relativamente maiores que os de Zau. Seus lábios começavam num fraco castanhoescuro e terminavam num tentador rosa claro. Seus ossos estavam preenchidos por tecido muscular apetecível. Suas pernas transmitiam a ideia mais provocante da sedução. A peculiar blusa verde e a idílica saia preta tornavam-na no anjo físico mais desejado naquele escritório. – Tens muitos mambos para resolver aí dentro, miúdo. E é «gerente» para ti – disse Rosalina ao cumprimentá-lo com a mão num gesto masculino. – O que é isso que tens aí, gerente? – perguntou ele ao reparar nos dois envelopes que ela trazia. – A Adelina pôs isso sobre o teu dinheiro – sussurrou a outra, enquanto lhe entregava um dos envelopes, depois largou-lhe a mão e continuou a andar. Antes de fazer a curva e desaparecer numa das portas, Zau Canzar olhou de soslaio para Adelina. Ela estava com a cabeça abaixada. Seus dedos se moviam rapidamente sobre o teclado à frente de si. A posição dela transmitia frieza. O que teria acontecido? Ontem haviam conversado como os melhores amigos… Amigos? De todas as mulheres que conhecia apenas três podiam ser consideradas amigas – uma dessas era Rosalina. Adelina não estava catalogada como tal. Ela despertava nele tremores que incendiavam sua cabeça e davam espasmos às suas mãos. Contudo, apesar de ser uma apetecível fêmea, Zau decidiu não aceitar o pedido feito por ela há alguns meses. Não era porque ela não era inteligente – não, era por causa dos princípios religiosos que só agora ele aprendia e desejava muito pô-los em prática. Ao passar pela porta da caixa forte, Zau olhou para as estantes cheias de dinheiro. O cheiro a notas novas atingiu o seu olfacto. Olhou para a mesa ao seu lado e colocou a pasta. Estava sozinho. Tentou conter a sua curiosidade quanto àquele envelope, mas foi infrutífero. Abriu-o sem demora. Uma folha branca estava dentro dele. Retirou-a e leu. Aceitei o que me fizeste (Conformei-me) Cheguei… Cheguei com flores incolores Porque era noite, era dia, era tarde Cheguei com flores incolores Porque não me deixaste fazer o que pensei
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Cheguei… Cheguei com flores incolores Porque estava frio, estava quente, estava morno Cheguei com flores incolores Porque decidiste não entrar em meu mundo Cheguei… Cheguei com flores incolores Porque íamos a Vénus, íamos a Terra, íamos a Marte Cheguei com flores incolores Porque expulsaste-me sem ternura Cheguei… Cheguei com flores incolores Porque chovia, nevava, fazia sol Cheguei com flores incolores Porque me deixaste, me rejeitaste, sozinha me largaste Cheguei… Cheguei com flores incolores Porque as lágrimas de meu coração lhes tiraram a cor – O que é que ela diz aí? – perguntou Rosalina ao entrar. – Diz que vai deixar de me perseguir – respondeu ele com voz tépida. – Bom para ti! Já não terás uma louca às tuas costas. – Tu és mulher, devias saber isso: é um truque. Ela quer se dar de boa. Assim eu vou sentir pena dela e reconsiderar o caso. – Subtil – disse ao fazer uma careta enquanto esticava a mão para receber o papel. – Não estás a tirar conclusões erradas? – Vocês são previsíveis… assim como nós. Porque é que todas as mulheres não são como tu? – perguntou ao retirar alguns maços de dinheiro e colocá-los sobre a mesa. – Como eu? Como assim? – Irmãs. – O mundo não estaria povoado se fosse assim. Eu não teria nascido… nem tu. E o mundo seria monótono sem nós os dois – disse ao esboçar um sorriso infantil. – O mundo parece nos ensinar que só há uma função para os homens e para as mulheres: reproduzir-se. Essa ideia é tão carnal, tão cheia de lascívia… – Um dia vais concordar com ela. – É esse o ponto! Eu é que tenho de decidir o que fazer, não eles. Quando eu me apaixonar, não será porque um amigo ou outra pessoa me disse que já é hora de arranjar alguém. – Estás com vinte e sete; estás velho. – Não comeces! Tu que estás com… A entrada rubra de Adelina cortou-lhe a fala. Zau olhou para ela intimidado. Sua respiração acelerou-se. O corpo dela estava coberto por um comprido e justo vestido lilás. Os cabelos estavam soltos. O olhar, embora melancólico, era dominante e atraente. – Queres alguma coisa, Adelina? – perguntou Rosalina. – Ela deve estar a querer um aumento – gracejou Zau ao sentir-se desconcertado. – Não comeces a pôr ideias no meu pessoal – falou a gerente ao dar uma palmada na cabeça da única presença masculina naquele local.
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– O que foi? – perguntou ele ao tentar desviar o olhar do que recheava o vestido de Adelina. – Vemos entrar milhões diariamente. Podíamos ganhar mais. – O Eduardo quer falar consigo – pronunciou-se finalmente Adelina. – Há um problema com um cliente. – Abrimos há tão pouco tempo e já há coisas para se resolver? O senhor Makas madrugou – gracejou secamente a gerente ao passar à frente de Adelina. Pelo movimento que as duas fizeram, Zau deduziu que ambas estavam de saída. Sentou-se no mesmo instante e continuou a fazer a contagem do capital. De repente, assustou-se. Uma presença atrás de si – havia uma presença feminina atrás de si. Adelina não tinha saído com Rosalina – Zau sabia disso por causa do perfume que enbriagava seu olfacto. Ele tremeu. Ela estava bem perto da cadeira dele. Embora não o tocasse, ele sentia a temperatura causticante que o corpo dela emanava. Ele estava mudo, contudo, parecia gaguejar. De repente, aquele tormento terminou, assim como havia começado. Ele ouviu os saltos dela a afastarem-se. Seu coração acalmou-se. Porque razão aquela mulher fazia aquilo com ele? Porque motivo desejava tanto a atenção apaixonada de Zau Canzar? Para desviar-se daquelas perguntas com tendência ao infinito, Zau bateu-se levemente na testa e continuou com o seu trabalho. Mais de treze horas depois, ele abandonou o local de trabalho com os outros colegas. O manto nocturno já havia caído sobre a cidade – eram vinte horas. Os autos passavam e paravam à ordem do semáforo. A noite cheirava a nostalgia. Zau sentia que algo faltava ao seu redor; na verdade, era em sua vida. Não sabia se eram os treinos de capoeira, jiu-jitsu e karaté que recentemente havia abandonado ou as aulas de dança que estavam interrompidas por motivos simplórios. Talvez fosse outra coisa, mas pensar naquelas duas lhe era mais conveniente. Uma mão pesada pousou-lhe sobre o ombro. Ele virou-se e captou a imagem de um homem com cabelo grisalho atrás de si. – Constantino – disse ao abraçar fortemente o senhor. – Vais esmagar o pai, rapaz – gracejou com sua voz peculiar. – Andavas à minha espera? – perguntou, após o ter largado e darem azo a locomoção bípede. – Estava num restaurante aqui perto… – Estás com problemas em casa? – perguntou ao apontar para que curvassem à direita. – Deixas o teu carro muito distante – reparou com esquivas ao colocar as mãos nos bolsos. – Vais dar cabo dos teus sapatos. – Não fujas à pergunta – disse ao bater o seu ombro contra o ombro do outro, sem ter reparado que dois homens os seguiam. – Estás a chatear a tua mulher, não é? – Só me apeteceu espairecer um pouco. A tua forma de falar está abatida. Tens algum problema? – Acho que terei de mudar de emprego. – Porque farias isso? O trabalho no banco não está a render o suficiente? – Rende tanto que para além de receber kwanzas também me dão como bónus a neta do nosso chefe. – Bom negócio… – Não é bom – disse ao tirar um pequeno objecto preto de um dos bolsos para abrir o carro. – Ela atira-se a mim! – E tu a recebes. É a lei natural das coisas. – Isso se ela fosse…
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Um objecto colocado às suas costas emudeceu-o. Ele sentiu a frieza do metal a trespassar-lhe a camisa. Um cano – aquilo parecia ser o cano de uma arma. – Passa a chave do carro! – imperou alguém atrás de si, fazendo com que ele olhasse para o lado e visse que seu pai estava paralisado. Numa lentidão temerosa, Zau levantou a mão e entregou o que a pessoa queria. O homem virou-o. Constantino Canzar também tinha um homem armado trás de si. Ao vê-lo naquela situação, Zau sentiu vontade de reagir. Seu pai apercebeu-se disso e fechou os olhos em sinal de negação. Zau assentiu – desistiu da ideia. Num movimento giratório, os dois Canzar ficaram de rostos voltados para os rostos dos homens. Agora podiam vê-los com clareza. Um era baixo e musculado e bafejava álcool. O outro era alto e esguio; beatas de cigarro era o aroma que exalava. Zau conseguiu ver que algumas pessoas haviam dado conta que estavam a ser assaltados, mas ficaram paradas a observá-los à distância. Outras continuavam a andar, como se não tivessem se apercebido de nada. Apalpadelas – Zau e Constantino sentiam apalpadelas em seus corpos; os homens revistavam-nos. Quando um encontrou a pasta de couro do senhor grisalho, o sistema auditivo do quarto filho de Nazaré Canzar captou com dificuldades a frase saída da boca de seu pai: – Não imites o teu velho. Com movimentos dotados de perícia, Constantino Canzar torceu a mão armada do homem à sua frente e o lançou contra o outro. Os dois meliantes perderam o equilíbrio e precipitaram-se numa queda desconcertante. Antes que pudessem agir, o corpo pesado do homem grisalho caiu sobre eles. Os ladrões sentiram-se esmagados. À força bruta, retirou o revólver da mão do outro e fez um disparo em direcção ao céu estrelado. A plateia sem instintos socorristas dispersou-se. Ele não sentiu quando um instrumento pontiagudo penetrou seu casaco. Zau levantou um deles e empurrou-o para longe. O meliante cambaleou por alguns instantes, mas recuperou a posição erecta e meteu-se em fuga. O outro estava a sufocar por causa da mão enorme de Constantino Canzar em seu pescoço. – Deixa-o ir! – imperou Zau ao apanhar os dois revólveres. A mente de Constantino entendeu a mensagem, mas seu corpo não fez nada em prol. Num movimento brusco, levantou o homem pelo casaco e lançou-o contra a porta do carro. O meliante bateu com a cabeça na chaparia da porta do automóvel e caiu de joelhos. Antes que o punho enfurecido de seu pai atacasse as costelas do assaltante, Zau agarrou fortemente a mão do homem grisalho. O ladrão aproveitou-se da deixa e afastou-se deles em alta velocidade. Constantino retirou a mão de Zau e encheu a atmosfera de gargalhadas. – Podíamos estar mortos a essa hora! – exclamou Zau com voz áspera. – Mas não estamos, pois não? – disse ao reparar na parte amolgada do auto, enquanto sorria. – Foi inconsequente! Talvez a palavra seja estúpido, completamente estúpido! Constantino continuou a sorrir. Num acto instintivo, colocou a mão dentro do casaco e, quando a retirou, viu o que parecia ser uma substância vermelha em seus dedos. Antes de cair desmaiado, agarrou o ombro do filho e disse: – Tinha de ser feito. Porquê? Olhei, mas não havia ninguém que ajudasse, fiquei admirado ao ver que não havia quem apoiasse. Então consegui a vitória com o meu próprio poder, e a minha ira me encheu de força.» – Isaías 63:5.
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* Vinte e horas e dezoito minutos. Zau conduzia desesperadamente o auto – seu pai estava desmaiado ao seu lado. As tentativas de parar a hemorragia não haviam tido sucesso na sua totalidade – Constantino Canzar continuava a esvair-se em sangue. Pelo caminho em que se encontravam, o hospital já estava a algumas centenas de metros de distância. Por causa do trânsito congestionado, o auto entrou por um atalho e os pneus tocaram em terreno alcatroado onde o sentido dos carros era único. Por causa da urgência da situação, ignorou o que aprendera nas aulas de condução e entrou em sentido contrário. Quando faltavam poucas dezenas de metros para alcançar o portão do hospital, apareceu em seu campo de visão um agente regulador de trânsito. O homem parou a sua motorizada bem à frente do auto dele. O olhar vermelho de Zau ficou marejado. O agente desceu da motorizada. Zau fez o mesmo. – As suas cartas, por favor – pediu o agente, com ar arrogante. Zau não respondeu. Em silêncio absoluto, abriu a porta traseira de seu auto e com todo cuidado, colocou Constantino Canzar em seu colo e começou a andar em direcção ao hospital. Enquanto dava passos pesados sobre o chão e se aproximava cada vez mais do portão, como se estivesse a sentir peso de consciência, disse com voz cansada, com as costas voltadas para o agente. – As cartas estão no tablier. O agente abriu a porta do auto e alcançou a pequena porta do lado direito. Abriua e retirou as cartas. Antes de subir em sua motorizada e ver Zau desaparecer por entre o longo portão gradeado, perguntou: – É seu pai? – Sim, é meu pai. Dentro do hospital, as pessoas andavam avultadas de um lado para o outro. Muitos doentes e feridos estavam deitados sobre o chão – as cadeiras eram insuficientes para atender a demanda. Por causa do desespero, Zau não esperou pela enorme bicha para que pudesse chegar a sua vez. Passou à frente de todos e pediu para ser atendido. O guarda e a senhora de óculos que anotava os nomes e os sintomas dos pacientes barraram-no. Ele baixou um pouco o corpo do homem em seu colo e eles puderam ver que tanto as roupas de Constantino como as de Zau estavam manchadas de sangue. A senhora pediu uma maca apressadamente e levaram o homem grisalho para uma das salas. Alguns dos parados aí protestaram – tentaram criar um alvoroço. Todavia, quando Zau se voltou para eles e estes conseguiram observar a camisa e a gravata sujas de sangue e a forma silenciosa como chorava por entre a vermelhidão de seus olhos recheados de sofrimento e angústia sentiram que as doenças em seus corpos e a gravidade de seus ferimentos se haviam minimizado. Ainda de pé, Zau ficou a pensar no que mais poderia fazer. Telefonar a seus irmãos ou à sua mãe pareceu-lhe rebuscado. Talvez para alguém da nova família de Constantino Canzar. Tê-lo-ia feito, se ao menos tivesse o número de um deles. Estava perdido. Estava sozinho naquele problema. Para tentar descansar, sentou-se sobre o chão gélido e começou a falar com Deus. Uma hora depois, um homem de bata branca empurrou a porta à frente dele. – Canzar? Zau Canzar? – chamou o doutor. Zau levantou-se rapidamente e aproximou-se dele. – Aconteceu alguma coisa com o meu pai? – perguntou com apreensão contida.
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– Conseguimos parar a hemorragia. O ferimento não foi profundo. Ele está bem. E pede para voltares para a casa. – Posso vê-lo? – Ele disse que não. Talvez amanhã… – Ele é meu pai! – disse exaltado. – Preciso vê-lo. – É um pedido dele, filho. Antes que pudesse dizer mais alguma coisa, sua atenção foi desviada pelo vibrar do telemóvel em seu bolso. Retirou-o com os dentes a ranger. O nome apresentado pelo visor o fez acalmar-se. – Vai para a casa, rapaz – disse a pessoa do outro lado da linha, após Zau ter atendido a chamada. – Não posso sair daqui sem antes te ver. – Faz apenas o que te digo. Já liguei para a minha esposa. Ela está a vir aí para cuidar de mim. Não te preocupes. – Ligo-te assim que puder – disse ao terminar a chamada. Zau apertou a mão do doutor num gesto de agradecimento. Fez um sinal com o mesmo intuito para todos os pacientes e saiu. Parecia alegre, mas tremia de raiva. Ao alcançar a rua, retirou a gravata e a camisa e colocou-as sobre o ombro. Ao pôr as mãos nos bolsos para retirar as chaves do carro, lembrou-se que as havia esquecido dentro deste. Esmurrou a porta do auto com fúria, totalmente a leste do que aconteceria a seguir. – Não podias deixar o carro aberto – disse um homem dentro do carro, enquanto o vidro do auto se abaixava. Zau ficou levemente constrangido. O agente regularizador de trânsito – o agente regularizador de trânsito havia ficado dentro do carro para evitar que fosse assaltado. – E a sua motorizada? – perguntou com um suspiro de desconcerto. – Liguei a um colega para que a viesse buscar – respondeu ao sair do auto. – Muito obrigado – disse ao estender-lhe a mão. – Podes fazer-me feliz, sabias? – Como? – inquiriu ao apertar a mão do outro. – Podias devolver-me as cartas… – Não as confisquei. Continuam no tablier. – Porque fez isso? – perguntou, depois de ter entrado para o carro. – Porque se deu ao trabalho de ficar aqui? – Li o teu nome nas cartas. Conheço o teu irmão que está preso… O Ndombaxi Canzar. Como é que ele está? – Está bem… – Manda-lhe os meus cumprimentos. Chamo-me Renato. – Zau, mas isso já sabes – concluiu ao sorrir. – Quer uma boleia? – A minha casa é já aqui na esquina. – 0K. Tenha uma boa noite, Renato – despediu-se ao estender-lhe novamente a mão. O outro agiu de forma recíproca. – Igualmente, Zau. Renato ficou por alguns instantes a observar o auto em movimento até este desaparecer numa das curvas. Dentro do velocípede, Zau pensava na forma estranha de agir de Constantino Canzar. Alguns minutos depois, o auto parou frente ao portão de seu lugar de morada. Meneou a cabeça ao rever os disparates pintados nas paredes. – Porque vens quase nu, filho? – perguntou Nazaré Canzar que estava sentada no quintal perto de um grelhador tradicional.
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– Ajudei alguém a ir para o hospital. As minhas roupas ficaram sujas de sangue – respondeu ao retirar um pequeno pedaço quente de carne colocado sobre a grelha. – Isto é para o jantar – disse Nazaré Canzar ao bater-lhe maternalmente sobre a mão. – E a pessoa está bem? – Pelo que o médico me disse… não vai morrer agora. Porque é que a vida é tão estranha mãe? – perguntou ao colocar o queixo sobre o ombro dela. Nazaré Canzar passou-lhe a mão sobre a cabeça. – Porque temos de amadurecer… – Passar por esse processo de amadurecimento é doloroso. Se pudesse, pará-lo-ia e me contentaria com as coisas que já conheço – disse ao começar a andar em direcção a porta. – Isto não é possível. Porquê? «Filho, se você parar de aprender, logo esquecerá o que sabe.» – Provérbios 19:27.
* Eram três horas da madrugada quando Zau Canzar se levantou. Como se estivesse a precisar de ar fresco, pegou o seu telemóvel e foi para o quintal onde ficou sentado. No mesmo instante, sua mente lembrou-lhe que suas roupas ensanguentadas ainda estavam no carro. Foi até ao portão e abriu-o. Andou até ao auto e retirou as duas peças avermelhadas. A rua estava deserta. De início, só o barulho de grilos e de gatos a habitavam. Depois, um pouco mais distante, dava para ouvir a melodia de uma música. Parecia uma festa. Meneou a cabeça em sinal de reprovação e, depois de ter fechado a porta do automóvel, voltou a entrar para a casa. Andou em direcção a uma grande bacia e colocou-as nela. Um dos suínos grunhiu. Ao voltar-se, reparou no olhar assassino do bode branco. Antes de alcançar a torneira perto do portão, ocupou sua visão e seus pensamentos com os dois cabritinhos órfãos. Lourenço fazia um bom trabalho com eles. Mesmo depois da morte da mãe cabra, os pequenos animais cresciam com robustez. Seu irmão era bom em cuidar de animais, esse era o facto. Depois de ter enchido um terço da bacia com água, entrou para a casa e voltou com um pequeno bidão de lixívia e um saco de sabão em pó. Depois de ter colocado um pouco daquelas substâncias no recipiente de boca larga, esfregou as roupas por algumas vezes, depois deitou a água avermelhada e voltou a enchê-lo com água limpa. As peças continuavam vermelhas. Voltou a entrar para a casa. Colocou uma panela sobre o fogão e ligou-o. Aquela situação transmitiu-lhe a sensação de vazio em seu estômago. Andou até à arca e abriu-a. Ainda havia muito do peixe que haviam comprado no último domingo. Retirou dois deles e um grande pedaço de rim que estava numa das tigelas ao lado e, antes de colocá-los num recipiente com água, fechou o electrodoméstico. Voltou a andar, mas desta vez até à geleira, e retirou algumas folhas de couve e alguns quiabos, dentes de alho e tomates. Depois de ter arranjado tudo e colocado numa grande frigideira e colocado a tampa sobre esta, levou a panela quente da água que pusera a ferver até ao quintal. Antes de sair pela porta das traseiras, seu sistema auditivo captou a voz de sua mãe que estava no quarto.
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– Quem está a cozinhar a esta hora? – Sou eu, mãe. Estou com muita fome. – Coma tudo o que quiseres. Mas não me toques nos rins. – Amanhã terás uma grande surpresa. Depois de ter colocado a água quente na bacia onde se encontravam as duas peças de roupa, o seu telemóvel tocou. – Chegaste bem em casa? – perguntou a pessoa do outro lado da linha, após Zau ter atendido a chamada. – Cheguei muito bem, Constantino. E tu? Como é que estás? – Toda a minha família está aqui. Estão todos a cuidar de mim. – A tua família é composta de duas pessoas; não é assim tão grande. Porque te gabas? – perguntou ao fingir-se alegre. Na verdade, as palavras «toda a minha família» o haviam magoado. – Eles são as pessoas mais importantes para mim, por isso são muitos. – Tu já fizeste este jogo com os meus irmãos e com a minha mãe – disse ao ouvir o sorriso de Constantino e de uma mulher do outro lado da linha. – Porque o fazes comigo? – Que jogo, rapaz? Depois de enunciar a frase a seguir, Zau desligou o telefone num gesto seco: – Não interessa. Porquê? «Também me deitas fora, de modo que não há paz para a minha alma. Perdi a lembrança do que é bom.» – Lamentações 3:17.
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CAPÍTULO VI Final da tarde de sexta-feira. A pedido de Ivone Tchivela, Kalu Canzar andava em direcção ao apartamento desta. Pelo caminho, cumprimentou o barbeiro que trabalhava à frente do muro à esquerda de sua casa. Alguns passos depois, antes de entrar num cruzamento do lado contrário, acenou para um grupo de homens e mulheres que almoçavam à sua direita. Após ter andado mais algumas dezenas de metros, ficou por alguns minutos a observar um jogo de basquetebol realizado por miúdos da sua rua e do bairro vizinho. Enquanto observava, um dos jogadores lançou-lhe um olhar de desprezo. Era um jovem de dezanove anos. Tinha uma das mãos completamente enfaixada e um pequeno ferimento na testa. Aquele era provavelmente o autor do vandalismo nas paredes da casa de Kalu – sim, era o mesmo que soltara os animais de Lourenço há alguns dias. Kalu ignorou-o e continuou a andar. Teve de passar perto dos jogadores para chegar ao seu destino. Ao subir as escadas do prédio de seis andares, ajudou um rapaz a carregar dois pares de bidãos de água. Quando chegou no piso em que Ivone vivia, seu sistema auditivo captou o som de duas pessoas discutindo no apartamento de sua amiga. – Eu não quero que voltes a te pôr na minha vida, pai! – vociferou Ivone, sem se aperceber que Kalu a escutava e observava através do vidro diáfano das janelas. – As coisas são minhas, o quarto é meu… pertence-me! Não voltes a entrar aí, ouviu? – Fiz isso porque me preocupo contigo, filha – respondeu-lhe o senhor que era calvo e tinha um enorme bigode; ele estava calmo. – Se voltares a demonstrar essa tua preocupação estúpida, eu saio de casa! – Eu tinha que saber que exame era aquele. Talvez eu pudesse ajudar-te… Eu posso ajudar-te. – Assim como ajudaste a mãe quando ela estava doente e morreu? Não preciso de nada que é teu! – disse exaltada ao pegar um objecto envidraçado e jogá-lo contra o chão. – É minha obrigação zelar pelo teu bem-estar, menina – disse, com o olhar marejado. – E quem te deu esta obrigação? Seja ele quem for, não pediu a minha opinião, por isso dispenso os teus cuidados paternais inúteis! Ninguém precisa da tua ajuda neste mundo, não vês? És um mecânico! Um mecânico com cinquenta e quatro anos! Não serves para mais nada. Ninguém te respeita nesse bairro. Quem sabe o teu nome? Dizme! – imperou ao derrubar um vaso. – Quem te chama de Inácio aqui? Todos dizem apenas «bom dia», «boa tarde» ou «boa noite». És anónimo! Não serves para nada! Quem dera poder escolher um pai! Uma ratazana do esgoto estaria numa das minhas escolhas de certeza; ela tem muito mais para dar aos seus filhos do que tu! – Cuidado com o que falas – disse lentamente, com o olhar paralisado no dela. – Senão? – perguntou em tom de desafio. – Não fazes nada! Nada! És tão fraco que nem conseguiste cuidar do simples paludismo da mãe! – vociferou ao dar-lhe as costas. – Ficas avisado, senhor Anónimo, se tocares nas minhas coisas de novo, eu saio de casa. Ouviu bem? Saio de casa! E se tentares me impedir, eu me mato. – Não ias fazer falta! – disse ao ranger os dentes. – O que disseste? – perguntou ela ao voltar-se e colar o rosto bem à frente do dele. Ele agarrou-a pelo ombro com violência. – Faz o que quiseres. Sai de casa. Enforca-te! Não me interessa. Quando me trouxerem a notícia de que estás morta, eu vou chorar por algum tempo, mas vai passar. Depois serás só uma lembrança triste de uma filha triste e estúpida – falou rispidamente 52
ao observar que suas palavras magoavam profundamente a rapariga. O gosto de saber que ela sofria não era maior que seu amor por Ivone, mas prevaleceu. – Não me podes chantagear com estes teus mimos. Sabes muito bem, eu não cedo com olhos bonitos e lágrimas falsas. – É mesmo isso que vou fazer! – disse ela ao soltar-se e começar a andar em direcção à porta. – Vê se morres de forma decente! – vociferou, depois de ela ter saído e ele ter se sentado com as mãos sobre a cabeça. Os rios salgados que desceram de seus olhos foram acompanhados de suspiros de lamento. Lá fora, Ivone ignorou a presença do homem que estava especado à espera dela. Notavelmente desolada, desceu as escadas às pressas. Para tentar impedi-la de fazer qualquer coisa desprovida de inteligência, Kalu seguiu-a. Ivone era mais ágil – pulava os degraus; ele não conseguia alcançá-la. Em poucos segundos, ela alcançou a rua. Ao tentar passar para o outro lado, uma carrinha azul passou de forma célere à frente dela. Na tentativa de escapar-se do embate com o auto, tropeçou e um dos jogadores de basquete que corria para socorrê-la embateu contra o seu corpo e, no acto, precipitou-se por cima da rapariga. Ela bateu a cabeça contra o chão parcialmente pedregoso e gritou amargamente. O condutor da carrinha parou o veículo. O jogador de basquetebol levantou-a. As pernas dela – as pernas dela não estavam firmes; não conseguia manter-se em pé. Ivone estava cheia de lacerações nos braços e numa parte da cabeça. O jogador e o condutor intentaram pô-la dentro da carrinha. Ela estava relutante. Todavia, ao ver que seu pai havia saído e ficado parado a observar tudo pela varanda, entrou para o auto e pediu que Kalu fosse com ela. – Onde é que ele vai? – perguntou o jogador com ares de arrogância ao fazer com que Ivone se engasgasse nas ideias. – Eu vou com ela, Fernando – disse Kalu, com parcial autoridade, enquanto tentava entrar para o auto. – Sai daqui! – imperou o jogador ao empurrá-lo com uma das mãos. – Não te metas onde não és chamado, miúdo – asseverou o Canzar. – Vai fazer crescer o cabelo, maluco! – zombou o outro ao tentar tocar-lhe na cabeça rapada. – Tu é que estás a te meter onde não és chamado. – Deixa estar, Fernando – disse Ivone ao colocar a mão sobre o ombro deste. Kalu reconheceu intimidade naquele toque. Seria possível que eles – Ivone e Fernando – fossem…? – É isso mesmo, gorila – disse o jovem. – Somos namorados. E tu? O que és dela? Kalu olhou para o corpo de Fernando e para o seu. O do vândalo era menor. Kalu o dominaria com facilidade, principalmente por ter aprendido as mesmas artes marciais que Zau. Antes que pudesse fazer qualquer coisa que produzisse arrependimento mais tarde, seu cérebro deu a ordem de refrigério a seus nervos. – Conduza com cuidado – disse Kalu ao motorista, enquanto se preparava para abandonar o local. – Ela pode ter alguns ossos fracturados. Antes de começar a andar em direcção à sua casa, olhou para o quarto andar do prédio onde sua amiga vivia e viu que Inácio Tchivela já não se fazia presente. Talvez estivesse a descer para ver a filha, pensou ele. Visto que não queria confirmar aquela possibilidade, a posição de sua cabeça enquanto efectuava a locomoção bípede estava voltada para o outro lado da rua. – De onde vens? – perguntou Lourenço, que só agora chegava do trabalho, enquanto Kalu se preparava para abrir o portão.
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– Fui ver uma amiga. – Queres dizer que foste ver a Ivone… Estás apaixonado por ela? – perguntou ao entrar para o quintal atrás do irmão. – Talvez… – Porque envolver-se com alguém que não tem as qualidades de que precisas? – Tu não a conheces. Mas todos temos parafusos soltos… Se fosse assim, ninguém se apaixonaria por ninguém. – Ela não é o que Deus quer para ti. – Como sabes disso? – Posso me ter expressado mal, mas sabes que tenho razão – disse ao abrir a porta e dar prioridade ao outro. – Olhe para ela apenas como uma irmã que precisa de ajuda, nada mais. Esqueça o fogo da paixão – disse amigavelmente ao pousar-lhe a mão sobre o ombro. – Isso não é possível para nós. Somos homens normais. Se não fôssemos, estarias a dizer que não passamos de pessoas sem sentimentos… e sem direitos. Porquê? «Será que não temos autoridade para levar connosco uma irmã como esposa, assim como os demais?» – 1 Coríntios 9:5.
* Depois de ter descansado por quase uma hora sobre o cadeirão da sala, ter despertado para preparar-se para ir à Casa de Deus com sua família e voltado duas horas depois, Kalu ficou sentado no quintal com Ambrósio e Daniela. Os três manjavam alguns assados, mas só dois entre eles alcoolizavam socialmente seus corpos; a outra se contentava em ingerir sumo natural. – Pareces estar um bocado irritado, paizinho – examinou Daniela ao olhar para Kalu. – Na verdade, parecem os dois estar um bocado irritados. Estão com problemas amorosos? – Yá – respondeu, Ambrósio. – Há uma gaja maluca que não devia estar na minha cabeça… mas está. – E tu, paizinho? – Não é nada. Estou irritado com o Fernando. – Porquê? Por causa do muro? – perguntou ela, como se não soubesse da verdadeira razão, depois dardejou: – Ou será porque ele levou a tua namorada? – Quem te contou isso? – perguntou Kalu ao fazer-lhe cócegas nos lados. – Andas a fofocar demais! – A Gina contou-me tudo – respondeu ao sorrir. – Além disso, eu estava no prédio ao lado do da tua namorada com ela… e vi tudo. – Quem é ela? – perguntou Ambrósio. – A Ivone. A Daniela pensa que ela namora comigo. – E não namora? – voltou a perguntar o irmão. – Não sei. Só sei que tenho vontade de matar o Fernando. – A Daniela tem razão: Estamos os dois com problemas amorosos e com raiva de dois homens – concluiu Ambrósio. – Isso me dá uma ideia. Vou pegar a minha viola – disse ao levantar-se. – Como é que vão as coisas na escola? – perguntou Kalu, enquanto Ambrósio ainda ocupava o campo de visão de ambos.
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– Agora eles só falam – respondeu a menina. – Já não me atacam. Melhorou um pouco. – Nós temos um sonho, filha. E ele vai realizar-se. Dentro em breve já não terás de passar por essas tolices. – E o que vocês vão fazer? Um milagre? As pessoas preconceituosas estão por toda parte! – Apenas confie em nós. Nem que tenhamos de criar um bairro em que só vivam pessoas sem esses pensamentos idiotas, isso vai acabar. – O que é que vai acabar, senhor Kalu – perguntou Ambrósio ao reaparecer com seu instrumento musical. – Tocaste na minha cerveja, né? – Paranóico – disse ao lançar um olhar engraçado para Daniela. – Bem, vamos a isso – disse Ambrósio ao sentar-se. – Eu canto, e vocês fazem o coro. – Não conhecemos a canção – disse Daniela. – Claro que não! – reconheceu Ambrósio. – Vamos criá-la agora. Acompanhem-me apenas. Vai ser fácil… e fixe. Procura outra Estás com a minha ex-namorada E eu nem sei quem és Mas gostaria que trocássemos de papéis Tu deixarias ela pra mim Procurarias outra pra ti Rapaz, Faz-me esse favor Abandona a princesa que está contigo Acha outra dona Tenta a sorte noutro sítio Mas se quiseres me aguentar, Se te sentires do peso Olha, eu não vou me controlar Eu vou te pôr no gesso! Já tenho as luvas Os calções Há um ringe multidões de socos para te entregar Coro Será K. O. Knock Out Se não quiseres magoar-te Arruma as bicuatas e vai-te embora! Rapaz, Não precisas saber A razão de termos terminado um dia Vamos ser curtos e objectivos O amor não é como carro Não precisa de pendura Se insistires vais ganhar surra
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Que nem para andar vai dar, nigger Briga é o meu último nome Então fica a pensar como é que vais te despedir Nem Bento XVI vai te acudir Já tenho as luvas Os calções Há um ring E multidões de socos para te entregar Coro Será K. O. Knock Out Se não quiseres magoar-te Arruma as bicuatas e vai-te embora! K. O. Se insistires é pra perderes Knock Out Ao tapete vais ceder Se não quiseres Ter gesso e curitas eu não vou magoar-te Arruma as bicuatas E vai-te embora!
* Mais de dois terços de hora depois de Ambrósio, Kalu e Daniela se terem divertido no quintal, alguns gritos melodiosos no exterior da casa fizeram com que a maior parte da família Canzar fosse à rua. – Vamos encostar mais – disse Daniela ao puxar a mão de Kalu, enquanto estavam todos parados perto do portão. A três dezenas de metros deles estava uma grande multidão de jovens encostados à parede. A frente destes, havia uma roulotte amarela aberta – era dela que saía o barulho da música dançante. A moldura humana batia palmas e assobiava para um grupo de rapazes que dançava o estilo kuduro no meio da rua. Lourenço, Ambrósio, Zau, Kalu e Daniela assistiram àquele concerto empírico. Depois uma jovem notou a sua presença, e induziu a multidão a chamar pelo nome de Kalu e Daniela – era Gina, amiga da segunda. Ela sabia que os dois dançavam bem aquele estilo peculiarmente ritmado. Com certa hesitação, eles decidiram entrar para o palco poeirento e deram uma grande amostra sobre o que é movimentar-se à maneira angolana. – Podias ganhar dinheiro com isso – disse Gina ao abraçar Daniela, que estava totalmente suada e meio empoeirada, após ter terminado de dançar. – Aí ela já não teria tempo para estar com os pais delas – disse Kalu ao levantar a filha e colocá-la no colo. Ele estava ofegante. – Bom trabalho – disseram Lourenço e Ambrósio ao baterem respectivamente as suas mãos contra a mão esquerda e direita de Daniela. Zau passou os dedos de forma engraçada na cabeça da menina e do irmão.
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– Queremos bis! Queremos bis! – gritava a multidão em delírio coordenado, enquanto aplaudiam. Os Canzar entreolharam-se – todos tiveram a mesma ideia. – Deixem estes grupos de rapazes entrarem primeiro – disse Ambrósio ao começar a andar em direcção à casa. – Eu vou buscar um CD e já volto. Vão ter um show como nunca viram. – Eu vou contigo para trocar de calçados – disse Daniela, após ter descido do colo de Kalu. – Aquela música não se dança sem botas. – Vocês vão continuar de camisa e gravata? – perguntou Kalu ao olhar para Lourenço e Zau. Eles menearam a cabeça em sinal de aprovação. – Bem, também vou calçar botas, e trocar essa roupa – disse ao desfazer o nó do tecido na parte inferior de seu pescoço. Antes que Ambrósio, Daniela e Kalu desaparecessem de seu campo de visão, alguns rapazes pediram que se colocasse uma outra música e se colocaram no centro do palco de terra batida. A música e os assobios atraíram mais pessoas àquele local. Muitas das pessoas que passavam em seus carros ficaram paradas a observá-los. Era impressionante vê-los dançar. Era como se os problemas que existiam em suas mentes desaparecessem por alguns instantes. A dança os libertava. – Põem a número sete – disse Ambrósio à rapariga que tomava conta do leitor de CD na roulotte ao aparecer vestido de sua farda na companhia de Daniela e Kalu que estavam trajados de forma parecida. – A letra não é comum, mas o bit é dançante. Isso é hip-hop. – Arrasa-os, miúda! – gritou Gina, enquanto os cinco se dirigiam para o centro. Daniela piscou-lhe o olho e levantou o polegar. – Gravei esta música com uma amiga – disse Ambrósio ao colocar-se ao lado de Zau, enquanto Daniela ficava no centro e Lourenço e Zau à frente dela. – Se ela estivesse aqui, iria gostar muito de ver isso. A coreografia a que aquelas pessoas assistiram era impressionante. Era incrível ver como pessoas com a estrutura física daqueles cinco se moviam daquela forma. Antes de bradarem em aplausos, a letra que ouviram foi um género de sátira escrita para a forma de vestir imodesta de maioria das pessoas nas mais diversas sociedades. O conteúdo era o seguinte: Perigosas e perigosos Ambrósio: O que vejo não são pedaços de carne São mulheres Mesmo assim são provadas por quaisquer talheres Ex-namoradas, primas ou irmãs Vizinhas, inquilinas ou qualquer uma das tuas fãs Santidade para elas não significa modéstia Vestir bem para elas é vestir para festas Se não mostrarem um bocado do corpo Se sentem velhas Se a roupa não for justa Não serve para elas As de sessenta e cinco para baixo Sabem bem o que digo Nessa colheita não se distingue o joio do trigo Espalham a sedução 57
Querendo ou não dão Motivos para serem cobiçadas na rua Quando há estupro a culpa não é só tua Tu vais a cadeia por causa delas Teu melhor amigo luta contigo por uma delas Elas são perigosas, nigger Não importa se são da igreja ou não A medida do calção É sempre curta Sendo da igreja ou não Só seguem a multidão E vestem tipo malucas Irene: O juízo já acabou Só sobrou o pecado Machos de boxers aqui Se vêm em todo lado Tarado ou não te sentes atraída Dizer: «Ai que homem é esse?» É a única saída Mas não te enganes, não Não declines, não Esses gajos não podem te fazer rainha São só débeis mentais com coxas de meninas Te seduzem no trabalho Te agarram na escola São esses que merecem surra das mamãs da OMA Colados a ti ficam Pensam que és um ginásio Se o Ambrósio me emprestasse a arma Levariam um balázio É músculo em casa É músculo na rua Quando corneias um deles a culpa não é só tua Tu vais te confessar todos dias por causa deles Tua mãe te chama nomes feios por causa deles Eles são perigosos, sister Não importa se são da igreja ou não A medida do calção É sempre curta Sendo da igreja ou não Só seguem a multidão E vestem tipo farruscas
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Catorze horas de sábado. Ivone Tchivela estava deitada sobre uma cama de hospital. Ela olhava para os curativos que lhe haviam feito nos braços e na cabeça e para as faixas que lhe haviam amarado à volta das articulações dos membros inferiores e da cintura. – Visita para ti – disse a enfermeira ao entrar. – Quem é? – perguntou ela com olhar de desdém ao tocar numa das costelas em seu corpo que parecia estar partida. – É um senhor… – Diz-lhe que não o quero ver! – disse exaltada ao deduzir que se tratava de Inácio Tchivela. – Já estou morta para ele. Manda-o embora! A enfermeira olhou para as três pacientes deitadas nas outras camas antes de continuar. Cada uma tinha duas ou mais pessoas a conversar com elas. – Kalu é o nome dele. Ivone ficou paralisada por alguns minutos. Respirou profundamente antes de falar. – Podes dizer para ele entrar – disse ao passar a mão sobre o cabelo desalinhado. – Como estás? – perguntou Kalu ao entrar e estender-lhe a mão. – Só vou precisar de ficar aqui dois dias, até os médicos terem certeza que está tudo no lugar. – Partiste alguma coisa? – perguntou ao sentar-se numa cadeira ao lado. – Acho que uma costela foi à vida… – Nada que um pouco de cola não resolva – disse com graça. – Quem está a cuidar da tua estadia aqui? Quem está a pagar…? – Pedi ao Fernando para que ele fosse à minha casa buscar algum dinheiro. Ele usou o dele ontem. – Porque não me contaste nada sobre o vosso namoro? – Começou a dois dias atrás… – Devias ter contado na mesma. Amigos não guardam segredo? Mas… tu e o Fernando? O que é que ele tem que...? – É uma relação de interesses. – Como assim? – Sei das coisas que ele tem feito com a tua família. Talvez uma rapariga lhe ponha um pouco de juízo na cabeça. – Ele já faz isso há tanto tempo. Teres tomado essa estranha decisão agora… – Ele atirou um bidão de gasolina à vossa casa! – Sabes disso? – Eu vi-o. Mas não faça nada, por favor. Já falei com ele. – Interesses? Por quem? – De minha parte, pelo Ndombaxi? – O meu irmão? Fica descansada, ele está muito distante daquela casa para ser atingido de qualquer forma. – Eu sei que ele já não está na cadeia, Kalu… – Porque alucinas, miúda? – perguntou ao colocar-lhe a mão sobre a testa, para a desacreditar. – Eu estive com ele na última vez que fui à tua casa. Quer dizer, das duas últimas vezes… Também falei com ele na segunda-feira. Ele está encerrado atrás de umas grades de metal, não? Preciso tirá-lo daí… – A forma como falas… Continuas apaixonada por ele? – Existem paixões que nunca desaparecem.
