NGOMA USUKU
DE PERSONAGENS (O CASAMENTO) Pelรกgio Jorge Chaves Seca AGOSTO 2009
– CAPÍTULO I – ●
A preocupação do noivo
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– Usuku... Usuku... Acorda, primo – imperava uma mulher enquanto fazia o corpo do detentor do nome enunciado mover-se para lá e para cá. – Disseste que tinhas algo importante para fazer hoje, não? Vais atrasar-te. Acorda, mandrião! – As pessoas perderam as boas maneiras. Quando foi isso? – perguntou de forma sarcástica o homem deitado sobre a cama, ao abrir sofregamente os olhos. – Espera! Já sei: nunca as tiveram. – Tu é que me pedes para te fazer este favor, e ainda me chamas nomes? – contestou a outra ao puxar a colcha sobre o corpo do outro. – Sílvia... andaste a beber ontem? – inquiriu ele em tom de piada, ao levantar-se para sentir o hálito dela. – Não cheira a álcool, mas deves estar bêbada. Eu não te disse nada sobre me acordares hoje... – Escrever muito está a te tornar na pessoa mais esquecida do mundo. Disseste-me que tens de pensar no presente que queres dar à Braulia. Só faltam duas semanas para o casamento… A última frase, embora inacabada, fez o homem sobressaltar-se. Em movimentos mormente desordenados, pulou da cama e dirigiu-se às pressas ao quarto de banho. – Porque não disseste nada? – perguntou ele. – Foi o nada que te acordou, não é mesmo? – inquiriu com graça dirigindo-se para a cozinha. – Tens certeza que ainda não pensaste mesmo em nada para lhe oferecer? – Porquê? Achas que estou tão preocupado com isso para fingir? – Não – respondeu a outra, enquanto cortava pequeníssimas tiras de queijo e as colocava na boca. – Mas sei muito bem que não fazes as coisas em cima da hora. Porque é que em algo tão importante como o teu próprio casamento…? – É isso que me está a pôr louco! Como é que até agora não me surgiu nenhuma ideia original? Parece que gastei-as todas nos livros que escrevi… – Isso! Imite o que uma das personagens dos teus livros deu à sua noiva e pronto! Assunto encerrado. – Sabes que não gosto de imitações, mas sim de superações, mesmo que a ideia tenha sido minha. Tenho de fazer algo melhor. – Andas a pensar nisso há um ano e meio! Ou estás a mentir ou ficaste tolo! – A última hipótese é mais reconfortante. Deve ser por isso que ando a ter tantas dores de cabeça… – Já foste ao hospital três vezes… e isso só nesta semana. E estamos ainda na sexta-feira! Isso está a ficar sério. Não tens de te matar só para surpreender a tua esposa… ou noiva. A tua saúde vem primeiro. – Não se trata de surpreendê-la apenas. É uma forma de vida. Não sei viver com limites. Conheces-me bem. Desde criança que sou assim…
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– Mas já não és criança nenhuma – replicou a outra, ao ouvir a porta do quarto de banho ser aberta. – Prejudicares-te por causa de um capricho… de um desafio parvo que tu mesmo te impuseste é a mais sólida das tolices. – Sabes que vais falar, falar e falar – dizia ele, a escassos segundos de aparecer no campo de visão dela – mas não te vou dar ouvidos. A coisa é assim; é inevitável. Se eu não fizer por mim mesmo, quem o fará? E mesmo que houvesse quem o fizesse, não seria a mesma coisa… – Usuku! – gritou ela, como se suas pupilas tivessem fixado a imagem de um fantasma, ao fazer com que o outro se alarmasse. – O que foi? – perguntou ele, ao beirar a rouquidão e a gaguez. – O teu nariz – disse ela, ao aproximar-se com preocupação exagerada e apontar para a face dele. – Estás a sangrar pelo nariz.
♣ Embora sentisse que sua saúde beirava a margem do colapso, passadas algumas horas, o homem conhecido como Ngoma Usuku desconsiderou os repetidos conselhos de sua prima e fez-se presente no local onde trabalhava. As pessoas olhavam para ele estupefactas. Como era possível alguém ter tido dois ataques cardíacos e uma síncope tão recentemente e continuar a agir com o mesmo frenesi? Seu corpo não demonstrava cansaço. Seus olhos brilhavam com sagacidade. Não era um humano abatido pela fragilidade daqueles que possuem carne e sangue. Os doutores não tinham como obrigálo a ficar internado. Como poderiam? Ele estava perto de uma ideia maravilhosa, perto de uma ideia surpreendentemente grandiosa. Ele sabia disso. Não podia desistir por o corpo humano ser susceptível a doença e ao desfalecimento. Além disso, seu casamento estava muito perto de deixar de ser uma conjectura viável para se tornar numa acção realizada. Catorze dias – catorze dias era o tempo que faltava para o seu enlace. Se fosse internado, toda a burocracia envolvida para a efectuação do consórcio ficaria comprometida. Ele não podia permitir que a fragilidade de seu tecido cardíaco adiasse a consumação de sua felicidade. Contudo, foi-lhe alertado que, se tivesse mais um género de esgotamento, seria confinado a uma cama de hospital à força. Portanto, não podia se dar ao luxo de projectar uma imagem afadigada às pessoas. Alegria era o que tinha de emanar de seus poros. Vivacidade era o que precisava exalar em seus gestos. E era isso o que fazia. Enquanto andava em direcção à sua secretária e era alvejado por olhares atónitos e murmúrios temerosos, o homem conhecido como Ngoma Usuku esboçou um sorriso para a última pessoa no corredor. A pessoa empreendeu a reciprocidade do gesto. Ele sentiu paz naquele momento ínfimo. Quando a sua secretária se encontrava a poucos milímetros de seu alcance, estendeu a mão e puxou o assento. Sentou-se com elegância. Suas pupilas percorreram a superfície da escrivaninha com perscrutação e notaram que algo faltava. O algo era uma pilha de documentos que necessitavam de avaliação minuciosa. Ele sorriu. Sabia que o desaparecimento fora propositado; a entidade patronal decidira dar-lhe o mínimo de trabalho possível para que, mesmo estando na empresa, praticasse parte do repouso aconselhado pelos médicos. Melhor para ele, assim podia pensar na surpresa para o casamento. 3
Ao ligar o computador, uma leve dor de cabeça atingiu-o de rompante. Ele abriu a mão e colocou os dedos sobre a testa. Sua cabeça latejou com mais força. Seu lábio inferior tremeu e sua boca deixou escapar um ar febril. Ele sentiu-se entontecer. Fechou os olhos mui calmamente e respirou de forma exageradamente pausada. Após alguns segundos, o mal-estar pareceu desvanecer-se; ele sentiu-se melhor. O homem sabia que não podia emanar alívio por aquele golpe da susceptibilidade dos seres de carne e sangue ter sido efémero e rotulado por fracasso. Ele entendia muito bem que aquilo fora uma retirada estratégica do inimigo, pois a doença descobriria um momento em que o expoente de sua vulnerabilidade tendesse a internamento ou a morte para voltar a atacálo. Contudo, o homem não tinha medo – ele não temia a nenhum desses desfechos. Ele sabia que nenhuma destas fatalidades se tornaria real antes de ele dar à única mulher que correspondia ao seu amor de forma irrepreensível um casamento à altura. Ele desafiava o destino. Confrontava a morte e sorria de forma vitoriosa. Mas, e depois? Sim, após se ter passado o casamento – o que aconteceria? E se morresse? Teria valido a pena dar ao seu amor um casamento repleto de surpresas arrebatadoras num dia e no outro, lágrimas fúnebres? As invectivas de sua prima, embora ignoradas por ele a princípio, faziam-lhe agora cogitar profundamente nessa possibilidade. E se morresse? – Bem, a vida é cheia de imprevistos – disse ele, de si para si. – Se morrer, morrerei. Humanos não podem evitar o seu fenecimento. Podem apenas adiá-lo relativamente. Deus! O que dizia ele? Não era essa sua forma de pensar a mesma que a de um suicida? Não seria essa uma forma pusilânime e reprovada pelo Criador de acabar com a própria vida? Seus pensamentos se baralhavam. Ele não gostava daquela sensação. Sua consciência não podia vacilar agora que faltava tão pouco tempo para o casamento. Ele – precisava de ajuda, ele – necessitava de dialogar com alguém que o compreendesse. E, se havia um homem que poderia entendê-lo, tal só poderia atender pelo sobrenome Vieira Dias. Ligou o computador e iniciou a sessão no Messenger. Excelente – aquele com quem queria conversar estava online. O homem começou imediatamente a premir as teclas. – Então? – escreveu Ngoma Usuku. – Já tão cedo na net? – À mesma hora que tu – escreveu o outro em resposta. – As tuas dores de cabeça passaram? Ontem estavas mal enquanto assistíamos ao filme. – Não era a cabeça que me doía, mas sim as orelhas. O meu sistema auditivo não aguentava mais captar as baboseiras da pessoa que sentou ao meu lado. Ela estava a tentar contar-me o filme. E nunca o tinha visto! Errou em todas as suas predições infundadas. Acho que tinham posto algo nas pipocas dela. – O bom é que nenhuma pipoca fez com que ela se engasgasse – escreveu com piada maliciosa, ao notar que o outro se desviara do assunto que pautava a doença. – Ouviste a música que te enviei ontem? – Yep! Principalmente o coro. A Sílvia cantou-me algo parecido hoje de manhã… – Como assim? – Ela acha que estou a suicidar-me por estar tão empenhado em surpreender a Miúda. – A sério? Essa Sílvia… E tu? O que achas? – Eu não acho, eu deixo.