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– Afasta-te dele! O meu irmão não é dessas coisas. Podes te magoar da pior forma possível. É um perigo para ti. – Ciúmes? – perguntou com graça ao apertar-lhe amigavelmente o nariz com o polegar e o indicador. – Ele é meu irmão. Conheço-o muito bem. – Eu sou mulher… Mas se é o que me pedes, vou fazê-lo. – É para o teu próprio bem. É o mesmo que ele te teria dito. – Está bem. Já percebi. Só precisamos de arranjar um bom plano para endireitarmos o Fernando. Assim vais poder me perdoar por estar com ele e me deixar ocupar um lugar especial neste coração. – O meu coração é uma coisa complicada. Enquanto a conversa continuava, Kalu olhava admirado para ela. Ele estava levemente irritado por ela estar a envolver-se com aquele vândalo, mas tentou entendêla. Por isso, o parcial desprezo que sentia naquele momento começou a desvanecer-se. Afinal, podia ser uma rapariga esquisita, mas não era completamente má. Era verdade que tinha algumas ideias tolas e descabidas, mesmo assim, Kalu não deixava de admirar a sua forma de levar a vida. Porquê? «A moça agradava aos seus olhos, de modo que ela obteve benevolência diante dele e ele se apressou em dar-lhe… o melhor lugar.» – Ester 2:9.
* Quinze horas de sábado. Com a excepção de um de seus membros, a família Canzar não estava em casa por causa do convite feito por Lourenço para conhecerem a vivenda que ele havia encontrado com o fim de se tornar a nova morada deles. A única presença humana naquela casa estava enclausurada como – ou pior que – a presença caprina, suína, anatídea, galinácea e íctica no quintal – Ndombaxi rondava sua jaula assim como os cabritos, os porcos, as galinhas e os peixes faziam em seu artificial habitat. Enquanto pensava na revoltante ideia de alguém querer assassinar sua família e tentava aprimorar o seu plano de saírem daquela casa de uma forma que não fossem notados, Ivone Tchivela apareceu em um de seus monitores. – Como é que estás? – perguntou ela situada à porta das traseiras, confiante de que o outro a ouvia. – As portas aqui estão sempre fechadas – divagou por não ter recebido resposta. – Quer dizer que não vou poder entrar de novo… Já viste os arranhões que tenho nos braços? Alguém caiu em cima de mim anteontem… e eu caí em cima de algumas pedras. Foi doloroso, sabes? Não queres falar? Não? Eu quero ouvir… Parece que vais continuar a te fingir de mudo. Bem, se não queres, eu quero… Na quinta-feira fui fazer um exame com o Kalu. Ele pensou que estava a me acompanhar para uma consulta em que os médicos veriam e cuidariam dos cortes que me fiz nos pulsos. Mas na verdade fui fazer algo que não podia fazer em casa, por causa da presença irritante e coscuvilheira do meu pai… Eu… Eu fui usar o quarto de banho do hospital para… para fazer um exame de gravidez – disse ao fazer com que o outro mordesse involuntariamente os lábios. – Deu positivo, sabes? O exame deu positivo. Estou grávida do teu irmão. O Kalu vai ser pai. Tu vais ser tio… – dardejou ela, deixando Ndombaxi estremecido, fazendo com que os dois não se apercebessem que a pessoa colocada na frase dela acabava de colocar os pés no quintal. – Não é a coisa mais
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estranha do mundo? Bem, para que não seja um incómodo… estou a pensar… e acho que será em breve… estou a pensar em terminar com a vida dessa coisa aqui dentro. Tinha pensado que aquela queda de anteontem tivesse terminado com a vida dessa coisa que cresce aqui dentro, mas não. A coisa continua viva! Pedi aos médicos e às enfermeiras para não contarem nada a ninguém que me conhece. O que achas? Arraso o teu irmão com a notícia que ele engravidou uma maluca, uma drogada, ou o escandalizo com a notícia que fiz um aborto… que matei o primeiro filho dele? Acho que nunca vou contar isso a ele. Tu também não vais, pois não? A alguns metros daí, Kalu se aproximava da porta de entrada. Quando se preparava para abri-la, reconheceu o som da voz de uma mulher do outro lado da casa. Para poder confirmar, deixou a maçaneta e andou até às traseiras. Como um choque eléctrico que se espalha à uma velocidade extraordinária, suas pupilas captaram a imagem auspiciosa de Ivone Tchivela sentada à porta de seu quintal. – O que fazes aqui? – perguntou ele, em tom parcialmente baixo. – Vim falar com o Ndombaxi – respondeu a outra ao levantar-se. – Vim pedir conselhos a alguém mais experiente. Acho que as nossas conversas andam meio mornas – disse para o ferir. – Disse-te para ficares longe do meu irmão – relembrou ao deduzir que Ndombaxi assistia a tudo aquilo e concordava com o que dizia. – É para o teu próprio bem… – Ele parece melhor do que tu a pensar. Não vejo nenhum perigo… – «O que está ela a tentar fazer?» – pensou Kalu, sem emitir nenhum som exterior. – «Dividir para conquistar? Pôr um irmão contra o outro?» – A tua natureza é rebelde. Fazes coisas por instintos… A diferença entre ti e uma tigresa é que ela tem mais seios que tu – dardejou com voz calma. – Tens o mesmo desejo de sangue que as bestas da selva. – Acho que estás a retratar o Ndombaxi – disse, mas interrompeu-se no momento a seguir ao dar-se conta que concordava com ele no que tangia ao seu contacto com o homem enclausurado. – Vou continuar a falar com ele quer queiras, quer não. Mesmo que ele não fale comigo, tenho o Fernando para me ajudar. Ele é bom em liderar as coisas, sabias? Queres criar uma Ivone que não existe e nem quer existir. Talvez tenhas de aprender a ser mais homem. Kalu olhou de forma triste para ela. Antes de desaparecer do campo de visão de Ivone Tchivela com a cabeça inclinada, Ndombaxi falou friamente por meio dos autofalantes: – Não ligues para ela, irmão. Os ouvidos e os neurónios dessa rapariga estão mortos. Porquê? «Negaram-se… a escutar e não se lembraram dos actos que realizaste com eles, endureceram a sua cerviz e designaram um cabeça para retornar à sua servidão.» – Neemias 9:17.
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CAPÍTULO VII Manhã de domingo. A casa dos Canzar estava calma. Daniela e sua avó cuidavam do lixo produzido pelos animais no quintal. O som da vassoura sobre a areia era o único captado por elas até alguém gritar com voz estridentemente na rua: – É peixe, é peixéé! – Ela veio cobrar – disse Daniela ao olhar para Nazaré Canzar, antes de uma mulher bater o portão da casa. – Entre! – demandou a menina. – Bom dia, mãe – cumprimentou a mulher que trazia uma enorme bacia de peixe sobre a cabeça. – Bom dia, menina. Vão comprar hoje? É bem grosso e bem fresco! – Bom dia, dona – respondeu Nazaré Canzar ao ouvir a sua frase ecoar na boca da neta. – Os meus filhos foram comprar um montão de peixes na semana passada… A arca ainda está cheia. – Tá bom – disse a senhora, com voz parcialmente fria. – E os caranguejo e os choco que te deixei daquele dia… O kilapi tá demorá muito – disse ao dar passagem a uma rapariga. – Não te preocupes. Já os tenho aqui – disse Nazaré Canzar ao aproximar-se dela. – Bom dia, tia Nazaré – cumprimentou a rapariga que acabava de entrar, após ter acenado gentilmente para a vendedora. – Bom dia, Gina – respondeu Nazaré Canzar ao passar-lhe rapidamente a mão sobre a cabeça. – Fugiste de casa? – perguntou Daniela, por estar surpresa com a visita da amiga. – A energia eléctrica foi. Não deste conta? Agora a casa ficou toda triste… – Então só vieste porque o teu apartamento está a navegar em tédio? – perguntou a outra ao reparar que Nazaré Canzar contava algumas notas para dar à vendedora. – Grande amiga essa! – É mentira. Decidi vir te visitar mesmo. – Agora melhorou. Sim, tchau dona – despediu-se Daniela ao ver o aceno que a vendedora fizera antes de sair. – Ainda não vamos poder fazer nada nosso. Queres ajudar-me com esse lixo? – Não – interrompeu Nazaré Canzar. – Deixa isso e vai à loja com a Gina para comprares o que te pedi. Eu posso acabar isso sozinha. – Está bem – disse Daniela ao encostar a vassoura à parede. – Vou só fazer uma coisa na cozinha. Depois de ter lavado as mãos e recebido a lista de compras da mão da avó, Daniela andou com Gina até ao portão. – Onde é que vocês vão? – perguntou Ambrósio, após elas terem alcançado a rua. – A avó mandou-me à loja – respondeu Daniela ao reparar na pintura que Ambrósio e Lourenço faziam aos muros vandalizados da casa e receber o telemóvel que a amiga lhe entregava para guardar por não estar a usar vestimenta com bolsos. – Voltámos já. – Tomem cuidado com os carros – aconselhou Ambrósio ao reparar que a rua estava com pouca presença humana. – Sim, senhor sargento.
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Passaram-se alguns minutos desde a última palavra de Daniela até ao desaparecimento dela e de sua amiga do campo de visão de dois dos cinco homens que a criavam. Depois de terem chegado ao local, a aquisição das coisas pedidas por Nazaré Canzar levou algum tempo. A loja estava superlotada. Era difícil e demorado chegar até à caixa registadora. – Um dia alugo a minha casa para eles – gozou Daniela enquanto carregavam os sacos ao referir-se a dimensão do local do qual saíam. – Yá, essa loja podia ser bem maior – concordou Gina ao olhar para um carro que passava à frente de si a algumas dezenas de metros. – Tive uma ideia: vamos chamar o Beto, a Lucrécia e o Estêvão para virem ficar connosco. – Yá, tá fixe – respondeu a outra, sem se aperceber que alguém lhes fixara o olhar. – Mas não vou andar até à casa de nenhum deles a essa hora. Tu é que vais. – Eu tenho saldo, minha senhora. Passa-me o meu telefone. – Aqui na rua? Vamos ligar quando chegarmos… – Passa só! Qual é o teu problema? – Cê é que sabe – disse Daniela ao entregar o aparelho à outra. – Mana moça – interrompeu-as um jovem estranho e parcialmente sujo. – Estou perdido. Vocês sabem onde é que fica o prédio dos Morreus? – perguntou ao fazer com que a amiga de Daniela escondesse o aparelho atrás de si. Num acto impulsivo – sem ter certeza sobre as intenções do rapaz – Gina correu para o meio da estrada, despreocupada com os automóveis e gritou: – Gatuno! Gatuno! Assustado e preocupado em realizar rapidamente o seu intento, o jovem olhou de forma ameaçadora para Daniela. – Dá-me o telefone – imperou o ladrão. – Não vou dar – disse Daniela relutante, com expressão desafiadora. – Eu tenho uma arma aqui, ouviu? – ameaçou ao reparar que Daniela andava em direcção à outra rapariga. – Quero lá saber! – disse a Canzar adolescente. – Vou vos matar! – disse o jovem ao aproximar-se lentamente. – Vem mesmo. Vem! Vem! – disse Gina. – Vais ver o que é bom para a tosse! – Xé! Vou vos matar então! – vociferou ao fazer um gesto dentro da camisola. – Vem então. Vem! Tens medo – zombaram as duas; seu plano era fazer com que se aproximassem o suficiente da casa de Daniela para que Ambrósio e Lourenço o vissem. O ladrão suspeitou da segurança daquelas raparigas. Pareciam imunes ao medo. Para demonstrar alguma agressividade, atirou areia na direcção delas e começou a andar na direcção oposta. – Tens medo da sova, né? – gozou Gina. – Devias vir provar um pouco de socos com molho de tabefes! – Deixa esse maluco aí, Gina – aconselhou a outra ao puxá-la pela mão. – Vamos andar rápido antes que ele volte ou apareça um pior. – Ele deve estar a tremer até agora – disse ao sorrir. – Você tem um espírito muito estranho. Nem sabias o que ele queria e foste logo gritar? – Os meus instintos não falham. Já fui assaltada e levei chapadas muitas vezes, minha cara. Ele queria roubar alguma coisa – afirmou ao ver a imagem de Lourenço e Ambrósio a aparecer em seu campo de visão.
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– Uma menina de dezassete anos com um histórico surpreendente de telefones roubados e bochechas aquecidas – troçou. – Deves ter um recorde mundial! Foram quantos? Quatro? Seis assaltos? – Treze – respondeu em tom de orgulho. – Amanhã te dou uma medalha. O pai está a falar com quem, kitata? – perguntou Daniela ao estar próxima dos dois e reparar que Lourenço conversava ao telefone. – Com a Sandra – respondeu Ambrósio ao ameaçar jogar tinta no rosto do irmão com um pincel. – Quem é a Sandra? – inquiriu a Canzar adolescente ao encostar para um dos lados para que a amiga pudesse entrar para o quintal. – Quem me dera saber! – exclamou Ambrósio. – Comé, está tudo confirmado para logo, filha? – Yá, está. Deste a letra à Ivone e à mãe para ensaiarem? – Sabes muito bem que sim. É uma pena não teres escrito uma parte em que eu entro a cantar. – A música não é sobre ti – interrompeu Lourenço com tom comicamente agressivo, ao desligar o telemóvel. – É sobre mim, seu usurpador de letras escritas pela filha que ambos dividimos… não sei como é que se diz cinco neste género de numeração. Dois é ambos. E cinco?
– Pode ser sobre ti – defendeu-se o irmão – mas eu é que canto. – Acabaste de dizer que não há uma parte sequer em que cantas. Eu também li a letra. Só falas… e duas vezes apenas – continuou o outro ao dar um ar de infantilidade engraçada à discussão. – Três! Foram três vezes – corrigiu Ambrósio ao salpicar tinta para a roupa do outro. – Parem de discutir, meninos – ordenou Daniela, com autoridade maternal, ao camuflar um sorriso. – Quem é a Sandra, pai? – Alguém… que usa saia, blusa, saltos altos… e tem cabelos compridos. – Pai… – Pronto! Rendo-me – disse ao recomeçar a pintar. – É a filha de uma minha colega… que nem sequer me interessa. Nem um bocadinho… – O teu interesse por essa mulher é tão nulo que ela tem o teu número? – perguntou ela com sarcasmo, ao fazer uma expressão séria. – Não fui eu quem o deu – respondeu ao reparar na pequena cicatriz que tinha no dedo anelar devido ao acidente com um jovem que tentara bater num de seus animais com um ripa. – Foi a mãe dela, a chata. – E a Adélia? – perguntou Ambrósio, para apimentar a conversa. – Não te metas, Patrícia – disse, para dardejar o irmão. – A mãe deve estar à espera dos sacos Daniela… já podes entrar. – Só se me disseres que não terei uma madrasta… – a frase dela foi interrompida pelos salpicos de tinta lançados por Lourenço contra a face dela. Para tentar esquivar-se, entrou às pressas para o quintal. – Ainda estavas a vender os cacussos aí fora, não é? – perguntou Nazaré Canzar, enquanto esfregava a roupa por trás de um tanque de pedra, após a imagem da neta ter sido captada por suas pupilas. – Estava a defender o teu filho de uma rã que usa saia e cabelos compridos. A mãe ensaiou a parte para logo? A música, mãe! – exclamou ao ver uma expressão de imperceptibilidade no rosto da outra. – Esqueceste-te? – Não. Está tudo pronto. Logo vamos estar juntos no estúdio do Zacarias. – O nome dele é Zando, mãe…
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– Já chamei os miúdos – interrompeu Gina ao sair de dentro da casa. – Eles vêm aí. – Quem vem aí? – perguntou Nazaré Canzar ao olhar para a neta. – Uns amigos. O Estêvão, o Beto e a Lucrécia. Vamos brincar um pouco… – Sabes que temos de ir à Casa de Deus hoje, não? O senhor Hermínio falou contigo sobre isso na quarta-feira, quando veio conversar com o teu papá – lembrou-a discretamente, para que os outros dois não se apercebessem que falava de Ndombaxi. – É às doze e meia, mãe. Só são… nove e catorze – disse ao olhar para o visor do telemóvel da amiga. – Está bem – rendeu-se Nazaré Canzar. – Desde que não me desarrumem nada aí dentro. – Não vamos brincar aí dentro. Será aqui fora – amenizou Daniela, ao começar a andar para pousar os sacos numa das mesas da cozinha. – Porque é que não convidaram o Paulo? – perguntou Nazaré Canzar ao lançar uma peça de roupa para dentro da enorme bacia de água à sua direita. – Quem o ia trazer, mãe? A família dele só o deixa ficar aí sentado na rua a mendigar, a receber dinheiro das mãos das pessoas que passam como… como se não tivesse família. – Ouvi que ele já tem uma cadeira de rodas – disse Gina, para dar uma boa impressão à avó da amiga. – Podíamos ir buscá-lo. – Com aquele todo peso dele? – perguntou Daniela ao desaparecer do campo de visão das duas. – Vamos visitá-lo depois. É melhor para os nossos braços… e para a saúde dele. – Ele deve sofrer muito por ter aquela cabeça bem grande, né, tia Nazaré? – perguntou Gina. – Ele nem consegue se movimentar por causa daquilo tudo! Só fica parado, sentado sobre aquele chão frio, a apanhar sol. Os braços são tão pequeninos, e as pernas também, mas o nguimbo do miúdo? Aquela cabeça é bem grande, yá? Deve lhe doer, né? – É muito provável, menina – respondeu a Canzar. – Macrocéfalo. – O quê? – É o que ele é: macrocéfalo. É essa a palavra certa. Não podes dizer «cabeça bem grande». Soa a preconceito… de gente preconceituosa, e a descriminação. – Amanhã eu posso te trazer dois ipod novinhos – disse um baixo e roliço rapaz, ao entrar para o quintal. – Faz isso – respondeu Ambrósio do lado de fora. – O meu dinheiro estará aqui à espera deles, Beto. – Tá fixe, kota. Bom dia, tia Nazaré – cumprimentou o rapaz ao fazer uma vénia na direcção da senhora. – Bom dia, Beto – respondeu Nazaré Canzar, ao lançar outra peça de roupa para a bacia. – Como estás? – Estou bem, tia. Ó ndengue Gina! Tudo bem, rapariga? – cumprimentou-a o rapaz ao moverem ambos as mãos em gestos masculinos. – Tudo bem, fofinho – gozou ao puxá-lo para perto de si. – A tua cabeça continua a bater no meu ombro, coisa gordinha. Ainda estás muito baixo. – Cheguei agora. Não quero começar a estigar-te já – disse o rapaz ao retirar os dedos de Gina que lhe puxavam as grandes bochechas. – Beto! Menino, como é que vai isso? – perguntou Daniela ao bater-lhe amigavelmente nas costas. – Yá, estava bem antes de me agredires com a tua mão – respondeu, com seriedade engraçada.
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– Bem, vamos ficar aí – direccionou Daniela, ao começarem a andar. – A mãe não precisa de ouvir as nossas conversas. – E a Lucrécia e o Estêvão? Não vêm? – perguntou Beto. – Daqui a pouco estarão aqui, senhor das perguntas intermináveis – respondeu Gina ao empurrá-lo um pouco para o corpo de Daniela. – A tua avó tem quantos anos, Daniela? – perguntou o outro ao ser colocado na posição erecta pela anfitriã. – Porque é que queres saber, Beto? – perguntou Gina. – Queres tentar a sorte? O teu carro de brincar partiria só com um terço daquela areia toda! – O primeiro filho dela veio quando ela tinha dezasseis anos – respondeu Daniela ao sorrir. – Ele tem agora trinta e nove. Portanto… cinquenta e cinco é a idade dela. – Cê pensa à toa, Gina – disse ele ao empurrar a outra de forma lenitiva. – É por causa da forma como ela veste. Nem usa panos como as outras avós. Só calças e blusas. Nesse momento ela está aí a lavar com uns calções jeans rasgados até aos joelhos e uma camisa amarrada de uma forma que se vê a barriga dela… – Estás a criticar a minha avó? – Não! Só estou a dizer que ela é… bonita demais para a idade que tem. Às vezes ela parece ser um homem com a atitude masculina dela. – O que é que vamos fazer? – perguntou a anfitriã, para terminar o assunto descabido. – Sei lá – respondeu ele. – Falar sobre coisas. – Coisas como? – inquiriu Gina ao revolver os olhos. – Coisas como conseguir que os nossos pais não vão à escola ver as nossas notas – respondeu ele. – Tiraste negativas de novo? – perguntou a anfitriã. – Não – respondeu o rapaz. – Mas os professores podem mentir que tirei, Daniela. – Os teus pais são boas pessoas. Não te iam assar ou vender para o serviço de escravo – gozou Daniela. – Falando em vender – interrompeu Gina. – Já sabes alguma coisa sobre os teus pais? – Nada, continuo a não saber nadinha. – E se descobrires que eles te abandonaram mesmo por causa da tua pele? O que vais fazer? – perguntou Beto, ao sentar-se com elas. – Sei lá. – E se eles quiserem que vás viver com eles lá na província? – Não sei, Gina. Essas ideias vão e vêm na minha cabeça… mas na verdade, não sei o que faria. – Às vezes não sentes uma raiva… uma cólera descontrolada por eles te terem feito isso? Às vezes não falas mal deles? Não lhe invocas umas pragas malignas? – perguntou Beto, enquanto tentava endireitar os atacadores do par te ténis que trazia calçado. Daniela ficou calada por alguns instantes e, antes de voltar a tornar-se audível, retirou um baralho de cartas do bolso de seus calções. Só depois de ter distribuído quatro cartas para cada um, é que a única presença masculina no meio delas ouviu a resposta à sua pergunta. – Não, não falo deles em meu coração. Porquê?
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A pessoa que amaldiçoar o pai ou a mãe será morta; e ela será responsável pela própria morte, pois amaldiçoou o pai ou a mãe. – Levítico 20:9.
* Muitas horas se passaram desde a conversa com Gina e Beto, o divertido jogo de cartas dos três com Lucrécia e Estêvão, a ida instrutiva à Casa de Deus e a visita reconfortante a um de seus amigos. Já era noite e, como haviam combinado, todos se encontravam no estúdio de Zando prontos para gravar a música que Daniela da Glória Canzar havia escrito. Desde o princípio dos seis meses que levariam à sua morte – até agora se haviam passado duas semanas, faltavam ainda cinco meses e catorze dias para o dramático acontecimento – Daniela trouxera aquela linda canção para mostrar à sua família, inspirando-se numa relação antiga de Lourenço Filipe Canzar com Adélia Pilartes Sayago. Ela era realmente bonita e inteligente, mas como das outras vezes que ficara com outras mulheres, ele sentia que gostava dela apenas porque suas hormonas fervilhavam ao lado daquela fêmea. Existia realmente amor, mas ele sentia tudo no físico – era carnal demais para ser puro. Lourenço não se sentia à vontade com aquilo e, com o tempo, assim como os relacionamentos de seus outros irmãos, a tentativa de amor platónico chegou ao fim. Agora estavam todos aí, relembrando-se de tudo aquilo, graças à mente adolescente daquela menina especial. – Então? Está tudo pronto aí, niggers? – perguntou Zando, posicionado atrás de um vidro à frente da família Canzar e de Irene Makuntima. – Não está nada – respondeu Nazaré Canzar. – Como é que eu vou fazer de minha mãe e a Ivone de mim? Eu estou mesmo aqui! A Dona Marília está a essa hora a capinar na lavra dela, ou a dormir. Não pode ser o contrário? Eu faço de mim mesma e ela de minha mãe? – A sua voz é mais adulta e mais cheia de responsabilidade, Dona Nazaré – respondeu Zando ao piscar-lhe o olho. – Está bom assim. Bem, vamos gravar. – Conseguiste os bits que estavas à procura, Zando? – perguntou Daniela ao entregar um copo a Ambrósio e receber o copo de uma outra rapariga. – Yá, miúda – respondeu o possuidor do nome anunciado pela menina. – O que é que o Zando não consegue? Foi difícil, reconheço. Juntar R&B, Semba e Kilapanga da forma como querias é duro. Mas consegui! O Zando é bom nisso. 0K. Tu entras na parte do R&B, a Irene do semba e a Dona Nazaré no Kilapanga… Vamos a isso! Fiquem despreocupadas Adélia: Oh! Oi, Daniela. Tudo bem? Daniela: Yá, tudo. Adélia: Vim ter com o Lourenço. Ele está? Daniela: Está a tomar banho. Mas entra. Adélia: Obrigado. Boa noite, tia Nazaré Canzar. Boa noite, avó Marília. Nazaré Canzar: Boa noite. Avó Marília: Boa noite, menina. Daniela: Enquanto esperas por ele, podemos ter uma conversa? Adélia: Claro. Daniela: 0K. 67
Nunca tinha visto O meu pai apaixonado por alguém Desse modo tão irrestrito Profundo e louco também Reconheço que o fazes feliz Dás-lhe, carinho, não dás? Diz. Por causa disso entrego-o na tua mão Faço isso de boa vontade, faço-o de coração Mas não posso permitir que o faças sofrer Te nego a autorização de pores tudo a perder Não o podes magoar nem desprezar Com ele não grites nem lhe ponhas chifres Não te deixarei sair se não concordares em ser A namorada perfeita. Fala, agora podes dizer Adélia: Não há bem que não farei pelo teu pai Não existe como essa relação Terminar por minha causa Afilhada, tá descansada Farei chover rizadas na vida dele Fica despreocupada Nazaré Canzar: Desculpem-me por me intrometer na vossa conversa. Adélia: Não, está a vontade, tia. Nazaré Canzar: Esse menino, o meu filho Tem me falado muito de ti Ele não é ingénuo e sarilhos Nunca trouxe para aqui Diz que sabe que possuis qualidades e defeitos E que cabe a ele o dever e o direito De te escolher como par, como noiva E até mesmo como esposa Só que não posso, juro que não posso Te conceder a guarda dele antes de saber Se as tuas intenções são boas Ou queres só te entreter Não o podes desrespeitar nem… sei lá! Com ele não brinques nem o irrites Não podes denegrir aquilo que ele hoje é Não fica calada, menina, diz o que pensas fazer Adélia: Me entreter não é a intenção Irritá-lo? Oh! Isso não! Meu amor não é fachada Sogra, não farei nada Que a ele não agrada
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Serei fiel, fica despreocupada Avó Marília: Entre o amor e a felicidade O nolapo nye? Teus sentimentos são de verdade? Atambululo akasi pi? Melhor eu falar em português Para a minha neta entender Comandas o que sentes Ou o que sentes manda em ti? O que é que acham os teus parentes? Eles sabem que estás aqui? Não tenho nada contra o vosso relacionamento Só não posso admitir que fiques com ele Se fores uma mulher que não sabe cuidar da casa Ou preparar o que comer Não sabe lavar nem conversar Com o namorado só mostra truques Nem sequer faz ajustes no comportamento Quando lhe ensinam a melhor atitude a ter Abra a boca, filha a avó te ouvir a falar agora quer Adélia: Felicidade e amor estão Tão ligados que não há como não Desejar ter mais de um só Avó, muito obrigada Serei a mulher aprovada para ele Fica despreocupada Daniela: Gostámos de ouvir o que disseste Avó Marília: Espero que não estejas a ser falsa connosco Nazaré Canzar: Eu confio na menina, mãe Lourenço: Confia em que menina mãe? Oh! Já chegaste. Adélia: Há muito tempo. Lourenço. Bem, vamos embora Daniela: Com licença, avó. Com licença tia Nazaré. Com licença, Daniela. As outras: À vontade. Bom passeio. Depois de estarem na rua: Lourenço: O que foi que aquelas três falaram contigo? Adélia: Nada de especial: Pediram-me para tratar bem de uma certa pessoa.
* Vinte e duas e catorze. A família Canzar já havia voltado para a casa há meia hora. Para não jogar o resto dos alimentos no carro de lixo que passava perto de sua porta, Daniela sacudiu o prato no lugar em que estavam os caprinos.
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Quando os animais começaram a afluir para perto do repasto, os olhos azuis da menina reconheceram o vulto de um corpo humano deitado a alguns metros do bode selvagem. O homem – não, o jovem – parecia dormir. Daniela tentou focar bem a imagem captada por seus olhos azuis e percebeu que ele podia estar desmaiado por causa dos sinais que tinha na mão e na testa. Era – alguém conhecido, e – alguém que odiava a família dela. Para evitar um alvoroço àquela hora, andou calmamente até ao interior da casa e discretamente chamou Lourenço. – O que foi? – perguntou ele ao sair e fechar a porta atrás de si. – Vem ver a última do teu querido vizinho. Ambos andaram rapidamente e alcançaram o local. – O que é que esse maluco está a fazer aí? – Não sei, pai. É melhor tirá-mo-lo daí antes que o bode corte a corda e faça algo horrível! Depois de hesitar por alguns instantes, Lourenço pulou o pequeno muro e andou até à direcção do jovem deitado. Os dois cabritinhos correram até ele e mordiscaram suas roupas. – Ei! – chamou Lourenço ao tocar no ombro do homem deitado. O mancebo cheirava a cerveja. Provavelmente havia ficado a beber o dia todo e tivera a estúpida ideia de voltar a soltar os animais daquela família. Mas porque não acordava? – Ei! Ei! – chamou Lourenço por mais algumas vezes. Visto que não havia resposta, Lourenço levantou-o e colocou-o numa posição em que a cabeça do jovem batia em suas costas e os pés ficavam pendidos à frente de suas pernas. Com algum cuidado e com a ajuda de Daniela, passou-o pelo pequeno muro. Voltou a pô-lo sobre seu ombro e andou em direcção à porta. – Tu não precisas de vir – disse Lourenço de costas voltadas para a filha. – Entra e continua a ler a tua matéria escolar como se nada tivesse acontecido. Vou levá-lo para a casa dele. Ambos sentiram um nó na garganta após Lourenço ter pronunciado aquelas palavras. Para Daniela, era como se seu pai estivesse a dizer que faria uma jornada suicida; para Lourenço, era como se estivesse a despedir-se da filha. Talvez fosse uma sensação descabida, mas foi o que eles sentiram naquele momento. Após ter encostado o portão, Lourenço colocou o jovem no carro. Muitas pessoas passavam pela rua, mas poucas olharam para eles. O jovem continuava desmaiado. O cheiro a álcool tornava a inalação do dono do automóvel insuportável. Antes de colocar a chave na ignição e meter o carro em andamento, Lourenço ligou o ar condicionado para ver se podia respirar com algum conforto. Alguns minutos depois, a casa do rapaz apareceu em seu campo de visão. Antes de tentar retirá-lo do auto, o mancebo murmurou algo que Lourenço não percebeu. Ele estava acordar. Para evitar ter qualquer tipo de diálogo com ele, tirou-o às pressas e colocou-o sentado sobre o chão. Bateu o portão por três vezes e, quando ouviu o som de passos vindo do interior, entrou para o carro e voltou para a casa. – Não entraste? – perguntou Lourenço, depois de ter estacionado o auto e ver que a filha o esperava no quintal. – Quis saber se voltarias bem – disse ela ao abraçá-lo. – Para quê o drama? – inquiriu calmamente ao passar a mão sobre os cabelos louros dela. – Essas pessoas são tão más… Fiquei medo… – Gostei do que fizeste, filha. – O que foi que eu fiz?
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– Tiveste a oportunidade de te vingar de alguém que já te fez tanto mal, e na tua própria casa, mas não o fizeste. – Ah! Isso? – perguntou ao disfarçar o som de seu choro alegre e triste. – É porque já deixei de usar o coração para resolver os meus problemas. Agora só o que aprendo da Bíblia e o que a minha consciência me induz a fazer é que se torna um facto. Os pensamentos errados encerro-os aqui dentro. Já não os deixo sair como uma menina mimada. Porquê? «Do coração vêm raciocínios iníquos… blasfémias.» – Mateus 15:19.
* Manhã de segunda-feira. Daniela estava na escola a terminar uma prova surpresa feita pelo seu professor. Apenas treze alunos haviam restado na sala. Ela tentava fugir aos sinais esquisitos que o homem por trás da secretária lhe dava com o olhar e as mãos. Por parecer ter algumas dificuldades em resolver os exercícios, o professor levantou-se e foi até à sua carteira. – O que é que se passa, menina? – perguntou ele ao posicionar-se atrás dela. – Nada demais, professor. Estou só a tentar fazer as coisas nas calmas. – Cometeste um erro aí. – Onde, professor? – Aí – apontou o professor com o olhar ao colocar uma das mãos nas costas dela e abaixar-se bem perto da orelha dela. Daniela sentiu a temperatura da mão do professor passar-lhe a bata escolar e a blusa de algodão e esquentar-lhe a pele. Não era a mesma temperatura que sentia quando sua avó, seus pais ou seus amigos a tocavam. Era uma temperatura errada, inapropriada. Quando o professor a deixou e posicionou-se à sua frente, a pele das orelhas dela estava avermelhada, assim como seu olhar parcialmente marejado. Porquê? «Os homens maus e sem valor… piscam e fazem gestos. As suas mentes perversas estão sempre planejando o mal, e espalham confusão por toda a parte.» – Provérbios 6:12-14.
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CAPÍTULO VIII Enquanto sua neta e quatro de seus filhos cuidavam de assuntos seculares no lado exterior do seu lugar de morada, Nazaré Canzar descansava sentada sobre o cadeirão em sua casa. Em gestos lentos e suspiros nostálgicos, folheava um álbum de fotos. Numa das fotografias que via encontrava-se ela e Constantino Canzar no dia de seu casamento. Numa outra, Ndombaxi, seus irmãos e Daniela olhavam para o pequeno cão no colo do primeiro – era Dinake, a fotografia havia sido tirada no dia em que o animal fora oferecido por um amigo da família. Ndombaxi lhe havia dado aquele nome kimbudu devido ao número de pessoas que existia naquela casa – sim, dinake corrresponde ao número oito em português. Em outra fotografia, Nazaré Canzar estava abraçada a Anita Cuchi e Constantino estava sentado ao lado do marido desta. Numa outra ainda, Nazaré Canzar estava por cima de uma colossal motorizada preta. Aquela imagem fez precipitar em sua mente uma dilúvio de recordações. Aquela mulher gigantesca era enérgica e determinada desde o seu nascimento. Havia sido criada numa família em que tinha seis irmãos. Era a única filha. Sua forma de vestir era parecida a de seus irmãos. Raramente usava saias. Quando atingiu a idade de poder arranjar um emprego, um de seus primeiros trabalhos foi o de condutora de um possante caminhão de cargas. Por ser a segunda filha, muitas vezes tinha de defender a integridade física de seus irmãos menores com seu punho forte. Desde os doze anos que rapazes e homens adultos andavam atrás dela. Mas não era por causa de sua inteligência ou determinação – queriam apenas desfrutar de seus atributos físicos. Era esse o incômodo angustiante que tinha de suportar por ter nascido privilegiada nas mais sedutoras curvas femininas. Por causa disso, teve poucos relacionamentos. Na verdade, um apenas aos dezasseis anos. Ele parecia ser o mais respeitoso dos rapazes com os quais já tinha conversado. Tinha quase o mesmo tamanho que ela e parecia entendê-la como ninguém. Depois de alguns meses, aconteceu a estupidez da qual todos pais tentam proteger o seus filhos – não, a estupidez não é referente a uma gravidez precoce (isso é a terrível consequência do acto tolo), mas é referente à uma relação sexual sem se estar casado e muito menos pronto psicológica e financeiramente para suportar o que dela pode advir. Trinta e seis meses depois, tendo já um filho, casaram-se e viveram períodos turbulentos por dezanove anos. Algum tempo antes, começaram a pensar em sair da província em que viviam, por causa da intromissão inoportuna de familiares em seus assuntos conjugais. Embora tivessem gerado mais quatro filhos nesse longo espaço de tempo e houvesse certa presença de felicidade entre aquelas paredes, o divórcio deixou de ser uma ameaça feita a gritos extridentes, e passou a ser um facto triste, mas libertador. Todavia, tal decisão foi tomada quando já haviam saído de sua terra natal, sendo que o motivo da mudança foram os abusos que a menina encontrada por seus filhos sofria. – Onze e quarenta e três? – perguntou para si mesma ao olhar para o relógio de parede à frente de si. – Preciso fazer o almoço, ou aqueles miúdos atiram-me àquele bode maluco. Antes de levantar-se, fechou o álbum e colocou-o sobre a banca ao lado do cadeirão. Por causa do barulho de batidas em seu portão, endireitou as roupas em seu corpo e foi até ao quintal. – Quem é? – perguntou ela ao aproximar-se da estrutura metálica, totalmente despreparada para a notícia que a pessoa do lado de fora lhe trazia.