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– Queres dizer que em vez de te preocupares com suposições, embora faças o máximo para que as coisas corram do teu jeito, entregas as coisas ao tempo? – E não é assim que as coisas são? Que poder tenho eu para afirmar que amanhã estarei novamente aqui a conversar contigo? Posso no máximo planejar estar aqui… – E se esse plano acabar com a tua vida? – Eu não estou a planear algo que pode acabar com a minha vida! Eu estou apenas a planejar felicidade, encantamento e êxtase. – A minha pergunta persiste, mas vem reformulada: E se o objecto deste plano não te pediu que o engendrasses e soubesses que no fim do mesmo morrerias? – Morte… Sempre ela. Ela nem sequer é um ser pensante. Ela não faz planos. «Eu vou matar o Usuku depois do casamento dele», diz a Morte, ao afiar a sua enorme acha de armas – escreveu com sarcasmo. – Eu sei que estou a fazer um bem que não me foi pedido, mas que fará feliz a alguém e provavelmente me matará. Será isso errado? – pôs em cheque, ao saber que seu amigo fazia apenas aquelas perguntas para saber o quão firme estava em sua determinação de continuar com tal plano. – Não acho que seja errado. Estás a visar os interesses desse alguém. Também já fiz isso, esqueceste-te? – Lembra-me… A pessoa do outro lado parou de escrever por alguns instantes. Seria possível que seu amigo estivesse a perder a memória? Ou era apenas uma jogada para que Usuku sentisse naquelas recordações que tomava a atitude acertada? Como saber? O homem que atendia pelo apelido Vieira Dias voltou a escrever. – Não precisamos de citar nomes, pois vais dar conta de quem falo. Com aquela mulher, eu sabia que o certo era me afastar dela mas, sempre que ela precisava de mim, lá ia eu com um simples olhar; eu entendia rapidamente as necessidades dela. Falávamos até tarde da noite, mensagens até de madrugada e... coisas do género. – E sentiste alguma culpa enquanto fazias isso? – Sim. Porque alimentava algo que não podia ser, dando-lhe esperanças que poderia ser… – Enquanto o fazias, ou depois de o fazer? – Normalmente depois de o fazer. Enquanto fazia, a sensação era boa. – Algo como êxtase? – Exactamente. – Então realmente me entendes. Mas acho que dizendo que alimentavas algo que não podia ser, estás a ocultar a verdade. Estás a assumir todas as culpas, como se tivesses feito tudo sozinho, como se não tivesse dado certo por tua causa. Chama-se a isso autocomiseração. Não és o único culpado. Não uses a modéstia de forma errada. – Sabes muito bem que preciso pensar assim. É a melhor forma. Não gosto muito de tocar nesta história. A auto-comiseração é mais agradável. Sofro apenas eu. – Eu não diria melhor. A conversa continuou por horas. Sentimentos similares foram trocados diante da tela daquele computador. O premir das teclas ajudou-o a relaxar. Sua preocupação pareceu desaparecer no estender daqueles minutos. Ao meio-dia, saiu para almoçar. Enquanto andava sobre a calçada, o sol revitaliza suas energias. Ele olhava para todos os cantos. Ele buscava ideias. Um menino a correr, dois cães a ladrarem, buracos
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no terreno alcatroado, carros estacionados, poeira, bacias de pão – tudo era visto com sindicância. Talvez encontrasse a sua ideia magna por acaso. Contudo, sua pesquisa foi interrompida por uma voz feminina. A voz – ele ouvira aquela voz a manhã toda. Seria uma perseguição. – Usuku! – chamou a voz. – Espere por mim. Ele parou. Colocou-se em posição cabisbaixa. – O que foi dessa vez, Sílvia? – perguntou ele, sem olhar para ela. – Já não estou a sangrar. E se estás a ver sangue, não é sangue. É um líquido vermelho estranho que um dos meus colegas colocou na minha face sem eu saber. – Calma. A doutora aqui não sou eu. Não vim te chatear mais. – Então estás aqui para…? – Para ir contigo à casa. É hora do almoço, não? – Onde trabalhas há um refeitório. Sempre almoçaste lá. Porque de repente, hoje, tu…? – Pára, senhor Paranóia. Tive uma ideia para te dar sobre o teu casamento. Não queres ouvi-la? – É suposto essas tuas últimas palavras interessarem-me, não é? 0K. Vou fingir que me interesso, mas sei que só me queres controlar. – É sério – disse a outra, ao entrelaçar o braço dela no dele e começar a andar. Ele seguiu-a. – Vai ver que será uma boa coisa. – Esperemos. Não me responsabilizo pelo que pode acontecer se for mentira. – Vais fazer o quê? – Conto ao teu noivo que ainda tens bonecas e brincas com elas antes de dormir… e quase sempre queimas o chá. – Ele não iria acreditar. – Com as fotos que te tirei ontem? Duvido! – Não tiveste essa audácia, tiveste? – Não sei. Depende daquilo que me disseres durante o almoço. – 0K. Não vais te arrepender. O casal continuou a andar por mais algum tempo. Segundos depois, a porta de seu domicílio apareceu em seu campo de visão. Eles entraram. Contudo, Usuku sentia que uma dúzia de passos o seguia.
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– CAPÍTULO II – ●
O brotar do fantástico
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A sala estava impregnada pelo aroma que saía dos pratos servidos sobre a mesa. O homem sentado à esquerda girava o talher em volta da leve fumaça que subia do alimento à frente de si. A mulher sentada do lado oposto acabava de dar um gole de uma bebida gelada e preparava-se para se tornar audível. O homem não olhava para ela. Seus pensamentos vagueavam. Ele tinha agendado aquele dia como o dia em que descobriria finalmente o que dar à sua noiva no dia de seu casamento. Seu apetite parecia exaurido. A sua refeição da tarde corria o risco de transformar-se em refeição nocturna. O que poderia ele fazer para surpreender uma mulher que conhecia tudo sobre ele? Mesmo que ela não soubesse que surpresa lhe preparava, com certeza sabia que ele preparava algo. Portanto, não seria uma surpresa totalmente surpreendente. Surpresa surpreendente? Essa tautologia dava-lhe algum vislumbre daquilo que realmente queria. Se não fosse a interrupção das palavras articuladas de rompante pela mulher à sua frente, talvez tivesse pensado mais naquela expressão e chegado à ideia tão almejada. – Ouve a minha ideia – disse a mulher ao fazer gestos e expressões entusiásticos. – E se simulasses que estás numa ambulância enquanto a Braulia está no salão da festa? – Sílvia, estou doente. E acho que por causa disso o meu cérebro ficou lento – gracejou com sarcasmo. – Podes explicar melhor essa tua ideia? – Esqueci-me que falo com alguém com QI muito baixo. Vamos falar em termos infantis. Também queres que eu fale lentamente? Parece que não. Muito bem. Quando a Braulia estiver dentro do salão à espera que entres – começou a explicar a mulher com um brilho ofuscante no olhar – tu deixas passar uns bons minutos. Enquanto o teu carro chega, ouve-se o barulho de um acidente de viação. Tu estarás envolvido neste acidente. Todos ficarão alarmados. Em seguida, ouvir-se-á uma sirene de uma ambulância e te colocarão nela. A Braulia vai ficar desesperada. Vai correr para ver como estás quase aos prantos. Quando chegar perto – a mulher fez uma pausa para que o suspense adentrasse, depois continuou com uma voz quase sussurrante – notará que na verdade não és tu, mas o teu irmão menor. Ela vai sorrir e ficar nervosa ao mesmo tempo. Quando tudo se acalmar e ela voltar ao salão, ainda à porta, notará que já estás dentro dele, mas de costas e com os braços dados com outra noiva. Antes que ela possa fazer qualquer outra coisa, como fugir amargurada ou atirar-te com os bolos, vão aparecer mais umas sete noivas valsando na frente dela e sete noivos que vão colocá-la numa cadeira no alto e transportála para perto de ti. Serão os damos de companhia! O resto dos detalhes fica a teu cargo. E aí? O que achaste? – Erros do plano: Primeiro, o noivo está sempre com a noiva; eles entram sempre juntos para o salão. Não há como ela estar dentro do salão e eu chegar depois. Segundo, a Miúda tem medo de alturas. Os outros erros são menos importantes. – Bem, ao menos diz que pudeste aproveitar alguma coisa daquilo que eu disse – pediu ela, sem dar a entender ao outro que aquilo fora um teste para ver até que ponto ele poderia ainda pensar com lógica e recorrer rapidamente à memória. Todos estavam preocupados com a sanidade dele. O pior temor dos que se importavam com aquele
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homem era que, por fim, a demência se alojasse em sua mente. – Vá lá, diz! Tenho de saber que fui útil para a felicidade dela. – Realmente, o teu plano pode servir para estimular a minha criatividade – disse o outro ao começar a degustar o alimento à frente de si. – Ao menos aumentou o meu apetite. – Sei que a minha ideia… Antes que a frase da mulher pudesse adquirir valor semântico, alguém bateu a porta. Ao mesmo tempo, o telemóvel de Ngoma Usuku vibrou sobre a mesa onde ambos estavam. – Quem veio nos visitar a essa hora? – inquiriu Sílvia retoricamente ao levantarse. – Não vamos poder atendê-lo; daqui a pouco voltamos para o nosso trabalho… Ao notar o nome marcado no visor de seu telemóvel, Usuku teve como intenção impedir sua prima de abrir a porta. Seria ela? Não – não podia ser. Ela não podia bater a porta e ao mesmo tempo ligar para ele. Contudo, aquela mulher não tinha um comportamento constante. Nunca se podiam prever os seus passos. Ela sim podia fazer surpresas surpreendentes. Sua prima continuou a andar em direcção à porta. Ele tentou acalmar-se. Os segundos entre a porta e o corpo de Sílvia pareciam transmitir-lhe tensão extrema. Suas batidas cardíacas acompanhavam o andar dela – um passo, duas batidas, um passo, duas batidas. Sua prima parou frente ao espelho e endireitou o cabelo. Ele acalmou-se. A mulher voltou a bater à porta. Sílvia voltou a empreender a angustiante locomoção bípede. Contudo, agora era um passo, uma batida, um passo, uma batida. Sua prima olhou pelo olho mágico e sorriu – uma batida. Era provavelmente alguém conhecido. Sua prima colocou a mão na maçaneta – uma batida. Sua prima abriu a porta e cumprimentou a pessoa e convidou-a para entrar – uma batida. A pessoa entrou. Usuku viu-a. Não, não podia ser ela. Ela não! A pessoa acenou para ele – três batidas.
♣ Três batidas foi o que ela ouviu contra a porta à frente de si. Era esse o número de batidas combinadas por ela e suas amigas. Finalmente as pessoas com quem havia planejado aquela viagem haviam arranjado uma forma de escapar de seus cônjuges sem levantar suspeitas. Ela levantou-se e abriu a porta com satisfação. Três mulheres entraram e a abraçaram. Os sobrenomes delas eram Machado, Silva e Fonseca. As quatro trocaram longos cumprimentos e risadas à porta. Depois se dirigiram até aos assentos na sala do apartamento. – Tens chá aqui? – perguntou a mulher de sobrenome Silva ao sentar-se. Ela era de tez morena. Seus cabelos eram castanhos-escuros. Seus lábios possuíam um rosado fraco como cor. Seus olhos eram grandes e radiantes. Seu corpo era volumoso mas perfeitamente projectado pelas mãos hábeis da sedução. – Acho que depois de ter esperado tanto tempo por vocês os pacotinhos já devem ter evaporado – gracejou a anfitriã ao dirigir-se para a cozinha com uma delas. – Mas vou ver o que posso fazer por ti. – Como estão as crianças que vieste ajudar aqui? – perguntou a mulher que entrara para a cozinha com a anfitriã. Seu sobrenome era Machado. Ela era de tez escura, 8
mas reluzente. Seus olhos eram grandes, negros e cintilantes. Seu corpo era o menor entre as quatro presenças femininas naquele apartamento, contudo, suas formas eram as mais provocantes. – A maioria está a reagir bem ao tratamento – respondeu a anfitriã ao abrir a porta do armário à frente de si enquanto a outra punha a água na cafeteira prateada sobre o fogão a aquecer. – Só algumas é que estão em estado crítico. Terei de mudá-las para um lugar onde possam passar por uma minuciosa cirurgia. – Uou! Cirurgia?! Não será extremista esta tua acção? – Tens de ver como elas estão. Mais alguns dias e elas só terão forças para fechar os olhos uma última vez. – Então é grave mesmo! Já fizeste alguns contactos? – Não está fácil. Pessoas pobres nunca recebem ajuda prontamente em lugar algum… – Mas não estás só a cuidar de pessoas pobres, amiga. – Sim, mas quando eu atender as crianças ricas, o que será das que sobrarem? Parecerá que salvei as ricas por serem ricas e deixei morrer as pobres por puro preconceito. – Deus! Tu não pensas assim! O que é que estás a dizer? Vieste aqui nas vésperas do teu casamento para cuidar de crianças doentes e ainda assim estás preocupada com o que as outras pessoas vão pensar de ti? Se não salvares nem aquelas que estás em condição iminente de salvar por causa desse teu medo, no que isso te tornará? – Como assim? – Se salvares o maior número de crianças aqui terás o nome de heroína. Mas se deixares morrer as crianças ricas porque queres salvá-las com as crianças pobres, que nome terás? – É complicado responder a isso – disse a anfitriã ao sentir-se desconcertada. – É bom saber que o casamento não diminuiu o teu pensamento relâmpago. – Porquê? Achavas que marido e filhos me tornariam mais lenta? Ou menos inteligente? – perguntou a mulher de sobrenome Machado ao pôr fim ao aquecimento da água e retirar a cafeteira com a pega vermelha em sua mão. – Bem, é esse o meu medo se eu casar – gracejou a anfitriã ao dirigir-se com a outra para a sala. – Casar! – exclamou a mulher de sobrenome Fonseca enquanto a mulher de sobrenome Machado e a anfitriã colocavam a loiça para o chá sobre a mesa. – É sobre isto que viemos para aqui falar. Não quero delongas. Então, qual é o plano? Antes que pudesse responder, a anfitriã sentou-se e respirou fundo. Seu olhar passou de um brilho alegre para um cintilar aflitivo e sua voz era quase trémula quando ela enunciou as palavras que fez as suas amigas ficarem totalmente estarrecidas: – Tenho medo do meu noivo. – Como assim?! – exclamou em questão a mulher de sobrenome Silva. – Ele nunca te faria mal algum! – Por isso mesmo é que tenho medo dele. Ele só faz o bem para mim. Claro que ele tem os seus erros, mas só os comete por ser imperfeito. Ele é capaz de me amar só se eu quiser que ele me ame. É capaz de me perdoar, não importa a coisa que eu faça. Um homem assim deve ter passado por algo muito forte, um trauma ou algo do género.
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– Ou pode apenas ter lido muitos livros bons e aprendido deles – contraargumentou a mulher de apelido Fonseca. – Sei que parece estúpido – continuou a anfitriã – mas às vezes penso se ele ama mais a ele mesmo do que a mim… – Falas de narcisismo? – perguntou a mulher de apelido Machado. – Sim. – Ele nunca te negou que é narcisista. Se bem que acho que aquilo não é narcisismo. É mais um mecanismo que ele arranjou para se defender do sofrimento. Ele sente que é o único humano que pode entender-se completamente. Porque achas que ele colocou um sósia no livro Paixão Literária para lhe dar conselhos? – Bem colocado – concordou a anfitriã. – E até acho isso normal. Quem de nós, exceptuando Deus, pode entender e julgar as nossas acções? Quem sabe melhor as nossas intenções ao fazer qualquer coisa? Só nós mesmos! Isso não é narcisismo; é usar a autoestima contra os imprevistos da vida e a comiseração. Ao pensar muito sobre esse assunto, lembrei-me, com certo temor, que a frase de origem bíblica que mais sai da boca dele é: «Fomos feitos à imagem de Deus.» Será que de alguma forma ele ser adorado? – Tens andado a pensar muito sobre esse assunto, amiga – asseverou com um sorriso a mulher de sobrenome Silva. Estás a cogitar barbaridades sobre o homem! Penso – e sei – que ele não quer um género de adoração ou extrema admiração. – Se quisesse ser adorado, obrigaria ou faria de tudo para as mulheres que o abandonaram no passado voltar para ele. – Então posso presumir que ele adora a si mesmo – continuou a anfitriã. – Ele deve ter o Complexo de Deus, não? – Não! – respondeu a mulher de sobrenome Machado. – Ele não acredita ter todas as respostas e que seria aviltante ouvir qualquer pergunta vinda de outros. Ele também não pensa que é bom demais para se explicar nem age com autoritarismo ou arrogância. Ele não desdenha qualquer ideia alheia. Se isso fosse verdade, teríamos de remontar também ao narcisismo, e já passámos por essa fase da conversa. – Eu sou a única aqui que conviveu pouco tempo com ele – disse a mulher de sobrenome Fonseca. – Mas deu para conhecê-lo bem. Eu acho que a pergunta que tem mexido mais com a cabeça da amiga aqui é: Se ele é assim tão bom, porque as outras mulheres o deixaram? Acho que me responderás assim: «Eu já pensei em falar com elas acerca disso… Será que foi medo de não conseguir corresponder às expectativas dele? Não, sei que não. Ou será que foi um defeito dele? Se foi, nenhuma teve coragem suficiente de lhe falar isso.» Acertei? – Sim. E acrescentaria mais. Vocês três já se apaixonaram por ele. Ninguém melhor do que vocês poderia me dar a resposta às perguntas que farei. Começamos contigo – disse a anfitriã ao olhar para a mulher de apelido Machado. – Porque não ficaste com ele? – Porque ele me dava um amor maior do que o amor que eu conseguia lhe dar. Sentia que estava a ser injusta com ele. Eu quis aprender a amá-lo da mesma forma, mas o perdi e me perdi nesta tentativa. Casei com outro. Mas sinto-me feliz na mesma. – E tu – disse a anfitriã para a mulher de sobrenome Fonseca – a única mulher que ele deixou. Porque fez ele isso? – Por causa de Deus, não era uma relação possível naquele tempo por causa de… Como direi? Conflitos de interesses. Ele escolheu obedecer as leis de Deus a ficar
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comigo. No início, achei que ele estivesse a exagerar no zelo para com os assuntos religiosos, mas agora entendo-o perfeitamente. As palavras «casar-se somente no Senhor» tem maior significado para mim hoje. – No meu caso – pronunciou-se a mulher de sobrenome Silva – foi uma mistura da razão que vocês duas falaram a pouco. Confesso que também fico intrigada com a forma dele de agir. Ele pode ter muita vontade de pedir à rapariga para voltar para ele, mas ao pensar que no momento ela pode estar feliz com outro, ele sorri por ela, fica feliz por ela; decide não a incomodar. – Mais estranhas são as músicas que ele ouve – interrompeu entre sorrisos a mulher de sobrenome Machado. – Deus! Ele é capaz de ouvir repetidas vezes uma música que lhe causa dor só para que ele se torne insensível aos sentimentos que a mesma lhe causa. – É fácil concluir a razão de ele fazer isso: Ele não gosta de sofrer – completou a anfitriã. – E ao mesmo tempo ele gosta de sofrer – continuou a mulher de sobrenome Machado. – Quer dizer, ele usa o sofrimento para criar algo bom como um livro ou um poema. Ele gosta de transformação, mutação, não de chorar pelo que já foi feito. – Esperem lá! – embargou a mulher de sobrenome Fonseca ao olhar fixamente para a anfitriã. – Porque é que só depois de tanto tempo de convívio com ele te surgem essas dúvidas? – Porque talvez eu venha a deixar de ser noiva dele e me torne… esposa dele. Isso tem mexido com os meus sentimentos. Tenho pensado dias e noites sem parar sobre esse assunto. E ninguém melhor do que vocês que já namoraram com ele para me explicar isso e me darem a certeza que faço a escolha certa. – Parece-me mais que estás a pensar em desistir algo – asseverou a mulher de sobrenome Silva. A anfitriã sorriu com parcial malícia. Seu sorriso demonstrava que era até aquele ponto que ela queria levar a conversa. Antes que pudesse articular as palavras que deixaram totalmente especadas suas amigas, levou a pequena chávena de chá até aos seus lábios sedutoramente acastanhados: – Sim, estou a pensar em desistir do casamento. Ora, o nome da anfitriã era Braulia, a chamada Miúda por Ngoma Usuku.
♣ Os batimentos cardíacos do homem conhecido como Ngoma Usuku estavam acelerados – uma das mulheres em sua sala causava celeridade em sua corrente sanguínea. Costa – era esse o apelido da mulher. Era de idade avançada e estava tradicionalmente aperaltada. Seus cabelos grisalhos demandavam respeito. Não – ela não usava cajado para se locomover. Era de baixa estatura e tinha voz firme. Ela vivia a mais de sessenta quilómetros de onde Usuku e Sílvia viviam, portanto, acabava de chegar de uma estafante viagem. Porque razão estava aí? Quem era aquela mulher? A resposta à primeira pergunta não era um segredo para Usuku, por isso seu ritmo cardíaco estava disparado. A resposta à segunda – sua avó, a mulher que acabara de entrar era avó de Ngoma Usuku. 11
– Não vens cumprimentar-me, neto? – perguntou a senhora com expressão austera. – Porque não nos disse que vinha, avó? – perguntou Sílvia enquanto Usuku dava passos trémulos em direcção a elas. – Nós poderíamos ter ido buscá-la. – Ah! É isso que vocês dizem sempre. Não estão fartos de repetir sempre a mesma coisa. Quando vocês chegarem a minha idade verão que terão pouco tempo para repetir qualquer coisa – explicou com parcial humor ao lhe serem beijadas as faces por Usuku. – Não estás com um aspecto tão adoentado, menino. Mas sei que não estás bem. Contudo, falaremos disso daqui a pouco. Por enquanto, podes, por favor ir pegar algumas coisas que deixei no carro aí fora? – Ouço e obedeço, senhora Controladora – assentiu ele com voz baixa ao dirigir-se para a porta. Quando seus pés se encontraram no quintal, Ngoma Usuku intentou soltar um grito estridente. A sua avó estava aí para demovê-lo da ideia de fazer uma surpresa para sua noiva. E ela sempre teve bons argumentos para o fazer desistir de qualquer coisa. Afora sua mãe, aquela senhora idosa sabia convencê-lo apenas com voz branda e conselhos que eram acompanhados de uma expressão infantil. O que faria Usuku? Ele não tinha tempo a perder. Faltavam-lhe apenas duas semanas. Ele alcançou o portão e conseguiu avistar o carro referido por sua avó. Enquanto ele andava em direcção ao auto, voltou a sentir que uma dúzia de passos o seguia. Quem seria? Pessoas enviadas pelos médicos para o internarem? Raptores? Homens que não o queriam ver casado com Braulia? Ele não se voltou para ver o rosto das pessoas, antes começou a andar rapidamente para confirmar que era atrás dele que elas andavam – ele chegou até a ultrapassar o auto que trouxera sua avó por causa disso. Os passos estavam cada vez mais próximos dele. Quem seria? Ele pensou em confrontá-los. Mas eles estavam em vantagem numérica, assim não venceria. Se fossem mesmo enfermeiros que queriam interná-lo, ele perderia. Mas não havia o que fazer. Ele precisava saber quem o perseguia. Pensou em virar-se e depois pular para o outro lado da estrada e fugir, contudo, tropeçou sobre qualquer coisa incrustada no chão e caiu. De repente, seu olhar abaixado reparou nas sombras que o cercaram. Eram provavelmente as pessoas que o seguiam. E agora? Seria mesmo colocado dentro de um auto e levado a um hospital à força? Não! Aquilo não podia acontecer. Ele tinha ainda de surpreender a Miúda, ninguém o podia impedir. Ele começou a sorrir (seu rosto continuava voltado para o chão). Ele reparou pelas sombras que uma mão lhe havia sido estendida, provavelmente para ajudá-lo a se levantar. Usuku pegou a mão em resposta. A mão estendida para ele era enorme. Ao levantar-se, Usuku sentiu-se entontecer. – O seu nome é Ngoma Usuku? – perguntou o homem que lhe havia estendido a mão. Os outros ao lado dele estavam calados, mas sua expressão era amistosa. – S-Sim – respondeu ele ao sentir que seus sentidos entravam em colapso. – Recebemos um convite para o seu casamento – continuou o homem. – Viemos falar contigo sobre isso. Usuku não produziu nenhum som. O homem e as pessoas com ele ficaram em alvoroço por causa disso. O homem não falava, não se mexia. O homem tinha os olhos fechados e os membros indolentes. O homem – o homem havia desmaiado.