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– Sou eu, tia Nazaré – respondeu uma voz infantil. – O que foi, menino? – inquiriu ao abrir-lhe o portão. – Vem rápido, tia! Vem! Tão a baté a Daniela na casa da Dona Anita! Nazaré Canzar estremeceu, assim como seu filho primogénito dentro da cela. Seria verdade? Porque razão fariam aquilo? Teria algo que ver com o que Ndombaxi fizera na noite anterior quando Fernando entrara à socapa no quintal e tentara soltar novamente os animais – sim, seria vingança? Seria possível que aquele vândalo tivesse reconhecido a pessoa mascarada e vestida de negro que o atacara por trás e o deixara desmaiado? O gigante enjaulado levantou-se e agarrou firmemente as grades à frente de si. Os músculos de seus maxilares realizavam movimentos involuntários. O buldogue levantou-se e deu alguns passos, o que fez o sistema auditivo de seu dono captar o som da corrente em seu pescoço arrastando-se sobre o chão. Ndombaxi olhou para ele. O animal fez o mesmo. Dinake abriu um pouco a boca e rangeu os dentes. Depois abaixou a cabeça e voltou a sentar-se. Ndombaxi deu-lhe as costas e voltou a sua atenção para o monitor que apresentava as imagens do quintal, mas não viu ninguém – Nazaré Canzar já não estava aí. Na rua, uma mulher enorme corria atrás de uma criança. Ela parecia assustada – ansiosa e aflita eram as palavras certas. Segundos depois de ter dado passos com a celeridade que seu corpo lhe permitia, chegou à casa dos Cuchi e empurrou o portão. O quintal estava vazio – o silêncio reinava. Andou até à porta que estava entreaberta e, antes de passar para o interior, notou que havia uma corda amarrada à maçaneta. – Há alguém aqui? – perguntou com voz temerosa. Não houve resposta. Ao olhar para um dos cantos da casa, viu pendurada uma blusa. A blusa – a blusa estava rasgada e com gotas de sangue; a blusa – era a mesma que Daniela vestira na manhã daquele dia para ir à escola. Nazaré Canzar sentiu-se entontecer. De repente, a porta atrás de si fechou-se. Ao virar o rosto para ver o que acabara de acontecer, um pequeno pano branco alcoolizado tapou-lhe o nariz. A gigante perdeu os sentidos e caiu desmaiada.
* Dezoito minutos depois da desconcertante notícia trazida por um rapaz à sua mãe, Ndombaxi surpreendeu-se ao ver Daniela entrar para o quintal conversando ao telefone. Teria sido mentira? Só podia ter sido. Seguindo os seus movimentos através dos monitores, Ndombaxi Ilídio Canzar viu a rapariga apalpar as roupas estendidas sobre o fio, apanhar algumas mangas verdes e atirá-las para o curral, abrir a pasta, retirar um molho de chaves de um dos bolsos, abrir a porta da frente e entrar para a casa. – Boa tarde, papá – cumprimentou ela, após ter tirado a bata. – Boa tarde, filha – respondeu Ndombaxi. – Estás bem? «Estás bem?» Que pergunta era aquela? Se as pessoas soubessem de tudo que se passa na vida dos outros, saberiam que às vezes é perigoso perguntar coisas do género. – Estou, estou bem – respondeu ao dirigir-se para a cozinha. – Temos uma actividade lá na escola, papá. – E? – Cada um pode apresentar o que quiser – respondeu ela ao abrir a porta sobre o chão e começar a descer as escadas. – E os pais têm de ir. – Tens cinco pais. Um deles pode ir…
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– Não. Assim não teria o meu pai lá. Tenho um pai colectivo. Se faltar um, ele estará incompleto… – Andas a prestar muita atenção ao que aprendes da Bíblia. Mas sabes que não posso ir – disse ao aproximar-se das grades. – Tive uma ideia fixe, papá. Gostaria que pelo menos dessa vez participasses dela. – Que ideia é essa? – Quero apresentar uma peça de teatro – contou ela ao acariciar os pêlos de Dinake. – Que fala sobre…? – Quero juntar personagens da história do nosso país que pouco ou nunca se encontraram… por terem vivido em épocas diferentes, mas que lutaram pelas mesmas causas. – Interessante… Quem vais pôr? – perguntou ao permitir que suas pupilas fossem preenchidas pela graciosa imagem da menina. – Nzinga Mbandi, Ngola Kiluanji… Bula Matadi, Ekuikui II, Mutu-ya-Kevela e… Mandume – respondeu ao contar os dedos. – Seis… Cinco homens e uma mulher… assim como a tua avó e os filhos dela. Muito espertinha… – Vá lá, papá. Vai ser bom. Porque é que eu aprendi a dançar, cantar e escrever se não posso ter a cooperação da minha família? – Falaremos disso depois. Hoje ninguém importunou-te? Outra vez uma pergunta melindrosa. Se fosse numa outra altura, não haveria tanta tensão em Daniela ao respondê-la. Era como se Ndombaxi soubesse de tudo e que só perguntava aquilo para que ela se expressasse. – Hoje… hoje eu tive de novo aquela sensação de que o meu professor quer algo comigo… Porque contava aquilo? Ainda mais ao irascível! Se esperasse mais algumas horas, poderia muito bem contar o sucedido a Lourenço. Seria possível que fazia aquilo com a ideia inconsciente de dar um forte motivo para que Ndombaxi saísse daquele género de gruta? – O que foi que ele fez desta vez? – perguntou ao franzir a testa. – Voltou a convidar-te para alguma coisa? – Tocou-me nas costas… – Tocou-te?! A tua roupa…? Ele…? – Não! Eu estava vestida. Desde o princípio da prova que ele me olhava de uma forma estranha. Nem conseguia me concentrar para fazer bem a prova… Depois ele chegou perto de mim e pousou a mão sobre a minha bata. Senti-me estranha. Não sei se percebi mal, mas não gostei nada. – Essas pessoas são perigosas, filha. Aproveitam-se principalmente daqueles que elas acham que se sentem os seres mais desprezados do mundo. Aproveitam-se de pessoas doentes, que se sentem esquisitas ou sem beleza suficiente para atrair outros. Aproximam-se delas com subtileza… demonstram preocupação. Em último recurso dizem que as amam, só para conseguir o que querem. Lembras-te daquela vizinha de dezassete anos que é gorda, tem a cara meio deformada e a perna e o braço atrofiados. Com o é que ela ficou grávida? – Alguém se aproveitou dela. Acho que a conquistou da forma que o papá disse…
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– Ela deve ter pensado que aquele era o único homem na terra que gostava dela… E agora está aí, com um filho sem pai. Vamos ter de fazer umas mudanças no teu telemóvel para nos precavermos de situações como essas. – Que mudanças? – Eu e o Kalu vamos cuidar isso – disse ele ao receber o aparelho que a menina lhe entregava. Antes de dar as costas e sentar-se perto de uma mesa cheia de objectos electrónicos, disse em tom seco, mas confiante: – Se o teu professor tentar mais alguma coisa, já não precisarás de ficar preocupada. Porquê? «Chegará repentinamente o seu desastre; num instante será quebrantado, e não haverá cura.» - Provérbios 6:15.
* A mais ou menos doze quilómetros de sua casa, Lourenço Filipe Canzar se encontrava em seu local de trabalho. Previamente planeado por sua colega Elisa Bengui, a filha desta, Sandra, estava a fazer uma visita àquele escritório. – Teríamos de receber a tua visita novamente para isso, Lourenço – disse Elisa, enquanto ele observava o olhar cheio de timidez camuflada de Sandra. – Ou poderiam sair juntos e passear por aí. – E quando poderia ser isso? – perguntou ele, para demonstrar algum interesse. Seu coração estava totalmente a leste do que aconteceria em breve. – Tens alguma coisa para fazer logo, filha? – perguntou Elisa Bengui. – Se o Lourenço não tiver… – respondeu Sandra ao dar um gole no café de forma sedutora. – Eu penso que… A entrada inusitada de um de seus colegas interrompeu Lourenço Canzar. – Lourenço – disse o colega ao colocar as mãos sobre a única presença masculina que encontrara naquele cubículo – tens uma visita. – Quem é? Está aí fora ou já a dirigiste para aqui como sempre? – perguntou Lourenço ao levantar-se. – Sai e vê – disse o outro ao fazer uma vénia. O único Canzar naquela empresa deu alguns passos e abriu a pequena porta com a cabeça abaixada, para poder espreitar sem ser notado, mas levou um susto. A primeira coisa que sua visão captou foi um par de saltos vermelhos bem à frente de si. Quando levantou a cabeça e olhou para o rosto da mulher – oh! não! A imagem da mulher que preencheu o seu campo de visão – era Adélia sorrindo de forma infantil para ele.
* Nazaré Canzar sentia-se entorpecida ao acordar. A imagem da pessoa à frente de si estava desfocada. – Gostou de sonhar um pouco? – disse a pessoa que estava a ser captada como uma imagem psicadélica pelas pupilas da gigante. Nazaré Canzar reconheceu aquela voz. Era Anita Cuchi.
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– O que se passa? – perguntou ela, ainda zonza, ao tentar passar a mão sobre a face. Todavia, nenhum dos quatro membros respondeu. Ela estava amarrada. – O que é isso?! – Uma reunião… realizada à força… – Anita… – chamou Nazaré Canzar ao poder enxergar com claridade. – O que fazes com essa faca na mão? – Quero resolver algumas coisas pendentes… cortar o mal pela raiz… – Estás louca! – vociferou a outra ao reparar que estavam apenas as duas e que o lugar não era a casa em que tinha entrado. – Onde é que estamos? Anita, fica longe de mim com essa coisa! – Estamos longe… muito longe. Com que então a senhora mandou dar uma surra ao meu filho ontem, hein? – perguntou ela ao rondar a outra como uma predadora insana. – Do que falas? – O Fernando foi espancado ontem, Joana Maluca – disse ao empurrar a cabeça da outra com violência. – E ele me diz que foi por aquele teu filho… aquele Ndombaxi. – O teu filho deve estar louco! O Ndombaxi está preso. – Não é o que o meu filho diz. E a mana Anita aqui acredita nos seus filhos. – Onde é que foi o espancamento? – Isso não interessa… – Onde é que foi, Anita? – perguntou ao tentar libertar-se discretamente. – Já disse que não interessa! – vociferou com olhar incendiado. – Porque fazes isso? Porque me odeias tanto? Éramos amigas antes… O que aconteceu? – Ah! Tens certeza que queres falar sobre isso, menina violada? Queres mesmo? Queres? Vamos a isso! Te achas a melhor pessoa do mundo, não? Pensas que podes pisar em todos e ainda assim ser encarada com admiração na rua, não é mesmo? O teu passado. Oh! O teu passado, Joana Maluca! Começámos por onde? Pelo filho da colega da tua mãe que tentou brincar daquela forma contigo quando tinhas seis anos? Pelo rapaz que te beijou duas vezes à força no princípio da tua adolescência? – inquiriu ela ao fazer com que o olhar de Nazaré Canzar marejasse e sua tensão subisse. – Pelo que a tua irmã te fez e não deixou que lhe fizesses? Pelo que o teu vizinho te fez? Pelo dia que o teu pai te confundiu com a tua mãe na cama? Oh! Isso não! Isso te torna uma vítima, não? Porque não começamos pelas tuas aventuras, pedófila? – perguntou ao esbofeteá-la com violência. – Como é que sabes dessas coisas? – perguntou, com a face abaixada. – Sei disso há muito tempo… Desde o dia que deixei de andar contigo. São vinte e dois anos, não? – Quem te contou? – Quer saber muito, vadia! – depreciou, desconsiderando a força que aquela mulher tinha. – Isso não tem nada que ver com a nossa amizade – disse ao respirar com fúria. – Tem que ver comigo. Tu não podias deixar de ser minha amiga por causa disso. Porque mentes? Há algo mais, não? – Se és assim tão inteligente, descobre… Descobre… Ah! A única forma que sabes andar é com roupas descobertas. Dá para rir, não? Estás sem marido há tanto tempo… mas espera! Tens cinco homens em casa… O que tens feito? Talvez a Daniela…
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De repente, Anita viu uma mulher enorme romper aquelas cordas com cólera. Uma das mãos de Nazaré Canzar agarrou-a no pescoço e a outra torceu-lhe a mão armada, fazendo com que a faca caísse. Anita Cuchi já não pisava o chão quando Nazaré Canzar a levou até à parede à sua frente e bateu as costas dela contra a estrutura sólida de betão. – Posso ter cometido as piores atrocidades no passado – disse ela, com cólera controlada. Antes de continuar, engoliu em seco e suspirou com violência. – Mas não sou eu que insiste em ficar com um marido que a espanca, se é que ele merece esse nome e tu o de esposa… E não sou eu quem tem os filhos com o comportamento mais desprezível que conheço e que permitiu que a filha apanhasse poliomielite por ser um farrapo de mulher bêbada… Antes que Nazaré Canzar pudesse continuar com seu monólogo insultuoso, três homens entraram e tentaram atingi-la com cacetes. Todavia, ela os derrubou para o chão atirando-se impetuosamente contra o corpo deles. Embora tivesse sido atingida no ombro por uma das mocas, alcançou a porta e correu até a estrada. O sítio em que se encontrava era muito distante de sua casa. Sabia disso por causa da forma deserta do local. Só havia capim alto nas margens do terreno alcatroado, e viam-se algumas casas de chapa ao longe. Um carro – vinha um carro atrás de si. Antes que seus agressores pudessem alcançá-la, correu até ao auto e, depois do homem que o conduzia ter visto a sua aflição, abriu a porta e entrou. Anita Cuchi ficou dentro da casa vendo o auto desaparecer deixando um cáustico rasto fumo.
* – Lourenço! – exclamou Adélia ao abraçá-lo com a maciez de seus membros superiores angélicos, após ele ter saído e fechado a pequena porta – Como estás? – Tudo fixe comigo – respondeu desconcertado ao sentir o perfume extasiante dos cabelos e da pele daquela mulher. – E contigo? – Também estou bem – respondeu ele com expressão exageradamente alegre ao afastar-se do pescoço dele. – Estás mais bonito… – Foi a minha mãe que me vestiu hoje. Até ontem estava habituado a usar fraldas… – gracejou secamente, para cortar a bajulação. – Com quem estás aí dentro? – perguntou ela ao passar por ele e esticar a mão em direcção à pequena porta. – Com o meu colega que te trouxe até aqui – respondeu ao tentar impedi-la – e a Elisa… e a filha dela – disse, após ela ter entrado e visto as três pessoas. – O aquecimento global mudou-se para aqui – gracejou o colega, enquanto Adélia cumprimentava as outras e Lourenço se afastava um pouco para atender a uma chamada. – És amiga do Lourenço? – perguntou Adélia à Sandra ao disfarçar o olhar incendiado. – Ela pretende ser mais do que isso – respondeu Elisa ao sorrir. – A babá? – perguntou Adélia em tom zombador ao fixar o olhar para as roupas de Sandra. – A tua filha pretende ser a babá dos filhos dele? Veste-se bem demais para isso. – Tem de haver algo que ultrapasse o aquecimento global. – tugiu o colega. – Isso é demais! – Quem é essa moça, mãe? – perguntou Sandra. – Alguém que pensa ser conhecida pelo Lourenço – respondeu Elisa ao esboçar um sorriso notavelmente falso.
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– A tua filha trabalha aqui? – perguntou Adélia. – Porquê? Vais comprar a empresa? – retorquiu Elisa. – Minhas senhoras – interrompeu Lourenço, com expressão ansiosa –, vou ter de deixar-vos. A minha mãe acaba de falar comigo ao telefone. Alguém a quer matar.
* Aproximadamente uma hora após Nazaré Canzar ter ligado para todos os seus filhos para informar-lhes sobre o que se passava, o homem que conduzia o auto em que estavam parou o veículo – ela já estava muito perto de casa. Nazaré Canzar agradeceu ao senhor e saiu correndo em busca de auxílio em seu lugar de morada. Embora não visse ninguém a persegui-la, seus sentidos lhe diziam que tal acontecia. Entrou às pressas para o quintal e fechou o portão à chave. Correu até à porta traseira, abriu-a e foi até ao local em que se encontrava Ndombaxi. – O que é que eles te fizeram, mãe? – perguntou Daniela ao correr em direcção a Nazaré Canzar, fazendo com que Dinake a seguisse com o olhar. – Estás bem! – exclamou Nazaré Canzar ao abraçar a menina. – Oh! Meu Deus! Tu estás bem! – Sim, estou bem, mãe. Mas o que te aconteceu? – Não te incomodes com isso, filha. O importante é que estou bem. – Porque disseste que eles viam à tua trás quando ligaste para o papá? – Não sei. Tive essa impressão. – Não estás ferida – reparou Ndombaxi, após ela se ter aproximado das grades. – Mas pareces aturdida… – Fiquei desmaiada por algum tempo – explicou ela, ainda ofegante. – Perdi os sentidos… não sei… Só sei que acordei amarrada numa casa distante daqui. A Anita… – interrompeu-se ao olhar para a face assustada de Daniela. Mas depois continuou. – A Anita estava com uma faca… Eles usaram um miúdo para me contar que estavas a ser espancada na casa deles. A tua blusa. Eu vi esta tua blusa manchada de sangue… como é que…? – Eles devem ter comprado uma pareci… Espera! A filha dela que tem poliomielite tem uma blusa como esta – disse Daniela, ao raciocinar a velocidade de um relâmpago. – Ela sabe tantas coisas sobre mim. Falou-me sobre o que fiz com o Tutomene e a Saengue… Falou sobre os meus colegas e o meu pai… – Quem lhe contou isso? – perguntou Ndombaxi, coberto de admiração. – Não sei. Acho que… Um estranho som na rua interrompeu-a. Parecia a voz de uma mulher gritando num megafone. Anita Cuchi – era a voz de Anita Cuchi. – Venham ver, homens! Venham ver! – gritava Anita enquanto um grande grupo de pessoas a seguia. – Olhem para o que essa vossa vizinha fez ao meu filho! – disse, enquanto exibia os ferimentos de Fernando como um troféu precioso. – Esse lixo que vocês chamam de vizinha não passa de uma mulher matumba, de uma depravada! Essa pessoa que vive aí – falou ao apontar a casa dos Canzar com os lábios grossos e a mão rude, enquanto um som distante de sirenes se aproximava – está cheia de demónios desde criança. Nem sabem o que ela já fez. Quem saber? Respondam! Querem saber? – perguntava ao movimentar-se de forma desclassificada. – Queremos! – responderam alguns da multidão, enquanto impregnavam a atmosfera com rizadas.
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– Essa malfeitora aí, essa mulher que se dá que vai à igreja, afinal não passa de uma pessoa pior que nós… Imagem vocês, imagem vocês… Estão a imaginar? – perguntou ao sorrir desdenhosamente. – Estamos! Estamos a imaginar – respondeu a multidão. – Que essa pessoa, quando tinha lá os seus catorze anos, andava a se meter com crian…? Com crianças. – Mentira! – respondeu a multidão ao gargalhar. – É verdade, meus manos. E vos conto mais. Querem ouvir? – Queremos! – Essa pessoa cheia de carnes até num sei aonde, já foi violadé! Quando estudava então! De cada namorado! Beijava todos. Já teve vários ho…? Vários homens! Mas chega aqui no nosso bairro e se dá de san…? – Se dá de santa! – Não vos conto mais! – Nos conta sim! Nos fala mesmo! – Então querem mais, né? Essa mulher aí, que parece mais uma versão nova de Deus fazer a carne para alimentarmos as nossas barrigas já… Um barulho estridente – um disparo feito por um homem a alguns metros deles fê-la calar-se. Cinco carrinhas azuis aproximavam-se em alta velocidade. A multidão ficou alvoroçada. Ambrósio – o Sargento Ambrósio havia feito o disparo e corria na direcção deles como um gigante enfurecido. Todos se dispersaram. Mas o interesse dos policiais não eram as pessoas da plateia. Anita Cuchi – os carros seguiam Anita Cuchi que, com os seus filhos, corria desesperadamente para a sua casa. Ambrósio alcançou-a com facilidade. Os filhos dela escaparam-se. Nenhum parou para protegê-la. Algemas – suas mãos foram apertadas atrás de si por algemas. Antes de ser jogada para uma das carrinhas, o Canzar que a puxava pelo braço disse secamente: – Anita Pembele Cuchi, para falar algo que teu cérebro entenda, está presa por rapto… e por merecer uma surra há já algum tempo.
* Dezanove e quarenta e sete. Toda a família Canzar estava reunida. – Não, Ambrósio! – retorquiu Kalu com veemência – Essa senhora foi longe demais! Ela merece mais do que uma cela fria e comida sem sal… Uma coisa é abusarem a Daniela e soltarem os animais. Outra bem diferente é se meterem com a nossa mãe. A nossa mãe! Raptaram-na! Não vêm a gravidade do assunto? – Eu mesmo sinto vontade de entrar naquela cela e fazer… sei lá o quê àquela bruxa – confessou Ambrósio. – Mas não são assim que se resolvem as coisas. – E isso que ela falou sobre a mãe – interrompeu Lourenço. – Onde é que ela foi buscar essas informações? – Ela disse que já sabe disso há muito tempo – pronunciou-se Nazaré Canzar. – E que foi essa a razão de ela deixar de falar comigo como antes. Portanto, é um pouco difícil saber quem foi. Pode ter sido um dos que se mudou connosco da província para aqui. Ou alguém que ainda continua lá. – Vamos rever a lista – disse Zau. – Para além da Dona Anita, só a família Tchivela é que saiu da província connosco. Mas o senhor Inácio não parece ter nada contra nós… Até parece gostar muito da mãe.
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– Talvez seja só fingimento – disse Ndombaxi ao engolir em seco. – Ele pode estar a vingar-se pelo que aconteceu à filha dele… – A Ivone? – perguntou Daniela, por não estar familiarizada com o assunto. – Não é a Ivone – respondeu o Canzar primogénito. – A filha dele que nem sequer a Ivone conheceu… – Não acho que seja assim – interrompeu a mãe, para evitar que Ndombaxi entrasse em detalhes sobre aquele assunto delicado. – Talvez seja mesmo essa Ivone. Ela é louca, não? – Mas que ligação podia ter a Ivone com a Dona Anita? – perguntou Kalu. – Ela pode ser estranha, mas não convive com gente tão… tão… – Ela está a namorar com o filho dela, não? – perguntou Ndombaxi. – Ela pode muito bem ter contado isso a ele e ele ter contado a mãe. – A mãe acaba de dizer que a Dona Anita já sabe disso há muito tempo – lembrou o último filho de Nazaré Canzar, para defender a Ivone Tchivela. – Ela nem sequer estava nascida nessa data. – Isso foi o que a Dona Anita disse – enunciou Ndombaxi, com expressão calma. – O que nos obriga a confiar nela? Ela pode muito bem ter mentido, não? – Não sei. Mas vocês julgam mal essa menina. Ela não é tão má quanto parece. – Porque estás do lado dela? – perguntou Ambrósio. – Não vês as coisas estranhas que ela faz? As coisas bárbaras que já fez? É um mau exemplo da raça humana… em todos os aspectos morais. – Ela disse que está com o Fernando para proteger o Ndombaxi. – Ela sabe que estás aqui? – perguntou Nazaré Canzar, parcialmente exaltada. – Ela descobriu isso por acaso – respondeu Kalu. – Por acaso? – voltou a inquerir Nazaré Canzar. – Como? Quem a deixou entrar aqui? – Ela estava comigo, mãe – respondeu o mais jovem entre as presenças humanas masculinas naquela sala. – Kalu, eu já te disse: não quero essa moça aqui dentro! Não voltes a trazê-la para aqui, está bem? – Não te preocupes com isso, mãe – disse Ndombaxi. – Ele já aprendeu que não deve confiar naquela rapariga. – As intenções dela são boas – continuou o mais jovem. – Os meios é que são os errados. – Não mintas para ti mesmo – disse Zau. – Tu és inteligente irmão. Sabes muito bem que ela está a esconder alguma coisa. Pensa, Kalu. Pensa! Kalu ficou calado por alguns momentos, depois sua mente soou com deduções alucinantes. – Ela sabia do bidão de gasolina e não o impediu – disse ele ao olhar para Ndombaxi. – Ela pediu que eu a visitasse enquanto o Fernando jogava aí em baixo e aproveitou para me contar que estavam juntos. O Fernando não é de jogar basquetebol. Eles não andam juntos na rua… Ela deve estar a par de muita coisa… – Estás a chegar ao ponto – disse Zau ao colocar-lhe a mão sobre o ombro. – O que é que fazem dois maus juntos? – Maldades… – Tens de ter cuidado com essa miúda – disse Lourenço. – Não sabemos do que ela é que capaz. – Só sabemos do que ela não é capaz – disse Nazaré Canzar ao levantar-se para poder respirar com mais calma –: ser uma pessoa normal.
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– Eu não disse que vocês têm razão – disse Kalu. – Disse apenas que ela deve estar a par de muita coisa. Talvez possamos aproveitar essa junção dela com o Fernando para alguma coisa… Mãe, a Dona Anita…. Ela não é tão inteligente para organizar um rapto como esse que nos contaste. Deve haver alguém por trás disso tudo. – Já passámos essa parte, filho… – Mas não significa que entendemos bem o assunto – continuou Kalu. – A Ivone pode ser uma arma excelente para descobrirmos se há alguém por trás disso. Que tipo de corda eles usaram para amarrar a mãe? – Daquelas bem grossas… – E como é que te conseguiste soltar? – Rebentei-as… – A mãe pode ser forte e saber um pouco de artes marciais, mas ninguém rebenta um nó de uma corda grossa com uma espessura de mais ou menos dez centímetros por afastar os pés. Não existe força para isso. O que é que a Dona Anita tinha nas mãos? – Uma faca… – Ela pode ter cortado um pouco as cordas para depois poderes te soltar, não? – Pára de pensar à toa para defender esta moça, Kalu! – vociferou Ndombaxi. – Porque fazes isso? – Não sei. É o que os meus instintos me dizem. – Existem mulheres perigosas, irmão – disse Ambrósio. – A Ivone é uma delas. Tu sabes disso. – Estamos com problemas a mais para ficar a suportar essa miúda – disse Ndombaxi. – Não fales assim dela! – vociferou Kalu. – Ela é uma boa pessoa. Não te confundas com a tua própria imagem! – disse, para aguilhoar o irmão. – Ela é boa? – perguntou Ndombaxi ao levantar-se. – Ela é boa?! Tão boa que diz estar grávida de ti e que fará um aborto às tuas costas? – Isso é verdade? – perguntou Zau ao olhar admirado para Kalu. O mais jovem não respondeu. – No mês passado houve um dia em que não dormiste aqui – disse Ambrósio. – Onde estavas? – Na casa dela – respondeu Kalu com expressão de desafio. – O pai dela não estava. Não podia deixá-la sozinha… – Então é verdade… – tugiu Daniela. No mesmo instante, todos os olhares se voltaram para Nazaré Canzar que tentava achar apoio numa das paredes. O olhar dela estava brilhante, marejado. Com a excepção de Kalu e Ndombaxi, seus filhos aproximaram-se dela. Ela afastou-se e começou a subir as escadas. Antes de sair, tugiu três palavras de lamento: – Kalu. Oh! Kalu… Porquê? «O que [é que eu digo], filho meu, e o que, filho de meu ventre, e o que filhos de meus votos? Não dês a tua energia vital às mulheres, nem os teus caminhos [àquilo que leva à] extinção. – Provérbios 31:2,3.»
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CAPÍTULO IX O dia em que Anita Cuchi fora levada à prisão ainda não tinha terminado – só haviam passado sete minutos das vinte e três horas. Ivone Lando Tchivela acabava de descer de um carro. Seus cadernos haviam ficado no auto. Enquanto andava em direcção a um local com pouca iluminação, desabotoava a blusa que trazia vestida. Desde os cabelos bem arranjados até às brilhantes unhas dos pés que saltava à vista o facto que era uma mulher culta – estava trajada de vestimentas formais, como uma executiva, e tinha um par de óculos à frente de suas pupilas. Passados alguns minutos, a rapariga saiu do outro lado da rua com roupas completamente diferentes. Eram roupas indecentes. O penteado não era o mesmo – agora o cabelo estava parcialmente pintado de vermelho. A maquilhagem radical convencia as pessoas que era uma jovem rebelde, aborrecida com a vida. Parecia que vinha de uma festa, mas, na verdade, voltava da faculdade. Contudo, poucas pessoas sabiam daquilo, apenas Kalu Canzar e alguns jovens que usualmente a traziam de carro até um local perto de seu bairro estavam a par de tal assunto. Quando seus pés pisaram os arredores de sua rua, Ivone Tchivela ouviu algumas pessoas a comentarem sobre o que sucedera naquela manhã. Sem saber que seu pai a observava sentado numa das roulottes, dirigiu-se à casa de Fernando às pressas. Depois de ter batido o portão por alguns minutos e não ter recebido resposta, voltou-se com olhar aceso para a casa dos Canzar. Com certa percentagem de violência nos punhos, Ivone bateu a estrutura rectangular metálica à frente de si que a impedia de pisar o quintal daquela família. Por não ouvir som nenhum vindo dentro, resolveu transpor o muro. Juntou algumas pedras espalhadas pelo chão e saltou para o outro lado da vedação de cimento e areia. Ao tocar a superfície, sua visão captou num relance a imagem gigantesca de Nazaré Canzar a aproximar-se. – O que pensas que estás a fazer, menina? – perguntou a dona da casa, enquanto sua voz perdia a rouquidão. – Vim saber o que fizeste com o Fernando – respondeu a outra ao tentar colocarse em pé. – Deves estar mais louca que antes – disse Nazaré Canzar ao passar por ela e abrir o portão. – Esse miúdo não vive aqui. Conheces muito bem a casa dele. Sai daqui e vai bater onde sabes! – Eu já bati aí! – gritou a rapariga ao tentar empurrar a outra, mas caiu por ter encontrado resistência. – Queres luta, não é? – perguntou ofegante. – Eu não te fiz nada, menina – reparou a gigante ao lançar-lhe um olhar amargo. – Levanta-te… Sai daqui! – Deves estar a pensar que podes fazer e desfazer e ninguém te fala nada, não é? – perguntou ao recuperar a verticalidade. Nazaré Canzar fixou seu olhar nos olhos da rapariga que no momento brilhavam com cólera. Aquela expressão fez-lhe lembrar a filha morta de Inácio Tchivela. – Vai para a casa descansar, menina – aconselhou a gigante. – Só depois de dizeres o que mandaste fazer ao Fernando! – vociferou com agressividade. – Onde é que ele está? Onde? Mandaste-o prender também, é? – Calma, menina – disse a gigante ao lembrar-se do que ouvira sobre o que crescia no ventre daquela rapariga e colocar-lhe a mão sobre o ombro. – Não me toques! – exclamou ao tentar atingir a face da outra com sua palma pequena. Apenas Nazaré Canzar notou a presença de Inácio Tchivela ao lado delas.
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Num acto reflexo, Nazaré Canzar agarrou o pulso de Ivone antes que a rapariga a esbofeteasse. No mesmo instante, Lourenço e seus irmãos apareceram no quintal. – O que passa, mãe? – perguntou Ambrósio ao aproximar-se com um revólver e um porrete. – Nada – respondeu a senhora. – A menina tinha algumas dúvidas. Já foram esclarecidas. – Tu! – apontou Ivone para o sargento ao tentar passar por Nazaré Canzar. A senhora agarrou-lhe os braços com firmeza. – Foste tu quem prendeu o Fernando – continuou a menina com notável cólera. – Onde é que ele está, gorila? Vais ter de libertá-lo! – disse ao projectar saliva para o rosto do homem. Ambrósio rangeu os dentes e levantou o porrete em direcção ao corpo dela. Uma mão – uma mão masculina impediu-o. Não era a mão de nenhum de seus irmãos. Era do homem à sua frente – Inácio Tchivela fê-lo parar. Antes de largar a mão do sargento, levar Ivone para a casa e dizer a frase a seguir com certo temor, Inácio Tchivela ficou petrificado por escassos milésimos a olhar na direcção do rosto de Ambrósio; parecia que olhava para o rosto dele, mas, na verdade, fitava o céu enquanto enunciava as palavras: – Tem misericórdia de mim, Senhor. Porquê? «Minha filha está muito endemoninhada.» – Mateus 15:22.
* Tarde de terça-feira. Ivone Tchivela continuava à procura de Fernando Cuchi. Nem ela entendia bem porque o fazia. Todavia, sentia que a necessidade de encontrá-lo e saber que não sofria ou que não pensava em algo macabro para prejudicar a família que promoveu a apreensão de sua mãe precisava ser satisfeita com celeridade. Enquanto andava pela rua, a rapariga observou alguns adolescentes a se dirigirem para a casa dos Canzar – eram Daniela e seus amigos; um deles estava numa cadeira de rodas. Após alguns minutos, Nazaré Canzar passou por ela em uma motorizada preta pela segunda vez. Ivone reconheceu aquela acção – era assim que a mãe de Kalu reagia sempre que estivesse sob estresse extremo: girava o bairro algumas vezes naquela máquina possuidora de uma cilindragem perfeita em alta velocidade. Parecia que o vento a soprar-lhe entre os cabelos a acalmava. Aquela imagem trouxe à mente de Ivone memórias sobre Ndombaxi. Nos anos em que ele andava solto pelas ruas, uma das coisas que mais fazia à noite era atormentar a audição dos vizinhos com o barulho de sua motorizada. Certa vez, quando ele levou a motorizada à oficina de Inácio Tchivela, Ivone escondera as chaves de fendas de seu pai para que Ndombaxi pudesse ficar mais algum tempo com ela naquele local. Antes que pudesse continuar com sua busca por Fernando Cuchi, a visão de Ivone captou a imagem distante de um homem com a mão estendida em sua direcção. Era Inácio Tchivela. Suas roupas e sua pele estavam parcialmente manchadas por uma substância preta. Embora seu desejo não fosse manter uma conversa com ele naquele momento, decidiu aproximar-se. – O que é queres agora, pai? – perguntou ao passar pelo senhor e entrar para a oficina sem olhar para o rosto deste. – Precisamos de conversar – respondeu ao fechar o comprido portão. – Sobre o quê?
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– Sobre o exame que vi há alguns dias na tua pasta – explicou ele após terem passado pelas pessoas que trabalhavam naquele local. – Estás mesmo grávida? – É o que o exame diz, não? – Se é mesmo assim, tens de parar de viver dessa forma pouco regrada. Uma gestação exige alguns cuidados. – Já tiveste alguma para teres conhecimento de causa? – perguntou com sarcasmo ao passar o dedo sobre o pó num dos automóveis. – Claro que não – respondeu calmamente ao limpar as mãos sujas de óleo num dos panos que retirara dos bolsos do macacão que trazia vestido. – Mas já vi a vossa mãe grávida duas vezes. – E ajudaste muito por deixar que ela e a minha irmã morressem – dardejou impiedosamente. Ela continuava a andar de costas voltadas para ele. – Que cuidados! – Sobre a tua irmã… Há muita coisa que não sabes sobre a morte dela. – Queres contar-me agora? – perguntou ao olhar para ele. – A tua irmã foi assassinada… assim como o homem que estava com ela; as outras duas pessoas que vieram em seu auxílio ficaram algum tempo internadas. – Porque só me contas isso agora? – inquiriu ao beirar o constrangimento e a gaguez. – Tu não existias quando isso aconteceu. E só agora pareces ser um pouco adulta… – E a pessoa que fez isso… onde é que está? – Até ontem eu pensei que estivesse preso… mas o Fernando contou-me que foi agredido por ele no domingo Ivone sentiu-se zonza. O que significava aquilo que acabara de ouvir? Não podia ser verdade. Seu pai era um anónimo. E as palavras de anónimos não têm qualquer peso. – Estás a mentir… Estás a ficar louco! – disse exaltada. – Esses cabelos brancos farruscos demonstram a tua insanidade! – Podes perguntar ao teu amigo, o Kalu… ou à mãe do Fernando. Eu te tenho visto a entrar naquela casa quando não há ninguém lá… Tens ido conversar com ele, não? – Não tens nada que ver com isso… – Tenho sim! – disse ao segurar-lhe os braços. – Tenho sim… Ele matou a tua irmã. Não permitirei que volte a me tirar a única filha que me resta. – Não fizeste outras filhas por aí? – inquiriu para fingir que não se comovia com a preocupação que seu pai demonstrava ao tentar protegê-la. – Não traíste a minha mãe? Deve haver muitas filhas tuas por aí, não? Se não a traíste, vais realmente ficar sem uma prova que não és tão murcho – dardejou ao olhar para a braguilha do senhor. – Isso não é uma brincadeira, menina! – vociferou ao sacudi-la. – Não brinques com isso! Mantém-te longe dele! É para a tua própria segurança. Aquela frase fez Ivone lembrar-se das palavras de Kalu sobre Ndombaxi. A forma como seu pai a enunciara e o olhar que tinha no momento demonstravam uma fúria animal. Sem pensar bem no que diria, atreveu-se a perguntar: – Pai, tu estás a pensar em te vingar? Para endireitar. Depois de soltar a rapariga e antes de se virar e desaparecer num dos quartos, Inácio Tchivela deixou soar uma rizada estridente, depois respondeu com humor exagerado: – Não! É claro que não – respondeu com uma gargalhada. – Isso seria uma loucura! Já basta uma maluca nessa família, não? Porquê?
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«Quem dá uma resposta séria a uma pergunta tola é tão tolo como quem a fez.» – Provérbios 26:4.