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♣ – Olha para ele. Tão fraco – disse Ndombaxi Ilídio Canzar, o homem gigantesco que havia estendido a mão para Ngoma Usuku antes de os sentidos deste terem colapsado. – Como pode um homem assim vir a casar-se dentro de duas semanas? Talvez estejamos enganados: não é esta a pessoa que nos convidou. – Ele acabou de dizer que é – disse calmamente um outro homem ao endireitar a cabeça de Ngoma Usuku no banco do carro parado em que estavam. Seu nome era Márcio Pontes Pereira Nassembe, seu corpo não era tão volumoso como o Ndombaxi Canzar, mas possuía a mesma altura e seu rosto era aformoseado por uma estranha cicatriz. – Ele deve estar fraco por causa das inquietações do casamento. Deve ter tido um género de ataque de ansiedade. Eu senti coisas parecidas nas vésperas do meu casamento. – O Ndombaxi ainda não casou – completou o homem que estava sentado no lugar do condutor. Seu nome Carlos Chinengue Banzaia. A estatura de seu corpo e seu rosto eram assustadoramente parecidos ao de Márcio Nassembe, afora a estranha cicatriz que o segundo possuía. – É por isso que ele não entende este assunto. – Eu e o nosso amigo anónimo à minha trás ainda não nos casamos – disse Kaculu (seu sobrenome era desconhecido), o homem que estava sentada ao lado de Carlos Banzaia; seu corpo era notavelmente maior que o de Ndombaxi Canzar, contudo, seu rosto possuía as mesmas feições – mas não estamos de acordo com o diagnóstico de fraqueza do nosso amigo enfermeiro. Este homem é com certeza o Ngoma Usuku que procuramos. – Se tu o dizes, quem sou eu para duvidar? – rendeu-se Ndombaxi Canzar ao notar que Usuku recuperava os sentidos. – O homem está a despertar. Quem vai falar com ele? – Todos nós – respondeu o homem anteriormente mencionado como anónimo por Kaculu. – Mas como foste tu quem lhe deu a mão antes de ele desmaiar… – A Braulia vai se passar se souber disso – tugiu Usuku ao passar levemente a mão sobre a própria testa. – Porquê? – inquiriu Ndombaxi Canzar. – Eu tenho de… Eu tenho de lhe dar um presente e agora me acontece isso. Deixame sair desse carro, por favor – pediu com enorme cortesia. – Preciso de apanhar ar. Os homens entreolharam-se. Seria sábio deixá-lo sair? Só havia uma forma de obter a resposta a tal pergunta. Carlos Banzaia desceu calmante do automóvel e dirigiu-se para uma das portas do mesmo. Abriu-a calmante e, com olhar parcialmente mendicante, fez com que Ndombaxi também descesse do auto e desse espaço para que Usuku entendesse que seu pedido estava a ser atendido. – Obrigado – disse Ngoma Usuku após estar completamente fora do enorme auto preto e rapar que dentro deste havia um outro homem que ainda não se pronunciara. – Precisava de respirar mais livremente. – Não precisamos todos? – perguntou Carlos Banzaia com expressão humorística. – Estás doente? – Quem me dera saber! – exclamou com desconforto. – Se vocês estão aqui não tenho bem a certeza disso… – O que queres dizer? – inquiriu Ndombaxi ao reparar que um homem se aproximava rapidamente deles com um olhar ameaçador.
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– Nada de especial – obscureceu Usuku ao esboçar um sorriso. – Estou apenas a brincar. Vocês disseram que receberam um convite para o meu casamento. Quando foi isso? – Muito recentemente – respondeu o homem mencionado como anónimo ao descer com certa violência do auto devido a célere e não amistosa aproximação de um estranho. Seu corpo também era enorme. – Eu vou matá-lo! – vociferou o homem que se aproximava de forma célere deles ao sacar de uma arma e apontar para Usuku. Carlos Chinengue Banzaia colocou-se à frente do homem. Ngoma Usuku parecia assustado – e ao mesmo tempo encantado – com a cena. Seis homens que ele jamais pensara encontrar em sua vida o estavam defendendo de um outro que ele já mais pensara encontrar no mundo físico. Quatro dos homens que o defendiam eram extraordinariamente enormes – podiam facilmente derrubar o homem que ameaçava sua vida. Os outros dois eram avolumadamente menores que estes, mas possuíam uma intelectualidade capaz de derrubar aquele oponente com lógica irrefutável. O nome do apontador de armas era Lino Tchiva e tinha um longo histórico de disparar contra quem se colocasse em seu caminho. Corria até de boca em boca a história que, certa vez, ele havia atirado contra a própria filha, quando esta tinha apenas nove anos, mas segundo ele, tudo não passara de um acidente. – Tu não podes fazer isso – disse Carlos Banzaia. – Não deixaremos que o faças. Pousa a arma e volta para a casa, amigo. – Porque vocês estão a defendê-lo? – perguntou Lino Tchiva. – Ele ainda não vos contou, pois não? – Contar-nos o quê? – perguntou Carlos Banzaia. – Aquilo que vocês são… – Ninguém aqui está com crises de identidade – cortou Ndombaxi Canzar. – Faça o que o Carlos te disse e volte para a casa. Não me responsabilizarei se dentro em breve eu já não conseguir conter os meus punhos. – Estão a defender o vosso pai? – inquiriu com sorriso sarcástico. – Lindo! Ele deu-vos apenas qualidades, não é? A mim ele estragou a vida. E tem de pagar por isso! – vociferou com ferocidade arrepiante ao preparar-se para premir o gatilho. – Tu vais disparar – anteviu o homem mencionado como anónimo com olhar sombrio – mas não vais acertar no alvo. Não tens ângulo para que possas atingi-lo nem no menor fio de cabelo. Antes de chegares até ele, terás de acabar connosco. Somos seis. Terás de ser muito rápido com essa arma antes que um de nós te apanhe. Acho que até tentares disparar pela segunda vez já terás três dos teus membros partidos. Tens dúvidas sobre o cumprimento dessa minha visão? Então dispara agora… Lino Tchiva ficou especado – mordia os lábios. O que poderia fazer? O homem que acabara de falar para ele tinha a fama de ser o assassino mais cruel da década em que estavam. Espalhava-se a notícia que ele era capaz de matar qualquer humano apenas com a boca. Seria verdade? Lino Tchiva tinha medo de descobrir. Todavia, sua vontade de vingança contra Usuku precisava ser satisfeita. Como poderia fazer aquilo? Seu objecto de ódio estava ladeado por homens capazes de fazerem com que ele, Lino Tchiva, conhecesse coisas abismalmente piores que a morte. Lino Tchiva conhecia a cada um deles – havia lido todos os livros que cantavam os feitos daqueles seis indivíduos. Ele havia pensado que encontraria Usuku antes deles, mas enganou-se. O que faria? Atacar e
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depois defender-se? Ou defender-se e depois atacar? Protelar – protelar pareceu-lhe ser a acção mais viável naquele momento. – Eu vou abaixar a arma – disse o homem com expressão mordaz ao levantar a outra mão e fazer um estalido com seus dedos (parecia que fazia um sinal para alguém) – mas vou voltar a levantá-la quando vocês menos esperarem. – Dessa forma pioras as coisas para o teu lado, Lino – instigou Carlos Banzaia sem notar que uma imponente motorizada se aproximava deles. – Vai para a casa, amigo. Não sei por quanto tempo mais o Ndombaxi e o nosso amigo anónimo conseguirão conter-se. – Não te preocupes comigo, Carlos – disse Lino Tchiva ao colocar a arma num dos bolsos no interior de sua jaqueta preta. – Há muitas coisas que vocês ainda têm de descobrir. Eu já sei de todas elas, por isso tenho de fazer com o vosso pai e o que vou fazer com o vosso pai. – Como podes ter tanta certeza que o farás? – continuou Carlos Banzaia ao reparar que uma imponente motorizada parara ao lado de Lino Tchiva. Não se podia ver o rosto do condutor por causa do capacete que lhe cobria a cabeça. – E porque o chamas de nosso pai? Tens tomado algum género de droga? Não vês que somos mais velhos dele? Ou isso tem alguma coisa que ver com o teu Complexo de Édipo? – A frase mais simples saída de minha boca parece ser um enigma para vocês – disse o homem ao receber um arredondado objecto da mão do condutor. Ngoma Usuku e os outros seis não conseguiam ver o que era. O que seria? Algum objecto bélico pior que aquela arma de fogo? – Nada do que eu vos dizer agora vos fará muito sentido. O vosso pai tem as respostas. Perguntem a ele, a não ser que ele já tenha decidido não contar-vos a verdade – porfiou ao colocar o arredondado objecto sobre a cabeça; o objecto cobriulhe o crânio e os olhos. – Estamos a perder tempo com este desvairado – disse Kaculu ao reparar que Lino Tchiva se sentava sobre a imponente motorizada. – Temos coisas mais importantes para fazer. O Usuku tem apenas duas semanas antes do casamento. Se viemos realmente ajudá-lo, temos de começar neste momento. – Se deixarmos este homem atirar contra ele não haverá casamento – benfeitorizou Márcio Nassembe. – Estamos a ajudá-lo agora. Só oferecemos outro tipo de ajuda quando este desnorteado desaparecer de nossas vistas. – Ele já não vai fazer nada contra o Usuku – assegurou Kaculu ao voltar-se e começar a andar em direcção a uma das portas do enorme auto preto por ter certeza que aquela cena não duraria por mais tempo. – O tempo urge. Não se pode desperdiçar segundos com trivialidades. – Trivialidades! – motejou Lino Tchiva com sarcasmo explícito. – Com o poder que tens, não devias dizer uma coisa dessas…. Como te chamam mesmo? Homem do Saco é o teu nome, não? Aliaste-te ao Usuku mesmo sabendo da verdade? É incrível esta tua acção, Kaculu. Como eu dizia anteriormente, Carlos: Não te preocupes comigo. Quando a verdade vier à tona, é com vocês que deverão preocupar-se, e isso ocorrerá com muito choro. Fiquem bem – disse em tom conclusivo enquanto a imponente motorizada entrava em andamento – e preparem bem as vossas palavras de desprezo quando descobrirem o quão execrável é o vosso pai.
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– CAPÍTULO III – ●
Realizando o irrealizável
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– O teu primo está a demorar demais, Sílvia – disse a mulher idosa ao lado da prima de Usuku. – Acho que ele deve ter apanhado outro ataque cardíaco aí na rua. Ou então roubou-me as coisas… – Não seja tão dura com ele. A avó o conhece desde que ele nasceu. Os teimosos não mudam, pioram – gracejou a prima de Usuku ao fazer com que a mulher idosa sorrisse enquanto seu sistema auditivo captava o som repetido de batidas contra a porta da casa em que estavam. – Olha, deve ser ele. Sílvia dirigiu-se à porta. A ideia em sua mente era que a pessoa que encontraria após abrir a estrutura de madeira e puxar a maçaneta para si seria definitivamente seu primo. Quando fez isso, notou que estava parcialmente certa. A pessoa era realmente um homem, carregava alguns sacos em suas mãos e também se casaria brevemente. Contudo, Ngoma Usuku não era seu nome. – Oi – cumprimentou ele com olhar apaixonado. – Aproveitei a minha hora do almoço para te trazer isto. – Uau! Até na hora do almoço recebo presentes! – exclamou Sílvia ao receber os sacos e permitir que o homem entrasse. – É esse o custo de se ser minha noiva – disse o outro. – Boa tarde, avó. – Boa tarde, rapaz. Viste o Usuku aí fora? – Não. Achei até que ele estivesse aqui. Trouxe também uma coisa para ele… – E para mim? – embargou facciosamente a idosa. – Não trouxeste nada para mim? – Não – respondeu o homem com camuflado embaraço. Seu sobrenome era Manuel e ostentava a eleição de noivo de Sílvia. – Eu não sabia que a avó estava aqui. Mas posso sair e… – Tens sempre que contar que estou em qualquer sítio, rapaz. Como castigo, vais tu buscar as minhas coisas. E, se não as encontrares por o teu cunhado as ter roubado, vais ter de comprá-las. – Ele acabou de chegar, avó – interrompeu Sílvia ao fazer sinal para que ele não se pronunciasse. – Mas gostei da ideia. Vamos os dois buscar as coisas da avó, meu bem. Assim aproveito privadamente da tua companhia e descubro o que anda o senhor Usuku a tramar. Antes de o casal sair, Sílvia colocou rapidamente os sacos que recebera em seu quarto e o homem de apelido Manuel lançou um olhar de incredulidade sobre a idosa, por causa das displicentes palavras que ela recentemente articulara contra ele; a idosa respondeu àquele olhar com um sorriso gozoso e um piscar de olhos triunfante. – Um dia ainda faço um discurso feroz à tua avó, Sílvia – disse o homem de apelido Manuel enquanto ambos se aproximavam do auto da idosa. – Não ligues para ela – aconselhou ela ao notar um objecto empoeirado sob um pneu do auto ao qual se dirigiam. – Ela quer apenas provocar-te.
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– Se continuar por muito tempo, vai arrepender-se. Mas não é sobre ela que vamos falar. Já te decidiste sobre onde vamos comprar os móveis para a nossa casa? – Talvez se... Estás a ver o mesmo que eu? – interrompeu-se ao apontar para o objecto sob um dos pneus do automóvel de sua avó. – Não é o telefone do Usuku? – É sim – reconheceu o outro ao abaixar-se para apanhar o aparelho. – Ele deve tê-lo deixado cair quando passou por aqui… – Passar por aqui? – perguntou ela com leve angústia. – O objectivo era ele parar aqui e levar as coisas da avó lá para dentro. Se ele não parou aqui, talvez… – Já estás a dramatizar? – perguntou com graça ao entregar-lhe o aparelho. – Talvez algo lhe tenha chamado a atenção… um amigo, uma amiga, ou finalmente ele conseguiu ter a tão esperada ideia genial para surpreender a Braulia. Ele deve estar por perto. – Então vamos procurar por ele… – Não! Primeiro vamos levar as coisas da tua avó. Verás que durante o processo ele aparecerá. – O meu primo está muito doente, querido – falou ela em tom triste e terno ao colocar a testa dela no ombro dele. – Estou até a começar a pensar que a mente dele está a ficar atrofiada por causa disso. – Como assim? – Deixa para lá. É coisa da minha cabeça. Vem, vamos carregar as coisas. – Sílvia! – chamou uma senhora enquanto se aproximava do casal. Ela trazia más notícias, via-se pela forma como olhava para a pessoa cujo nome acabara de pronunciar. Sílvia sentiu uma corrente gélida a percorrer-lhe a espinha. – Sim? – respondeu a prima de Usuku ao apertar fortemente a mão de seu noivo. – Sílvia – continuou a outra ao ofegar levemente. – O meu filho foi lá à casa a pouco e disse que alguém levou o teu primo. Parece que ele estava desmaiado… Sílvia sentiu-se entontecer. Seu noivo pegou rapidamente em seu telemóvel e discou um número. – Para quem estás a ligar, querido? – perguntou ela com voz fraca. – Ele deixou cair aqui o telefone. – Não é para o Usuku que estou a ligar. Talvez seja um exagero, mas estou a ligar para a polícia.
♣ Ngoma Usuku estava sem palavras. Sua mente não conseguia processar com coerência o que se passava naquele momento. Aquelas seis pessoas seriam reais? Como chegaram até ele? Convites não trazem morada – como poderiam tê-lo encontrado tão facilmente? O quebra-cabeças seria de menor dificuldade se fossem apenas, Carlos Banzaia, Márcio Nassembe, Ndombaxi Canzar e o outro homem que ainda não se pronunciara a aparecer à frente? Mas estavam também presentes o Homem do Saco – Kaculu – e o homem mencionado como anónimo. O Homem do Saco era alguém com poderes sobrenaturais – o protector de um lugar mítico onde viviam maioritariamente pessoas cuja data de nascimento exigia que estivessem mortas. O homem mencionado como anónimo apresentava o pseudónimo de Cazenga e, segundo a cronologia, não podia 17
ainda ter nascido. Aquilo só podia ser uma alucinação, a lógica assim o dizia, a razão assim imperava. Contudo, o mundo não é só feito de lógica e razão. Ngoma Usuku sabia muito bem disso. Por isso, seu cérebro engendrou rapidamente um plano. – Ei, rapaz! – chamou Ngoma Usuku ao andar em direcção ao menino enquanto os seis homens conversavam ao seu lado sobre Lino Tchiva. – Sim, kota Usuku. – Esta minha camisa azul é bonita? – Sim. Se já não a quiser, o kota pode me dar. Vou payá-la aí nuns kamones que num mayam. Estou mesmo a precisar de guita… – Pensas muito rápido – reconheceu ao pensar em colocar em prática a fase fulcral de seu mui coeso plano. – É dinheiro, kota. Quem não pensa rápido quando se trata de massa? – E a camisa daquele homem? – perguntou Usuku ao apontar para Carlos Banzaia. – Tá-se sair bem aquele kota! Aquilo tudo assim é camisa? Ele tem bom gosto, hein? Ngoma Usuku ficou admirado. O rapaz os conseguia ver? Seu mui coeso plano ainda não havia terminado. – Qual é a cor da camisa dele? – Está a ficar cego o kota? É um castanho falado, parece ser de ceda… – E a camisa dos outros cinco? São melhores do que as dele? – Comé, kota? Me chamaste só pra me perguntar de camisa? Estou a perder tempo aqui. Tenho coisas pra payar. – 0K. Sem problemas. Obrigado pela ajuda. – O kota está a ficar estranho – disse o rapaz ao afastar-se. – E nem deixa cair aqui umas fulas para o teu ndengue? – Tenho um prémio melhor para ti – revelou ao dar-lhe as costas e começar a andar em direcção aos seis homens –: vais ser uma das personagens do livro que estou a escrever agora. – Xé! Verdade?! Fixe, kota! – agradeceu o rapaz antes de começar a correr. Usuku continuava intrigado. O rapaz conseguiu realmente ver Carlos Banzaia? Porque ele não respondeu a pergunta sobre os outros cinco? Mais importante, quem era aquele rapaz? Usuku não o conhecia. O rapaz podia-a conhecer Ngoma Usuku por este ser uma das pessoas sobre a qual mais se falava naquele bairro por ser um escritor excepcional. Se aquelas seis pessoas eram uma alucinação, aquele rapaz também poderia ser. Seu mui coeso plano não resolvera o problema, piorara-lo apenas. Aquilo não podia durar por mais tempo. O que devia fazer para dizimar aquelas dúvidas. Simples: Uma imagem vale mais que mil palavras.
♣ A alguns quarteirões da rua onde se encontrava a casa onde Usuku vivia, um homem encontrava-se sozinho em seu escritório. Seus empregados e sócios haviam saído para o almoço. Ele decidira ficar para rever a nível de produtividade da empresa. Há algum tempo que lhe vinham à mente que por trás dos panos alguém em sua empresa desviava parte do fundo de maneio da corporação. Esse alguém podia ser individual, mas 18
tendia mais para colectivo. As coisas se tornariam tumultuosas caso a falcatrua fosse confirmada. Ele não tinha um bom temperamento para enfrentar traições. Seu espírito era calmo, mas gostava de tomar decisões terminais, extremas. Seu nome – correcção: seu sobrenome – era Nascimento e a empresa que dirigia tinha o nome Grupo Wolf como identificação. Cansado de dar voltas sobre aquele assunto em sua cadeira, o homem de sobrenome Nascimento levantou-se e dirigiu-se a uma das janelas. Sua intenção era que seu olfacto inalasse uma brisa suave para seus pulmões, mas outro de seus sentidos foi despertado antes disso. Passos – o barulho de passos perto de sua sala despertara sua atenção. Ele olhou para o relógio. Treze horas e vinte e sete minutos foi o que ele viu marcado. Ainda era cedo para que seus funcionários e sócios voltassem do almoço. Quem seria? Os seguranças tinham ordem de deixar entrar três pessoas antes do recomeço da hora do expediente. Era impossível que duas delas estivessem aí porque desfrutavam de suas férias no exterior do país. Nascimento ficou despreocupado, voltou a andar em direcção à janela e abriu-a. – Sabia que te encontraria aqui a essa hora – disse a pessoa que acabara de entrar ao ver o outro encher os pulmões de ar com satisfação. – Não tens fome? – Tu também devias estar a almoçar a esta hora. Se o sermão será algo que ver sobre eu não estar a alimentar-me bem, tens pouca moral para isso. – Ainda bem que estás de bom humor, senhor Nascimento. Tens de me dar o... – Do Nascimento. O meu sobrenome é do Nascimento. – Para isso eu tinha de dizer o nome que vem antes do do; e então seria José do Nascimento. – O nome é meu – disse o outro ao finalmente olhar para a face de quem acabara de entrar para sua sala –, eu é que sei como é que fica. – Vamos discutir sobre isso noutra altura – rendeu-se o homem ao vasculhar a sala com o olhar. – Estavas a calcular alguma coisa aqui? – Reserva de Segurança de Tesouraria mais crédito concedido mais existências menos crédito obtido de fornecedores. – Isto é igual a... fundo de maneio. Acertei? – Sim. – Explica-me novamente – pediu o outro com malícia velada ao aproximar-se do homem de sobrenome Nascimento –: o que é o fundo de maneio? – É o montante necessário para uma empresa poder assegurar a sua actividade normal. Estás a transpirar? – Vim aqui às pressas. Deixei algumas pessoas à minha espera e disse que não me demoraria. Achei! – exclamou o homem ao colocar a mão num dos bolsos do casaco do outro e retirar um aparelho. – Ei! Para que queres o meu telefone? – inquiriu ao ver outro dirigir-se para a saída. – Preciso tirar umas fotos. Parece que o meu telefone caiu algures. Daqui a pouco to trago. – Podes ficar com ele o quanto quiseres... se isso for contribuir para a tua ideia sobre a surpresa que estás a preparar para a Miúda. – Nem sabes o quanto estou perto. Daqui a pouco – disse ao fechar a porta e andar de forma célere até ao elevador do edifício.