* Noite de quarta-feira. A busca por Fernando Pembele Cuchi ainda não havia sofrido interrupções. Por achar que não teria aulas que influenciassem em sua aptidão no fim do ano lectivo, Ivone Tchivela decidiu não se fazer presente no local em que estudava – continuar em seu apartamento a pensar nos problemas que tinha para resolver pareceu-lhe mais produtivo. A libertação de Ndombaxi era um desses problemas. Ela não conseguia entender porque uma pessoa faria aquilo a si mesma. Não era normal desejar ficar enclausurado em um local, apartado das outras pessoas. Parecia ser a decisão mais tola que uma pessoa podia tomar. Proteger os outros por encerrar-se atrás de grades de metal? Havia pessoas que precisavam dele livre. Ela era uma delas. E o que seu pai lhe havia contado sobre ele? Porque Ndombaxi havia assinado sua irmã? Como o havia feito? O que leva uma pessoa a tirar a vida de outra? Os humanos também são selvagens – a lei da sobrevivência impera em todas as formas de vida. Mas eles não caçam; não matam por prazer, isto referindo-se aos humanos normais. Mas Ndombaxi – seria ele normal? De onde vinha aquela cólera que o dominava? Porque a tinha? Como é que havia sido a infância dele? – Freud se interessaria por este caso – disse de si para si. E Anita Cuchi? Como estaria àquela hora? Provavelmente pensava em seus filhos e numa forma de se vingar dos Canzar. Ivone Tchivela nunca chegara a entender a rivalidade daquelas senhoras, e, na verdade, o assunto nem sequer lhe interessava. Enquanto meditava, as mãos da rapariga seguravam uma folha branca e suas pupilas liam o que estava nela. Era um poema escrito por Kalu. Aquele fora o poema que dera início à amizade achegada deles. Mais nenhuma outra pessoa tivera a coragem de lhe falar aquelas coisas. Embora fossem frontais, aqueles versos a enchiam de admiração por aquele homem. As palavras na folha eram as seguintes: Conselho Bonita és Tens o cérebro de sábias rés Conversas muitíssimo engraçadas possuis Mas tens um problema: Te exibes Vendes teu corpo como se nada importasse Lamento dizer-te mas: numa meretriz visual te tornaste Cuida melhor de tuas roupas Teu corpo é tentador demais para o venderes Digo-te de novo, para não esqueceres: Bonita és Tens o cérebro de sábias rés Cubra com decência teu corpo E ame os estudos
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Ao terminar a leitura, por causa de seus instintos bem apurados, pressentiu que algo horrível estava para acontecer. Com o intuito de acabar com aquela sensação, colocou uma blusa sobre o busto despido e saiu para a rua. A brisa era fria. Alguns autos passavam lentamente pelo terreno de terra batida. Algumas pessoas estavam sentadas à frente de um enorme televisor assistindo à uma partida de futebol. Bebidas alcoólicas era o que consumiam. Ao virar a cabeça para o lado oposto, Ivone viu dois senhores a sair da casa dos Canzar. Um era alto e usava óculos – era Hermínio Mbaki, o homem que tinha conversas bíblicas com aquela família. O outro – o outro era da mesma altura e tinha a cabeça totalmente rapada. Após se ter despedido do senhor de óculos, o homem de cabeça rapada virou-se. Os olhares de ambos se cruzaram – sim, Kalu e Ivone olhavam um para o outro. O que fazer? Andar até ele ou ignorá-lo? Ivone Tchivela não tinha a cobardia e a vergonha como defeitos. – Estás ocupado? – perguntou ela ao aproximar-se. – Estou a pensar em ir à uma loja aqui perto… – Posso ir contigo? – Se não inventares mais nada estranho… – respondeu ao meter-se em movimento. Ivone seguiu-o. – O que queres dizer com isso? – Nada – mentiu ao ter subitamente a ideia de descobrir até que ponto ela desejava levar aquela farsa. – Já achaste o Fernando? – Não. Ele pode estar em qualquer sítio. – Olha! O pai dele vem aí. Podias perguntar-lhe. – Não! Ele está bêbado – disse ao reparar na forma como o senhor à frente deles se locomovia. – Nem sei o que ele tem naquela pasta. Pode ser uma serra… – Sentes medo? – perguntou com sarcasmo ao lembrar-se da forma como ela entrara na casa dele e discutira com Nazaré Canzar na noite antepassada. – Pensei que fosses imune a isso. – Estás a falar comigo muito friamente… – O que queres que eu faça? Estás a merecê-lo. Eu vou entrar aqui. Não precisas de me seguir. – Não sou a tua cauda – ripostou ao dar-lhe as costas. – Vemo-nos mais tarde. – Ei! – chamou ele, antes que a outra desaparecesse na esquina mais próxima. – Acho que tenho algo para ajudar o Fernando. Talvez se alguém lhe arranjasse um emprego… Talvez ele ficasse mais ocupado e mais responsável. Ivone Tchivela continuava a andar enquanto ele falava. Todavia, ele sabia que ela escutara tudo o que dissera e que tomaria alguma acção em relação àquilo. Enquanto se distanciava cada vez mais do local em que deixara o único Canzar que conseguia conviver com ela, o prédio em que vivia ficava mais próximo. Todavia, decidiu não entrar. Continuou a andar em direcção à oficina de seu pai. Algo que vira na tarde daquele dia naquele local lhe deixara intrigada. Tinha de entrar aí e confirmar. Com a chave que trazia no bolso de sua saia que não lhe cobria os joelhos abriu a porta do sítio abafado e entrou. O cheiro a óleo irritava-lhe o olfacto. O local estava escuro. Aproximou-se da parede e tocou no interruptor. Mas as lâmpadas não acenderam. Sua curiosidade não seria destruída pela falta de luz. Segurou em seu telemóvel e ligou a pequena lanterna que o aparelho trazia. Dois vultos – ela viu dois vultos a passarem rapidamente por trás dos carros. Sua pressão arterial aumentou. Seriam assaltantes? Como haviam entrado? Só ela e seu pai tinham as chaves. – Quem está ai? – perguntou ela, com voz trémula.
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Seu cérebro deu a ordem às pernas para se locomoverem em direcção aos automóveis, mas elas não obedeceram – estavam paralisadas. Antes que pudesse tentar correr em direcção à porta e sair, uma mão áspera tapou-lhe a boca. As batidas de seu coração aceleraram-se. Tentou livrar-se, mas a pessoa dominava-a. – Não precisas de gritar, pequena – disse a pessoa sem ter retirado a palma da boca dela. Sua audição reconheceu a voz; o olfacto fez o mesmo com o odor que emanava das roupas da pessoa. Seu ritmo cardíaco começou a abrandar. – Como entraste aqui? – perguntou ela, após a pessoa a ter libertado e ela lhe ter iluminado o rosto com a lanterna em sua mão. – O teu papoite deixou que eu me escondesse aqui – respondeu o outro ao fazer sinal para que os dois vultos atrás dela não se aproximassem mais. – Tchissuale e Sabino – disse ela ao voltar-se e fazer desaguar um feixe de luz sobre eles. – Também entraste com os teus irmãos… – Ficámos todos com medo. Ainda estamos com medo – disse a pessoa que não estava a ser iluminada. – Aqueles macacos meteram a nossa mãe na prisão. Eles vão pagar por isso. – O que é que estás a pensar fazer? – perguntou Ivone ao voltar a iluminá-lo. Os rapazes atrás dela afastaram-se. Embora ela não conseguisse ver o que faziam, entendeu que iam a um lugar por trás dos autos para se deitarem e dormirem. – Responde! – imperou entre dentes por não ter recebido resposta. – O que pensas fazer? – Por enquanto estou impedido de agir… por causa da protecção que eles têm. Mas logo que eu acabar com ela… – Que protecção? De que falas? – Aquele gorila das suíças desenhadas… ele tem de desaparecer. Ou ele… ou a farda dele. – Não sabes o que dizes! Queres te meter com o Ambrósio? Não queiras dormir na caixa de madeira tão cedo. É barulho demais para ti. A tua mãe já está presa. Não queiras aumentar e sem um filho ao estado dela actual. Porque é isso que vai acontecer se te meteres com o Ambrósio: a Dona Anita vai estar presa e sem um filho. – Ele não me mete medo… E não preciso de um encontro frontal. Posso estar escondido. – Ele não é o Lourenço. Ele põe-te uma bala em cada orifício do teu corpo! Não sejas mais estúpido do que já és. – Porque estás a tentar impedir-me? Até parece que não estamos do mesmo lado… – Nós estamos do mesmo lado. Queremos acabar com aquela família, mas da forma mais inteligente possível. Não podemos atacar o mais perigoso deles. – O Ambrósio não é o mais perigoso. Podia ter sido antes, mas agora descobri que o Ndombaxi já saiu da prisão… – Quem te disse isso? – perguntou ao abaixar sofregamente a lanterna. – Lutei com ele anteontem – respondeu ele ao levantar a mão dela que segurava o aparelho. – Ah! Tu? Lutares com o Ndombaxi? Já não estarias vivo se isso tivesse acontecido, hambúrgueres e cervejas! – Não me chames isso! Sabes que odeio. – O quê? Hambúrgueres e cervejas? – Pára! Estou a dizer-te… O gorila mais violento está à solta. Eu fui à casa deles para ver se matava mais alguns daqueles animais do nabo do Lourencito. De repente,
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um mambo escuro apareceu atrás de mim. Lutei com o gajo por algum tempo. Mas, como eu estava bêbado, ele venceu. Acho que devo ter desmaiado. Só acordei no meu portão. Nem sei como é que fui parar aí… – Tens a certeza que não foi um dos animais que te atacou? Talvez tenhas tropeçado em alguma coisa e caído… – Eu sei o que vi – disse ele ao aproximar-se dela de forma intimidadora. – O Ndombaxi… Assim toda a família já pode morrer junta. Se não der para acabar com todos, eliminamos só a kilomba… Eles vão ficar tão tristes. Coitadinhos, né? – Que motivos tens para odiares essa família? Porque és assim com eles? – Já falámos mil vezes sobre isso, mboa… Queres ouvir pra quê? – Quero apenas lembrar-me. Porque os odeias tanto? – Não sei bem. Cresci a ouvir a minha mãe a falar mal deles. O ódio dela passou para mim… – És mais burro do que eu pensava. Queres matar alguém sem saber a razão? E A tua mãe? Ela te disse porque odeia os Canzar? – Olha… – disse ao bocejar. – Estou com fome… e o Sabino e o Tchissuale também. Podes ir pegar um pitéu pra nós? Antes de voltar a tornar-se audível, a rapariga andou em direcção a porta. Abriu a porta e depois de ter desligado o pequeno feixe de luz que saía de seu telemóvel, tugiu secamente: – Volto já. Quando seus pés pisaram o terreno arenoso da rua, um homem passou por ela. Ivone sabia quem era. Ele carregava uma mochila às costas e sussurrava algumas palavras enquanto se distanciava dela. Devia abordá-lo? Qual seria a reacção dele? Depois do que ela fizera com a mãe e com um dos irmãos dele, seria possível que a tratasse bem? Há muito tempo que não conversavam. Na verdade, nunca tiveram um diálogo que demorasse mais do que alguns segundos. E ele não era de falar com pessoas com a fama que ela tinha. Melhor para ela – assim o seu desejo de dialogar se tornaria num desafio. Sem dar azo a mais hesitações, aproximou-se dele com uma expressão infantil pintada no rosto. – Lourenço, como vai? – cumprimentou ao estender a mão para ele. O homem olhou-a de soslaio enquanto continuava a andar. Ela seguia os passos dele. – Eu estou bem – respondeu ele com voz fria. – E tu? – Estou bem… maluca, como dizem as pessoas aqui do bairro – gracejou, para ver se o fazia sorrir. A expressão dele continuou indiferente. Lourenço não movia o pescoço para olhar directamente para ela. – Sabes alguma coisa do Fernando? – Sim. Que ele namora contigo e que pode ser o pai do filho que dizes ser do meu irmão… se é que esse filho existe. – Se pudesses pôr essa tua cabeça dentro da minha barriga, dirias que sim – dardejou em provocação. – A minha pele não se daria bem com o ácido e o veneno que o teu ventre transporta. Porque conversas comigo? Não tens uma festa para ires te drogar ou uma loja para assaltar? Talvez um hospital para fazer um aborto ou para criarem um documento que dizes que estás grávida de cem homens? – Estás a tentar magoar-me, mas precisas mais do que ofensas para isso. Eu vivo com o meu pai. Ele é um estúpido insensível. Só ele consegue me fazer chorar… e isso é uma coisa rara. – Precisas de muito para sofrer? O quê? De ouvir sobre a morte da tua mãe? De como foste culpada por ela não estar contigo hoje? Que por seres tão egoísta e insensível ela decidiu pertencer ao mundo dos mortos? É disto que precisas?
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Ivone agarrou os braços musculados dele e empurrou-o contra a parede. Ele não reagiu. Endireitou a pasta e continuou a andar. Havia um sorriso trocista e triunfante em seus lábios. Algumas pessoas olhavam para eles. Uma delas era Zau que estava sentado num dos pomposos carros perto de uma das roulottes com Rosalina, a gerente do banco em que trabalhava. – Não fales sobre a minha mãe – vociferou Ivone Tchivela. – Não falei nada sobre a tua. Achas que consegues fazer o que quiseres com os sentimentos das pessoas, não é? – perguntou ela ao voltar a segurá-lo fortemente num dos braços. Aquela acção interrompeu a locomoção do Canzar. – Pensas que podes comandar qualquer um? «Quero que nesse segundo a fulana fique feliz. Eu faço.» – disse com sarcasmo ferino ao tentar imitar a voz dele. – «Quero que nesse momento ela tenha raiva de mim. O Lourenço faz isso. Oh! E se ela ficar triste? E se pensar que estou apaixonado por ela? Eu faço isso tudo quando, como e onde quero.» Deixa-me dizer-te um segredo: Eu também faço isso e duma maneira que não consegues imaginar! Tenho o poder de te transformar na pessoa mais infeliz do mundo… ou impedir que te tornes nisso. A expressão do Canzar tornou-se mais séria. Agora era ele que a agarrava e encostava o corpo dela contra a parede. – O que estás a dizer… pessoa? – inquiriu com depreciação ao olhá-la de cima para baixo com extremo desprezo. – Continua a andar comigo. Vais aprender muita coisa… pessoa. O Canzar largou-a lentamente. A respiração dele bafejava fúria contida. – Vocês têm um inimigo que eu posso dominar – lembrou ela ao começarem a andar. – Um inimigo que está ansioso por fazer qualquer coisa que ele ache suficientemente dolorosa para vocês. A Ivone pode impedir isso. A maluca, a drogada, a galdéria da Ivone pode impedi-lo. E tu? O que podes fazer? Só podes chorar como um menino que perdeu o carro preferido. Numa luta de poderes, eu sou a rainha e tu és o tapete… do tapete. – Continuas a não fazer sentido, assim como a tua vida – disse ele ao permitir que dois senhores passassem no meio deles. – Estás a falar da Daniela? O Fernando contou-te alguma coisa? – Se entendeste alguma coisa, então faço sentido. Como pode o Fernando contar-me alguma coisa? Continuo à procura dele! – Ele pode ter-te dito isso antes – disse Lourenço ao reparar que já haviam passado o portão de sua casa. – E porque aumentaste o tom de voz ao dizeres que continuas à procura dele? Já o encontraste, não? Onde é que ele está? O que é que ele está a pensar em fazer com a minha filha? – Tua filha? Vocês são o quê? Cinco, não? Cinco pais de uma menina só? – perguntou com tom provocador. – Isso quer dizer que dois e meio são o pai, o macho, e os outros dois e meio são a mãe, a fêmea. Tu fazes parte de que parte? – Da parte que te pode arrancar a cabeça com uma bofetada – ameaçou o outro ao voltar a garrá-la no braço. – Diz! O que é que o Fernando te contou. – Vês? – perguntou ao sorrir. – Também posso comandar os teus sentimentos. Posso dizer-te apenas que tens de ter cuidado. Ele não me disse nada. Mas vocês mandaram a mãe dele para a prisão. Isso pode desencadear uma fúria que vocês nem imaginam. Ele pode entrar em… frenesim de vandalismo – disse com voz infantil ao piscar-lhe um dos olhos. Porque vocês não têm namoradas? – Queres saber porque o Kalu não gosta de ti? – dardejou para fugir ao assunto. – Não. É sério. Parece-me interessante. Porque vocês não têm namoradas? – As relações são difíceis de ser sustentadas. E conforme diz a Bíblia… Tu conheces a Bíblia, não? É um livro grande, normalmente a capa é preta. Já o leste?
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Devias lê-lo para te tornares humana. Conforme a Bíblia, quem casa faz bem, mas quem não casa faz melhor ainda. – Estás a usar a Bíblia para te esconderes. Eu tenho vos observado. Vocês todos são apaixonados pela Daniela e a Nazaré… O vosso amor por elas parece vos obrigar a não olhar para outras mulheres. Acho que vocês pensam que seria uma traição se se apaixonassem por alguém. Isso é doentio! – Diga o que quiseres, continuarás a ser uma louca… e as loucas não sabem o que dizem. – Mas só que agora dependes dessa louca. E a tua filha corre mais risco do que nunca… O Canzar agarrou o pescoço dela com violência amena. Ela agarrou o braço que a apertava com as duas mãos. Os olhos dela brilharam com o susto daquele gesto algoz dele. Os dedos do Canzar tentavam esmagar aqueles músculos femininos, mas seu cérebro impediu-os. Antes de começar a andar e desaparecer do campo de todos os sentidos daquela rapariga, aproximou o seu rosto ao dela e disse entre dentes: – Se o Fernando tentar algo contra a minha filha, não é da tua ajuda que estarei à espera. Porquê? «Num momento de dificuldade, depender de uma pessoa que não merece confiança é como… querer se esquentar, num dia frio, tirando a roupa.» – Provérbios 25:19, 20.
* Passaram-se dez dias. Era sábado. A noite estava prestes a substituir a tarde. As ruas estavam calmas. Muitas pessoas estavam fechadas em suas casas. Algo em seus televisores as divertia. Mas numa oficina – pessoas maquinavam atrocidades numa oficina. O lugar estava rodeado de escuridão. Pequenos feixes de luz incandescente e fluorescente tornavam possível elas reconhecerem alguns vultos reunidos naquele local. Morte à família – o assunto em pauta naquela maquinação colectiva era a morte da família Canzar. As famílias Cuchi e Tchivela estavam presentes. – Estou farta de ver aquela… aquela mulher neste bairro – disse uma mulher. – Nenhuma de nós sente que pode confiar nos nossos maridos com ela por perto. – Nos sentimos oprimidos com a presença deles! – exclamou outra. – E eles se acham os melhores. Nunca participam das coisas que fazemos aqui. Temos de tomar uma atitude. Já os aturamos demais! – Eh! E até prenderam a comadre Anita – lembrou uma idosa. – Quem é que eles pensam que são? – Aquele Ambrósio pensa que pode chegar aqui e prender todo mundo! Eles têm realmente de levar uma lição. Mas uma lição pesada, que eles nunca mais esqueçam. – A senhora que está presa é a minha mãe – disse alguém que se posicionara atrás de todos. Para se tornar visível, deu passos lentos até ao meio do grupo. – Eu tenho um plano. Com a vossa ajuda tudo sairá como arquitectei… e vamos nos ver livres dessa família de uma vez por todas. – É assim que se fala, meu filho! – disse uma idosa. – Antes vivíamos muito bem aqui. Bastou eles aparecerem para nos sentirmos estranhos no nosso próprio bairro. – Qual é o plano? – perguntou uma outra senhora.
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– É totalmente simples, minhas kotas. Com a ajuda de um mecânico vamos poder fazer tudo. Vocês só têm de se comportar tipo não está a acontecer nada e não se meter no «quiabo». – Vais assaltar a casa deles? Mas não disseram que aquele… o Ndombaxi já não está na cadeia? – perguntou a idosa. – Pode até ser – respondeu Fernando. – Mas ele não pode ficar em casa para sempre. Em alguma hora do dia ele terá de sair. Mas se algo der errado… – ele interrompeu-se e abaixou o rosto. Antes que se desse por terminada a reunião, um dos Tchivela encostou-se até ele e o levou até à saída. Parecia que suspirava em lamento. Antes que saísse, olhou tristemente para as pessoas paradas aí, e disse em tom triste: – Vocês terão em mãos uma grande responsabilidade. Porquê? «Tereis de preservar vivos meu pai e minha mãe, e meus irmãos e minhas irmãs e todos que lhes pertencem, e tereis de livrar as nossas almas da morte.» – Josué 2:13.
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CAPÍTULO X Passaram-se dois meses. Faltavam agora noventa dias para a morte de Daniela da Glória Canzar. Uma das pessoas causadoras de tal atrocidade encontrava-se sentada numa das salas de jogos espalhadas pela cidade trocando ideias com outra pessoa com o mesmo rótulo. O lugar estava infestado de álcool, fumo e lascívia – a carnalidade reinava. A atmosfera sonora estava composta por timbres confusos e imperceptíveis. A pessoa com quem ela se encontrava era a mesma que lhe havia pago a fiança a algum tempo. Todavia, a primeira ainda não havia voltado para o seu lugar de morada, visto que sabia que seus filhos estavam a ser bem cuidados por pessoas que lutavam pela mesma causa que ela. – Ficaste presa por alguns dias – disse o homem grisalho que conversava com ela – mas o teu corpo continua na mesma. Devias estar a nadar em bifes e maioneses. – Não é uma prisão que me faria emagrecer. Fiquei tanto tempo a ver-te casado com aquela mulher e nada mudou em mim… a não ser a amizade que se transformou em ódio. – Falas como se eu fosse o único que ficou com a pessoa errada. E o bêbado que tens em casa? – perguntou ele ao fixá-la com olhar trocista. – Tudo por causa do meu desespero – respondeu ao pousar a sua mão sobre a mão felpuda dele. – Eu já estava casado com ela – disse ao dar um gole da bebida espirituosa no copo em sua mão. – Não podia fazer nada. – E mesmo assim continuavas a dizer que me amavas… Os homens não todos iguais. São todos retirados da mesma forma infiel e malandra. – Isso faz com que vocês sejam infiéis e malandras. Saímos todos de vocês… Mas não estamos aqui para falar sobre o passado. Porque é que libertaste a Nazaré naquela vez? – Eu?! – perguntou com tom e expressão facial vulgares ao retirar a mão pousada sobre a mão do outro. – Do que estás a falar? – Eu te disse para não deixares que ela acordasse até eu chegar… Quando entrei para aí, só havia uma cadeira e cordas ao lado desta. As cordas estavam cortadas… Alguém havia passado algo cortante no princípio dos nós. E só tu tinhas uma faca… – Não sabia o que querias fazer com ela. E eu só queria assustá-la… humilhála… fazê-la passar pela pior mulher do mundo. – Tudo que temos feito até agora é assustá-la. Nada chega perto daquilo que ela nos fez. Aquela casa era cheia de confusão. Ela chegava a falar mais alto do que eu! Até as roupas delas eram mais masculinas que as minhas! Eu não era respeitado. Nem sequer os meus filhos queriam saber de mim. Tudo o que ela falasse era o que eles faziam. Quando eu quisesse falar, davam-me as costas. E os homens que ela teve enquanto estava comigo? – Também tiveste outras mulheres… e continuas a ter. Vês? É por causa desse teu ódio que pensei que quisesses acabar com a vida dela. Ela pode ser um lixo, mas já… – Você tem de fazer aquilo que te ordenamos. E eu nunca falaei que queria acabar com a vida dela. – Mas o Tchivela falou… Vocês não podem mandar no que eu quero… – Mas tens a obrigação de cumprir com o que planejamos! – relembrou com olhar incendiado. – Da próxima vez que quiseres trocar alguma coisa, avisa. Ouvi dizer que o teu filho está a pensar em fazer uma loucura.
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– Sim. Está a pensar em acabar com aquela Daniela. – Ainda bem – disse ao retirar algum dinheiro da carteira e colocá-lo sobre a mesa. – Aquela miúda é uma das causas de eu me ter separado da Nazaré. Todas as atenções eram voltadas para ela. Desde o dia que a apanharam naquele maldito monte de lixo que eu passei a ser ignorado naquela casa. – Falas do plano do meu filho como se o desconhecesses – disse ao ver o homem levantar-se e posicionar-se atrás de si. – Sei muito bem que foste tu que o meteste na cabeça. És tu quem quer a morte daquela menina… na verdade, de toda aquela família. Acabaste de dizê-lo a pouco. Antes de retirar o rústico casaco sobre a cadeira e colocar sobre os ombros dela, Constantino Canzar sussurrou-lhe com alegria seca. – Ainda bem que não tive nenhum filho contigo… Porquê? «Como fala uma das mulheres insensatas, também tu falas.» – Jó 2:10.
* Algumas horas após ter traído novamente os seus votos conjugais, Constantino Canzar voltou para a casa. A imagem de idoneidade que transmitia às pessoas que o conheciam era oca – seu comportamento fora da vista de outros era execrável. Todavia, tinha qualidades. Uma delas era a de pensar à frente de seus contemporâneos. Ele estava sempre três passos adiantado a qualquer coisa. Era difícil enganá-lo. Aprendera a ser matreiro e velhaco muito cedo. Sua infância e sua juventude haviam sido conturbadas. Nunca conhecera – e nunca deixara a si mesmo conhecer – o verdadeiro amor. Deus? O que era isso para ele? Uma palavra; uma invenção; algo criado para manipular a mente das pessoas. Porque obedecer a alguém que nunca se mostra? Porque ser submisso a alguém que fica de braços cruzados a assistir aos piores desastres na vida de seus filhos? Porque adorar alguém que só quer que façamos o que Ele mesmo quer? Que pai tenta os seus filhos e permite que eles sofram as consequências por mais de seis mil anos? A vida – a vida era seu Deus. A adrenalina – a adrenalina era sua religião. Nada mais existia para além disso. – Onde é que estiveste, homem? – perguntou uma das pessoas que o tornavam num polígamo inveterado, após ele ter entrado para a casa. – Já foste ter com outra, né? – Vai dormir, mulher – respondeu ele, com sua voz calma e peculiar. – Vais aumentar estrias nesse teu corpo se continuares a inventares coisas. – Tu pensas que eu não sei? – perguntou ela ao amarrar os panos que cobriam seu corpo abaulado. – As vizinhas aqui me contam tudo sobre essas… essas bandoleiras com quem vais te cheirar! – Pára de gritar! Vais acordar os miúdos. – Quero lá saber! Que acordem! Acordem os vizinhos! – vociferou ao aproximar-se dele com as mãos a exalar agressividade. – Acordem o presidente! Acordem até a tua bisavó no Camama! Todos têm de saber que não controlas as tuas calças! – A gordura das tuas ancas está a subir até ao teu cérebro – disse ele ao dirigir-se à porta pela qual entrara e reparar que ela apanhara algo sobre a mesa. – Acho melhor dormires no forno para ver se te acalmas – aconselhou com sarcasmo ao puxar a
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maçaneta para si. Antes de sair para se esquivar do objecto que ela projectara contra ela, dardejou friamente: – Vou dormir com … outra bandoleira. Enquanto ele andava calmamente no quintal, dois de seus filhos observavam-no da janela de seu quarto. O olhar deles seguiu-o até que ele desapareceu por trás do grande portão que a casa tinha. Na rua, Constantino Canzar retirou um aparelho do bolso e discou alguns números antes de colocá-lo à orelha. Sua audição captou o sinal de interrompido. Talvez fosse da rede. Voltou a discar o mesmo número. Dessa vez a pessoa do outro lado atendeu. – O que queres agora? – perguntou a pessoa do outro lado da linha. – Outra das tuas mulheres te pôs na rua? – Qual a razão da agressividade, rapaz? Já conheces bem o teu velho. Não há lugar para ressentimentos em ti. Estás em casa? – Não. – Muito bem. Vai ao último restaurante que estivemos. Temos de conversar. – São vinte e três e cinquenta e sete. Já deve estar fechado. E não acho que devas falar comigo. Talvez eu queira acabar com a tua vida. – Zau! Faz o que te digo. Vai até lá. É importante. O homem do outro lado da linha sentiu a urgência do assunto no tom de voz do outro. Constantino Canzar dificilmente gritava. Tinham mesmo de se encontrar. E tinha de ser àquela hora, naquele local. – Como é que está o teu peito? – perguntou Zau, após terem entrado para o restaurante e se sentado vinte minutos depois de terem conversado ao telefone. – Não estou morto… Consegues ver isso, não? – respondeu ao dar um gole da bebida no copo em sua mão. – E também vejo que estás bem. Donde vens? – Fui acompanhar a Rosalina… – Bom… Vocês estão sempre juntos. Já era altura de assumirem algo sério, não? – Sabes muito bem que somos apenas amigos – lembrou o outro ao retirar o talher de sua boca. – Desde crianças que andamos juntos… Mas não é sobre mim que queres falar. Podes começar. – Estou farto da minha vida. Estou farto das mulheres com quem convivo. Estou farto de dormir num lugar diferente a cada dia… – Porque te abres comigo? – perguntou para interrompê-lo. – Deus existe para ouvir as tuas confissões. – Sabes muito bem o que penso sobre Ele. Mas para não discutirmos sobre esse assunto como das outras vezes, digamos que Ele está a te colocar hoje aqui para que eu me possa confessar a Ele por teu intermédio. A minha vida está cheia de problemas… – Tu gostas de problemas. Estás sempre atrás deles. Mesmo quando não tens um, tu inventa-lo no momento. – Vieste para me ouvir ou para incrustar pregos no meu pescoço, rapaz? Ouve o velho. – interrompeu-se ao voltar a dar um gole da bebida vermelha no copo em sua mão. – Como é que está a tua mãe? – Sabes mais dela do que eu. Até onde sei, tu a persegues para onde quer que ela vá… – Não paras de inventar coisas – desacreditou-o ao reparar no olhar de conjectura que o outro lhe lançava. – Tu a persegues onde quer que ela vá – tugiu para si mesmo ao engendrar em seguida uma curiosa pergunta. – Sabes alguma coisa sobre o rapto da mãe? – A tua mãe foi raptada? – demandou com surpresa artificial. – Sim. A alguns dias. Mas já está em casa. Aquilo está uma confusão! Depois te conto algo sobre o que Kalu fez com a Ivone.
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– 0K. Tem de ser mesmo depois – disse ao tentar esconder sua preocupação relativamente àquele assunto. Zau fixou-o por alguns instantes, mas ele disfarçava bem. O filho não conseguiu ler o que lhe passava na mente, todavia, sentiu que oscilava entre ansiedade e angústia. – Agora quero falar sobre a Nazaré. Rapaz, estou a pensar em voltar para a tua mãe. – Ah! Estás louco! Estás a pensar que aquilo é uma loja em que podes entrar depois de veres que o melhor produto é vendido ali? Não se brincam com as pessoas. O corte no peito afectou o juízo? Espera! Já começaste a ficar senil, não é? – Rapaz, isso acontece a todos os casais. As pessoas separam-se… depois voltam a unir-se. Vais saber disso quando ficares com a Rosalina. Zau continuou a dar gargalhadas enquanto seu pai fazia aquela abordagem discursiva sobre os altos e baixos de um relacionamento. Depois de alguns minutos, antes de saírem e pagarem a conta, ele pegou a mão de seu pai e disse com alegria infantil: – Faço bem em ser solteiro. Porquê? «Se esta é a situação do homem com sua esposa, não é aconselhável casar-se.» – Mateus 19:10.
* Finais da madrugada de quarta-feira. Constantino Canzar dormia calmamente sobre um cadeirão. A casa em que se encontrava era de uma mulher diferente das com quem esteve no dia anterior. Esta não era rústica nem pouco culta. Era uma mulher inteligente, rica e elegante. – Acorda! – imperou a mulher ao bater-lhe violentamente nas pernas com a parte metálica do cinto em suas mãos. Constantino abriu os olhos com calma provocante. Lentamente, levantou a cabeça e sentou-se. – O que foi? – perguntou com rouquidão. – Fiquei a noite toda à espera de ti – disse ela ao sentar-se à frente dele. – Sei onde estiveste. – E assim o discurso de hoje será sobre…? – Uma mulher não chega para ti? – Não é sobre mulheres. É sobre diferença de sabores. – Vai dar ao mesmo – concluiu ao colocar um par de óculos em seu rosto de feições perfeitas. – Tu divides o que tens com muitas. Isso faz de ti um fraco… um cobarde, um inseguro. De que tens medo? – De não bater o record de Salomão – respondeu com humor seco. – Quanto mais mulheres tiveres mais efeminado te vais tornar. Vais ficar menos macho a cada vez que o fizeres. Homem… um homem de verdade não se guia pelos prazeres… ou sabores… mas pelas regras. Se conseguires controlar as tuas calças com uma só és um verdadeiro macho; senão és um género de homossexual. Os que vivem sem seguir as regras são tolos… estúpidos… burros, assim como essa palavra é. – Que são regras? – perguntou com desdém ao sentir-se desconfortável. – Um macho deve saber controlar-se. Até no mundo animal é assim. Só o macho dominante fertiliza as fêmeas… os outros chupam os dedos. São as regras. A que se aprender a viver com isso. Tu és um macho desordeiro. Não serves para andar neste
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grupo de leões. Tens fraqueza em demasia. Não és um macho. És um homossexual em ascensão. – Ficaste a noite toda a pensar isso? Só porque não dormi contigo? As tuas trompas devem estar furiosas… – Tentas fugir, mas sabes que tenho razão. Constantino, o que é que elas têm que eu não tenho? – Essa é a pergunta mais tola… mais estúpida… mais burra que uma mulher pode fazer. O acasalamento só acontece com o melhor dentre os machos. A que se escolher com perscrutância. Se o caso fosse de todas as mulheres terem as mesmas coisas, vocês seriam todas iguais. Não haveria diferença nenhuma. Um cristão poderia ficar com uma prostituta. O presidente poderia casar com uma rameira. Um analfabeto poderia ficar com alguém como tu. Personalidade, mulher… personalidade. Não bastam as coxas e as ancas; a forma de agir e pensar é um complemento importantíssimo. «O que é que elas têm que eu não tenho?» Ah! Então te achas parecida à mais suja da bandoleiras… só porque ela é mulher como tu? – O que dizes faz sentido… para um homem em decadência. Se fosses um homem decente, este teu comentário seria a coisa mais inteligente que já disseste em toda a tua vida. Mas não passas de um frouxo… de alguém que age com o membro de seu corpo desprovido de neurónios. Patético… totalmente patético. – As tuas hormonas estão mesmo irritadas comigo! Foi só uma noite fora…Claro que haverá outras… milhares de outras. Mas fica descansada, ofender-me não te vai levar a um bom sítio. – Eu gosto de falar. Tu sabes disso. Porque tens medo dessa conversa? Te diminui de alguma forma? Sentes que o que falo é verdade? – Há tantas mulheres infelizes por aí. O Constantino só espalha felicidade para elas. Devias considerar-me um benfeitor da comunidade feminina. Um Jesus Cristo moderno. – Não blasfemes! Deus poderia fazer-te morrer num instante. Tens de começar a pensar menos em ti. Sentes que a tua vida é completa? Não sentes um enorme vazio? Tu tens dinheiro e mulheres, e consegues isso muito facilmente. Achas bom assim? Achas que a vida é só isso? Os humanos gostam de coisas difíceis por alguma razão, e é uma razão especial: a vida – a verdadeira vida – é difícil… e apertada, assim como a estrada para o mundo prometido por Deus. – Se és assim tão religiosa, porque não me deixas? Porque me procuras? A carnalidade fala mais alto, não é? – Posso fazer coisas erradas. Ao menos eu as reconheço. Tu pensas que estás a fazer a coisa mais certa do mundo. Quando eu estiver pronta, podes ter certeza que mudarei da forma mais radical possível. – E, por enquanto, te aproveitas de mim? Que moralista! – Tu deves ter um coração aí dentro. Até os homossexuais têm sentimentos. Tenta sentir as coisas que fazes… são lixo… conjunto de escória tóxica. Precisas de uma limpeza. – O mundo não muda com palavras. Não comas a moral vendida nos livros. Repare na vida das pessoas que os escrevem… algumas são piores do que eu, mas escrevem sobre pessoas santas… – Eles são eles. Não queiras ser um porco por que toda a sociedade é suína. Tu pensas… és adulto. Está na hora de agires como um. – Tentas atingir-me, mas estamos no mesmo barco. Sei que logo quando eu chegar essas tuas ideias já não existirão.
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– Talvez não haja logo para ti. Não quero voltar a dormir com o Constantino homossexual. Quero o homem verdadeiro que há em ti. Sem dizer qualquer palavra em adição, Constantino Canzar levantou-se e foi em direcção ao quarto de banho. Minutos depois, saiu e trocou de roupa. Antes de sair, enquanto olhava para si mesmo ao espelho, lembrou-se da conversa que tivera com Zau. Ele havia falado algo sobre Ivone Tchivela e Kalu Canzar. O quê? Ela estava grávida. Não podia ser. Era totalmente errado. Totalmente desnatural. Ele precisava falar com seu filho e aquela rapariga. Aquela gravidez tinha de ser interrompida. Após algumas horas de reflexão em seu carro, dirigiu-se para a instituição em que seu filho leccionava. – O que fazes aqui? – perguntou Kalu ao passar por ele com alguns livros nas mãos. O homem virou-se e começou a segui-lo. – Não és a minha cauda… a secção dos acessórios para animais não é aqui. Talvez numa loja de brinquedos para crianças haja algo assim. – Vim falar sobre a Ivone – disse Constantino ao colar a mão sobre o ombro do filho. As palavras enunciadas e aquela acção fizeram-no parar. – O que é que ela tem? – Ouvi dizer que ela está grávida… – E porque razão isto te preocupa? Espera! És o pai? – perguntou em tom sarcástico. – Preocupa-me a vida dessa criança. A Ivone deve fazer um aborto. O mais depressa possível. – Isso é com ela. É ela quem o tem na barriga. Não tenho qualquer decisão sobre esse assunto. Tenha um bom dia – disse ao colocar-se em movimento. – Tens sim – rectificou ao voltar a pará-lo. – És o pai. Podes falar com ela. – O pai! Eu? – perguntou entre rizadas. – Quem te contou isso? – Um passarinho verde… na verdade era cor-de-rosa e usava meias de vidro muito sensuais. – Podre de devassidão. A pessoa que te contou contou-te uma falsidade. Eu nunca me envolvi com a Ivone. Somos apenas amigos. – É o mesmo que digo quando uma das minhas mulheres me apanha com outra… – Agradeça a Deus por eu não ser como tu… Terias de ser o pai do único filho que se suicidou logo ao sair da barriga da mãe. – Isso não é uma brincadeira. Essa gravidez tem de ser interrompida. Vocês nunca deviam ter-se envolvido. – Eu já te disse. Eu não sou o pai. Não há mal nenhum… Podes deixar de estar em pânico. Constantino ficou intrigado com as palavras de Kalu. Porque ele não perguntava a razão de eles não poderem ter um filho. Será que Kalu sabia alguma coisa sobre aquele assunto? – Uma noite antes de morrer – explicou Kalu – a mãe dela chamou-me e contou-me tudo. Ela chegou a me pedir para tomar conta dela. É o que faço até agora. Mas a Ivone não sabe de nada. A mãe, a Daniela e os meus irmãos também. Fica descansado – disse, ao levar a conversa a um tom conclusivo. – Este bebé pode vir ao mundo, se ela desejar. Eu nunca a beijaria, quanto mais ter um filho com ela! Porquê? «Ela é … minha irmã, filha de meu pai.» – Génesis 20:12
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* Meados da madrugada de quinta-feira. Entre a escuridão tenebrosa e o barulho do motor de seu auto, Constantino Canzar rondava a cidade. Em sua mente rondava a ideia de falar com sua esposa registada – sim, ele queria conversar com Nazaré Canzar. Mas era uma ideia absurda, totalmente descabida. Nunca trocariam duas palavras sem uma ser ofensiva. Seria uma discussão incendiada. Provavelmente a metade da população do bairro acordaria com os seus gritos. A tentativa de reconciliação estava destinada ao fracasso. Seria algo impossível de se fazer. Melhor para ele. – «Quanto mais difícil, melhor» – pensou ao sorrir e virar o auto em direcção à casa daquela mulher. Eram quatro e quarenta e sete quando o auto parou em direcção ao portão da moradia de Nazaré Canzar. Constantino deduziu que aquela hora ela já estaria acordada, cuidando de algumas coisas no quintal. Como se ainda morasse aí, retirou um molho de chaves e abriu a estrutura metálica à frente de si. Deu alguns passos em direcção à pocilga. Colocou a mão no bolso e atirou algo para dentro dela. – O que queres aqui? – perguntou uma mulher enorme à sua esquerda. – Falar contigo – respondeu ele sem olhar para ela. – Vieste envenenar-me os animais? – perguntou ela ao aproximar-se dele. – Claro que não. Eles são os únicos seres nesta casa que não me desprezam. – A conversa acabou. Já os visitaste. Podes ir embora. – Não vou sair daqui – disse ao voltar a atirar algo para a pocilga. Ele continuava sem olhar para ela. – Acho que ficarei aqui para sempre. – Queres viver num curral? Interessante… É uma pena que já vives em muitos – depreciou ao começar a andar em retirada. – Não deve haver diferença de sujidade e odores desagradáveis. – Nazaré – chamou ele ao finalmente olhar para ela. Seus olhos captaram as sedutoras formas dela, falivelmente escondidas no robe que trazia vestido. – Onde está o que construímos? Tudo o que planejamos juntos, onde está? – Continua aqui – respondeu ao interromper a locomoção. Agora estava de costas voltadas para ele. – Tu que é decidiste abandonar o barco. – Vocês expulsaram-me… tu e os teus filhos. – O comportamento estúpido não era deles… Tu é que nunca foste um bom pai. – E tu és uma boa mãe? O que eu fazia com mulheres, tu fazias com homens. – Mas não trazia os problemas para a casa. Não provocava discussões, não partia coisas, não era uma fonte de palavrões. Por mim, nem me importava que fosses assim… Talvez eu seja uma pessoa pior. Mas com os nossos filhos? Olha para como o Ndombaxi cresceu! – Éramos jovens… Não sabíamos como conter as coisas. – E tínhamos de nos espancar à frente dele? Os amigos bêbados e violentos que levavas à casa? As brincadeiras que lhe ensinavas? Nunca o disciplinaste com ternura… Ele cresceu a ouvir do próprio pai que o respeito tem de ser posto à força. Os palavrões… Porque o fazias pensar que é um fraco? – Os irmãos dele cresceram nas mesmas condições, mas são mais calmos. – Não mintas para ti mesmo! Todos eles carregam uma fúria incontrolável… Têm mãos enormes que, não sabem a razão, anseiam por sangue. – Talvez seja genético. Tu também és assim, não? – perguntou ao colocar-lhe a mão sobre o ombro.
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Em movimentos rápidos, Constantino sentiu o seu braço ser contorcido fortemente atrás das costas. Ele gemeu dolorosamente. – Continuas a saber lutar – disse ao tentar camuflar a dor. – Para o teu próprio bem, Não voltes a tocar-me. – E o que fazes nesse momento? – inquiriu com sarcasmo. Nazaré Canzar largou-o. – O Ndombaxi não é assim por minha culpa – disse ao retomar a verticalidade. – Como todo mundo, ele tem a escolha de decidir entre o bem e o mal. – Foste uma forte influência. Não podes negar isso. – Também tu – confrontou ao lembrar-se que no dia seguinte teria de cumprir com algo que planejara com Inácio Tchivela relativamente a Daniela. – Deixemos de falar sobre isso. Já tivemos conversas parecidas milhares de vezes… vim para te fazer um pedido. – Isso não é um motel. Podes dormir com as mulheres que quiseres fora daqui – disse ao começar a andar em direcção à porta à frente de si com o fim de dar por concluída a fastidiosa conversa. – Vai para a casa e toma um banho. Podes ser imoral, mas os imorais também dormem. Não percas tantas noites de sono. – Nazaré – disse ao reparar nos movimentos graciosos de seu corpo –, quero voltar a viver contigo. – «Contigo» é o nome da tua nova amante? – depreciou antes de entrar para a casa e desaparecer do campo de visão dele. – Parabéns! Foi um desprazer falar contigo. Tenha um bom fim de madrugada. Eu e os meus homens estamos bem assim. Sabendo que ela ainda o ouviria àquela distância, Constantino disse a palavras a seguir e saiu a passos lentos: – Não entendes, tu e os teus filhos têm de me deixar voltar Porquê? «Se persistirdes em andar em oposição a mim e em não querer escutar-me, … terei de infligir-vos sete vezes mais golpes. E vou enviar ao vosso meio as feras … e elas certamente … deceparão os vossos animais domésticos, e reduzirão o vosso número.» – Levítico 26:21,22.
* Proximidades da tarde de sexta-feira. Numa das escolas da cidade, uma menina corria ansiosamente entre os corredores para encontrar outra. Uma fotografia – havia uma fotografia em sua mão. – Daniela! – chamou a rapariga ao reconhecer a outra a alguns metros de distância. – O que foi? – perguntou a outra, parcialmente encabulada, visto que alguns dos alunos haviam parado para olhar para elas. – Olha para isso – disse a outra ao colocar a fotografia à frente do rosto da outra. Por não conseguir enxergar com claridade, Daniela recebeu o pequeno papel. – Com quem ela se parece? Adivinha! Os olhos afectados por nistagmus de Daniela da Glória Canzar tentavam fixar-se nas feições da mulher naquele papel especial. Sem acreditar no que dizia, sua boca articulou palavras desconexas: – Parece… mim. Eu… – Não é estranho? Ela se parece a ti! – disse Gina ao abraçá-la. – Se te pintássemos o cabelo e a pele, até passariam por gémeas! Será a tua mãe?
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– Quem te deu esta foto? – Um senhor… Eu estava aí fora a conversar com o Estêvão. De repente, o senhor apareceu à minha frente e me deu esta foto para te entregar… – Como é que ele era? – Era grande… e tinha cabelos brancos. – Talvez seja o meu avô. Vamos lá ver. – Ele já deve ter ido embora – conjecturou ao reparar que a amiga começara a correr em direcção à saída. Gina foi atrás dela e após alguns minutos de busca infrutífera sentaram-se nos bancos do pátio da instituição. – Eu te disse, ele já foi. – Se essa senhora for quem eu penso, sabes o que isso quer dizer? Que o Constantino achou os meu pais. Ele … Uma imagem masculina aproximar-se delas e silenciou-a. – Senhor Inácio – disse Daniela ao andar até ele e beijar-lhe as faces. – Bom dia. O que faz aqui? – perguntou ao reparar que o senhor tinha as mesmas características descritas pela amiga. – Bom dia, menina – respondeu ele. – Vim falar com um dos professores… Tenho um amigo aqui. – Esta foto. Foi o senhor que deu esta foto à Gina? – Foto? – demandou ao receber o papel das mãos da rapariga. – Meu Deus! Quem vos deu esta foto? – Acho que foi o meu avô que entregou à minha amiga. – O Constantino? Pode até ser. Ele tem algumas fotos dela… – Quem é essa senhora? – perguntou Daniela, despreparada para a resposta. – É a minha filha – respondeu Inácio Tchivela. – Triste – consolou Gina. – E nós a pensar que fosse a mãe desaparecida da Daniela. – E é – disse o senhor em tom nostálgico. – Como assim? – perguntou Daniela, buliçosa de curiosidade. – O que é que as pessoas que vivem contigo te contam sobre ela? – inquiriu o senhor, como se não soubesse da resposta. – Eles nunca conheceram a minha mãe…nem o meu pai. Encontraram-me num saco perto de um monte de lixo… – Menina, menina – disse o senhor ao colocar a mão sobre o ombro dela e encaminhá-la para o banco onde as duas estavam anteriormente. Os três sentaram-se. Ele estava no meio. – Menina, ainda tens de saber mais sobre a tua vida. Esta mulher… Porque é que um dos filhos da tua avó foi preso? – Porque foi violento com algumas pessoas… – Muito bem. Mas ele não foi só violento. Ele matou cinco pessoas… numa só noite… E uma dessas pessoas… uma dessas pessoas foi a minha filha – disse ao voltar a entregar a fotografia à rapariga. – Está a dizer que… Está a dizer que o meu pai matou a minha mãe? – Se é que ela é tua mãe, né, Daniela? – disse Gina. – Menina – disse Inácio Tchivela ao olhar para Gina sem reparar que um dos Canzar se aproximava deles – isso é um assunto muito sério. Importaste de esperar pela Daniela um pouco distante de nós? – Está bem – respondeu ela, após ter resmungado por algum tempo. – O teu pai… – recomeçou Inácio Tchivela após a outra ter se distanciado o suficiente para não ouvi-los – não só matou a minha filha, como é o teu pai de verdade. O Ndombaxi engravidou a minha filha… e acabou com… com a vida dela depois de teres nascido…
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– Não pode ser – desacreditou, enquanto deixava esvair de seu rosto algumas lágrimas. – O que se passa Daniela? – perguntou Lourenço ao olhar para o estado do rosto da menina. – O que estão a conversar? – voltou a perguntar ao reparar que Inácio Tchivela se levantara e começara a andar na direcção oposta. – O pai da Ivone – dizia ela entre soluços –, o pai da Ivone disse que o papá matou a minha mãe. – A tua mãe? Nós nem conhecemos a tua mãe – disse ao abraçá-la. – Alguém deu essa foto à Gina – contou ao entregar o papel ao outro. – Conheces essa senhora? – Sim – respondeu com parcial dúvida. – É a filha dele… do senhor Inácio. – Olha bem para ela… Agora olha para mim… Não somos parecidas? – Um pouco… – Olha para o meu corpo… É grande como o vosso… como o do Ndombaxi… Meu Deus… Essa mulher está morta, sim? – Sim, está. – Como é que ela morreu, pai? Pai? – perguntou novamente ao levantar o queixo de Lourenço para que os dois pudessem fixar o olhar um do outro. – Como é que ela morreu? – Filha… as pessoas fazem coisas más às vezes. Não é novidade para ti. O Ndombaxi matou algumas pessoas… partiu os ossos de outras… fez coisas más. Eu também faço coisas más. Não somos perfeitos… – Ele namorou com essa senhora? – Sim… – Ela ficou grávida? – Sim… mas depois fez um aborto. Foi esse um dos motivos da fúria do Ndombaxi lhe ter levado àquele estremo. Vês? Ela fez um aborto. É impossível seres filha dela… As tuas aulas já acabaram, não? – perguntou ao reparar na resposta positiva da rapariga. Enquanto limpava o rosto dela e se preparava para retirar uma revista de banda desenhada que lhe comprara como presente, disse em tom paternal: – Vamos embora para casa. Não pense em algo que alguém que não merece confiança te diz é verdade só porque a maioria das provas indicam isso. Porquê? «O hipócrita … pode falar muito bem, mas não acredite no que ele diz. Ele pode disfarçar. Quem odeia fere os outros com mentiras.» – Provérbios 26:24-26,28.
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CAPÍTULO XI Passou-se um dia. Já era domingo. Com muita persuasão, Lourenço conseguiu demover Daniela de sua ideia de falar com Ndombaxi sobre o explosivo assunto suscitado pela fotografia de uma das filhas de Inácio Tchivela. Natércia Lando Tchivela – seria possível que ela fosse a mãe daquela menina? Lourenço já havia ouvido Nazaré Canzar falar sobre o estranho olhar que aquele senhor deitava sobre a rapariga. Às vezes, parecia ódio; às vezes, transmitia fraternidade. Todavia, ninguém pensava na possibilidade de haver algum laço sanguíneo envolvido. Todos – inclusivamente a família Canzar – pensavam que fora um casal insensível que a abandonara naquele lugar fétido. O estranho – o estranho era que o lugar era o depósito de lixo que ficava na quinta que os Canzar tinham enquanto viviam na sua província natal. Porque o casal teria escolhido aquele lugar? Seria coincidência? Premeditação? Porque pensar em um casal? Porque não pensar em uma pessoa só? Talvez o pai da criança, ou a mãe. Mas Natércia contara a Ndombaxi que fizera um aborto aos três meses de gestação. Por saber da fúria descontrolada daquele homem, ela se escondera por um bom tempo. Mas ele a encontrou. E o horrendo homicídio aconteceu. Só depois de alguns dias se apanhou a menina naquele depósito. O crime ficou escondido por alguns anos. Mas foi descoberto e Ndombaxi teve de ser preso. Não – Daniela não podia ser filha daquela mulher. As provas indicavam isso. Todavia, a dúvida permanecia. Distanciado a inúmeros quilómetros, Constantino Canzar pensava na facilidade que os segredos mais bem guardados de alguém podem ser descobertos. O mundo é tão fechado a sete chaves, mas ao mesmo tempo tem todas as fechaduras abertas. Kalu – Kalu Jurante Canzar sabia que era irmão biológico de Ivone Lando Tchivela. Raios da mulher! Porque não morrera sem contar aquilo a ninguém? «Valéria Lando Tchivela» – era esse o nome da defunta –, «porque não levaste este assunto ao túmulo?», disse de si para si. «Agora a Nazaré vai saber que a única amiga dela que ela pensava ser-lhe fiel também a traiu.» Voltando a atenção para a casa dos Canzar, algo acontecia. Ivone Tchivela – Ivone Lando Tchivela estava diante de Ndombaxi Ilídio Canzar. – Ficaste sozinho outra vez? – perguntou ela com sedução, enquanto desfilava com roupas tentadoras. – Pensei que tivesses adquirido algum juízo – disse ele ao olhar para o lugar onde Dinake estava escondido. – É melhor saíres daqui, antes que te magoes. – O que vais fazer? Não podes sair daí… Ou podes? – perguntou ela ao sorrir maliciosamente em seguida. – Conta-me. Para onde foi a tua família? Desde as treze horas que não os vejo… Já devem ser agora vinte horas e alguma coisa. – Foram ver uma casa… Visitar alguém. A Daniela foi à casa de uma colega. – Bom… Talvez não cheguem tão cedo. Ouvi dizer que o Ambrósio foi à uma missão fora de Luanda… O que foi isso? – perguntou ela ao ouvir o tácito barulho de correntes a serem arrastadas no lugar escuro à sua direita. – Vai para casa – aconselhou ele com ansiedade ao ouvir o ranger dos dentes do animal – antes que seja tarde demais. Ivone afastou-se das grades de metal com lentidão atrevida. Pegou uma cadeira e sentou-se com lascívia explícita. Ela tentava retirar a blusa quando seu campo de visão foi preenchido pela imagem de um enorme animal aproximando-se rapidamente dela. Ivone gritou. Levantou-se apressadamente e correu apavorada. Todavia, ao chegar às escadas, parou. Uma corrente – o animal tinha uma corrente amarrada ao pescoço e isso
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o impossibilitava de chegar até ela. Depois de ter resfolegado, a rapariga atreveu-se a falar: – Porque não me avisaste que havia um cão aqui?! Mas não há problemas. Podemos continuar com o show à distância – disse com sedução ao recomeçar a desabotoar a blusa. Um latido – um forte latido saído da enorme boca daquele gigantesco animal fez Ivone assustar-se e cair de forma desleixada. Ela ouviu a seguir um estranho barulho nas grades de metal que enclausuravam Ndombaxi. Parecia que estavam a ser abertas. Ela tentou observar, mas o animal parecia estar a soltar-se da corrente. Dinake movia seu corpo de forma brusca, e aproximava-se cada vez mais dela. Notavelmente apavorada com a força e o ódio expressos nos olhos vermelhos e nos ferozes dentes do animal, Ivone correu até a saída. De seus monitores, Ndombaxi podia vê-la a passar aos tropeços pela sala, abrir a porta, alcançar o quintal e sair. Dinake – Dinake corria atrás dela. A passos lentos ele andou até as grades de metal e fê-las correr. Na rua, Ivone corria apavorada. Ela gritava. Mas o local estava parcialmente desértico. A maioria das pessoas havia ido para mais uma reunião de planos contra a família Canzar. O animal vinha ferozmente atrás dela. Parecia ser o seu fim. Aqueles dentes – aqueles dentes afiados tinham ânsia em cravar-se em suas pernas. Ela continuou a correr, o animal também. Ivone conseguiu esconder-se por algum tempo e telefonar para alguém. Depois o animal voltou a achá-la. A corrida para a salvação de sua vida recomeçou. Alguns minutos depois, Ivone parou. O animal fez o mesmo. Haviam chegado a um beco, um beco sem saída. O animal começou a aproximar-se dela a passos lentos. Ela sentiu tonturas. O animal abriu sua enorme boca. O coração dela – o coração dela bateu forte. Seus sentidos ficaram confusos. Ela pensou na criança que trazia em seu ventre. O animal ladrou de forma estridente. Ela não resistiu – caiu desmaiada. – Dinake! – gritou um homem enorme atrás do animal. O animal voltou-se. Um líquido incolor escorreu de sua boca. O vermelho de seus olhos transmitiam fúria. – Volta para a casa! – ordenou rispidamente o homem. O animal andou até ele. Ambos fixaram os olhares por algum tempo. Depois a fera de quatro patas correu e desapareceu do campo de visão da fera de duas plantas. O gigantesco homem andou em direcção à rapariga. O beco cheirava mal. Havia lixo espalhado por ele. Ele pegou-a no colo e andou até a saída. Faróis – a forte luz de faróis ocuparam o campo de visão dele. O homem sentiuse parcialmente cego. – O que fizeste com a minha namorada? – perguntou Fernando ao descer do auto com cinco homens. – Ela está bem – respondeu o homem. A voz dele era pesada e intimidadora. – Toma-a – disse ao colocá-la sobre o chão. Fernando tentou aproximar-se dele para o agredir, mas o olhar que o homem lhe deitou ao levantar a cabeça paralisou-o. Não era o olhar de um homem. Era selvagem e cruel. Parecia a personificação do ódio. O homem rangia os dentes. Fernando e os outros homens sentiram-se intimidados. O homem largou a rapariga sobre o asfalto e andou na direcção deles. Eles esconderam-se por trás do auto em que vieram. O homem subiu num velocípede vermelho de quatro rodas de forma imponente. Antes de desaparecer do campo de visão deles, Fernando correu até à rapariga, apanhou-a e colocou-a no auto.
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Distante deles, o homem no velocípede vermelho acelerava-o cada vez mais. Ele passava por entre camiões e carrinhas como se não temesse a morte. Ele distanciava-se da cidade. O que tinha em mente? O que estava a fazer? A voltar para a província da qual saíra há muito? A liberdade – a liberdade não era para ele. Não se sentia bem naquele estado. Ele era um perigo ambulante. E o que se faz com perigos ambulantes? Abate-se ou se lhes retira a actividade. Passaram-se cinco horas. A velocidade da máquina sob o enorme homem era a mesma. Parecia que sabia para onde se dirigia. Aquela altura ele já estava distante de Luanda. Enquanto seu veículo espalhava fumo e enchia a atmosfera com um estridente barulho – um acidente! Quase se deu um acidente. Por ter reconhecido a matrícula de um carro, um enorme automóvel quase se chocara contra o seu velocípede. O homem no auto desceu. Ele estava fardado. O homem no velocípede vermelho continuou no mesmo. Os dois eram muito parecidos. Haviam uma pequena diferença no tamanho do corpo de ambos. Era como se fossem gémeos. O homem fardado andou até ele e o abraçou. O homem no velocípede continuou com uma expressão séria. Sem ter o mínimo intuito de esconder sua felicidade, o homem fardado retirou um telemóvel do bolso e discou um número. – Fala, Ambrósio – respondeu a pessoa do outro lado da linha. A voz parecia ensonada. – Ainda estão a ver a casa, Lourenço? – perguntou o homem que acabara de abraçar o dono do velocípede. – Sim… Claro que não, Ambrósio! Já estamos a dormir. Mas não voltámos para a casa. Já são uma hora da madrugada… – 0K. Podes voltar a dormir… mas não antes de te contar algo para que vocês aí fiquem felizes assim como estou. Porquê? «O nosso irmão já saiu da cadeia. Eu o levarei comigo quando for ver vocês.» – Hebreus 13:23.
* Duas horas da madrugada. Ndombaxi sobressaltou-se. Só agora lhe viera à mente o pensamento de que Daniela podia estar sozinha naquela casa. O que lhe fariam aquelas pessoas? Com extrema rapidez, pegou em seu telefone e ligou para ela. – Alô? – respondeu um homem do outro lado da linha. Ndombaxi ficou assustado. – Com quem falo? – perguntou com ansiedade. – Com o sobrinho da tua mãe, o Tutomene. Como é que estás? – Estou bem... Como é que estás com o telefone da Daniela. – Ela está aqui em minha casa. Há uma festa aqui. É segunda-feira. Acho que não faz mal nenhum se ela dormir tarde. Ela disse que pediu à tia Nazaré... Há algo de errado? – Ela disse a mim que iria para uma colega... Porque mentiu? Não interessa. Preciso falar com ela. – Ela não quer... Foi por isso que atendi. – 0K. Diz-lhe que daqui a pouco falo com ela – disse ao desligar e voltar a marcar outro número.
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– Lourenço – disse ele, após o outro ter atendido a chamada. – Não precisam de voltar para a casa para gravarmos a peça da Daniela sobre o preconceito e os heróis de Angola. Vamos gravar aquilo na casa do Tutomene. Eu vou levar as câmaras e o resto. Depois de ter falado por alguns minutos com Ambrósio e este ter falado com seu superior, os dois voltaram à casa para pegar algumas coisas. Horas depois, Nazaré Canzar e três de seus filhos chegavam ao local combinado. – O que fazem aqui? – perguntou Daniela, totalmente a leste do que se passava, ao ver chegar o carro de Ambrósio. – Viemos gravar a tua cena aqui – respondeu Kalu. – O local é maior e há mais gente. É o cenário perfeito. – Mas vai faltar o papá. E nós tivemos de escrever de novo a cena, ele tem de estar preso... e aqui não há nada disso – disse ela ao ver um grande volume de poeira ao longe. – Quem é aquele? Um homem – um homem enorme aproximava-se deles num veículo vermelho de quatro rodas. A menina sentiu-se emocionada. A raiva que sentia dele naquele momento desvaneceu-se. Mesmo antes de ele ter parado o velocípede, Daniela correu até ele. O homem diminuiu a velocidade e estendeu a mão para apanhá-la. Ela pulou para o colo dele. Abraçaram-se. O veículo continuava em andamento. Lágrimas – havia lágrimas de felicidade em seus olhos. Após vários minutos de conversa, os preparativos para a gravação da peça haviam terminado. Eles já tinham ensaiado várias vezes nas semanas passadas. Agora era só actuar. – 0K – disse Daniela. – Tudo pronto. A mãe é a Nzinga Mbandi, o Tutomene é o Ngungunhane, a Saengue é a Kimpa Vita, o papá é o Ngola Kiluanji, o pai é o Mutu-yaKevela, o kitata é o Mandume, o tata é o Ekuikui II e o paizinho é o Bula Matadi. – Já sabemos disso tudo, filha – disse Nazaré Canzar. – Vamos gravar ou não? – Vamos! – respondeu a rapariga com extrema alegria. – Acção! Algures na imensidão do Universo, escondido no brilho estelar da Via Láctea, localizado na crosta da Terra, um território secreto permitia-se ser o anfitrião de alguns heróis julgados mortos pela maioria. O lugar tinha o nome de Luia e ficava perto do rio Luembe, na Lunda-Norte. Ladeado por cubatas e algumas palmeiras, um enorme grupo de pessoas estava em pé dispostas de forma a criar um círculo. Só os mais privilegiados estavam sentados. Eles formavam um género de arena. Estavam aí para assistir a um jogo. Todas as tribos estavam reunidas. Na arena estavam três pessoas imponentes: dois homens e uma mulher. Os homens tinham apenas os quadris cobertos, o resto do corpo estava nu; a roupa da mulher cobria-lhe o busto até a parte superior das coxas. Um dos homens era Ngola Kiluanji, rei do Ndongo, um autêntico gigante dotado de uma força física fora do comum. O outro era Mandume, rei dos cunhamas, um grande guerrilheiro cheio de inteligência. A mulher era Nzinga Mbandi, filha de Ngola Kiluanji, uma autêntica prova que os pacíficos também usam a força para atingir os seus objectivos mais nobres. Os três estavam ansiosos. Dentro de momentos seriam soltos quatro animais perigosos: dois javalis e dois bodes selvagens. As regras eram simples: deviam apenas paralisar os animais, a morte não era permitida. E não podiam ter nada nas mãos, excepto uma corda. A multidão ficou calada. As grades de bambu foram abertas. As bestas estavam livres. Espuma – havia espuma branca em suas bocas. O olhar era demoníaco. Três das feras galopavam ferozmente na direcção deles. A outra ficou a rondá-los, como se quisesse achar um ponto fraco. Com força extremamente bruta, os dois homens domaram os javalis e a mulher deteve um dos bodes pelos chifres. Mas, no mesmo momento, a certa distância, o outro bode preparava-se para atacá-la pelas costas. As mãos dos dois homens estavam 105
ocupadas em amarrar os dois suínos. As mãos dela tentavam proteger-se dos cornos afiados do caprino. Se decidisse lutar com um, o outro atacá-la-ia. O mesmo se daria se os homens largassem os javalis – com certeza seriam atacados, não por uma, mas pelas quatro feras. Os homens apressavam-se em amarrar os javalis. Ela tentava derrubar o animal em suas mãos. O outro bode continuava a galopar na direcção dela. Já estava muito perto. Subitamente, aparecendo de forma misteriosa, uma menina apareceu no meio da arena, bem à frente do bode. O olhar dela era incendiado. O bode sentiu-se intimidado. O animal ficou parado, paralisado. Os dois outros homens correram até ao caprino e o amarraram. A multidão aplaudia de forma eufórica. Antes que continuassem com a diversão, a menina fez um sinal, indicado que precisava da atenção deles. O assunto era sério. Quatro homens e uma mulher levantaram-se. A multidão abriu caminho para que eles pudessem passar. – O que te trás aqui? – perguntou a mulher que vinha com os quatro homens, ao fazer-lhe uma vénia. – Kimpa Vita – disse a menina, em sinal de reconhecimento. – Ou devo dizer Dona Beatriz? Sei que és muito ligada aos espíritos. Será interessante conversar contigo. O que tenho para vos falar é muito importante… – Por favor – interrompeu Mandume, ao pegar Kimpa Vita pelo braço e começar a andar com ela. – Sigam-me. Vamos conversar num lugar com maior privacidade. – Vocês podem ficar – disse Ngola Kiluanji aos soldados, ao reparar que estes se preparavam para segui-los. Enquanto todos conversavam sobre a estranha aparição daquela menina, os oito andavam de forma pomposa, até desaparecerem do campo de visão da multidão numa das tendas. – Aqui está melhor – disse Mandume, enquanto permaneciam todos em pé e ele corria os panos da tenda. – Podemos saber agora a razão de sua visita? – perguntou Kimpa Vita. – Não é melhor que nos sentemos? – perguntou outro homem imponente. – O assunto é sério demais para que nos sintamos à vontade – explicou a menina. – És Ekukui II, rei do Bailundo – reconheceu, ao observar a vénia que o outro lhe fazia. – Admiro muito o que fizeste. Precisamos de homens como tu. – Só faço o que é necessário – respondeu, ao voltar a fazer uma vénia. – As vossas lutas… – recomeçou a menina, ao andar de forma lenta à volta deles. – Porque que lutaram? Qual foi a razão das vossas lutas? Podes dizer-me, Mutu-ya-Kevela? – Eu lutei contra o trabalho forçado. Nunca reconheci a autoridade portuguesa como autoridade. Ninguém que escraviza merece submissão. – E tu, aristocrata Bula Matadi? Porque lutaste? – Lutei contra a exploração e a dominação portuguesa. – Ngungunhane, ou Reinaldo Frederico Gungunhana, «o leão de Gaza», homem de Moçambique… Porque lutaste? – Pela liberdade, pela expulsão dos portugueses no nosso território. – Em resumo – concluiu a menina, ao fixar o olhar em Nzinga Mbandi –, todos vocês lutaram para sermos homens livres, verdadeiros homens livres. O que me trás aqui é a realidade de que, infelizmente, as vossas lutas foram em vão… – Como assim? – perguntou Mandume, parcialmente exaltado. – O nosso povo continua preso – respondeu Kimpa Vita, com o olhar em transe. – Eles continuam a ser escravizados… – Não pode ser! – exclamou Ngola Kiluanji. – Os portugueses foram expulsos daqui há décadas – lembrou, ao olhar fixamente para Kimpa Vita. – Estamos a evoluir… O nosso povo está a evoluir. O que vês é falso, feiticeira.
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– Parte do que dizes é verdadeiro – disse Kimpa Vita. – Mas não me chames de feiticeira. É o que vejo. As nossas lutas não nos libertaram… Somos escravos – disse, ao cruzar as mãos como se estivessem acorrentadas. – Continuamos escravos… – Como é isso possível? – perguntou Ekuikui II, ao olhar para a rapariga. – Mesmo quando éramos escravos, já éramos mais livres que os colonos aqui. Estávamos em todos os sítios: nos campos, nas casas deles, nos caminhos-de-ferro. Eles temiam-nos… Viviam com medo de nós. O opressor nunca é mais livre que o oprimido. Ele tem de trabalhar muito em prol da opressão deste. Tem de escravizar-se… Tem de passar a noite a pensar em como usar a força do oprimido para proveito próprio. Tem de estar sempre alerta. Uma revolução apavora-o. Nunca está em paz. Dia e noite é perseguido pelos problemas que causam maior ansiedade ao ser humano. O escravo tem apenas uma preocupação: liberdade, logo, é mais livre. Nós nos vimos livres dos colonos, agora somos mais livres do quando éramos escravos. – Sábias palavras – disse a menina. – O que me dirás quando souberes que o teu povo luta contra si mesmo? O teu povo livre é preconceituoso, bêbado, imoral, assassino, corrupto… O teu povo, o teu povo é escravo, detentor da pior escravidão possível. Muitos deles me odeiam… – Porquê? – perguntou Mandume, ao beirar a arrogância. – És como os colonos? – Não – respondeu ela com calma. – Apenas por causa da minha pele. A minha pele é um problema para a maioria deles. Na verdade, para a maioria das pessoas neste planeta. Quantos heróis albinos aparecem nos livros? Nenhum… Quantos albinos lutaram ao vosso lado? Não se fala sobre isso… Vais a Internet e só lês sobre porque temos essa coloração. Não há nenhuma figura de destaque… Será que não lutámos? Até nas bandas desenhadas… há heróis cegos, coxos… nenhum albino. Se houver algum, é uma excepção, e uma excepção pouco conhecida ou mencionada. Somos discriminados, excluídos… E não são só os albinos, qualquer pessoa que seja diferente da área em que esteja. O teu povo… O vosso povo é disfuncional… O mundo é disfuncional. – Entendo muito bem os teus sentimentos – disse Kimpa Vita, ao dar um gole de sua bebida peculiar. – Fui queimada viva com o meu filho por causa do preconceito… – Aquele Manuel Cerveira Pereira prendeu-me e mandou que eu fosse decapitado na Fortaleza de São Miguel para mostrar o seu poder – disse Ngola Kiluanji. – O orgulho também é um veneno… Mesmo se tentarmos mudar essas pessoas, talvez elas não aceitem por simples soberba. – Embora os meus irmãos Kambi e Fuxi não tivessem chegado a extremos, Ngola Mbandi, o meu outro… irmão… mostrou-me como a ganância pode mudar as pessoas. Ele recebeu-me o trono… A ganância é peçonha. – Muito interessante, Ana Sousa – disse a menina, ao referir-se a Nzinga Mbandi. – É como fumar, beber, ter muitos homens ou muitas mulheres – disse Bula Matadi. – Não é viver… é morrer. Mas as pessoas fazem isso por lhes ser conveniente… ou lhes dar prazer. Mudar a mente das pessoas está entre as coisas mais difíceis deste mundo. – O que propões? – perguntou Nzinga Mbandi, ao olhar para a menina. – É esta a razão que me trouxe até vocês… Vocês têm o poder de mudar o sistema. Provaram-no… E gostam de desafios. O que farão? Vão lutar? Ficar com os braços cruzados? – inquiriu, ao olhar para Mandume. As oito pessoas ficaram caladas por alguns instantes. Reflectiam. Depois uma a uma passavam pela menina e beijavam sua mão enquanto lhe diziam sua decisão individual. – Lutaremos – disse Ngungunhane. – Detestamos a escravidão. O preconceito é irmão dela. – As minhas mãos estão ao dispor desta luta – disse Mandume. – Se for preciso a força para mudar a mente deles... assim será.
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– A abordagem é uma solução viável – disse Ekuikui II. – Farei os possíveis para convencê-los com lógica irrefutável. – Ninguém se sente bem ao ser discriminado – disse Mutu-ya-Kevela. – Talvez a solução seja lhes fazer provar um pouco do próprio veneno. Estou nesta luta. – Os portugueses não me impediram... nem chegaram a vencer-me – disse Ngola Kiluanji. – Lutar contra a mentalidade de meu próprio povo será difícil, mas não impossível. Lutarei. – O espírito do raciocínio existe em qualquer humano – disse Kimpa Vita. – Só precisaremos de evocá-lo com fervor. Eu me responsabilizarei disso. Lutarei. – No passado – disse Bula Matadi –, consegui mobilizar todo o meu o povo para obrigar um rei a expulsar os portugueses com o intuito de pôr fim às intrigas que enfraqueciam o reino a que eu pertencia. Será interessante repetir esta façanha… Lutarei. – É meu dever salvar o meu povo de qualquer ameaça – concluiu Nzinga Mbandi. – Lutarei. E a luta começa agora. Estamos dispostos a ir contigo. Os preconceituosos que estejam bem preparados.
* Proximidades da noite de segunda-feira. Enquanto seus filhos faziam alguns acertos no vídeo que haviam gravado na manhã do mesmo dia, Nazaré Cândida Canzar conversava isoladamente com seu sobrinho, Tutomene Dima Canzar. Os dois estavam sentados. Ele tinha um corpo enorme. Na verdade, era maior que o dela. – Já não precisas de ficar a te martirizar por causa disso, tia Nazaré – disse ele ao colocar a mão sobre o ombro dela. – O que fizeste comigo e com a Saengue no passado foi errado… muito errado. Nós éramos crianças… e da mesma família. Mas já passou… e isso a ferro quente. – Obrigado – agradeceu de forma comovida. Embora o rosto dela estivesse abaixado, Tutomene pôde ver o alegre sorriso que ela esboçara. – A Anita Cuchi passou um dia inteiro a espalhar aquilo às pessoas do bairro… e por meio de um megafone. Aquilo trouxe-me à mente tantas lembranças tristes… – Não te preocupes mais com isso. Olha… agora estou com quarenta e quarto anos. Sou um homem bom para os meus filhos e para a minha esposa. Já nem me lembro dessas coisas. A Saengue também – disse ao fazer com que a outra levantasse o olhar e visse a pessoa mencionada ao longe correndo alegremente atrás de patos e galinhas com Daniela e mais algumas crianças. – Somos felizes. À parte este teu erro, foste uma boa tia. Lembras-te quando a polícia disse que ofereceria uma boa quantia de dinheiro a quem denunciasse um pedófilo? Tu foste a primeira a ir falar com a minha mãe para que ela fosse à uma esquadra. Tu te entregaste, apenas para que ela conseguisse dinheiro suficiente para pagar os nossos estudos… Podes ter sido uma diaba, mas não tens chifres, nem cauda… e muito menos cascos fendidos – disse em tom de piada, por saber que aquela era uma imagem falsa atribuída a Satanás. – A minha consciência ainda dói. A Saengue nunca se aproxima de mim… Está sempre distante. Embora eu tenha sido vítima de abusos antes de vocês existirem, isso não significava que eu devia deixar que os meus traumas vos fizessem passar pelas mesmas coisas. Eu devia ter sido mais forte… – Estás a te esquecer do ferro quente – lembrou com graça ao fazer-lhe cócegas. – Já passou… Vês como esse terreno é grande? Serve para vivermos a minha família e a família dela. Assim é o tamanho do nosso perdão para ti…
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– Os vossos corações serão jóias raras daqui a algum tempo – disse ao sorrir e reparar que Saengue e Daniela tinham desaparecido de seu campo de visão. – Tu nunca… tu nunca fizeste a alguém o que te fiz, pois não? – Foi difícil, tia Nazaré. Aconteceu apenas três vezes…. Estava a brincar! – disse entre gargalhadas. – Nunca fiz isso. – Ainda bem. Acho que chegou a hora de irmos embora – disse ela ao levantarse após ter visto ao longe o aceno que Ambrósio lhe fizera, despreparada para o que aconteceria a seguir. – 0K. Se der, iremos à vossa casa um dia desses – disse ao levantar-se e começar a andar. – Vamos estar a espe… Um abraço – um forte abraço interrompeu Nazaré Canzar. Era Saengue. Ela chegara sorrateiramente e a abraçara por trás. As duas choraram. Minutos depois, todos estavam prontos para voltar para a casa. – Quanto àquele problema de vos ameaçarem de morte – dizia Tutomene enquanto se despedia de todos –, não se preocupem. Estaremos aqui para vos ajudar de qualquer forma. Devem apenas ter cuidado e muita calma. – Obrigado, primo – disse Lourenço, ao apertar-lhe a mão. – Vamos continuar brandos. Antes de os três autos entrarem em movimento, a pessoa que menos falara desde que eles chegaram – Saengue Canzar Kudila – dirigiu-se até Ndombaxi e proferiu breves palavras de consolo. – Já não estou zangada com o que fizeste à Natércia, nem com a tua mãe. Eu, o meu marido, o Tutomene e a mulher dele estamos aqui para o que der e vier. Contem connosco mesmo quando o assunto for extremamente perigoso. Porquê? «Vocês são tão amados por nós, que estamos sempre juntos, tanto para morrer como para viver.» – 2 Coríntios 7:3.
* Uma hora se tinha passado desde que a noite sucedera a tarde. Enquanto a maioria da família Canzar cuidava de alguns em pendência, Hermínio Mbaki conversava com Ndombaxi. O filho primogénito de Nazaré Canzar voltara a colocar-se por trás das grades e Hermínio não sabia que recentemente ele saíra daquele local. Mas a conversa era interessante e decisiva. – Já lemos várias vezes esta passagem bíblica – dizia Hermínio com sua forma de falar calma –, mas vamos repeti-la. Provérbios 18:1 diz: «Quem não gosta de estar na companhia dos outros só está interessado em si mesmo e rejeita todos os bons conselhos.» Como é que isso se aplica no teu caso? – Não tenho sido sábio… Tudo o que tenho aprendido não vale de nada se eu não colocar em prática – disse Ndomabaxi ao levantar-se e andar em direcção às grades de metal. – Ao isolar-me mostro que sou apenas egoísta. Muitas pessoas precisam de mim. Eu preciso de transmitir o que sei a elas – continuou ele ao segurar as grades. – Então, visto que já tens estas informações todas, porque não sais dai? – perguntou Hermínio totalmente a leste do que o outro planejara.