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O homem de sobrenome Nascimento meneou a cabeça e sorriu enquanto tirava algo que vibrava num dos bolsos de suas calças. O indivíduo que acabara de sair de sua sala era seu funcionário e acabava de praticar a acção ousada de entrar em sua sala sem prévio aviso nem permissão concedida e ainda usurpara-lhe o telemóvel – era essa a razão de ele estar a sorrir. Ambos eram grandes amigos desde o fim de suas infâncias. Enquanto jovens, haviam engendrado a criação de uma empresa onde se trabalharia com cantores, músicos, pintores e indivíduos do ramo da economia. O capital foi ajuntado e, com o tempo, a ideia abstracta ganhou materialização. O resultado de seus empenhos mostrou-se – e mostrava-se – bem maior do que o suposto. Os negócios iam bem, afora aquela suspeita. A única pessoa de quem ele não podia desconfiar era o indivíduo que acabara de sair. O indivíduo – o indivíduo estava doente e precisava de repouso. Todavia, ao invés disso, andava de um lado para o outro a trabalhar e a procurar desesperadamente por algo inédito. E agora «assaltara» o telemóvel ao próprio chefe! Telemóvel? Ainda bem que o homem que acabara de sair levara o outro, pois no telemóvel que o homem de sobrenome Nascimento pegava em suas mãos entrara a seguinte mensagem: Oi! Não contes a ninguém – ninguém mesmo, hein? Estamos no apartamento da Braulia aqui no exterior do país e ela acabou de dizer que está a pensar em desistir do casamento.
♣ – Foste rápido – apreciou Márcio Nassembe ao ver Ngoma Usuku aproximar-se. – Trabalho muito perto daqui. Vocês podem me dar uma boleia até ao aeroporto? Assim podemos conversar durante a viagem… – Sem problemas – disse Carlos Banzaia ao fazer sinal para que os outros entrassem para o carro. – Assim aproveitaremos conhecer melhor este bairro… embora eu veja inúmeras semelhanças com o bairro onde vivo. Podes sentar aqui à frente, Usuku. O Márcio não vai se importar de ir atrás desta vez. Com o passar dos segundos, os sete homens estavam dentro do auto e este moviase coordenadamente sobre o terreno alcatroado. Usuku reparava com exagerada perscrutância para os carros que passavam ao lado deles. Parecia que nenhum ignorava a existência daquele enorme auto preto. Seria verdade que todos os viam? Seria aquilo real também para os outros. Se não fosse – se fosse apenas Usuku que o visse – com certeza haveria carros que passariam por ele como se atravessassem fumo ou um espectro, um fantasma. Se aquele carro não fosse real, Usuku nem poderia verdadeiramente estar dentro dele e ver as casas, os prédios, os vendedores ambulantes e os semáforos a passar de forma célere por seus olhos. Dúvidas e deduções – tudo não passava de dúvidas e deduções. Ele precisava de provas, factos. Ele não podia estar a alucinar numa altura daquelas – não quando seu casamento estava tão perto. Ele escrevera tantas vezes em seus livros sobre personagens com mentes alienadas e esquizofrénicas que parecia totalmente irónico estar a acontecer aquilo com ele no mundo real. Seria real – seria verdade que pessoas sobre as quais ele havia apenas criado em seus livros haviam ganhado vida e agora estavam ai diante dele para ajuda-lo em seu casamento. Seria aquilo
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um facto? O telefone que ele praticamente usurpara de seu chefe ajudar-lhe-ia na resposta. – Chegamos – disse Usuku ao apontar para um lugar onde Carlos Banzaia pudesse estacionar. – E a sua noiva? – rebuscou Márcio Nassembe. – Como e onde ela está? – Está longe daqui – respondeu Usuku. – Está a cuidar de algumas coisas fora do país. Ela é filantrópica… muito filantrópica. Acho que a essa hora deve estar a sorrir com alguns doutores ou muito séria por estar a tratar do pé infectado de uma criança. – Então ela está no ramo da medicina – concluiu Ndombaxi Canzar com sua voz peculiarmente activa. – É engraçado que o nome dela seja Braulia, não é, Márcio? – Como assim? – A tua ex-esposa chama-se Gabriela – continuou o Canzar – mas Briell é o nome afectuoso pelo qual a tratas. A Briell é doutora; a Braulia é doutora. Engraçado, não? As duas têm nomes e profissões parecidas… – Qual é o ponto em que queres chegar? – inquiriu Carlos Banzaia sem se aperceber que sua questão deixara Usuku levemente suado. – Nada realmente especial – respondeu o Canzar enquanto o auto parava. – Estou a tentar entender as tolices que o homem que quis matar o Usuku há pouco falou. Só isso… – E o que tem isso que ver com as semelhanças de nomes e profissões entre a minha ex-esposa e a noiva do Usuku? – perguntou Márcio Nassembe com expressão trocista. – Nada, realmente nada – ocultou o Canzar ao cruzar os braços e olhar para o homem que até ao momento ainda não se pronunciara. – Podes vir comigo, Carlos? – interrompeu Usuku ao descer do auto. Carlos Banzaia atendeu ao pedido do outro e desceu. Dentre os seis, afora Márcio Nassembe por causa da estranha cicatriz que tinha em seu rosto, Carlos Chinengue Banzaia era o que tinha a fisionomia mais aproximada à de Ngoma Usuku. Andavam e gesticulavam da mesma forma. O olhar cândido era o mesmo. Seria por isso que Usuku o escolhera para resolver o que seu mui coeso plano não conseguira? As evidências falariam por si. Usuku e Carlos Banzaia andavam em direcção às portas do aeroporto. As portas possuíam sensores de movimento – abriam-se automaticamente com o aproximar de um objecto. Se aqueles seis homens fossem reais, as portas abrir-se-iam quando um deles chegasse perto delas. Usuku parou e fingiu amarrar os atacadores de seus sapatos. Quando Carlos Banzaia intentou parar para esperar por ele, Usuku fez-lhe sinal para que continuasse. E foi isso que ele fez – Carlos Banzaia continuou a andar e aproximar-se cada vez mais da porta. Usuku ergueu-se e começou a andar lentamente. Quando Carlos Banzaia estava próximo o suficiente para que os sensores de movimento disparassem e as portas vítreas se abrissem: Fantasmagórico – as portas de vidro permaneciam imóveis à sua presença. Tenebroso – Ngoma Usuku chegava a conclusão de que atingira à loucura. Repentinamente, uma das mulheres que estava do outro lado das portas vítreas aproximou-se e estas abriram-se. – Estas portas deste lado só abrem quando estamos dentro do aeroporto e queremos sair – explicou gentilmente a mulher num volume que Ngoma Usuku também
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pudesse captar o que ela dizia. – As portas que abrem tanto para os que entram como para os que saem são as da entrada principal há uns cem metros daqui. Usuku acalmou-se. Sim, aquilo fora apenas um mal-entendido. Aquilo não provava ainda que estava louco, mas também não reprovava. Por isso, tinha de levar aquele plano até ao fim. Ambos entraram e dirigiram-se para uma das agências de viagens no local. Dentro dela, Usuku esperou pela sua vez por alguns minutos. Enquanto era atendido, tirou o seu passaporte e marcou uma reserva. Após isso, ele e Carlos Banzaia começaram a andar de volta para a saída. – Gostas de viajar? – perguntou Carlos Banzaia enquanto ambos passavam por entre pessoas que carregam enormes pastas de variadíssimas cores. – Não – respondeu o outro ao sorrir. – E marcaste aquela reserva porque…? – Para te ser sincero, realmente não sei – respondeu rapidamente para que não desse oportunidade a seu cérebro de engendrar uma mentira inconveniente. – Isso acontece comigo quando quero esconder algo, ou quando quero fazer uma coisa irracional. – Então me entendes perfeitamente – disse Usuku ao começar a correr de forma célere para saída. Carlos Banzaia deteve-se e sorriu brevemente. Em poucos segundos, Usuku aproximou-se das portas vítreas; se elas abriram e ele saiu. Momentos depois, Carlos Banzaia também saiu por elas atrás de dois homens. Não era bem isso que Usuku queria que acontecesse, contudo, ele tinha o telefone na mão; o que importava era a imagem que ele captaria naquele momento. Ngoma Usuku levantou a mão e apontou a pequena câmara do aparelho para a direcção de Carlos Banzaia. Enquanto este vinha em sua direcção com sorriso sardónico por causa da coisa imperceptível que acontecera dentro do aeroporto, o dedo de Usuku premiu o botão para captar por inteiro a imagem do corpo de Carlos Banzaia. Contudo, não foi a imagem daquele homem que ele viu retida no visor do telemóvel, mas uma mensagem. Por casualidade, o botão para retirar a foto era o mesmo para abrir uma mensagem. E a mensagem – a mensagem deixou-lhe amargurado por milésimos. Todavia, ignorou aquele sentimento e voltou de forma célere para o sistema de fotografias do telefone e desta vez conseguiu tirá-la. – Sais a correr como louco e agora fotografas-me? – perguntou Carlos Banzaia entre sorrisos. – És o noivo mais entranho de todos os noivos que conheci. – Bem, para completar a minha estranheza, vamos tirar uma foto juntos. Depois podemos procurar um sítio melhor para ficarmos e eu receber a vossa ajuda. Antes, teremos de parar no meu escritório para deixar este telefone. Sorria! – disse ao abraçar o outro e tirar a fotografia. Enquanto Carlos Banzaia e Ngoma Usuku se dirigiam para o enorme auto preto, ambos viram que Márcio Nassembe se separa dos outros quatro e tinha uma sucinta conversa com um rapaz que terminaria numa frase intrigante. – Você pára sempre aqui para engraxar os sapatos das pessoas? – perguntou Márcio Nassembe enquanto o receptor de sua questão lhe lustrava o que trazia calçado. – Nem sempre – respondeu o rapaz. – Ficamos mais nas áreas onde há mais poeira; assim lucramos mais. – Muito inteligente… – Vocês todos são irmãos do senhor Usuku, mô kota?