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– Eu quero ir à Casa de Deus com a minha família – disse ao olhar para o enorme buldogue que comia à distância. Enquanto ele falava, o animal olhou para ele e começou a aproximar-se. Depois parou e mostrou os dentes assassinos. – Quero começar a ensinar as pessoas o que tenho aprendido sobre Ele. Neste mês eu quero fazer isso e, como a minha família será baptizada o próximo mês, também quero ser. – Bom! Muito bom – disse Hermínio ao retirar os óculos. – Mas, como é que vais fazer isso preso aí dentro? Ndombaxi olhou para o animal. A boca da fera tremia. Era como se o animal entendesse o que seu dono desejava que ele fizesse naquele momento, mas não podia fazê-lo sem uma ordem expressa. Por isso, com sua voz firme e pesada, Ndombaxi imperou: – Dinake, ladra! O som que se ouviu a seguir era ensurdecedor por causa do eco no local. No mesmo instante, ouviu-se o som de algo a desprender-se entre as grades – eram os trincos que as uniam. Ndombaxi fez a estrutura de metal correr para a sua direita e saiu. Brilho no olhar – havia um comovente brilho no olhar de Hermínio. Ele levantou-se e abraçou o amigo. – Estou sem palavras… mas digo que estou sem palavras – disse ele ao sentir-se desconcertado, ao reparar que o animal voltava para o seu prato de ração. – Como é que… ? As chaves…? – Quando montei isso tudo com o Zau, tinha uma ideia. Eu só podia sair daqui se usasse chaves. Mas sabes como é que aquele meu irmão é inventivo… Criou um sistema de abertura que é accionado pelo som do latido do Dinake. Ele é um cão que ladra pouco. Na verdade, só ladra às minhas ordens. – Interessante – disse o outro ao abaixar-se e olhar para as pequenas saliências de metal que agora estavam destrancadas. – Muito inteligente. Porque não fizeste isso antes? – Não estava pronto… Mas desde que vi o Fernando a voltar a atacar os animais do Lourenço… tive de agir. E foi bom sentir-me livre. – O Fernando? O que fizeste a ele? – Nada que o matou… – Então já saíste daqui antes? – Já… E agora sairei daqui para sempre para fazer o que já te disse. – Tenho a certeza que Deus está feliz em ouvir isso. E a tua família? Eles já sabem? – Hoje fomos à casa de uns familiares juntos gravar o vídeo da Daniela. Ela vai apresentá-lo daqui a um mês… ou mais. – Então eu sou o último a saber. Muito bonito… Agora já vais poder participar mais da vida da Daniela… e de toda a tua família. – E já vou poder sair contigo. Desviar-te… Queres ir à uma roulotte encher-te de cervejas? – perguntou com graça. – Não evoques o pecado com alegria – respondeu com austeridade cómica. – O mundo tem tanto para dar – disse ao começar a andar com o outro em direcção às escadas. – E eu tenho de estar pronto para recebe isso. A raiva tem de ficar para trás. Será difícil controlá-la, mas não impossível. – É bom ouvir-te a falar assim… – Vais ouvir muito mais quando sairmos juntos e falarmos às pessoas sobre Deus. – Vou castigar-te. Vais estar comigo das seis às vinte e duas!
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– Podíamos ir até às seis do dia seguinte. Não seria problema – consentiu ao subirem os degraus. – Estás mesmo disposto…Noto que estás resolvido a fazer isso. – É. Demorei uma eternidade para tomar esta decisão, mas tomei-a. E estou firme nisso. – Não tens medo que algo corra mal? – Estou confiante. Tu vais estar comigo. Jah estará… A minha família toda estará. – Estás mesmo decidido. – Chama-se a isso zelo e determinação… e daquilo que é bom. Antes de desaparecerem por completo do campo de visão de Dinake, Hermínio disse com seriedade: – Muito bem. Agora estás livre. Toma cuidado. Já não podes pensar em voltar a aprisionar-te. Porquê? «Ninguém que tiver posto a mão num arado e olhar para as coisas atrás é bem apto para … Deus.» – Lucas 9:62.
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CAPÍTULO XII Meio-dia de terça-feira. Zau Albano Canzar encontrava-se em seu local de trabalho. – Ei! Rosalina – chamou ele com discrição ao ver a outra a alcançar a porta para sair. – Fala – respondeu ela ao virar-se. – O meu estômago está prestes a comer a si mesmo. O expediente aqui está calmo… Posso dar uma fugida e ir à casa almoçar?
– Estou a ir fazer a mesma coisa – disse ao abrir a porta e deixar o outro passar à sua frente. – Posso te dar uma boleia... – Com esse engarrafamento? – perguntou ele ao olhar para os autos parados na estrada. – Prefiro ir a pé. – Também já desisti de entrar no meu carro. Isso aqui parece ser um desfile de automóveis que não andam! Vou comer num restaurante aqui próximo. – Acho que até eu chegar à casa o meu corpo já se terá devorado até ao meio. Tenho de ir com algo que não pare nos engarrafamentos. Vou de mota. – Tu?! Tu detestas motas. Duvido e pago! – 0K. Será bom ganhar dinheiro à borla. Ei! Jovem – chamou Zau ao apontar para alguém numa motorizada na estrada e andar apressadamente até ele –, podes me dar uma boleia? – Tá fixe – respondeu o outro. – Mas não vou distante. Vou entrar naquele prédio aí à frente. – Não há problema – disse Zau ao subir para o velocípede. – Adeus, Rosalina – despediu-se ao zombar da cara de incredulidade da gerente. – Tens trinta minutos apenas! – avisou a outra ao ver a motorizada entrar em movimento. Dois minutos depois, o velocípede parou. Zau desceu e despediu-se cordialmente do jovem. Enquanto andava apressadamente, o Canzar olhava para a estrada com o intuito de ver mais alguém que o pudesse ajudar. De repente, mais uma motorizada vinha à sua frente. – Comé? Podes me dar uma boleia? – perguntou ele ao fazer o outro abrandar. O jovem olhou para ele com desconfiança. – Não. Eu fico já aqui à frente – respondeu o outro com rispidez ao voltar a pôr o velocípede em andamento. Zau sentiu-se mal. Pensou em coisas blasfemas. Mas, alguns segundos depois, acalmou-se. «Ele pode ter passado por algum assalto recentemente... ou coisa do género», disse de si para si. No mesmo instante, mais um motociclista apareceu. Zau fez a ele o mesmo pediu e este aceitou-o. Escassos minutos depois, o quarto filho de Nazaré Canzar estava em casa. Às pressas, abriu a arca e retirou uma grande porção de carne. Andou até à cozinha e cortou-a aos pedaços. – Ei! – chamou Nazaré Canzar ao entrar. – Não vais comer isso tudo. E os teus irmãos? – Eu não ia comer... Estava só a cortar – defendeu-se com falsidade engraçada ao ver a mãe a retirar alguns pedaços e colocá-los na arca. – Temos cebola? – perguntou ao pegar alguns temperos no armário, totalmente a leste da cena que lhe era preparada em seu local de trabalho.
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– Cebola agora é ouro... diamante! Não está fácil achar na praça. Mas há um bocadinho aí na arca – disse ela ao ver o filho colocar azeite e vinho numa frigideira e pô-la sobre a boca do fogão. – Bem, vou acabar de lavar a vossa roupa. – Acho que já não vou usar a cebola – disse para si mesmo ao acender o fogão e reparar que a presença da senhora já não era uma constante. Depois de ter cortado alguns dentes de alho e os pilado com sal, espalhou o produto resultante sobre a carne com algumas gotas de vinagre. Minutos depois, colocou os pedaços temperados sobre a frigideira aquecida e tampou-a. Após algum tempo, ao olhar para o relógio na parede, sobressaltou-se. Faltavam apenas treze minutos para o fim do tempo que a gerente lhe dispensara. Andou até à frigideira e destapou-a. Ainda faltava um pouco para a refeição poder ser digerida por um ser humano. O tempo escasseava. A solução bateu-lhe à mente. Andou até ao quarto de Lourenço e retirou um pequeno e bonito saco preto. – Espero que ele não me mate – disse de si para si. Voltou a cozinha e retirou tudo da frigideira e colocou num saco azul às riscas. Depois amarrou-o e colocou-o dentro do pequeno saco preto. Andou às pressas até ao armário e retirou três pequenos frascos: um de sal, um de azeite e outro de vinho acre. Colocou-os no saco sem demora e saiu. – O que é que isso que levas aí? – perguntou Kalu ao entrar e tentar espreitar para dentro do saco. – Um presente para a Adelina, não é? – Estás a precisar de psicoterapia – disse Zau ao bater levemente na cabeça do irmão e puxar o portão da saída para si. Na rua, Zau andava apressadamente. Algumas mulheres olhavam atenciosamente para o saco em sua mão. Provavelmente pensavam a mesma coisa que Kalu. Ninguém desconfiava do que havia aí dentro. Ah! Se alguém soubesse... Segundos depois, alcançou a estrada e, novamente, alguém levou-o de motorizada até ao local de trabalho. Ao entrar, seu intuito era subir apressadamente as escadas para alcançar a cozinha, mas alguém impediu-o. – Onde é que estavas? – perguntou um de seus colegas, enquanto Zau reparava na enorme enchente de clientes aí presentes. – Estamos aqui empatados. Precisamos de mais dinheiro nos caixas. Vai rápido. Vai!
Zau dirigiu-se rapidamente ao seu território. As pessoas continuavam a olhar para o seu saco. Em poucos segundos, desapareceu do campo de visão de todos numa das portas. Enquanto andava em direcção ao enorme amontoado de notas – a porta! A porta foi fechada. Adelina a fechara. Os dois estavam enclausurados no mesmo sítio. Dividiam o mesmo oxigénio, o mesmo espaço. Zau sentiu-se intimidado. – O que estás a fazer? – perguntou ele ao tentar esconder a sua aflição. – Estou aqui para ser tua – disse ela ao aproximar-se com sedução. – Adelina, pára! – imperou com agressividade, antes que ela pudesse dar mais um passo. Ele sabia que o som não podia ser ouvido do lado de fora. – Pára! Fica onde estás! Para o teu próprio bem. A mulher sentiu medo parcial por causa da forma feroz como ele olhava para ela. Conteve-se. – Porquê? Não me desejas? – perguntou ela. – É este o problema. Desejo-te... Desejo-te muito. Mas é a parte carnal. – Como assim? – Eu desejo os teus glúteos, o teu perfume, a tua pele... Tu desejas os meus bíceps, tríceps e peitorais... mas nada. Como os animais em fase de cio. É apenas da carne que estamos à procura. Não há nada de espiritual. – Isto é natural. És homem... sou mulher.
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– Tocaste em outro problema. «É natural.» Desejo-te, assim como desejo outras com o corpo como o teu... Também desejas outros assim como eu. Fermonas... sei lá! Testosterona e projesterona. Acasalamento... é esse o objectivo. O que acontece depois? Nada! Nada de inteligente, nada de construtivo, nada maduro, nada... nada espiritual. Só quero saber da maciez de tua pele; o teu espírito, as tuas ideias... os teus ideais, nada... nada me interessa. O mesmo se dá contigo. Não quero estar com alguém por causa dos meus hormónios ou porque é natural. Quero algo especial. Algo que me faz pensar que, mesmo que não houver contacto íntimo, continuarei a amá-la incondicionalmente. E não é isso que despertas em mim... e não é o mesmo que desperto em ti. – Casa-se por essas razões e por outras. E se também há a diversão prazerosa do coito, qual é o problema? – Tem de ser com a pessoa certa, não com alguém que olho na rua e me sinto excitado... Não é amor. É carne... carnalidade. – Então não gostas das minhas carnes? – perguntou com sedução. – Eu já fui um louco no passado. Já estive com miúdas maiores ou do mesmo tamanho... Sabes aquela sensação de estares a comer algo com muito tempero? A sensação pode ser boa, mas te fartas rapidamente. É esta a desvantagem de se ter um corpo como o nosso... ao menos para mim. É bom à primeira vez, mas depois sentes que devia ter um pouco menos daquilo... e daquilo. Não é que eu não goste de mulheres assim, só digo que não vou pelo lado do tamanho do pedaço. O espírito é mais importante. E isto, tu não tens. Num acto impulsivo, Adelina aproximou-se dele e atacou-lhe a face com as unhas compridas. As unhas arrancaram alguns pelos da sobrancelha e um pouco da epiderme. Ele rangeu os dentes. Depois sorriu para ela. – Não és homem para mim – disse furiosa ao dirigir-se para a saída. – Ainda bem – assentiu, antes que ela pudesse desaparecer de seu campo de visão. – Deixas a minha consciência mais tranquila. Porquê? «Jeová sabe ... reservar os injustos para o dia do julgamento, para serem decepados, ... especialmente os que vão atrás da carne com o desejo de aviltá-la.» – 2 Pedro 2:9,10.
* Noite de quarta-feira. Ivone Lando Tchivela conversava com Constantino Canzar num restaurante distante da cidade. – As chaves que te dei serviram de alguma coisa? – perguntou Constantino ao dar um gole da bebida vermelha no copo em sua mão. – Sim – respondeu ela ao fazer o mesmo. – Só que quase fui comida por um monstro. – O bom é que estás bem... E o bebé? – Também. Ouve essa: O Ndombaxi está livre! Consegui finalmente que ele saísse daquela prisão estúpida. Não da forma que eu pensava, mas consegui... – Bom... muito bom. Agora eles vão poder lutar melhor contra a família Cuchi e... a Tchivela. – Porque com a minha família?
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– Não sei... Talvez o teu pai esteja por trás disso tudo. Acho que foi ele quem deu ao Fernando a ideia de matar a minha esposa e os meus filhos... ou apenas a Daniela. – Eu também já pensei nisso... Mas, porque não podes ser tu por trás disso? Ou a Dona Anita? – Não sei... Tens de esperar e ver. Mas eles são a minha família... e também podem vir a ser a tua. Sabes que estou a pensar em voltar para a Nazaré? – Bom... muito bom. Assim morrem todos! Muito inteligente – elogiou ela com sarcasmo explícito. – Não acredito que este plano do Fernando dê certo. E se der, eu mesmo acabo com ele – disse ele ao voltar a dar um gole. – Não sei em quem confiar. Sabes que eles estão a pensar em mudar de casa? E acho que em outra província. – Interessante... – Chato e estúpido! Isso sim. Tenho de ficar com o Ndombaxi, não longe do Ndombaxi. Eu falo com o Fernando e o convenço a desistir dessa ideia estúpida. – Sabes que isso não é possível. Há muito mais envolvido. A família dos homens que o Ndombaxi matou... muita coisa. – Sou inteligente... Aprendi a manipular as pessoas muito cedo. – Tens a quem sair: o teu pai – disse ao saber que ela não perceberia que ele não se referia a Inácio Tchivela mas a si mesmo. – Sou boa. Agora que o Ndombaxi está livre, não posso arriscar perdê-lo. – Rapariga, quer queiras quer não aquela família terá de mudar de casa – disse ele ao levar a conversa a um tom conclusivo. – Então terei de me transformar numa outra pessoa. Convencê-los que sou uma boa menina. Porquê? «Se for conveniente que eu também vá, eles farão a viagem comigo.» – 1 Coríntios 16:4.
* Proximidades da madrugada de sexta-feira – fim da noite de quinta-feira. Kalu dirigia-se para o apartamento de Ivone, despreparado para as informações que lhe chegariam aos ouvidos. Após ter subido algumas escadas, parou e bateu a porta. Inácio Tchivela abriu-lhe a porta. – Senhor Inácio – disse surpreso –, pensei que não estivesse em casa. A Ivone está? – Não, não está – respondeu com expressão alcoolizada. – Ela combinou comigo ontem para vermos algumas coisas... mas amanhã falarei com ela. – Ou podes esperar por ela aqui dentro – disse ao puxá-lo para dentro. – Podes te pôr à vontade. Kalu entrou. Ele sentia-se desconfortável. Ao andar, reparou que havia um homem na sala. Havia cinco grades de cerveja ao lado dele e duas garrafas do mesmo líquido abertas sobre a mesa. Kalu andou em direcção ao homem para cumprimentá-lo. Mas, a meio do caminho, reprimiu-se.
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Constantino Canzar – o homem era Constantino Canzar. Era estranho aquele homem estar aí. Todavia, Kalu lembrou-se que ambos – Constantino Canzar e Inácio Tchivela – eram amigos desde a infância e que viveram sempre como vizinhos, até ao dia em que Constantino se separara de Nazaré Canzar. – Rapaz – disse Constantino Canzar, com expressão parecida a de seu anfitrião. – Entra. Senta-te. Estou desde as vinte horas a conversar com pessoas pouco inteligentes. Vai uma birra? – Pode ser – respondeu o rapaz ao olhar para as grades e reparar que a maioria das garrafas estavam vazias. Sentou-se e retirou uma. – Este meu filho é muito inteligente, Inácio – disse Constantino, enquanto o anfitrião se sentava e pegava uma das garrafas sobre a mesa. – É, mas não o suficiente para fisgar a minha filha. – Ah! – sorriu o outro ao reparar que Kalu se preparava para dar um gole. – Nem sabes porque ele não fica com a tua filha! – Pai, o que estás a fazer? – perguntou Kalu. – Não precisas de falar destas coisas. – Porquê? Não temos segredos entre nós... Bem, este era o único que tínhamos. Inácio... a Ivone é minha filha. A atmosfera foi ocupada por enormes gargalhadas vindas da boca do anfitrião. – Não é brincadeira – disse Constantino. – Tu já não tens filha viva. A única que tinhas... o meu filho deu cabo. Lamento. Inácio continuou a rir, depois disse: – Tens de aprender a contar os meses, pá. Eu fiquei um mês inteiro... Era Junho, eu fiquei todo o mês de Junho com a Valéria em Massango e só em Julho é que voltámos para Cassinga. Eu sabia que ela por trás me traía... contigo. Quantos meses durou a gravidez dela? Nem sabes! A Ivone nasceu em Março. Se ela nascesse em Fevereiro, estaria morta porque nasceria com oito meses. Nove meses, homem! A gravidez foi de nove meses. Tu é que não tens filhas vivas. Todos os teus filhos são homens. É uma pena, não? Constantino ficou encolerizado. Levantou-se. Kalu fez o mesmo e tentou impedi-lo ao deduzir que seu intuito seria o de atacar o anfitrião. – Não acredito em nada do que dizes – disse Constantino ao tentar atingir o outro. Kalu agarrou-lhe a mão. – Deixa-o, rapaz – disse Inácio ao permanecer sentado exalando uma calma irritante. – Ele não vai fazer nada. É fraco demais para tomar uma atitude tão máscula. Ele é que sabe o que fará com o que acabou de ouvir agora – disse ao reparar que Constantino se dirigia para a saída. – A verdade é que conta. Não me interessa o que ele pensa. Porquê? «Se alguém é ignorante, ele continua ignorante.» - 1 Coríntios 14:38.
* Noite de sábado. Daniela conversava com Ndombaxi. Estavam dentro do local cercado pelas grades metálicas. – Papá, quem é a minha mãe? – Como é que posso saber Daniela? Nós te apanhámos no lixo. Não havia nada escrito... – E essa foto? – perguntou ela ao mostrar-lhe um papel.
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– Essa... Essa é a Natércia, a filha do senhor Inácio. – O que tiveste com ela? – Estávamos apaixonados... Depois tudo acabou. – Porquê? Porque a mataste? – Sim... – Porque fizeste isso? Não sabias que ela é a minha mãe?! – O quê?! De onde tiraste esta ideia? – Tu vais entender... Ela estava grávida, não? O que aconteceu com o filho dela? – Ela disse que o abortou... – Tiveste provas? – Não... – Mesmo assim a mataste, porque és uma marioneta da raiva? Será que descobriste que ela te traía? – Em parte... Não foi esse o motivo. Eu nem sequer toquei no homem que namorava com ela quando a encontrei com aqueles outros... – Que outros? – Os homens que fizeram o aborto. Eles esconderam-se com ela no mesmo sítio. Foi como matar cinco coelhos com uma só pancada – disse ao apertar as mãos com fúria. – E não viste nenhum bebé aí? – Não. Nenhum... – Mentira! Tu me viste... Eu era o bebé. Depois fingiste tudo para que as pessoas pensassem que fui apanhada no lixo e que não tinha nem pai nem mãe. És um monstro! Mereces a morte assim como fizeste à minha mãe. Odeio-te, seu... Ndombaxi levantou a mão e quase atingiu a face da menina com ferocidade. Daniela ficou assustada. Seus olhos marejaram. Ela começou a correr em direcção a saída. Ndombaxi foi atrás dela, mas, segundos depois, voltou com seu pedido de perdão. Porquê? «Foi rejeitado … não encontrou um modo de mudar o que havia feito, embora procurasse fazer isso até mesmo com lágrimas.» – Hebreus 12:17.
* Enquanto Ndombaxi lamentava a agressiva posição que tomara a alguns instantes, Daniela preparava-se para abrir o portão e alcançar a rua. Ela saiu disparada. Chorava – dava para ouvir alguns soluços. Parecia que corria em direcção ao prédio onde vivia uma de suas amigas. Por alguns instantes, Ivone parou-a e conversou com ela. Parecia que falavam alguma coisa sobre Ivone ir vê-la à escola num dos dias da semana seguinte. Era estranho, mas Daniela concordou com a ideia, talvez para se ver livre da outra, depois voltou a correr. Enquanto passava perto de alguns carros estacionados – uma mão! – uma mão saída de um dos autos agarrou-a pela boca e puxou-a para dentro do veículo. Os transeuntes não se aperceberam do sucedido. Mas havia um que olhava fixamente para o auto enquanto este entrava em movimento. Ele estava posicionado à frente de uma oficina. Tchivela e Filha Company – eram essas as palavras que estavam escritas no parcialmente estragado placar por cima do homem. Dentro do auto, Daniela estava encapuçada – não via nada. Apenas ouvia uma estranha voz que lhe dizia coisas sobre as quais desejava ter conhecimento há muito
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tempo. Seu nome – a pessoa conhecia o nome de Daniela. Sabia tudo sobre ela e sua família. Era como se tivesse passado a estudar a adolescente Canzar desde que viera ao mundo há treze anos. Quem seria? E porque a raptava? O medo demonstrado pela pressão arterial de Daniela era gigantesco, mas a curiosidade em tomar conhecimento sobre tudo aquilo que ela lhe contava era hiperbolicamente maior. – Talvez as pessoas com quem vives nunca te contaram o crime que o teu pai cometeu – dizia a voz que parecia ser de uma mulher. – Vou contar-ta – avisou ao acariciar-lhe os cabelos com a mão trémula, contudo sua voz era a personificação sonora da segurança. – Queres ouvir? – perguntou, mesmo sabendo que a outra estava impossibilitada de falar por causa do pano que lhe amarraram sobre a boca por cima do capuz. – Muito bem… Havia uma mulher que estava grávida do teu pai, mas a mesma mulher tinha medo dele. Para cortar o único laço que ainda os unia ela decidiu contarlhe que matara a criança. No mesmo dia, ela fugiu… foi para um esconderijo distante daí, onde ela ficou com o homem que ela realmente amava por alguns meses. Mas o teu pai era inteligente demais para ser enganado por tanto tempo. Ele conseguiu descobrir o doutor e os enfermeiros que fizeram o falso aborto. Com medo de serem assassinados por ele, os estúpidos foram esconder-se onde a mulher estava. Ele seguiu-os com discrição. No esconderijo, os homens contaram tudo à mulher. Ela tomou providências. A seu pedido, o homem que a amava saiu com um bebé pelas traseiras no colo. Parece que o teu pai não viu isso. No mesmo instante, ele entrou. Ele espancou os quatro homens de forma animal, sangrenta. O doutor e os enfermeiros… ele espancou os quatro até perderem os sentidos, ou morrerem – contava a voz ao deduzir que Daniela pensava que a levavam para longe, mas na verdade davam apenas voltas ao quarteirão em velocidade reduzida. – Depois foi a vez da mulher que levara uma bofetada e caíra desmaiada. Ele acordou-a e espancou-a, até ela ficar no mesmo estado que o dos homens. Durante alguns minutos, ele ficou a reparar a casa e viu algumas das fotografias em que a mulher estava com o homem que ela amava. Depois de algum tempo, ele saiu e foi até à rua. Após algum tempo, voltou com um bidão de gasolina. Separou o corpo da mulher do dos homens e colocou o combustível por cima deles. O homem que ela amava apareceu e tentou atacá-lo. O teu pai agarrou-o. Olhou para ele e sorriu com desdém enquanto o amarrava. Depois ateou fogo ao corpo dos homens e saiu. Linda história, não? – perguntou com sarcasmo, enquanto alguém desamarrava as mãos da menina. – Deixa-me contar-te o final: E viveram felizes para sempre. Bem, agora que já te contei a história de boa noite, está na hora de dormires. No mesmo instante, alguém agarrou-a e pô-la fora do auto. Antes de Daniela, desamarrar o tecido que lhe tapava a boca, retirar o capuz que lhe encobria o rosto e ter visto apenas um auto negro a desaparecer em meio a fumo miúdo, o homem que os observara anteriormente entrou para o auto negro pela porta de frente. A mulher que falara com Daniela estava no banco de trás e havia um vidro negro que dividia as duas partes – sim, o homem não conseguia vê-la, mas conversavam. – Se tivesses um recado para ela dar o pai dela – dizia o homem com certa alegria –, qual seria? – Daniela, diz-lhe que nós, os fracos, os mortos que ele fez somos agora mais fortes do que ele. Ele não pode pôr fim a nenhum dos Tchivela. Porquê? «Somos perseguidos, mas não ficamos cambaleando; somos derrubados, mas não destruídos.» – 2 Coríntios 4:9.
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* A algumas centenas de quilómetros do bairro em que os Canzar, os Tchivela e os Cuchi viviam, Ambrósio Roque Canzar lia em seu computador a mais recente letra que Ndombaxi lhe havia entregado com o fim de musicá-la. Provavelmente ele havia escrito aquilo por causa do que se passara entre ele e Ivone há alguns dias. Ou talvez fosse uma forma de evocar tudo o que havia vivido com Natércia Tchivela. A letra era a seguinte: Bruto Irene: Não serás banido nem terás um castigo Por fazer chover de meus olhos rios de tristeza Preza estou na teia do amor Mas bruto és tu Ambrósio: Protesto! Irene: Teu carinho não nego Mas podias ser um pouco mais meigo comigo Moço, por favor, entenda, Eu te quero ao meu lado Só que Bruto és tu Oh, miúdo! Tens de tentar me tratar Como rapariga e não como um rapaz Estás sempre zangado e mal-humorado Tens de aprender a me ver Como amiga e não como teu capataz Achas que perdes algo se fores sensível? Não, não, moço Ser mais carinhoso não é impossível Pois eu penso que… Ambrósio: Desculpa-me, agora preciso que faças silêncio Oiça, eu tenho dificuldades Em demonstrar o que sinto por alguém Quando o meu coração sabe bem Que o assunto é sério Olha eu… Irene: Desculpa interromper-te Ambrósio: Está bem Irene: Eu só quero compreender o que queres dizer Com «assunto sério» Podes revelar ou é mistério? 119
Ambrósio: Ah! Estás a ser chata agora! Nem me deixas terminar de falar Acabou a conversa, vou-me embora Irene: Bruto és tu Oh, miúdo! Tens de tentar me tratar Como rapariga e não como um rapaz Estás sempre zangado e mal-humorado Tens de aprender a me ver Como amiga e não como teu capataz Bruto és tu… Bruto és tu… Bruto és tu… Ambrósio: Esqueça o que te disse Mais uma vez: perdão Por favor Entendo agora que meu jeito selvagem só te causa dor Mas só sou assim porque não sei lidar com o amor Irene: Queres dizer que me amas? Ambrósio: Sim, miúda E o que é que farás? Irene: Ensinar-te-ei a ser mais meigo comigo Ambrósio: Será isso possível, princesa? Talvez corras perigo Irene: Sei que vai ser E o primeiro passo será eu deixar de dizer Bruto és tu Oh, miúdo! Tens de tentar me tratar Como rapariga e não como um rapaz Estás sempre zangado e mal-humorado Tens de aprender a me ver Como amiga e não como teu capataz Após ter terminado de ler, Ambrósio dirigiu-se para uma das salas do local, onde teve uma discussão acalorada com seu superior. – Porque é que nos queres deixar? – perguntou o superior sentado atrás de sua secretária. – Porque agora? A operação está quase a terminar. É por causa dessa tua igreja, não é? Deus também tem um exército! Não vês a falta de lógica em não quereres mais pegar numa arma? E se todos ficassem como tu? Se todos decidissem sair daqui? Como é que ficava o mundo? Quem controlaria os marginais?
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– Isto nunca vai acontecer… pelo menos por enquanto… haverá sempre pessoas para manter a ordem nas ruas. E se deixar de existir polícia e exército é porque já não há meliantes a fomentarem o caos e a desordem… Este será um bom dia. – O teu próprio Deus nos colocou aqui. A tua Bíblia diz isso. Lê e vê! – Ele permite isso, como já disse, para existir ordem. Mas se todos os humanos fossem pacíficos, não haveria necessidade de pegarmos em armas e acabarmos a vida de outras pessoas. Se a política fosse mais limpa… Sei que o senhor não consegue dormir bem todas as noites em que pensa nas pessoas que já matou. Se sente peso de consciência, acha que isso é bom? – Mas saber que os matei para proteger o meu país me tira esse peso. Eu acabei com a vida de um gajo para que ele não violentasse a minha filha ou assaltasse a minha mulher. Não são essas razões suficientes para matar alguém? – Se no fundo a sua consciência diz isso, não posso fazer nada. A Bíblia diz que não devemos matar. Não somos os dadores da vida. Se ele diz para não fazer alguma coisa, por mais difícil ou impossível que pareça, devemos obedecê-lo. Só o criador de uma coisa tem o direito de estabelecer regras de uso sobre a mesma. – Mas o povo dele no passado, os israelitas, matava. E matavam muito! – Se o criador da coisa permite que se faça algo com a mesma que ele disse para não fazer, só ele sabe a razão. Pensemos, alguém criou a faca para cortar alimentos, e é um crime punido por lei usá-la de qualquer outra forma… e o senhor faz isso por algum tempo. Ele é seu pai, e também conhece muito bem os corpos humano e animal. É um género de médico… estuda anatomia. Mas um dia, ao andarem pela selva aparece um leão. Vocês correm e o seu pai consegue subir para um lugar seguro. O senhor, o filho, cai. O leão aproxima-se cada vez mais. A única coisa que o senhor tem à mão é aquela faca, e nunca a usou de outra forma. Que ideia teria o criador da faca, que também é seu pai, para que não fosses morto? Faca corta… leão sangra… quem sangra morre. «Use a faca meu filho! E espete-a no coração!» Para nos protegermos, há coisas aceitáveis… – Só concordas comigo desta forma. Para protegermos o nosso povo, a nossa família, é necessário pegarmos em armas. Desista dessa ideia, Ambrósio! Não vês que não tem lógica? – Sei que em alguma parte de seu pensamento o senhor me entende. Talvez eu não tenha os melhores argumentos para convencê-lo, mas a minha decisão já foi tomada. Eu vou sair daqui – disse ao levantar-se. – Não faças asneira rapaz. – Olha, alguém na minha família fez algo que a todos nós parecia impossível. Eu adiei isso por muito tempo. Agora tenho realmente coragem de abandonar isso tudo – disse ao fazer uma continência. Antes de sair, disse de forma amigável: Tenha uma boa noite, senhor. E comece já a pensar em tomar a mesma decisão que tomei. Porquê? «Todos os que tomarem a espada perecerão pela espada.» – Mateus 26:52.
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CAPÍTULO XIII Passaram-se seis dias. Era sexta-feira. Daniela estava prestes a terminar uma prova. Para além dela, duas pessoas estavam na sala: sua colega e seu professor. Minutos depois, antes de sair, a colega levantou-se e entregou uma folha ao professor. Apressadamente, Daniela levantou-se e fez o mesmo. Ao alcançar o corredor, notou que a escola estava deserta. Nem a colega que acabara de sair estava aí. A menina sentiu-se amedrontada. O professor apareceu repentinamente por trás dela. Ele fazia insinuações. A menina começou a correr, mas ele alcançou-a e começou a tocá-la de forma imprópria. Uma pancada na cabeça – o professor sentiu uma forte pancada na cabeça e caiu a gemer. Ainda no chão, ele conseguiu ver quem acabava de atacá-lo. Era – uma jovem, era – Ivone Tchivela. Ela aparecera para conversar com a menina e acabou por salvá-la de um estupro. As duas começaram a correr em direcção à saída. Quando alcançaram a rua, não tomaram o caminho para as suas casa. Seguindo as orientações de Ivone, ambas tentaram desviar-se do homem por meio de atalhos. Minutos depois, chegaram à uma casa. Ivone conhecia as pessoas daí. Ficaram no local até ao anoitecer. Antes de saírem, Daniela retirou o telemóvel de seu bolso e premiu por algum tempo uma tecla. Parecia que pedia ajuda. O lugar tinha pouca presença humana. A existência da luz era pobre. Mas a alguns metros – a alguns metros havia uma grande claridade. Era para aí que ambas se dirigiam com o fim de entrar em um carro e voltar para a casa. No meio da luz – oh! não! – um vulto apareceu no meio da luz. Era um homem. As duas reconheceram-no – o professor. – Estavam a pensar em fugir? – perguntou o homem com o rosto totalmente transformado enquanto andava na direcção delas com um pedaço de madeira em sua mão. – Socorro! Alguém nos ajude! – gritaram as duas, sem se aperceber que aquilo chamara a atenção de um rapaz que ali passara. O rapaz entrou em movimento célere. Parecia que iria buscar ajuda. – Eu quero apenas brincar um pouco – dizia o professor com sedução mesquinha. – Vá lá. As pessoas gostam de se divertir, não? São tímidas? Eu posso brincar com timidez… Não! Não! Não pensem em correr para ali. É um beco sem saída… Gostei da pancada que me deste. Devíamos repeti-la. Só que dessa vez serias tu a apanhar. Deixem que eu encoste… Só um pouquinho… Enquanto o homem falava – um roncar! O som do roncar do motor de uma motorizada se aproximava. Ele provavelmente pensou que fosse apenas alguém que passava pela estrada, mas Daniela e Ivone – Daniela e Ivone sabiam de quem se tratava. Elas reconheceram aquele som. Pudera! Desde a sua infância que o ouviam. – Olha… Quando vocês duas acordarem amanhã, não, antes disso, os vossos sonhos serão com anjos. A brincadeira que faremos aqui – oh! que brincadeira! – será memorável – dizia o professor ao notar que o roncar do motor da motorizada parara. – E vamos poder repeti-la quantas vezes vocês quiserem… ou eu quiser… Venham! – ordenou com fúria. Não desobedeçam a um mais velho. É feio. Não vos ensinaram isso? Ele interrompeu-se. Reparou que a expressão de Daniela passara de total pavor a alegria redentora. Porque seu olhar brilhava agora? Porque sorrira efemeramente e depois tentara disfarçar? Seria possível que alguém…? – Largue esse pau e saia daqui – ordenou calmamente alguém atrás do professor. O homem virou-se para ver o intrometido. Um gigante – o intrometido era um gigante. Embora aparecesse apenas a silhueta dele, o professor reconhecia aquele corpo. 122
Parecia-se muito ao de um dos homens que levava Daniela à escola. Qual era seu nome? Antero? Adriano? Ambrósio – Ambrósio era o nome. Mas ele parecia maior. Seria o mesmo? Se fosse Ambrósio, ele – o professor – estaria encurralado, pois, sempre que o via na escola, ele estava fardado. Provavelmente estava com uma arma naquele momento. Por isso, para não arriscar ser trespassado por um projéctil incandescido, decidiu sacar da arma em seu casaco. – Não te aproximes! – imperou o professor ao apontar o cano do revólver para uma das mais irascíveis criaturas da humanidade. – Não! Espere… Podes aproximar-te – disse ao fazer o outro entrar em movimento na sua direcção. O professor andou até Daniela e colocou-lhe o cano do revólver no pescoço. – Vai aí – disse ele para o gigante. Ele obedeceu e aproximou-se de Ivone. – Agora dispa-a e lança as roupas para aqui. Rápido! Dispa-a! Dispa-a, ou acabo com a vida dessa miúda! Enquanto o gigante cumpria com a ordem do professor, as roupas de Daniela também eram retiradas. – Muito bem – disse o professor, após as duas estarem com pequenas peças de roupa em seu corpo. – Agora és tu. Vamos! Dispa-te e lança as roupas para aqui! Não temos a noite toda. Preciso cortar as unhas e lavar os meus pares de meias para amanhã. Vamos! Apressa-te, elefante! O professor não sabia o quão feroz e sádico podia ser aquele gigante. Não tinha a mínima noção de com quem lidava. Aquele homem – aquele homem era uma fera indomável, uma fera capaz de deixar morrer qualquer pessoa apenas para se vingar da pessoa que o irritava. Aquele homem – aquele gigante podia cortar imediatamente qualquer ligação fraternal que tivesse com a refém nas mãos do raptor e atacá-lo sem piedade. Aquela fera não tinha medo de nada. Não tinha compaixão. Não tinha fraquezas. Era insensível. O professor estava prestes a sofrer, e talvez pela última vez em sua vida. – 0K. Agora que já estão todos como quero – dizia o professor enquanto apanhava a roupa dos três –, vou-me embora. Tenham uma boa noite. O homem andava de costas voltadas para a saída para que pudesse ver as três pessoas para que estas não o surpreendessem. Segundos depois, desapareceu. O gigante começou a correr em sua direcção. – Não, papá! Não vá! Antes que o gigante obedecesse espontaneamente à ordem da menina, uma turba fê-lo parar. Eram homens exaltados e tinham estruturas metálicas em sua mãos. – Ei! – chamou um deles. – O que é que estás a fazer com as miúdas? Estás com muita fome não é? João e António, tragam as duas moças. – Não – disse Daniela. – Ele é o meu pai. Ele não está a querer fazer nada connosco. – Teu pai! Pior ainda! Um papoite que quer jantar a própria filha… A surra de hoje será boa… Bem gostosa. Detesto pessoas que violam pessoas. Enquanto cinco homens tiravam Daniela e Ivone daí, o gigante assistia a tudo calado. Não se movia. – Bem, agora as miúdas já não estão aqui, papoite violador… eh! eh! Hoje é surra! Mas… acho que elas vão gostar de ver-te a levar umas boas pancadas. Vem aqui. Vamos! Vem! O gigante deu passos na direcção deles. Saíram do beco. A luz emanada pelos caandeeiros compridos era intensa. Mas a rua continuava deserta. Alguns carros andavam sobre a estrada. Poucas pessoas passavam por ali a pé. E estas mesmas apressavam os passos ao ver aquela cena. Não queriam que algo as atingisse. O problema não era delas.
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Os homens fizeram com que o gigante ficasse encostado a uma das paredes. Ficaram à frente dele, cada um com algo metálico na mão. As duas raparigas estavam distanciadas a alguns metros, sendo controladas por dois dos homens que pensavam estar a fazer uma boa acção. O gigante não temia. Parecia que gostava daquilo. Finalmente alguém decidira enfrentá-lo. Finalmente sentiria a mesma dor que as pessoas que ele atacara no passado. O momento era sublime. O chefe do grupo deu a ordem de ataque. Todavia, enquanto se aproximavam, um carro, um homem e uma arma – um carro, um homem e uma arma pararam atrás deles. Para que fosse notado, o homem dentro do auto ligou a sirene. Os prováveis atacantes do gigante assustaram-se. Alguns fugiram em dispersão. O líder e mais alguns ficaram. – O que vocês estão a fazer – perguntou o homem fardado ao descer do carro. O homem – o homem fardado parecia-se muito ao gigante. – Esse gajo aqui queria violar aquelas duas miúdas. Estávamos só a tentar coçálo um pouco. – Ele é o pai daquela menina – disse o homem fardado. – Nunca faria isso. – Não é o que nós vimos, mô papoite. Ele estava… – Não fales mais! – ordenou o homem fardado. – Ele é meu irmão. Foi ele que ligou para mim para que eu viesse até aqui – disse notando que mais carros se aproximavam. – Ligou para mim e para esses senhores que estão a chegar. Segundos depois, Lourenço, Zau e Kalu desciam de seus carros. Lourenço correu até Daniela e abraçou-a. – O que é que aconteceu, filha? – perguntou ele. – O meu professor… o meu professor tentou… aquilo. – E a Ivone? – perguntou Zau. – O que é que ela faz aqui? – Ela estava a ajudar-me. Ela foi até à escola falar comigo… – Chega… Chega… – disse Lourenço, ao tapar-lhe a boca com o dedo. – Vamos embora. Isso não é lugar para estarmos. – Desculpa, papoite – disse o líder, ao apertar a mão do gigante, após tudo estar esclarecido. – Entendemos mal. O papoite também não disse nada… – Acredita – disse Ambrósio apertando a mão de outro. – Se ele dissesse, talvez o teu pescoço já não estaria nesta posição. – Eh! – exclamou o líder – Essa hora íamos só nos lavar à toa! O papoite deve ser bem mau, né? É melhor não perguntar mais nada – disse notando o silêncio ininterrupto do outro. – Nós só queríamos proteger aquelas miúdas. Se tivéssemos chegado antes, veríamos aquele mulongexi tarado e iríamos lhe partir no meio. A família Canzar sorriu por ele ter usado o termo mulongexi que é professor em kimbundu. – Fomos burros! – continuou o líder. – Mas esse mulongexi não vai longe. Vamos lhe apanhar. Desculpa lá, papoite. Da próxima vez vamos ser mais vijus. Quase te batemos só por causa da tua própria filha que vieste salvar. Podes até nos chamar de idiotas de quiseres – disse entre sorrisos. Antes de toda a família Canzar entrar em seus automóveis na companhia de uma dos Tchivela e desaparecer do campo de visão daquela turba, o gigante tornou-se audível. – Não. Tu fizeste bem. E agradeço-te por isso. Não te posso chamar de idiota. Porquê?
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«Qualquer um que ficar com raiva de seu irmão será julgado. Quem disser ao seu irmão: “Você não vale nada” será julgado pelo tribunal. E quem chamar o seu irmão de idiota estará em perigo de ir para o fogo.» – Mateus 5:22.
* Vinte e uma doze. Enquanto Daniela, Ivone e os irmãos Canzar voltavam para o bairro onde viviam, a mãe dos últimos sofria vexames às mãos de dois meliantes. – Você continua de boca calada, ouviu? – imperou um dos homens encapuçados enquanto colocava o cano do revólver na boca dela. Nazaré Canzar conseguia ouvir os passos do outro na sala a retirar coisas e levá-las até à rua. – Tu podes calar-me agora. Mas as dores que vais sentir durarão mais do que isso – disse, com voz quase imperceptível. – Cala a boca! Já disse! – exclamou com ferocidade empurrando-a com violência. A mulher moveu-se apenas alguns milímetros; era possante demais para ser desequilibrada por aquele empurrão. Nazaré Canzar decidiu parar de falar. O ladrão encapuçado deu alguns passos para trás. Enquanto mantinha o cano apontado para a dona da casa, abriu discretamente a cortina e olhou da janela do quarto o seu comparsa que voltava para pilhar o que sobrara. Depois voltou a fechar as cortinas. No mesmo instante, alguém derrubou mui silenciosamente o homem lá fora. Era Constantino Canzar. O homem nem conseguira ver o que acontecera ou o que o atacara. Sentira apenas que seus sentidos foram cortados de forma brusca. Ele caiu desmaiado… talvez morto. No quarto, enquanto o Canzar materno pensava numa forma de neutralizar o homem mascarado que lhe apontava uma arma em sua própria casa, no quintal, o Canzar paterno arrastava alguém para a parte mais escura do local. Passados alguns minutos, após ter amarrado o ladrão, com subtileza animal, Constantino andou até à porta da frente e tentou abri-la. Todavia, a porta foi trancada violentamente. Ele continuou do lado de fora. Assustador – ouvia gritos. Alguém estava a ser espancado. Aterrador – a porta, a porta foi arrombada do lado de dentro. Duas pessoas caíram por cima dela – uma mulher gigantesca e um homem mascarado. A mulher estava por cima e atacava o homem com golpes pesados. Ela parecia-se muito à uma fúria naquele momento – seus cabelos moviam-se como asas de águia, seus dedos, não, não eram dedos, eram garras. Constantino aproximou-se deles rapidamente e puxou a mulher para si. – Pára, Nazaré! Pára! Ele não se mexe. Não vês? Deve ter desmaiado com o embate contra a porta ou do teu corpo quando lhe caíste em cima. Pára! A mulher acalmou-se. Respirava fundo. Ele também. Apenas os ladrões não faziam o mesmo. – O que fazes aqui? – perguntou, ao sentar-se sobre o chão. – Vim falar contigo. – A Contigo vive aqui? Deves ter-te enganado na morada… – Não – respondeu enquanto se sentava como ela. – Não me enganei. Ela vive aqui. E está a falar comigo. – Comigo é o pai dela ou a irmã gémea? Conheço alguém assim na zona… – Comigo é o marido dela. O marido que está a fazer esforços para mudar e voltar para ela. – É uma família grande…
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– Não tens medo que ele acorde e nos ataque? – perguntou, ao notar que ela não queria falar sobre o assunto. – Não te preocupes. O pontapé que ele levou fez a arma cair no quarto. Além disso, não acho que seja possível ele acordar. – Talvez… Não queres ver se ele… morreu? – Talvez mais tarde… – 0K. Vou continuar com o assunto que me trouxe aqui. O meu carro está aí fora. Todas as minhas coisas estão nele. Aluguei um quarto aqui perto. Desliguei-me definitivamente de todas aquelas mulheres. – Muito bem. Agora volta para uma delas e diz que serás apenas dela… Ela vai gostar… – É o que estou a fazer… – …ou então dizes a Nazaré que queres voltar para ela mesmo sabendo que ela nem se quer te irá ouvir. – Porquê? Porque não queres voltar? Por favor – pediu agarrando-a com firmeza e fazer com que o olhar de ambos se fixassem –, diz-me. Diz-me e vou-me embora. – Porque não tens escrúpulos. Dizes que vais melhorar, mas passam-se alguns meses e voltas à carga. – Tu fazias as mesmas coisas, e paraste. Eu também posso parar. – Já te disse a razão. Agora podes ir embora. – Eu aguentei tudo o que fizeste. Nunca foste uma santa. Eras sensual, não, sexual dos pés à cabeça. Homens e mais homens. Até crianças! Também fui jovem. Como é que lidaria com o comportamento da minha mulher? A bebida era companheira. Tu não respeitavas os teu votos. Porque tinha eu de os respeitar? Tu ouvias as conversas que me chegavam aos ouvidos na rua? Nem é de interesse repetir os termos que usavam quando falavam de ti. Os meus próprios amigos, os meus familiares. Foi estúpida a minha forma de lidar com aquilo. Mas foi a forma que usei. Pronto! Está feito. É passado. Agora estou decidido a mudar… por ti. Apenas por ti. Ensinaste-me, sabendo ou não, que as piores pessoas também podem mudar. Agora és uma boa pessoa. – Não tenhas tanta certeza disso. Acabaste de ver o que fiz a esse homem… – Sim… Mas foi para te protegeres. Até a mais dócil das rosas tem espinhos para isso! Mas… os homens que entravam e saíam, as coisas que fazias. Tudo isso já não vejo… Mudaste. Nazaré… Nazarena, mudaste. – Tens estado a vigiar-me? – Talvez. Quero voltar a estar contigo. Tenho de saber também se o teu comportamento permanece ou não… – Devia atacar-te agora mesmo… Mas vou poupar-te. Obrigado por notares essas coisas. Estou a pensar em ser baptizada o mês que vem. Se tu, um pervertido invicto, consegues ver mudanças em mim, então estou a ir bem. Deus também deve estar a ver a mesma coisa. Agora tens de ir embora – disse, ao levantar-se. – Os meus homens devem estar aí a chegar. Não quero ouvir mais uma discussão entre pai e filhos. – Porque não falas sobre voltarmos? – Porque não é possível. – Porque não me perdoas? Nós continuamos casados… Uma das provas que tens de dar a Deus que estás a tornar-te numa de suas servas é essa: fazer algo que não queres, e algo difícil, muito difícil. É só o que te peço. Sei que não errarei de novo. Nazaré, estou a implorar. Tu conheces-me. Não sou destas coisas. Se o faço, é porque é importante demais para mim. Nem das outras vezes que nos separamos fiz isso. Por favor. – Não podemos ter tudo. Estamos bem como estamos.
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Constantino levantou-se. A sua expressão era séria, mas seu olhar, melancólico. – Tens razão – disse, ao começar a andar, após ter ouvido o barulho dos carros e da motorizada de seus filhos a se aproximar. – É assim que as coisas são. Cuidado, um dos ladrões está amarrado aí atrás. Fica bem. Começo a pensar que sou realmente a pior pessoa deste mundo. Talvez eu nunca venha a mudar. E se mudar, o que fiz ficará marcado para sempre. É tão grave que, mesmo sem fazer nada, o kibuto de pecados é tão grande que conta como se eu ainda continuasse a cometê-los. Antes do Canzar paterno sair, entrar em seu carro e dirigir-se para o seu mais novo local de pousada, o Canzar materno colocou-lhe a mão sobre o ombro e bateu-lhe amigavelmente nas costas. – Tu pediste desculpas. Isso é um bom sinal. Prova que estás a mudar. Porquê? «Os tolos pecam e não se importam, mas os bons querem ser perdoados.» – Provérbios 14:9.
* Passou-se quase uma hora. Os ladrões já estavam entregues à Justiça. Por insistência de Lourenço e Kalu, Ivone entrou para vestir alguma coisa e acompanhou-os ao jantar. Mas a conversa não tinha o mesmo sabor agradável daquela refeição, e tendia a piorar: Três assuntos graves seriam revelados naquela mesa. – Aquele homem tentou fazer o quê? – perguntou Nazaré Canzar, ao colocar de lado a louça à frente de si. – Tentou violentar a mim… e a Ivone – respondeu Daniela com expressão de quem tenta evitar um escândalo. – E vocês estão assim… todos calmos? O assunto…? – Calma, mãe – aconselhou Zau que estava à sua direita sentado a quatro cadeiras depois dela. – Já tratamos de tudo… – Aquele estúpido já está na cadeia? – voltou a perguntar Nazaré Canzar. – Não… – Então ainda não trataram de tudo. Aquele homem precisa pagar por isso. Ou ainda vai andar atrás de outras alunas. Se é que ainda não o fez! – Já há agentes atrás dele – explicou Ambrósio. – Alguns foram procurá-lo onde ele vive… – E essa menina? O que é que ela fazia na escola da Daniela? – Falei com ela na semana passada – disse Ivone. – Queria falar com a Daniela… – Sobre o quê? – perguntou Ndombaxi. – Sobre tudo… sobre nada. Tenho o desejo de ser amiga dela… – Porquê? – inquiriu Nazaré Canzar. – Porque estás grávida do meu filho? Achas que assim já és da família e podes conquistar a todos? – Mãe – interrompeu Daniela –, foi ela a primeira a socorrer-me na escola. Se não fosse por ela, não sei onde estaria a essa hora. – Uma representação feminina de Cristo – depreciou a gigante, ao fitá-la com desdém –, e apenas por alguns instantes. – E quando ele vos encurralou naquele beco? – perguntou Ambrósio, apenas para apimentar mais a posição da Tchivela. – Que beco? – perguntou a gigante.
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– A Ivone continuou a defender-me – respondeu Daniela. – Talvez – disse a Tchivela. – Eu estava em choque… aquele beco, a escuridão, o teor sexual… fiquei paralisada. – Porquê? – perguntou Ambrósio com sarcasmo cruel. – Estavas a gostar? Excitava-te? – É um trauma – explicou Lourenço, ao examiná-la psicologicamente. – Ela estava a lembrar-se de algo, algo que aconteceu… talvez com ela ou com alguém que andava com ela. Um parente? Uma amiga? Alguém que conheces foi violentado? – Ela não é obrigada a falar sobre isso – interrompeu Kalu. – Porquê? – inquiriu a mãe. – Ela vai partir-se ao meio se falar? Ou lhe vai causar um aborto espontâneo? – Mãe, deixe-a em paz – continuou Kalu vendo que o olhar da Tchivela marejava. – Ela não precisa de falar nada aqui. A Ivone está aqui para comer, mais nada. – Porque a defendes? – perguntou Ambrósio. – Ela também sabe falar… – Mas não precisa… – Não – disse Ivone. – Não há problema, Kalu. Eu posso falar… Sim, Lourenço, eu fui viol… o local era muito parecido àquele… Stop. – Isso é recente? – perguntou Lourenço. – Já lá vão uns quatro meses… ou mais – confessou sem saber que se entregava. – E a pessoa que fez isso? – perguntou Zau, ao tentar sentir compaixão por ela. – Está na cadeia? – Não – respondeu, ao colocar um pedaço de carne na boca. – Está numa clínica. Agora só tem meio membro… Autodefesa… Consegui libertar-me tarde. – Muito comovente esta história – disse Ambrósio em tom sarcástico. – E estranha… até parece inventada. – Não. É verdade – assentiu Kalu. – Sabias disso… ou estás apenas a defendê-la? – perguntou Ndombaxi. – Eu sabia disso… Ela fala enquanto dorme – disse, ao olhar para ela. – Na noite que dormi na tua casa… parece que estavas a ter um pesadelo. Eu ouvi tudo. – Mais de quatro meses – divagou Nazaré Canzar. – Quer dizer... Talvez... Quem é o pai dessa criança, menina? Ivone engoliu em seco. O que fazer? Mentira? Verdade? Se ela queria mesmo causar uma boa impressão àquela família, aquele poderia ser o momento. – Eu já disse que sou eu, mãe – interrompeu Kalu. – Para quê ressuscitar esse assunto? – Porque não está morto. Quem é o pai, menina? Estamos todos aqui... Nunca disseste isso na minha cara. Pelo que viveste com a tua mãe – dizia Nazaré Canzar, ao pensar que assim poderia tirar a verdade de dentro dela –, diz-me, quem é o pai. – Mãe... – Pára, Kalu! – exclamou ela. – Porque me defendes? Mesmo depois de ter te feito tantas coisas más, ficas do meu lado? Não gosto de ti. Somos apenas amigos. Só isso é que podes esperar de mim: amizade. Pára de me defender. Posso falar de mim. Às vezes pareces pior que o meu pai... O filho é do homem que está amputado na clínica. Ele estuda... estudava onde estudo. – Porque disseste que era do Kalu? – perguntou Zau. – Ele é o único que teria coragem de assumir uma criança minha sem que eu lhe pedisse. Ele me protege demais. Até parece uma doença... Se o meu quisesse fazer algum barulho, o Kalu o assumiria sem sequer questionar – disse, ao ver que Daniela, que estava sentada ao seu lado, esfregava o olho com impaciência. E também quis provocar um pouco de ciúmes ao Ndombaxi...
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– És totalmente doente – depreciou Ambrósio. – Talvez devas ser internada... – Para isso teriam de fazer o mesmo a vocês. Também são doentes. São agressivos com as pessoas. Não conhecem um pingo de meiguice. Vocês machucam, fazem sangrar... Não conseguem relacionar-se com mulheres, têm medo delas. Fogem a carne... Ah! Não têm é coragem. Trancam-se em jaulas como animais... há uma pedófila resignada entre vocês... O hospício também vos espera. Vocês não são melhores do que eu, não são. Que me bata na cara o mais justo nesta sala. – Ai! Ai! – exclamou Daniela, ao esfregar cada vez mais o olho. – Encosta aqui – pediu Ivone. – Deixa que eu sopre – disse, ao tomar a referida acção em seguida. – Bonito... Tens a mesma mancha dentro da pálpebra inferior que eu... – Ai é? – perguntou Daniela, ao afastar-se e sentir que o cisco sairia de seu olho. – Tenho – respondeu ela, ao colocar o dedo debaixo de sua própria pálpebra. – Aqui mesmo. – Fixe... O pai também tem – disse, ao referir-se a Lourenço enquanto Kalu virava o rosto de ambas para si. Ele olhou para a mancha nas pálpebras das duas. Estavam no mesmo lugar. Era raro ter manchas daquele género naquele local. Os neurónios dele trabalharam rapidamente. Algo não estava bem. – O que foi, paizinho? Kalu levantou-se e foi até Lourenço. O irmão mostrou-lhe a mancha. Não podia ser! Teria si do enganado por Inácio e Constantino? – O que foi, filho? – Anda a conviver demais com a rapariga estranha – disse Ambrósio, ao reparar que o outro retirava um telemóvel do bolso de suas calças. – Ela lhe passou a doença. – Pai – disse Kalu, após a pessoa do outro lado ter atendido a chamada –, podes vir até aqui? É importante. – Estás a chamá-lo para quê? – perguntou Nazaré Canzar. – É um assunto sério, mãe – respondeu ele. – Muito esquisito… alguém tenta violar a Daniela, todos nós saímos de casa e alguém vem assaltá-la. É como se alguém soubesse de tudo. Como se tivesse planejado isso – disse para se desviar do real assunto em pauta. – Alguns dos vizinhos devem ter visto o ladrão a levar as coisas para a rua... – Sim, mas sabes que nos odeiam – disse Zau. – Eles não moveriam nenhum dedo pela nossa família. – Alguém anda a vigiar essa casa. Alguém conhece os nossos passos... – É bom que toques nesse assunto – disse Ambrósio, ao levantar-se. – Não é coincidência demais a Ivone ir à escola da Daniela no mesmo dia que ela quase foi violentada? Um professor que procura uma menina de treze anos e uma de dezoito com uma arma? Será que ele sabia que os pais de uma dela viriam em seu auxílio? Como é que ele sabia onde encontrá-las? Tens alguma coisa a dizer, Ivone? – Porque é que tudo cai para ela, Ambrósio? – perguntou Kalu com ar revolta. – Não vês? Esta tua pessoa grávida planejou tudo. Aquele professor só fazia insinuações e eram discretas... Não há nenhum outro relato que ele se tenha metido... fisicamente com nenhuma aluna. E agora que tenta se meter, a heroína aqui aparece? Muito conveniente! Porque não voltaram para a casa quando fugiram da escola? Quem deu a ideia de não voltarem para a casa? Aquele grupo que ia atacar o Ndombaxi porque colocava tanta conversa em vez de partir para o espancamento... Acabaste de dizer que gostas dele. Não querias que o magoassem, não é? – Tu não tens certeza de nada – advogou Kalu. – Ela planejou tudo. O rosto dela diz isso. Não vês? – Ela disse que teve um trauma. Não iria querer repetir a cena...
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– Ela pode estar farta de lidar com o medo de voltar a ser violada – comentou Lourenço. – Uma forma de superarmos um trauma é repetir a cena... Foi isso que aconteceu, não? Misturaste a tua vontade de ser aclamada por nós com o teu desejo de ultrapassar o teu trauma, tudo de uma só vez. É isso, não? – Parem de professar os intelectuais – disse Kalu. – Vocês não podem entender todas as pessoas. Nem tudo é decifrável... – Eles estão certos – disse Ivone. – Foi isso que aconteceu... Eu queria que vocês me acolhessem... fui estúpida, mas... As batidas na porta de frente interromperam-na. Kalu andou até à estrutura de madeira e abriu. – Entre, por favor – pediu, ao fazer o outro passar à frente de si. – Qual é o assunto muito importante, rapaz – perguntou Constantino Canzar, ao dirigir-se calmamente para a mesa. – Queres voltar para a minha mãe, não é? – perguntou Kalu, enquanto trancava a porta. – Então essa é uma oportunidade de confessares tudo o que fizeste. Essa menina que está aí... Esta, a Ivone, de quem é filha? O homem engoliu em seco. – No dia que vos encontrei embriagados no apartamento do senhor Inácio, o que é que ele disse? Que a mãe dela ficou grávida de nove meses. Mas nas tuas contas eram de oito. Estou certo? Que mãe não sabe contar os meses de sua própria gravidez? – Sobre o que falas, filho? – perguntou Nazaré Canzar. – Já vais saber, mãe. Foi a mãe dela que me contou aquilo. E agora o senhor Inácio a contraria? Muito estranho! A não ser que ele já sabia quem é o pai dela e depois, porque não queres mais ter problemas com a mãe... Quando descobriste que eu sabia, viste que as tuas esperanças, já poucas, diminuíam – conjecturou, ao ver que Ivone se levantara. – Então, o que fazer? «Vou convencer o rapaz que o pai não sou eu. Inácio, somos kambas. Dá-me um toque nesse assunto.» Foi isso, não? Porque não estavas em casa na última vez que me chamaste, Ivone? – Decidi ir à faculdade... O Constantino pediu-me para não ficar aí – confessou. – O que passa? – perguntou Ndombaxi, ao levantar-se. – Conta-lhes, pai – disse Kalu. – Vai! É uma boa oportunidade... Constantino não via saídas. Era difícil contar aquilo. Ele não o queria fazer. «Melhor assim», disse de si para si. «Quer dizer que o devo fazer.» – Nazaré – começou ele –, a Ivone é minha filha. Eu tive um caso com a Valéria... – Não quero saber disso! – exclamou a gigante ao levantar-se. – Tu, Kalu. Tu! Tu sabias disso e não me contaste nada? – A Dona Valéria pediu-me para guardar segredo. Ela estava no leito da morte... Tenho de cumprir com as minhas promessas. Tu mesma me ensinaste isso... – E porque o contas agora? – perguntou Ivone, ao esbofeteá-lo na face. – «Quando vires que ela estiver pronta, conta-lhe.» Foi o que ela disse. Acho que o momento é esse. – Então o meu pai não é o meu pai... até aí é bom. Mas me deixaste continuar apaixonada pelo meu próprio irmão? Pelo Ndombaxi? E ainda me fazias pensar que estavas apaixonada por mim – dizia com fúria. – Desculpa-me... Não soube gerir a minha promessa – disse, para acalmá-la. – Tu não sabes de nada! – disse, ao voltar a atacá-lo, mas desta vez Kalu agarrou-a e torceu-lhe o braço. – Para de ser selvagem... irmã. Não vai fazer bem ao bebé – disse o outro, ao ver que Zau se levantara.
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– Quero lá saber do bebé! Matar-te neste momento é mais importante. E aquele senhor Inácio. Ele vai pagar-mas! – dizia, ao tentar soltar-se. – E tu, senhor Constantino do lixo? Porque não me disseste nada? O senhor não respondeu. – Perdeu a língua? Ou está tão velha que já não a consegues usar? Larga-me, Kalu! Larga-me! – vociferou, ao tentar atingir o Canzar paterno com a ponta de seu pé. – Calma, irmã – disse Zau, ao acariciar-lhe os cabelos e ver que Constantino se dirigia para a saída. Antes de desaparecer do campo de visão de todos o Canzar paterno disse. – Continuem assim. É bom que continuem com essa união.
Porquê? «O fim de todas as coisas está perto. Sejam prudentes e estejam alertas para poder orar.» - 1 Pedro 4:7.
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CAPÍTULO XIV Passaram-se semanas. Faltavam agora quatro dias para a morte de Daniela da Glória Canzar. O desvendar de vários assuntos dava agora mais ímpeto à decisão daquela família para se mudar daquele bairro. Porém, algumas perguntas ainda estavam sem respostas. Daniela – quem eram seus pais? Saberia Ndombaxi que era pai de Daniela e fingira apenas que a encontrara por acaso num aglomerado de lixo de sua casa? O que ganharia ele se fizesse aquilo? O que perderia? Quem era a pessoa que contara à Daniela aquelas coisas sobre a morte de Natércia Tchivela? Quem estava por trás dos ataques constantes àquela família? Qual era o papel de Constantino Canzar, Anita e Fernando Cuchi e Inácio e Ivone Tchivela naquela história? Seriam simples marionetas de outra pessoa? Haveria um líder entre eles? As famílias dos enfermeiros que foram mortos e queimados por Ndombaxi – seria possível que também queriam vingar-se? Fernando – para que fim precisava ele de um mecânico? Como seria a morte de Daniela? Seria possível que toda a família cometesse suicídio por causa daquilo? As respostas estavam prestes a chegar.
* Manhã de terça-feira. Ndombaxi Ilídio Canzar andava com Hermínio Mbaki. Os dois estavam vestidos a rigor – fato e gravata era o que cobria os seus corpos. Era comovente ver o Canzar primogénito trajado daquela forma. Parecia a pessoa mais branda de todo o planeta. Os seus instintos ferinos estavam a ser controlados – desvaneciam. – Sim, isto é lógico – concordou Ndombaxi enquanto andavam pela rua. – Se Adão e Eva estivessem indignados com a punição dada por Deus, Eva não falaria bem Dele enquanto dava à luz. Eles ter-se-iam esquecido Dele. Estariam tão revoltados que nem sequer O mencionariam em qualquer lugar em que estivessem. Isso nos prova que eles sabiam que o que haviam feito não estava certo e que não pensavam que Deus agia injustamente ao puni-los daquela forma. Se eles que estavam a ser castigados daquela forma não chamaram Iavé de insensível e cruel, quem somos nós para pensar que Ele fez mal em prová-los? – Estou a gostar de ouvir. Nem eu mesmo havia pensado nisso dessa forma. Mudando de assunto, estás preparado para o sábado? – perguntou Hermínio – Estou – respondeu ele, ao sorrir. – Já entendo e aplico aquilo que leio na Palavra de Deus. O que me impede de ser baptizado? – Nada, meu caro irmão, nada – disse entendendo a pergunta retórica. – Agora vamos entrar aqui. Há uma pessoa com quem falei a semana passada. Ndombaxi reconheceu aquela casa. Uma idosa conhecida por ele vivia ali. E, pelo que se lembrava ela também não gostava da família Canzar. Mas nunca tomara conhecimento da razão de tamanha malquerença, nem sabia que ela era uma das mulheres que convencera Fernando a ir avante com seu plano homicida. Todavia, isso mudaria naquele dia, naquele momento. – Muito bom dia, Dona Quirima – cumprimentou Hermínio, após a senhora de cabelos brancos ter aberto parcialmente a porta e espreitado com descrição. – Bom dia, mano Hermínio – respondeu, enquanto via apenas Hermínio. – Os de casa? Como é que estão? 132
– Passámos bem, mano. Só o cassule da minha filha é que está com um pouco de febre. E lá em casa? – perguntou, após ter saído. – Você? Estás a fazer aqui o quê? – inquiriu, ao ver o gigante. – Seu assassino! O meu sobrinho está morto e tu estás aqui a querer me falar de Deus?! Desapareça – vociferou ao atingir-lhe a face com uma bofetada e cuspir em seguida para o par de sapatos que o gigante trazia calçado. Num acto educado, Hermínio despediu-se cordialmente da senhora e começou a andar com Ndombaxi. Antes que eles pudessem fazer a esquina e deixassem de ouvir o que a ela vociferava devido ao barulho de um camião que aí passara, as palavras da idosas foram: – Não fazes nada. A raiva está a te roer, né, seu assassino! Vai lá morrer longe! Homem de Deus? Ah! És mais é um frouxo. Nem sei como é que o meu sobrinho deixou que você lhe queimasse. Diziam tanta coisa sobre a tua força aqui quando estavas na prisão, mas afinal estavam enganados. Porquê? «A [sua] presença em pessoa é fraca e a [sua] palavra, desprezível.» 2 Coríntios 10:10.
* A noite chegou. As coisas pareciam calmas naquele bairro. Enquanto as pessoas andavam de um lado para o outro, Ambrósio voltava do lugar onde havia trabalhado por alguns anos. No dia em que conversara com seu superior sobre abandonar definitivamente o seu posto, este aconselhou-o a voltar para casa e pensar ponderadamente por algum tempo. Enquanto se preparava, alguns de seus colegas, por ordem de seu superior, esconderam uma arma e uma sirene no tablier do auto. Apenas vários minutos depois de estar a caminho para o seu lugar de pousada é que descobriu que voltava com aquelas coisas. Eis a razão de ele ter usado aqueles dois objectos para salvar Daniela e Ivone na noite em que o professor tentara violentá-las. O peso de consciência que o invadiu depois foi intenso. Dias depois tomou a decisão em pauta e livrou-se definitivamente de tudo, realmente tudo – roupas, fotografias... tudo. Agora voltava para a casa, com a consciência tranquila. Todavia, o que acontecia à frente do portão de entrada para a morada dos Canzar não tinha nada de plácido: Um homem apertava o pescoço de Wilson Luango – o rapaz que tinha uma estranha amizade com Ambrósio Canzar. – O que fazes com o miúdo? – perguntou Ambrósio com calma afrontadora. – Nada – respondeu o homem. – Estamos só a brincar… Eu conheço o Wilson. – Não há problemas, tio Ambrósio. Ele não está a fazer nada de mal. Ambrósio olhou de forma intimidadora para o homem, depois andou em direcção ao portão de sua casa. Antes de entrar – gritos! Gritos de lamento cobriram a atmosfera de todos que estavam na rua. Uma mulher corria de forma desvairada e chorava em voz alta. Todos conheciam a mulher. A mulher – era uma mulher que andou desaparecida por muito tempo, uma mulher que, até onde sabiam, estava na prisão, uma mulher que afrontara Nazaré Canzar com seus pecados, era uma mulher daquele bairro, a mulher – era Anita Cuchi. Ela chamava por seu marido, mas não como se procurasse por ele, mas por tê-lo perdido na morte. O homem se suicidara. Fê-lo em sua própria casa. Ninguém estava presente. Os filhos menores estavam na oficina de Inácio Tchivela, o primogénito e ela estavam
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numa reunião displicente. Por ter o intuito de pegar algumas roupas naquele local, entrou à socapa para não ser reconhecida, todavia, ver seu próprio marido pendendo por meio de uma corda amarrada ao tecto fê-la esquecer que tinha de passar despercebida. Todos os vizinhos reuniram-se na casa dos Cuchi. Lamentavam; falavam bem do defunto. A família Canzar também se fez presente. Contudo, não permaneceram no local por muito tempo, por causa das coisas blasfemas que lhes eram atiradas aos ouvidos. Antes dos Canzar saírem, Fernando disse algo entre dentes que eles não perceberam: – Aproveitem bem essa situação…
Porquê? «A morte está agindo em nós, e a vida está agindo em vocês.» – 2 Coríntios 4:12.
* Mais um dia se passou. As coisas na casa dos Cuchi continuavam agitadas. A família Canzar sofria cada vez mais ameaças. Parecia que a morte daquele homem se devia a eles. Mas eles ignoraram-nas; seu espírito era calmo. O dia laboral já ia a meio. Lourenço estava em seu escritório. Tudo corria bem, até Sandra Luremo ter entrado, lhe contado que viajaria no dia seguinte e que gostaria que ele a acompanhasse e, alguns minutos depois, Adélia Sayago ter feito o mesmo. A pedido da mãe da primeira, o chefe dispensou o Canzar para que pudesse conversar mais abertamente com as duas. O local escolhido foi a casa de Elisa Luremo. A conversa decorria alegremente. O Canzar as fazia rir. Todavia, com o tempo, atmosfera ficou pesada. – Isso não é coisa que se discuta! – disse Adélia, notavelmente alterada. – Eu já vivi tantas coisas contigo. Tu gostas de mim. De mim! Amas-me… Porque hesitas? É por causa dessa? Ela apareceu agora… daqui a pouco desaparcerá! – Não é nada disso – disse Lourenço, ao tentar acalmá-la. – Eu é que não quero mesmo. É só isso. Entenda, por favor… – A minha mãe disse que tu e os teus irmãos não namoram – disse Sandra, ao dar um gole da bebida gelada e adocicada no copo em suas mãos. – Eles têm problemas com as mulheres, isso sim! – vociferou Adélia. – Tantos homens naquela casa… Parecem todos efeminados. Uns homossexuais é o que são! Homossexuais… e fraquinhos da fraqueza fraca da fragilidade… fraquíssima. Homossexuais e frouxos! Homens?! Não, não podem ser homens. – Pelo que dizes – voltou a pronunciar-se o Canzar, com calma irritante – qualquer pessoa que permanece solteira por opção própria vai contra a sua natureza… É um comentário tolo vindo de alguém como tu que conhece bem a Palavra de Deus. Os nazireus foram homossexuais? O apóstolo Paulo então? O que dizer de Cristo? Pecas gravemente ao falar isso. Os meus irmãos e eu só achamos que devemos dar prioridade a outras coisas. Não dizemos que nunca nos casaremos… apenas desfrutamos com intenso prazer das vantagens de se ser solteiro… e gostamos… – Tu e o teus irmãos são loucos! – disse Adélia, ao tentar atingir-lhe a face, contudo foi impedida pela mão atenta de Sandra. Lourenço ficou a olhar por efémeros segundos para ela e, antes de sair e começar a nutrir um profundo respeito pela única Luremo naquela sala, lançou secamente:
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– Essa tua suposição provavelmente é falsa, Adélia… mas, se for verdadeira, todos lucramos isso. Porquê? «Se estamos loucos, é em favor de Deus; e, se temos juízo, é em favor de vocês.» – 2 Coríntios 5:13.
* Enquanto um dos Canzar escapava-se das garras de mais uma atacante feminina, os Cuchi, os Tchivela e outros conversam em meio a choros e lamentos. – Não se preocupem com o sustento – disse uma das mulheres, ao reparar que desde que entrara aí, Fernando mantivera a cabeça abaixada e não se pronunciara em momento algum. – Nós podemos cuidar disso para vocês. As panelas e a comida para o óbito… podem contar connosco. – Todas mana que tão aqui vão cozinhá – disse uma idosa. – Já mandamo as nossa filhas comprá argumas coisa pra virem aqui. Daqui a pouco elas já vão trouxé. – Não era preciso – disse Anita Cuchi, ao ser interrompida em seguida. – Era perciso sim, mana. As coisa já tão chegá. Num tás vê já as menina tão entrá – disse a idosa, ao apontar com o olhar e os lábios grossos. – Vocês vão nos ajudá com aquele pregulema da devassa, nós só temo que agardecé. – Têm razão – concordou a anfitriã, ao ver que algumas raparigas colocavam o que parecia ser comida, bebida e combustível sólido para dentro de sua despensa. – Eu e os meus filhos vos agradecemos por isso. Não se preocupem, vamos cumprir com o nosso papel… Aquela mulher e a família dela vão morrer. Ao ouvir aquilo, pela primeira vez, Fernando levantou a cabeça, olhou para as pessoas e sorriu com maldade visceral. Porquê? «É por isso que temos sido consolados.» - 2 Coríntios 7:13.
* Fora daquela casa, Ndombaxi confrontava-se com problemas: um grupo de pessoas zombava dele. Entre estes, havia pessoas que foram seus colegas e alguns que ele servira de enfermeiro na clínica em que trabalhara. – Ficaste da paz agora – zombou alguém, sorrindo com escárnio em seguida. – Agora usas fato e gravata? – Eh! – exclamou outro. – Ouvimos dizer que mataste alguém… Estamos curiosos: Fizeste-o mesmo? Pareces tão manso. Até te confundimos com o Capuchinho Vermelho! Mas se queres nos provar que há um lobo mau em ti… Antes de começar a andar na direcção deles com ares de intimidação e reparar que lhe deixavam passagem, disse com calma: – Tenho de ir embora. Preciso manter a calma. As coisas que vocês dizem evocam o que há de pior em mim. Não queiram ver-me enervado… Não queiram pôrme à prova. Porquê? 135
«Sem dúvida aplicareis a mim a seguinte ilustração: Médico, cura-te a ti mesmo; as coisas que ouvimos acontecer … faze também aqui.» – Lucas 4:23.
* À uma extensa distância daquele bairro, Constantino Canzar conversava com Inácio Tchivela. – Dentro em breve teremos luz, quer dizer, já estamos na luz – disse o Tchivela, enquanto mexia numa motorizada. Era uma motorizada conhecida. Era – preta, era – a motorizada de Nazaré Canzar. – A explosão disso com aquela mulher já é um facto. Tudo está a correr bem. Querias falar comigo porque…? – Resolvi… depois de muito tempo pedir que me perdoes por me ter envolvido com a tua mulher. Deves odiar-me por causa disso… O Tchivela sorriu. Após ter acertado o último parafuso, levantou-se e bateu nas costas do outro com amizade, enquanto dizia em tom paternal: – Não. Não te odeio. Porquê? «Quem diz que está na luz, e ainda assim odeia seu irmão, está na escuridão.» – 1 João 2:9.
* Enquanto o Canzar e o Tchivela paternos conversavam, Ndombaxi andava calmamente em direcção à sua casa. Contudo, ao olhar para trás e ver o que acontecia correu para o portão de seu lugar de morada e fechou-o apressadamente com violência. Porquê? «Um homem … gritava: Ah! que temos nós contigo … ? Sei exactamente quem és.» – Lucas 4:33,34.