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– Não – respondeu admirado com a pergunta. – Porquê? – Vocês são todos parecidos a ele.
♣ – Tu não podes estar a falar a sério, Braulia! – admirou a mulher de sobrenome Silva ao levantar-se antes de uma delas ter enviado uma mensagem ao homem de sobrenome Nascimento. – De onde te surgiu esta ideia maluca? – Tornar-me na namorada do Usuku é uma coisa, ser noiva dele outra… mas ser esposa?! É assunto sério demais! Tenho de ponderar muito sobre isso! – E estás a ponderar duas semanas antes do casamento? – auspiciou a mulher de sobrenome Fonseca. – Nem parece teu… – Nem que eu ponderasse na hora de responder sim àquela pergunta sobrevalorizada! É a minha vida que será eternamente ligada à desse homem. Não posso entrar em algo para sofrer ou fazer sofrer… – Pergunta sobrevalorizada? Não achas que estás a exagerar um pouco? – embargou a mulher se sobrenome Machado ao sorrir efemeramente para ela. Seu sorriso parecia melancólico. – Referia-me mais ao que a maioria das pessoas que se casam faz com essa pergunta. Elas respondem sim a ela, mas traem ou machucam os cônjuges depois de algum tempo. É por isso que disse sobrevalorizada. Desculpem-me se me expressei mal. – O assunto aqui não é perdoar-te sobre uma palavra que empregaste mal – continuou a mulher de sobrenome Silva parcialmente exaltada –, é sobre a asneira que estás a pensar em fazer. E – ela calou-se ao fazer um sinal com o indicador apontado para a face da anfitriã do apartamento onde estavam para que esta não a interrompesse, depois continuou –, se isso não for uma asneira, apresente-nos por favor, motivos consistentes, válidos, para que penses em fazer isso. Mas saiba que só te vamos deixar pensar em fazer isso. Tu não o farás. Não, não! – Eu sei que presas muito a tua amizade com o Usuku – disse Braulia calmamente enquanto observava que uma delas mexendo no telemóvel – e que queres que ele seja muito feliz. Mas tens de pensar também na minha felicidade como tua amiga. E, mesmo que não consigas fazer isso, se queres realmente que ele seja feliz, como deixarás que ele case com alguém que não sabe se poderá lhe dar esta felicidade? – Continuas com suposições – declarou a mulher de sobrenome Fonseca. – Ainda não ouvimos nenhum motivo válido… O que se passa, Braulia? Do que tens medo? Fizeste alguma coisa errada? – Porque não me perguntas se ele fez uma coisa errada? Porque tenho de ser eu errante nisso? Vocês só estão a pensar nele, não em mim. – Eu não me arrependo de ter casado com quem me casei – disse a mulher de sobrenome Machado após se ter levantado e ido sentar-se para perto da anfitriã. – A sério que não me arrependo. Mas há vezes em que me pergunto como seria se eu tivesse casada com o Usuku. Penso se os problemas seriam os mesmos, se a forma de resolvê-los seria parecida; se as surpresas, os cortejos, teriam alguma semelhança, se o conto de fadas permaneceria…
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– Eu sou livre de escolher se quero um conto de fadas ou não – disse a anfitriã com expressão petrificantemente séria enquanto observava uma das mulheres guardando o telemóvel em sua bolsa. – Como posso ficar com um homem que sei que ficará feliz mesmo se eu o abandonar? Como posso casar com alguém que é capaz de morrer por mim, mas ao mesmo tempo ser a pessoa mais fria do mundo comigo se eu não corresponder às suas expectativas? – Isto de ele ser a pessoa mais fria do mundo contigo, sabes que é um exagero – disse a mulher de sobrenome Silva. – Todo o mundo fica frio com quem lhe trata mal por um tempo, com o Usuku acontece o mesmo, só que termina mais cedo. – Sim – concordou a anfitriã. – Embora ele deixe de ser frio mais cedo com quem lhe decepcionou, o tempo em que ele é frio com essa pessoa parece uma eternidade. É atormentador, faz chorar, faz-te sentir a pior pessoa deste mundo! – Consigo ver que estás apenas com medo do fantástico, com temor do conto de fadas – disse a mulher de sobrenome Machado. – Estás com medo de mais cedo ou mais tarde vir a estragar isso, com temor de não corresponder às expectativas. Mas isso é apenas coisa da tua cabeça. Sabes muito bem que ele nunca exigirá de ti mais do que aquilo que estás em condições de lhe dar. – Isso é o que ele nunca vai exigir. E eu? E se eu não me sentir bem com isso? – Futuro, sempre o futuro – contrapôs a mulher de sobrenome Fonseca. – Não passam de suposições, Braulia. Não se pode viver o futuro. Nunca viveremos o futuro. Só podemos fazer suposições acerca dele. Pensas e se tu não te sentires bem agora. Já pensaste também e se te sentires bem? E se fizeres coisas que jamais pensaste em fazer? Pelo que sei do vosso namoro, você melhorou muito com o decorrer do tempo. – Reconheço que ele me ajudou muito a melhorar em algumas coisas que eu achava que levariam mil anos para melhorar – disse a anfitriã ao levantar-se. – Vocês e outras pessoas também serviram de auxílio neste processo. Estou grata a ele por isso, mas… – Mas o quê? – perguntou a mulher de sobrenome Fonseca em tom dedutivo. – Não me digas que alguém te anda a baralhar os sentimentos? A anfitriã sorriu. O sorriso era parecido àquele que adornara seu rosto angélico quando anunciara que pensava em desistir do casamento com aquele homem. Antes entrar para a cozinha disse o que pareceu ser uma confissão enigmática seguida de uma pergunta descontextual. – Como já foi dito por alguém: O amor não desaparece se não houver outra presença. Alguém quer mais chá? Fora do apartamento, muito próximas à porta, duas pessoas estavam paradas ouvindo aquela conversa. Elas não pareciam ter a intenção de entrar. O perturbador era que suas expressões não eram amistosas.
♣ – Já voltaste? – perguntou o homem de sobrenome Nascimento ao ver o homem que levara seu telemóvel a reentrar para sua sala. – Passaram-se apenas… vinte e três minutos! Este foi o assalto mais curto e mais estranho do mundo. Ainda bem que não foi preciso discar o 113. 24
– Eu precisava apenas de um segundo: só tinha de premir a tecla e tirar a foto. O tempo e o espaço é que ocuparam os mil trezentos e setenta e nove segundos restantes. – Mil trezentos e quê? – Vinte e três minutos correspondem a mil trezentos e oitenta segundos. Tirando o segundo que eu precisava para a foto – explicava o homem ao retirar o telemóvel do bolso – os mil trezentos e setenta e nove segundos restantes foram desperdiçados com o tempo e a distância para se chegar ao local. – Pensaste muito rápido nesses números… Já estavas a fazer esses cálculos ao vires para aqui, não é? – perguntou com graça ao receber o telemóvel que o outro lhe entregava. – Tinha de me precaver do teu discurso. Sabia que irias pensar em algo parecido se eu demorasse demais. Antecipei-me ao teu sermão… O que vês nesta foto? – Nada… – Como podes não ver nada? – perguntou com humor fingido para camuflar sua preocupação. – Se é uma foto, tem de haver algo aí… – Eu não vejo nada de… especial aqui. Tiraste esta foto hoje? – Sim. E o que achas dela? – Se a tiraste hoje, como é que podes estar com roupas diferentes? Foste até ao aeroporto só para tirar uma foto com roupas novas? Que ideia! – Então consegues ver… E nesta? – perguntou alegremente o homem após se ter aproximado do outro e trocado a imagem apresentada no aparelho. – Ei! Gémeos? Quem é esse ao teu lado? – Chama-se Carlos – respondeu sem dar o sobrenome deste para que o outro não o questionasse extensivamente. – Somos muito parecidos mesmo. Por isso tirei a foto para te mostrar… – Alô? Sílvia? – interrompeu o homem de sobrenome nascimento ao atender o telefone. O que se passa? Polícia? Desapareceu? O Usuku?! Não te preocupes com isso, amiga. Ele está aqui comigo. Podes dizer ao teu noivo para voltar a ligar para eles e dizer que não passou tudo de um mal-entendido. 0K. Fica bem – disse ao desligar em seguida. – Desapareço por meia hora e chamam a polícia? Deus! Tenho de fazer isso mais vezes. Quem sabe se eu desaparecer por meio dia chamaram uma legião de anjos… – Não brinques com isso. Ela ficou realmente preocupada com isso. Mas, quanto a essa foto, não me digas que será ele quem vais usar na surpresa para a Miúda – deduziu de forma dubitável ao ver o rosto do outro passar de uma expressão alegre para uma de decepção e tristeza. – O que se passa? Estás a sentir-te mal? – Não, não é nada disso – respondeu ao colocar-se em posição de retiro. – É que… Não irias entender. – O quê? Eu não entenderia o quê? – Não entenderias que não resolvi este problema – explicou ao sair e fechar a porta à frente do outro. O resto das palavras que enunciou saíram em tom suficientemente baixo para que o homem de sobrenome Nascimento não as entendesse. – Agora que descobri que eles podem ser visto por outros, acho que piorei as coisas. Há duas alternativas: ou eles são reais ou todo mundo aqui faz parte de uma minha alucinação.
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– CAPÍTULO IV – ●
Fugitivos
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Stop. – Usuku! – chamou uma voz antes que este pudesse alcançar a porta e sair. – Já estás aqui dentro a esta hora? Tu normalmente gostas de consumir até a última gota dos quinze minutos de tolerância… – Vim resolver um assunto confuso, muito confuso – respondeu o homem ao voltar-se e ver o rosto da pessoa que lhe falava. Era uma mulher, uma bela mulher. Seus olhos eram enormes e brilhantes. Suas feições eram angelicais. Sua pele tinha um tom escuro mas brilhante. Seu corpo era invejavelmente recheado e sua altura era um pouco acima da mediana. – E tu? O que fazes aqui quando faltam… algum segundos para voltarmos ao trabalho? – Não saí daqui na verdade. Estão a acontecer umas coisas aborrecidas comigo. Parece que todos os problemas se voltaram para a minha direcção. Preciso de conversar muito contigo. Só agora vejo a necessidade de ter uma amiga íntima à qual eu possa falar sobre tudo… – Eu posso ser essa tua amiga íntima enquanto procuras uma – disse Usuku com ternura paternal ao lembrar-se que na manhã daquele mesmo dia fora a ela que ele esboçara um sorriso e sentira paz naquele momento ínfimo quando a mulher empreendeu a reciprocidade do gesto. – Tu sempre foste isso, amigo. Podes aparecer logo para falarmos? – Posso. Não importa o problema que tens, vamos ultrapassá-lo como sempre fizemos. Fica bem. – 0K – concordou ao ver o outro afastar-se. – Não vais trabalhar mais? – Não. Assim não preciso de me sentir vigiado pelos olhares de todos aqui no escritório. Além disso, o teu chefe retirou da minha mesa tudo em que eu poderia trabalhar… – Então vais descansar? – Pode-se dizer que sim. – Uh! Não te quero atrasar mais. Vai dormir. Dorme até a cama ficar aborrecida contigo ao ponto de te processar. – Vou tentar – disse antes de sair à rua e encontrar-se com dois gigantes. – Tudo resolvido aí dentro? – perguntou um dos gigantes ao andarem. O gigante tinha como nome Ndombaxi Canzar. – Quase tudo – respondeu Ngoma Usuku. – Mas os pendentes não nos impedirão de conversar por longas horas. – A sua noiva viajou nesta época porquê? – perguntou o outro gigante para que tivessem uma conversa de ocasião. Ele era o homem comummente mencionado como anónimo. – E se acontecerem coisas que a impedirão de chegar a tempo para o casamento? – Como qual? – perguntou Usuku ao captar o som distante de sirenes.