* Ao chegar a noite, Ambrósio Canzar dirigiu-se para o estúdio de seu amigo para gravar mais uma de suas músicas. Irene Makuntima estava presente. Antes de gravarem a seguinte canção, os três tiveram uma séria conversa. Ambrósio pediu-lhes, e com alguma relutância aceitaram, para não publicarem nenhuma das canções em que ele participava, visto que a partir daquele momento, cantaria apenas para sua família das pessoas mais próximas. Já não queria a fama. Queria apenas cantar para exprimir o que sentia sem ter como objectivo o luxo e admiração de outrem: Sem munições Não sei como é que meti nesta alhada: De noite No canto de uma esquina
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Ladeado dos meus mais terríveis inimigos Armada descarregada Estou com doze cuspidores de fogo Apontados para o meu crânio Estou em desvantagem Eles são maiores em número e em tamanho Só me resta a palavra Penso calmamente Enquanto um deles Dá um grito À rasca Vasculho ideias recorrentes Mano, estou aflito Mas não hesito Em carregar meus neurónios Com balas letais, Gramaticais Muno meu cérebro Dos mais perigosos artigos e adjectivos Neste ataque, sintaxe Fonética e morfologia Possuem um resgatador objectivo Antes que comece o fuzilamento Preciso agir Como nos filmes de ficção O ecrã fica preto E é então que aproveito Me Tornar em Luís Vaz de Camões O mais temido dos lexicógrafos samurais No fundo Pensamos todos em ser bons Mas o mundo é condenatório Por desprezarem os nossos dons Recorremos a um proceder ilusório Roubar, matar os nossos rivais E mandar inocentes para o bloco operatório Sociedade, não o fazemos por mal É só para delimitar o nosso território No fundo Destes canos há um objecto que me pode estilhaçar Profundos São o vosso ódio e o desejo de ver os meus pulmões sem ar Vossas mãos estão tão excitadas Para derramar meu sangue Vossos olhos querem confirmar que ele é vermelho Por meio de um impiedoso bang-bang Mas depois de isso acontecer Já pensaram como as vossas consciências estarão perdidas?
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Brothers, qual será o objectivo de vossas vidas? Ficarão sem Norte O que vos galvaniza é o desejo da minha morte A quem vão perseguir? A quem vão mandar biffes? Contra quem vão atirar vaias Na escuridão dessas streets? De quem será a namorada que ofenderão na Internet? Que outro vosso inimigo será tão difícil de abater Como este à vossa frente? Ai! 0K, eu mereci este tiro da perna Ai! Ai! Ai! O meu braço! Já percebi que vocês não têm pena O uso dessas interjeições não vos fará desistir Baleado quatro vezes O que é que ainda há por vir? Desiludem a vocês mesmo agindo dessa forma Matar um inimigo que não pode dar luta é falta de honra Mas eu sei que No fundo Pensamos todos em ser bons Mas o mundo é condenatório Por desprezarem os nossos dons Recorremos a um proceder ilusório Roubar, matar os nossos rivais E mandar inocentes para o bloco operatório Sociedade, não o fazemos por mal É só para delimitar o nosso território Fuzilado mais três vezes Já lá vão sete Vocês não parariam com esse massacre Nem mesmo se vos dissesse Que reconheço o vosso grau superlativo Como meus arqui-inimigos E que não é uma hipérbole quando digo Que são os mais destrutivos e impiedosos dos homens Que minha mente tem registo Praticaram novamente tiro ao alvo Já lá vão onze 0K, 0K, 0K Desisto da ideia de ocupar Esse vosso lado da rua Prometo que tirarei os meus lacaios E como bónus Me ajoelharei perante as vossas miúdas Que fiz andar seminuas Por este asfalto
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Peço-vos Deixem de ser o sujeito Cujo predicado já está moribundo Esta é para ti que tens a última bala: Abdicas? Ou vais mais mundo?
* No lugar em que estava a motorizada de Nazaré Canzar, um homem discutia com veemência com os Tchivela, os Cuchi e outros. Contudo, a discussão não demorou muito. Foi agarrado e jogado para fora do sítio. Lá fora, os sapatos envernizados que tinha calçado caíram com displicência sobre uma poça de água. Porquê? «Foi enganado e dominado pelos seus melhores amigos. E, agora que ele afundou os pés na lama, os seus inimigos o abandonaram.» Jeremias 38:22.
* Ao chegar perto da casa dos Canzar, Constantino viu sua esposa e Daniela a entrar para esta. Ele tentou correr antes que o portão se fechasse, mas desistiu. Antes de começar a andar em direcção ao seu apartamento disse de si para si: – Nazarena, não posso ver-te… Porquê? «Fui expulso de diante dos teus olhos! Como é que olharei novamente …?» – Jonas 2:4.
* Após o Canzar ter sido expulso, a conversa entre os restantes membros continuou. – Ouvi a notícia sobre a morte do teu pai, Fernando – disse o único membro encapuçado naquele local. – Os meus pêsames… – Peso-te porquê? Ah! Estava a brincar – disse, ao ver que o outro não entendera a seca piada. – Tu disseste pêsames… peso-te… – Tens de aprender a ser mais claro – disse, ao começar a anda à frente dele. – Coragem, a morte de um não é o fim de todos. – Eu sei disso. Já nem me dói. Quem tem de se preocupar agora são os gorilas e a kilomba. Porquê? «Um ai já passou. Eis que vêm mais dois ais depois destas coisas.» – Revelação 9:12.
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CAPÍTULO XV Stop. Final da manhã de sexta-feira. O dia chegara – Daniela morreria e sua família, sua família a seguiria. – Este vídeo que vocês gravaram foi muito bom – comentou o director após a actividade escolar ter terminado. – A ideia foi mesmo tua? – Foi sim - respondeu Daniela, ao olhar para as coisas que sua família fazia à frente de si e ver que Ndombaxi se aproximava dela e do director. – Mas tive ajuda dos meus pais. – Muito bom. Muito bom mesmo. E onde é que foste pesquisar essas coisas sobre Ngungunhane e Kimpa Vita? – Sobre Ngungunhane vi a Edição 687 da Revista Tempo de 11 de Dezembro de 1983. Sobre Kimpa Vita fui a Wikipédia. Quanto a Nzinga Mbandi li o livro de Manuel Pedro Pacavira. Sobre Ngola Kiluanji vi o livro de Moisés Kamabaya «O Renascimento da Personalidade Africana» e sobre o restante vi o livro de História da quarta classe. – Muito bem, pá! – disse, ao pousar-lhe a mão sobre o ombro. – Se todos os alunos tivessem ideias como as tuas, acho que teríamos professores melhores no futuro. Aquela reflexão que um deles faz de que o colono é mais escravizado que o colonizado é interessante demais. Nunca havia pensado em nada parecido. – É o que dá ter pais que nos obrigam a ler muito desde a infância – disse Ndombaxi, ao estender a mão ao director. – Nós já vamos, Daniela. – Oh! E eu que ainda tenho algumas coisas para fazer aqui. Não vão ainda, papá. – Vais ficar aqui com a mãe – falou o gigante, ao fazer com que outra fitasse os olhos nela e visse que ela conversava efusivamente com algumas senhoras. – Voltam juntas. Temos de tratar daquilo em casa. – Eu vou ter de ir naquela moto? Fixe! – gracejou ao acenar em sinal de despedida para Lourenço, Ambrósio, Zau e Kalu. – A mãe não veio de moto. Ela deixou-a na oficina do senhor Inácio há dois dias… Sabes muito bem disso, não? Uma daquelas senhoras com quem ela está a conversar vai vos dar boleia. Foi um prazer estar aqui, senhor Director – disse, ao voltar a apertar a mão do outro. – Estaremos aqui numa próxima oportunidade. – 0K – concordou o outro. – Estaremos à espera. E estou certo que nos surpreenderão mais do que hoje. Só uma mais coisa – pronunciou-se, ao fazer com que o outro interrompe-se a locomoção. – Eu tenho um primo que é produtor de cinema. Ele podia produzir toda e qualquer ideia que tivessem. Ele conhece muitas pessoas influentes. Ouvi dizer que vocês também dançam e cantam… e conhecem algumas artes marciais. Não acho que seja bom esconder esses vossos talentos. Não estão interessados em fazer dinheiro… muito dinheiro? – A oferta é tentadora – confessou o gigante, mas apenas para ser bem educado. – Mas não podemos aceitar. Estamos bem assim. – Oh! – exclamou o outro, coberto de espanto. – Vocês não pensam em ter uma casa melhor, toda a liberdade que vos for possível, carros fantásticos, uma enorme multidão que vos aplauda e vos pessa autígrafos na rua? – inquiru, ao ver que o gigante e a menina sorriam com desdém camuflado. – Pensem bem, qualquer necessidade que vocês tiverem, poderão supri-la com o mínimo de esforço possível. Não é isso que todos nós queremos. – Por incrível que pareça, senhor director – respondia o gigante com um sorrido esboçado e tom parcialmente calmo, antes de colocar um fim a conversa e começar a 140
andar em direcção aos seus irmãos, despedir-se de Nazaré Canzar e de mais algumas pessoas, subir em sua motorizada e dirirgir-se para o seu lugar de morada –, não, não é isso. Porquê? «Os maus desejos da natureza humana, a vontade de ter o que agrada aos olhos e orgulho pelas coisas da vida, tudo isso … vem … do mundo.» – 1 João 2:16.
* Quase uma hora depois de os irmãos Canzar terem saído da escola de Daniela, esta última e sua avó chegavam ao bairro onde viviam. Antes de entrarem para a casa, Nazaré pediu que Daniela fosse ver se sua motorizada já estava reparada na oficina de Inácio Tchivela. Mas dessa essa acção, ela se arrepnderia por toda a vida. – Boa tarde, senhor Inácio – cumprimentou a menina, ao entrar na oficina, sem se aperceber que se tornara naquele momento um ovídeo pronto a ser abatido. – Boa tarde, Daniela – respondeu o senhor que estava embaixo de um carro parcialmente sujo de óleo. – Vieste ver a mota da tua avó, não é? – Sim. Ela pediu-me para saber se já está tudo pronto. – Deixa que eu te mostre – disse o senhor, ao sair debaixo do auto. Segundos depois os dois se dirigiam para um dos cantos da oficina. – Ela está aqui – apresentou, após a motorizada ter aparecido no campo de visão de ambos. – Está tudo arranjado. Agora é só dizeres a tua avó para a vir pegá-la. – 0K. Vou dizer agora mesmo – disse ao dar às costas ao senhor. – Ela estrá aqui daqui a pouco. Escuridão – foi o que Daniela da Glória Canzar viu a seguir –, escuridão, muita escuridão. Breu total. Só as trevas eram captadas por suas pupilas naquele momento. Ela sentia-se sufocar. Seria possível que chegara o seu fim? A menina caiu. Seus sentidos não trabalhavam. Não sentia o forte odor a óleo que a rodeava, não sentia o sabor de sangue em sua boca que saía por se ter mordido casualmente, não sentia o chão onde estava deitada, não via as cordas que o homem ao seu lado tinha nas mãos e não ouvia os passos da mulher que aproximava de seu corpo desmaiado e nem captava o som das palavras que dizia: – Teria sido melhor que o aborto tivesse corrido bem quando tinhas três meses em meu ventre – confessou com amargura. – Tudo isso aconteceu-me por tua causa. Se não entrasses em meu ventre, a minha vida não se teria complicado desta forma. A única coisa que o teu pai queria de mim, eras tu. Nunca sentiu nada por mim. Desprezava-me. Ah! E agora nem sequer sabe que cria a própria filha, a própria… o próprio veneno que lhe levou a fazer-me isso – disse, ao retirar o capuz que cobria seu rosto. – Vês como é que estou? Estou queimada. A minha pele… Metade de meu corpo está assim. Tudo por tua causa. Não vês? – perguntou com sarcasmo, ao baloiça-la com o pé. – Não podes ver, pois não? Assim como eu que fiquei vários meses sem poder olhar para uma planta, uma broboleta, o meu pai, a minha mãe… Tive de ficar longe tudo e de todos porque resolveste permanacer aqui – disse, ao bater com violência em seu próprio ventre com as palmas abertas. – Mas isso termina agora. O vosso tempo escasseia. Fui condescente demais. Basta! – disse, ao colocar-lhe o pé por cima dos lombos. – Tu e o teu pai vão pagar por isso. Todos vocês sentirão o que senti. Todos já te colocaram a vista em cima. Todos te viram. E agora vais desaparecer. Mas a mim? Ninguém mais me pode ver, contudo, continuarei aqui, viva… bem viva.
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Porquê? «O que pode ser visto dura apenas um pouco, mas o que não pode ser visto dura para sempre.» – 2 Coríntios 4:18.
* Enquanto Daniela era levada discretamanente paara fora da oficina para um local previamente planejado, na casa dos Canzar, Ndombaxi preparava-se para sair. – Onde é que vais? – perguntou Nazaré Canzar, enquanto cozinhava. – Vou comprar mais algumas coisas para que o meu plano de sairmos daqui de uma forma que ningém nos procure em qualquer outro lugar seja infalível. Tudo tem de dar certo. Nada, realmente nada pode falhar. – E estas folhas na tua mão? É onde escreveste as coisas? – Não. É uma letra. Depois de comprar as coisas… se não for muito tarde, vou passar no estúdio do Zando para gravar isso. há um bom tempo que não entro aí. – E a letra é boa? – perguntou, ao ver o outro puxar a maçaneta da porta para si – Depois vais ouvir. Até logo, mãe. – Até logo, filho. Alguns minutos depois de Ndombaxi ter saído, uma figura masculina apareceu no quintal dos Canzar. Era – um homem conhecido, era – um homem planista, calculista. Com sua forma de andar calma, aproximou-se da porta e bateu três vezes. – Quem é? Quem é? – perguntou pela segunda vez por não ter recido resposta à primeira. – Deve ser a Daniela. Ela tinha tido que iria passsar na casa da Gina depois de sair da oficina – disse, ao dirir-se para a porta. – Boa tarde, Nazarena – cumprimentou o homem. – Boa tarde – respondeu ao dar-lhe as costas e começar a andar. – O que queres? – Apenas falar… – Isso faz-se na loja ao lado. Mas a essa hora os trabalhadores já devem ter saído para o almoço. – Aquilo que fiz com a Valéria… a Ivone… – Não precisas de te justificar. Não estou interessada nisso. – Porquê? – Porque não me interessa. É algo que fizeste no passado… Erraste, com a minha melhor amiga, mas erraste. Não posso fazer nada para mudar isso, nem sequer quero. Também andei com muitos dos teus amigos… Não temos nada para falar. – Claro que temos. Eu quero voltar para ti. E quero, e exijo que me aceites de volta – disse, ao bater a mão na mesa com violência. – Há muito tempo que não vejo a Que Me Aceites neste bairro. talvez se voltasses para o aprtamento de onde saíste… – Para de fugir a conversa! Por que és tão medrosa? Tão infantil! – vociferou. – Tão infantil… – disse com calma – e ao mesmo tempo tão doce, tão especial. – Saia daqui! Fazes barulho há mais para quem já não vive aqui. – E o que vais fazer se eu não sair – disse, ao aproximar-se cada vez mais dela. – Expulsar-te-ei à força. – Tenta… A velocidade de um relâmpago Nazaré Canzar agarrou-lhe pelo braço e tentou torcê-lo, contudo, à velocidade relâmpago, Constantino retirou-lhe a mão e torceu o braço dela primeiro. Ela tentou atacá-lo com a perna mas este empurrou-lhe contra a
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parede. Os dois ficaram ligados, um à frente do outro. Ela respirava de forma ofegante. Ele respirava com fúria. Uma garrafa – havia uma garrafa perto da outra mão dela. se ela se esticasse um pouco, talvez a alcançaria e se livraria daquela situção constrangedora. Antes que pudesse começar a tentar alcançar a garrafa, ele enconstou os lábios para beijá-la. Após alguns instantes de resistência, ela consentiu. Antes de sair e deixar Nazaré Canzar arrependida por aquele deslize - mas que deslize? Pelo amor de Deus! Eles eram casados, marido e mulher; que faziam de errado? –, enquanto ela ainda estava em seus braços, ele sussurou-lhe ao ouvido: – Perdoa-me pelo que acontecerá hoje. Será algo muito mau. Eu participei da ideia, mas ferei tudo para impedir a sua concretização.
Porquê? «Porque não vos amo? Deus sabe [que vos amo].» – 2 Coríntios 11:11.
* Vinte e quarenta e três. Enquanto Nazaré Canzar tentava achar sua neta, Ndombaxi preparava a voz no estúdio de Zando. Ele tinha voltado para a casa com as coisas que dissera que compraria e colocara todas em seu lugar premeditado. Tudo pronto – estava tudo pronto para que seu plano de desaparecem daquele bairro sem deixar rastos desse certo. – Estás preparado? – perguntou Zando do outro lado do vidro. – Desde que nasci – respondeu o gigante enquanto movia o pescoço. – Entãom tá-se. Cai no mambo, nigger! Presinto que… Ainda não sei se é um género de telepatia Ou umk meteoro que me deixou xom poderes sobre humanos Mas acordei com um senso futurista E uma visão para além dos anos Estou com a mente aturdida Por isso não foco bem as imagens e os planos São pouco perceptíveis E os contornos das figuras Apresentam desvantagens Por este facto Vou ter de usar o dom do presentrimento Espero que isso não vos cause choque Ou vos deixe em sofrimento Pressinto que O ciume e o egoísmo vão aumentar Até o ponto de O amor pelos ares evaporar E logo que Desaparecerem a esperança e a paz Surgirão aqui Milhões de demónios e Satanás Que transformarão em príncipes 143
Todos os juízes e gorvenantes Que sem piedade extorquiram Tods aqueles que deles eram dependentes Concederão cargos de luxúria Aos que defenderam e praticaram o aborto Farão chover ouro e prata A quem consegue matar e se deixar morto Aos inventores da bomba atómica Concederão desejos e medalhas Vou parar um pouco Minha comunicação com o além está a vir com falhas A sensação foi restaurada Mas as dores de cabeça persistem Terei de passar a mensagem de forma rápida Espero que vocês aguentem Presinto que As religiões que apoiaram as guerras Ocuparão o posto de ainha do mundo Aos que poluitram a camada de ozono Será daso o poder de transformar os ecologistas em vagabundos Todos os aderentes ao homossexualismo Serão considerados heróis Os assaltantes e os pedófilos Ganharão exércitos de rufiõs Todos os maus serão galadoardos Não haveráb excepções Até o filho que é desobediente em casa E a menina que só anda de curtos calções Terão uma frota de navios Carregando armas ao seu dispor E a dádiva aos apoiantes dapornografia Aumentará o caos, a desordem eo terror Horror É o que pressinto a partir de agora Vou ter de respirar fundo Para vos passar essa mensagem aterradora Pressinto que Depois de o mal atingir o seu apogeu Anjos à Terra serão enviados Que meterão Satanás na cadeira de reu E seus demónios no escuro serão aprisionados Massacrados, torturados e enforcados Esse será o destino para os mais proeminentes De seus aliados Pressinto que Cada um pagará pelos erros que propositadamente cometeu Nenhum praticante da magia será poupado Fogo, saraiva e enxofre é o que descerá do céu Para os profanos serem queimados
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Estripados, devorados e extreminados Os fiéis a Deus assistirão a esse massacre calmamente Despreocupados Pressinto que Após esta devastação, haverá uma nova era Justos serão ressuscitados para ocupar a Terra Os fiéis ainda vivos Prepararão as condições para acolhê-los Vamos vê-los Nossos tios, nossos avós, nossos primos, nossos amigos Choverão lágrimas de alegria ao volatrmos a ver Esses nossos entes queridos Pressinto que… Pressinto que… Oh! A ligação com o além foi-se embora Mas deu tempo para ver Que, se quiseres sobreviver Tens de começar a mudar a partir de agora
* Nazaré Canzar andava desesperadamente preocupa de casa em casa para achar sua neta. O que sigificavam aquelas palavras do estranho homem com quem estava casada? Referiam-se a Daniela? Onde ela estaria? Há quase meia hora que ela passara na casa de todos os seus amigos que ela conhecia. Mas nenhum sabia de seu paradeiro. Quando se preparava para ir até ao aprtamento de Constantino tirar sarisfações, seu telemóvel tocou. – Oi, avó – cumprimentou uma voz adolescente do outro lado da linha. – Podes vir me buscar. – Daniela! Ainda bem que estás bem. Onde é que te pego. Eu vou te dar a morada. Espere um pouco por favor… Daniela deu-lhe a morada. O local não ficava longe. Mas, pelo que se lembrava, o lugar que ela dissera era isolado. Poucas pessoas viviam ali. Antes que ela pudesse perguntar a neta porque estava naquele local, um jovem passou e assaltou-lhe o telemóvel. Havia pessoas na rua, mas ninguém fez nada. O jovem correu até uma das curvas e desapareceu no meio da escuridão de um dos becos. Nazaré Canzar pediu para que algumas pessoas para que pudesse usar seus telefones, mas ninguém correspondeu ao pedido. Por ainda não ter pegado a motorizada na oficina de Inácio Tchivela, apanhou alguns candongueiros e chegou ao local. Todavia, pelo caminho, conseguiu telefonar a seus filhos e pedir-lhes que viessem buscá-la. Ela também voltou a repetir para eles as palavras que Constantino lhe dissera na tarde daquele dia. No princípio, não havia ninguém no local, apenas um círculo formado por uma fogueira. Segundos depois, carros – carros de aproximavam. Fernando Cuchi foi o primeiro a descer de um deles. Depois foi Inácio Tchivela, Anita Cuchi e por último uma mulher encapuçada. – O que vocês fazem aqui? – perguntou Nazaré Canzar. – Não temos muito tempo para falar – disse Inácio Tchivela, ao dirigir-se em sua direcção com Fernando Cuchi. ambos tinham cordas em suas mãos.
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– Fiquem distantes de mim se não quiserem ser magoados – ameaçou Nazaré Canzar ao tentar ver o rosto da mulher encapuçada. – Acho que não vais querer fazer isso – disse Anita Cuchi, ao acender uma lanterna e apontá-la para o interior do carro de onde sairia fazendo com que a gigante visse a imagem de Daniela num dos bancos. – Siga-nos, ou a kilomba morre aqui… e agora. Antes de permitir ser amarrada e que lhe cobrissem o rosto – Vocês não sabem o que fazem. Seja o que for que fizerem a mim e a minha neta, vocês nunca ganharão. Todas as vossas acções estão destinadas ao fracasso. Sairemos vencedores… sempre. Porquê? «As armas de nosso combate não são carnais.» - 2 Coríntios 10:4.
* Minutos depois de toda a família Canzar abandonar o seu lugar de morada, quatro dos amigos de Daniela foram procurá-la no mesmo local. Eles haviam visto a preocupação de Nazaré Canzar quando batera sua porta para tentar descobrir o paradeiro da neta. Visto que eles já haviam ligado várias vezes para o telemóvel de Daniela e ninguém respondiam, decidiram sair e saber se ela já havia aparecido. Ao tentarem bater o portão, viram que este não estavam fechados. Barulhos violentos – após eles entrarem ouviram barulhos violentos na rua. Garrafas eram partidas, pessoas gritavam euforicamente. Dois disparos – eles chegaram a ouvir dois disparos. Para se proteger, começaram a correr em direcção a porta de entrada e sem se aperceberem disso, um homem saía discretamente da casa pela porta traseira.
* Três da madrugada. Os irmãos Canzar e um de seus tios procuravam desesperadamente por duas mulheres pertencentes a sua família. Até o momento a busca continuava a ser rotulada como infrutífera. A alguns quilómetros atrás deles, algo horrível estas prestes a acontecer. – Muito bem Dona Nazaré – disse Inácio Tchivela, ao reparar no estado macabro que deixara o rosto da ferida –, depois desta grande sova que levou, nós decidimos mandar-vos embora. Espero que desta vez tenhas aprendido a lição… – Talvez se vocês fossem bons professores – disse ela com sarcasmo, ao tentar conter a sua fúria e ver Fernando a empurrar a sua motozida para perto dela. – Bem, aqui tem a sua trote – disse o Cuchi, ao fazer uma vênia displicente. – E a Daniela? – perguntou a gigante. – Não me ouvieste a dizer mandar-vos? – perguntou o Tchivela, ao fazer um sinal para que a Cuchi libertasse a menina. Daniela saiu desparada em direcção a avó. – As pancadas devem ter afectado a tua inteligência. Somos bons, vamos vos dar dois capacetes. Um para cada uma de vocês. Toma – disse, enquanto Fernando lhes entregava os referidos. – Oh! Antes que me esqueça, ligámos para os teus filhos e contámos-lhes onde vocês estão. Vamos embora. 146
– Inácio – chamou Nazaré Canzar após Daniela estar em seus braços e ver que os outros se retiravam –, quem esta mulher com o rosto coberto? O homem continuou a andar e entrou no veículo. Depois de todos estarem em seus carros e prepararem-se para dar locomoção e direcção aos autos, ele disse secamente ao passar de forma lenta por ela e ver que as duas já estavam sobre a possante motorizada e que as duas já haviam coolocado os capacetes: – Sabê-lo-ás a seu tempo. Leia no braço da rapariga. Nazaré Canzar olhou para o antebraço da menina e viu algumas letras, mas nada percebeu: Aicrétan. Ahlif aut é ale – era isso que estava escrito. O que queria aquilo dizer? Que língua era aquela. – Antes de ires embora – disse Inácio –, tenho um conselho para ti: Não podes descer da moto. Fiz algumas mudanças nela. Ao sentarem sobre ela, vocês acionaram duas bombas, uma no motor e outra debaixo do banco. A debaixo do banco é a mais perigosa, é como uma mina, quando pôs o teu peso por cima dela, só um milagre de pode salvar. A outra tem trinta minutos para explodir. Na verdade, menos que isso. E não podes parar a motorizada, senão, bum! Muita carne espalhada. Ouvi dizer que todos vocês serão baptizados amanhã. Triste… muito triste. O tempo já começou a contar… Os teus filhos também já estão a par disso, devem estar aía chegar. Podem ir embora. E… boa morte. O carro do Tchivela entrou em andamento célere. Nazaré Canzar sentiu-se entontecer. Daniela chorava – Mãe, nós vamos morrer? – Não, filha. Mas se morrermos que mal há nisso? As pessoas têm a garantia de voltar a viver. Acreditas nisso, não. – Sim… mais ou menos. E se não for verdade? Nazaré Canzar respirou fundo. Ela sabia que a menina lhe perguntava aquilo por estar totalmente coberta de pânico, por isso, não pensou em enchê-la com sermões, acelerou apenas a motozida e disse entre o vento cortante: – Então tudo que sabemos sobre a história Jesus é mentira. Porquê? «Se os mortos não hão de ser ressuscitados, tampouco Cristo foi levantado.» – 1 Corintios 15:16.
* – Olha para aí – disse Ndombaxi, ao fazer sinal para Lourenço. – Aquela é a motorizada da mãe! De repente, os três carros, e a motorizada naquela estrada aumentaram sua velocidade. O fumo era intenso atrás deles. A névoa de fumaça era enorme, quase intrasponível para a visão. – O que é que eles fizerm contigo, mãe? – perguntou Ndombaxi com voz alta enquanto o barulho de sua motorizada tornava quase imperceptível o que dizia. – Isso não é importante agora! – gritou Nazaré Canzar opara que ele pudesse percebê-la. – Temos de tirar a Daniela da minha motorizada. Há duas bombas aqui! O louco do Inácio pôs duas bombas aqui! – Calma, mãe – gritou o primogénito. – Temos um plano – revelou ao fazer sinal para que os outros se posicionassem regularmente.
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O caminhão de lixo que Tutomene conduzia ficou à frente deles. O carro em que Zau estava com uma mulher ficou à esquerda delas e a motorizada de Ndombaxi à direita. A carrinha conduzida por Kalu ficou atrás. Lourenço e Ambrósio estavam de pé sobre a carrinha. Uma motorizada – vinha mais uma motorizada atrás deles e em alta velocidade. Constantino Canzar – o condutor era Constantino Canzar. Ele fez algumas manobras perigosas entre os carros e posicionou-se no lugar de Zau. Zau, ao lembrar-se do que a Nazaré Canzar lhe tinha contado, tentou bater o carro contra a motorizada deste, mas ele esquivou-se e foi posiciou-se ao lado do carro de Kalu. Em velocidade perigosa ficou de pé sobre a motorizada e lançou-se para a carrinha. A motorizada andou sozinha por efémeros instantes, depois caiu com violência – O que fazes aqui? – perguntou Ambrósio, ao agarrar-lhe o pescoço. – Não é hora de discutirmos – disse, ao retirar-lhe a mão com violência. – A tua mãe está em risco vamos salvá-la. – Qual é plano? – O Zau e o Ndombaxi vão pegar a Daniela e lançá-la para aqui – Abra os braços, Daniela! – gritou Ndombaxi, ao que a filha mesmo sem perceber obedeceu. Ela olhou para os braços dele e viu que havia correntes rebentadas em cada pulso. Daniela deduziu que ele estava no ginásio de sua cela quando recebeu a notícia. Provavelmente havia rebentado as correntes com fúria. – Não! – vociferou Constantino. – O Zau não tem espaço suficiente dentro daquele carro. E aquilo pode explodir. – A diferença entre o peso da Daniela e da mãe é enorme – disse Lourenço. Acho que não vai fazer diferença se ela sai. – E se houver? – Temos de arriscar. Não podemos ficar de braços cruzados. Quanto ao Zau, não te preocupes. Não é ele quem vai a conduzir. É a Rosalina, a gerente do banco em que ele trabalha – disse, ao ver que o caminhão conduzido por Tutomene continuava à frente da motorizada de Nazaré Canzar. – Ele vai abrir a porta… Pára de interromper! Antes que Lourenço terminasse sua frase, Zau Albano Canzar abriu a porta e ficou de pé, ao agarrar com uma das mãos parte consistente no interrior do carro. A outra mão ele esticou em direcção a Daniela. Ndombaxi também esticou sua mão. A meninaa estava de braços abertos. Após terem dado o sinal de que estavam todos preparados para o radical salvamento, Ndombaxi e Zau agarraram fortemente o antebraço da menina e a lançaram-na em direcção à carrinha. Ela caiu nos braços dos três homens que rapidamente a colcaram atrás de si. Eles não deram conta que ela havia perdido os sentidos. – Mãe, faça o mesmo – disse Ndombaxi. – Não! – respondeu ela. – Isso vai explodir. E vocês podem morrer! Além do mais, eu sou muito pesada… – Faça apenas o que eu digo, mãe! – vociferou o primogénito com fúria. – A distância não é assim tão grande. É menos de um metro. O Tutomene Vai encostar um pouco o camião de lixo, que na verdade, está cheio de cimento e água. Depois ele vai pular para fora dele. não vai acontecer nada. Aumente a velocidade e abra os braços. Faça isso! Agora! O tempo está a acabar! Nazaré Canzar obedeceu. Abriu os braços e no mesmo instante seus filhos agarram-na e lançaram-na para a carrinha. A motorizada bateu na estrutura metálica do caminhão e, no mesmo instante, forte explosão – uma forte exposão aconteceu a seguir. Quando eles se levantaram para ver os estragos, Ndombaxi estava no chão. A sua motorizada estava virada. Os pneus giravam. Eles apressaram-se em descer.
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Todavia, antes de chegarem perto de seu corpo – ora, eis que o gigante se levantou. Estava bem – Ndombaxi estava bem. Mas o mesmo não se podia dizer de sua filha.
* A alguns quilómetros distantes daí, Ivone Tchivela estava sentada em seu apartamento, orando para que nada pior acontecesse a família Canzar. E parece que Deus decidiu responder naquele exacto momento. – Kalu? És tu? – perguntou, ao atender uma chamada e ver que o tumulto de feito por algumas pessoas na rua tinha terminado. Todos se dirigiam para as suas casas. Era estranho, mas era o que acontecia. Porque seria? – Sim, sou eu – respondeu a pessoa do outro lado da linha com voz triste. – Estou a ligar para me despedir de ti. Esses malucos mataram a Daniela... O teu pai, o Fernando e a mãe dele. Todos! Já não podemos ficar aqui. Tchau. Antes de Ivone ouvir o sinal que indicava que a chamada havia terminado e ver que Fernando acabava de entrar, ela pediu com ansiedade. – Não! Espera! Também quero ir convosco. Porquê? «Nós não prejudicamos ninguém, não causamos a desgraça de ninguém e não procuramos tirar vantagem de ninguém.» – 2 Coríntios 7:2.
* A família Canzar estava reunida em sua própria casa. Mas não todos. Apenas Nazaré Canzar, seus cinco filhos e Daniela. Ela estava deitada no meio deles. Havia uma câmara que filmava tudo. A menina fazia um esforço para parecer morta, aquele vídeo tinha de ser convincente. Todos tinham de acreditar que ela havia morrido e que por isso a família também decidiu suicidar-se. Era esse o plano de Ndombaxi desde o princípio, aquele acidente deu-lhe apenas a oportunidade de que precisava. A menina não havia morrido – desmaiara apenas. – Acho que deviam pôr um pouco mais de branco na minha face – disse Daniela, ao levantar o braço. – Que escrita é essa? – perguntou Ndombaxi, ao olhar e pegar para o antebraço dela. – Havia uma mulher de capuz com aqueles loucos – disse Nazaré Canzar. – Eu queria saber quem ela era. O Inácio disse que a resposta está aí. Ndombaxi olhou bem para o braço da menina. A letra – ele reconheceu a letra. «Aicrétan. Ahlif aut é ale». – Meu Deus! – exclamou ele, ao entender a mensagem. – Ela não está morta. – Quem? – perguntou Daniela. – A filha do senhor Inácio – disse ele parcialmente assustado. – Como sabes? O que diz aí, papá? – Basta leres tudo da direita para a esquerda: Ela é minha filha. Natércia. – Sabem o que isso quer dizer? – perguntou Lourenço, ao endireitar a câmara. – Que é ela quem anda por trás de tudo isso. Mas não temos tempo. Vamos gravar e sair daqui.
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Enquanto a família Canzar se preparava para o vídeo, Ivone Tchivela tinha uma estranha conversa com Fernando Cuchi. – Aqueles malucos estão todos mortos – disse ele, ao sorrir como um demónio. – Como é que sabes disso? – perguntou ela, ao andar até à varanda e olhar para a casa dos Canzar. – Aquela explosão foi tribal! Duas bombas, mboa! Duas! Pensas que eles são imortais ou quê? Enquanto ele falava, Ivone reparou que num dos sítios da casa que estava escuro, uma lâmpada foi acesa. «Meu Deus! Eles estavam aí. Eles voltaram» – disse de si para si, despreparada para o que Fernando lhe diria a seguir. – E agora, miúda. Vais assistir a uma outra explosão – disse ao abraçá-la por trás. – Vai ver aquela casa a incendiar. – Como assim – inquiriu, ao beirar a rouquidão e a gaguez. – Eu entrei aí há algumas horas com as chaves que o Constantino te deu e abri as bocas do fogão deles. Há gás por todo lado. E dentro de dois minutos, vais ver alguém a correr para aí com uma garrafa de petróleo acesa e lançá-la aí dentro. – Seu estúpido! – disse, ao atingir-lhe o estômago com o cotovelo. – Quem te disse para tocar nas minhas chaves. Antes de sair e começar a correr em direcção à casa dos Canzar, Ivone voltou a atingi-lo, mas desta vez na cabeça. Dentro da casa dos Canzar, tudo estava pronto. – 0K – disse, Ambrósio. – Vamos gravar isso e ir embora. – Não se esqueçam – lembrou Ndombaxi. – Ponham a cara triste que conseguirem. Um, dois, três, gravando. Podes falar Lourenço. – Olá, sociedade. Somos a família Canzar e, por vossa causa, dentro de alguns minutos estaremos mortos. A senhora gigantesca que vêm neste momento é a minha mãe. Ela é determinada e inteligente. Este rapaz de cabeça rapada é o meu irmão mais jovem. É versátil, no sentido mais lato da palavra. O das suíças aparadas veio antes dele. É extremamente inventivo. O sem pêlos na parte superior dos lábios é mais velho dos dois. É um cantor excepcional. O gigante que vêm com as correntes na mão é o primogénito. Entende de escrita como ninguém. Eu vim depois dele. Gosto de animais. A menina que vêm deitada sobre o caixão é filha de todos nós. E, novamente, por vossa causa, ela já não respira. Está morta. E, no fim deste vídeo, nós vamos segui-la. Enquanto se preparavam para beber o que parecia ser veneno, na rua, Ivone corria desesperadamente. O jovem com a garrafa de petróleo acesa – o jovem com a garrafa de petróleo acesa passou à frente dela. Ela correu para alcançá-lo, mas não foi possível. Ele lançou não uma, mas duas garrafas incendiadas para dentro da casa. Os Canzar se preparavam para beber o fictício veneno. Um deles sentiu o cheiro a gás. Mas já era tarde demais. No apartamento de Ivone, Fernando se divertia com a explosão. Ele gostava de ver aquela fumaça totalmente negra e as chamas causticantes. Ele dançava, sorria. Mas abaixo uma figura com um capuz batia palmas ao lado de idosa que gritava: – Aleluia! Aleluia! Porquê? «Caiu! Caiu… aquela que fazia… beber do vinho da ira da sua fornicação!» – Revelação (Apocalipse) 14:8.
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CAPÍTULO XVI Passaram-se alguns anos. O mundo já não era a mesma coisa horrível – o caos e a desordem já não reinava. O preconceito e tudo que lhe era próximo havia desaparecido. Agora as pessoas viviam em paz. Até as feras já não eram feras. Os animais conviviam com os homens. Todas as doenças haviam desaparecido. Os coxos corriam, os cegos viviam, os gagos falavam claramente, os albinos – já não existiam albinos, a melanina estava em sua pele e em seus olhos! Era um mundo de sonho, mas no mundo real. Um leão bebia água no rio, quando, de repente, seu olfacto captou o cheiro de pessoas conhecidas. A fera mansa começou a correr na direcção deles. Quando os alcançou, recebeu o forte abraço de uma menina. – Oh! Leãozinho! – exclamou ela, ao ver que as pessoas com quem ela andava o acariciavam. – Sentiste saudades? Eu, a Gina, o Estêvão, o Beto e a Lucrécia fomos nos divertir sem ti – disse, ao lembrar-se que os amigos também haviam morrido na explosão que ocorrera em sua casa, por se terem refugiado por causa do barulho de pedras e garrafas que muitas pessoas faziam naquela madrugada. – Sentiste saudades, não? – Acho que sim – respondeu uma senhora gigantesca. – Devíamos tê-lo levado para nadar connosco, não achas Ndombaxi? – Ele não iria gostar de pôr um fato de banho. Principalmente este que a Ivone está a usar – respondeu o outro. – Ele perdeu! – disse a outra, ao colocar a criança em seus braços sobre o chão. – O que queres fazer com o meu filho, Kalu? – Eu e o Zau queremos ver quem corre mais – respondeu o outro. – Nós ou ele – disse, ao fazer cócegas ao menino. – Também posso participar? – perguntou o senhor ao lado da gigante. – Se o Constantino participar – disse um outro –, eu e o Lourenço também vamos. – 0K. Pode ser, Ambrósio – concordou o homem que tinha dado a ideia. – Um, dois, três e vamos! Enquanto os homens corriam à sua frente, a gigante, a mãe do menino e a menina que segura o leão sorriam. Nenhuma demonstrava ódio pela outra. Sorriam apenas, e de forma feliz. Nada de preconceito ou ressentimento. Apenas amor e entendimento. Antes de os homens voltarem com o menino ao colo, as três olharam uma para as outras e abraçaram-se. Porquê? «As coisas anteriores já passaram.» – Revelação (Apocalipse) 21:4. Fim
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