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– Pode aparecer uma pessoa gravemente doente a precisar urgentemente de uma cirurgia ou coisa parecida… – Dificilmente isso acontecerá – arguiu Usuku. – Mas, se acontecer, ela encontrará uma solução. Ela é boa em encontrar soluções rapidamente. Uma especialista na matéria. Como está a Ivone Tchivela, Ndombaxi? – Está boa. Aquela explosão na nossa casa só a fez desmaiar. Dentro em breve ela dará a luz. – Gostei de ouvir. E a Bengui Massela? – inquiriu ao dirigir-se para o comummente mencionado como anónimo. – Como vai a tua irmãzinha? – Aquele vírus horrível continua no corpo dela, mas ela não parece doente. Às vezes sinto vontade de trocar de corpo com ela, mas sei que não é possível. Porque isso tinha de acontecer com ela? É só uma criança… – Tenho certeza que as coisas melhorarão dentro em breve – disse Usuku ao engolir em seco ao ver como o outro mexia as mãos com certa medida de violência ao referir-se à menina. – Só se descobrissem rapidamente a cura a essa doença – concluiu o anónimo. – O que farias se descobrisses que houve alguém por trás do homem que infectou a Bengui? – perguntou temerosamente Usuku. – A morte seria o presente mais barato que eu lhe entregaria… O estacionar de um carro-patrulha azul os interrompeu. De dentro dele saíram dois policiais armados. Num gesto impulsivo, Ndombaxi Canzar e o homem comummente mencionado como anónimo colocaram Usuku atrás de si. – Está tudo bem aqui, senhor Usuku? – perguntou um dos policiais. – O seu cunhado ligou para nós dizendo que o senhor havia desmaiado e que estava desaparecido… – Não se aproxime mais – embargou Ndombaxi Canzar ao deduzir que aquilo se tratava de um plano elaborado por Lino Tchiva. – Não te ensinaram a ter respeito da polícia? – inquiriu o outro policial ao colocar a mão no cós e desprender a arma. – Só à policia inteligente – respondeu o anónimo. – Acho que será melhor para ti se desistires da ideia de sacares da arma. – Insolente! – vociferou o outro policial. – Tu sabes com quem falas? – Não me interessa, desde que este quem não se aproxime mais… De rompante, apareceram por trás dos policiais dois homens que os subjugaram sobre o chão. – Fujam! – exclamou um dos subjugadores. – Eles aqui não vão conseguir soltarse. Fujam agora! Cumpram com o plano. Ngoma Usuku, Ndombaxi Ilídio Canzar e o homem comummente mencionado como anónimo ficaram atónitos por instantes, isto porque o subjugador que acabava de falar para eles – o subjugador que acabava de falar para eles atendia pelo sobrenome Tchiva. Sim, Lino Tchiva aparecera aí do nada com outro homem e lançara-se por cima dos policiais. Quando Ndombaxi Canzar viu aproximar-se outro carro-patrulha e que uma multidão também chegava mais perto para ver o que se passava, retirou de seu bolso o que parecia ser um capuz e virou-se para Usuku. – Desculpa-me – disse Ndombaxi Canzar ao cobrir o rosto de Usuku com o capuz e colocar o homem sobre o seu ombro – mas é para a sua protecção.
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O homem comummente mencionado como anónimo e Ndombaxi Canzar correram em direcção a uma das ruas estreitas carregando Usuku e desapareceram do campo de visão dos policiais. Quanto ao outro carro-patrulha que se aproximava, um enorme automóvel preto impossibilitou-lhe a passagem por alguns minutos. Era o auto de Carlos Chinengue Banzaia e a impossibilidade fora propositada, para que Ndombaxi Canzar e os outros dois pudessem ter mais tempo de fuga. Dentro do auto, Carlos Banzaia pôde ver Lino Tchiva ser preso e sorrir de forma triunfante para ele. Porquê? A cena parecera um rapto e Ndombaxi Canzar e o homem comummente mencionado como anónimo eram agora foragidos da lei.
♣ Passaram-se extensos minutos. Lino Tchiva estava agora às mãos da justiça, privado do exterior por cruzadas vigas de metal. Para os que conheciam sobejamente as falcatruas daquele homem, o impossível parecia ter acontecido – por mais crimes que Lino Tchiva tivesse cometido, nunca antes havia sido apanhado para pagar por eles. Ele era incrivelmente esquivo e encontrar o seu paradeiro era inexecutável. Contudo, isso era o que estava escrito nos livros que cantavam os seus feitos. Na vida real ele mostrou-se inapto para escapar à prisão; foi apanhado numa brevidade que o colocava no escopo dos criminosos mais banais e imprudentes. Seria isso verdade? Seria aquele homem tão tolo assim? Carlos Chinengue Banzaia sabia que não, mas o resto do mundo – o resto do mundo estava totalmente em posição ignorante ao malévolo plano que aquele homem engendrara. – Senhor – chamou um agente ao andar apressadamente com Carlos Banzaia –, é este o homem que confundimos com o Ngoma Usuku e que disse ter informações sobre um dos loucos que se atiraram contra dois dos nossos colegas. – Não demoraram muito para chegar aqui – disse o referido senhor ao ostentar as estrelas que lhe assentavam em ambos os ombros enquanto estendia a mão para Carlos Banzaia para o cumprimentar. – És realmente parecido àquele escritor. São irmãos? – Somos amigos – respondeu o Banzaia. – Eu é que não queria ter um amigo assim! – exclamou com graça o referido senhor. – Senão o bairro todo duvidaria da profissão da minha mãe. Venha. Vamos até à minha sala. – Não tenciono demorar muito – disse o Banzaia após terem entrado para a sala e se sentado – por isso, serei breve. – Calma, não temos de ser tão rápidos assim – disse ao passar as mãos sobre os cabelos grisalhos em sua cabeça calva. – Ainda não ouvi o seu nome. Você já leu o meu antes de entrar para aqui, está bem estampado na porta atrás de si. Diz-me, rapaz, como te chamas? – Carlos Chinengue Banzaia. – Carlos Banzaia… Já ouvi este nome. – É praticamente impossível que já o tenha ouvido. Esta é a primeira vez que nos encontramos, e eu vivo muito distante daqui. Não acho que haja mais alguém com este nome em todo país…
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– Arrogante, convencido e preciso. Três qualidades para um bom agente. Já pensou em ser policial? – Com todo o respeito, senhor Freitas Zozi-Pó – disse ao lembrar-se do nome que lera estampado na porta – estamos a perder tempo. Tanto eu quanto o senhor temos coisas importantíssimas para fazer. Precisamos despachar-nos. Preciso falar com o homem que chegou algemado aqui há escassos minutos. Pode fazer isso por mim? – Chegaram muitos homens algemados aqui há escassos minutos. Tens de ser mais específico, rapaz. – Lino Tchiva é o nome dele. Especificidade suficiente? – Mais do que suficiente. Venha, eu mesmo te dirijo até ele. Tens o teu bilhete de identidade aí? – Sim, tenho. Cá está – disse o Banzaia ao dar o requisitado documento após terem saído da sala. Freitas Zozi-Pó parou por instantes para entregar o documento a um dos policiais depois voltou a andar com o Banzaia. – O que é que ele vai fazer com o meu bilhete? – Não te preocupes com isso, rapaz. Vais encontrar o teu bilhete quando estivermos a sair. Desde quando conheces o Ngoma Usuku? – Desde hoje… – E já são amigos? – Se se pode acreditar em amor à primeira vista, não é de todo impraticável que se acredite em amizade ao primeiro contacto. – Pensas nas respostas muito rapidamente. Gosto disso. Os meus homens deviam aprender isso também. Ter uma conversa com pessoas com pensamento relâmpago aqui é difícil. Onde trabalhas? – Sou psicólogo. Mas isso não tem nada que ver com eu ser verborrágico. Talvez as pessoas aqui não se expressem quando estão com o senhor porque o senhor se mostra o sabedor de tudo, ou o homem que não pode ser questionado nem contrariado. – Há que se respeitar a hierarquia; é necessário haver disciplina. Eu já vivi e vi mais coisas do que eles. Mas talvez tenhas razão. Chegamos – disse Zozi-Pó Freitas após terem curvado numa das esquinas do corredor e se deparado com inúmeras celas empanzinadas de reclusos. As vozes dos reclusos causavam arrepios a Carlos Banzaia. O retinir das grades metálicas faziam-lhe tremer. Antes que pudesse chegar à cela do homem com o qual viera ter, dois reclusos falaram algo que o deixou atónito. – Ngoma Usuku? – disse um dos reclusos. – Por aqui? – Este não é o Ngoma Usuku – disse o outro recluso. – Não vês que este já tem anel no dedo anelar da mão esquerda? Este já casou. Este só pode ser o Márcio Pontes Nassembe ou o Carlos Chinengue Banzaia… – O Márcio? – disse o primeiro recluso. – Este não pode ser o Márcio porque não tem cicatriz. O Márcio sofreu um acidente, lembras-te? Este é sem dúvidas o Carlos Chinengue Banzaia. Como vai a sua esposa, a Susana Banzaia? – E a Liliana e o Derito? – disse o outro recluso. – Ainda tens tido notícias da Paula e do Marcos? A boca de Carlos Banzaia ficou imóvel, mas seus pés continuaram a seguir Freitas Zozi-Pó até à cela de Lino Tchiva. Como era possível aqueles dois homens conheceremno? Onde haviam ouvido falar de seus sobrinhos, sua esposa e seus melhores amigos? Ele
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não era um homem que se preocupava em ter respostas imediatas, pois sabia que o tempo tinha como designação prouvê-las no momento propício, por isso a ideia de falar com aqueles dois enclausurados sobre o assunto foi ignorada de forma célere. – Lino Tchiva – chamou Freitas Zozi-Pó ao chegarem à cela onde o detentor do nome enunciado se encontrava. Lino Tchiva estava deitado sobre um dos catres. A parte de seu corpo mais próxima do campo de visão de Carlos Banzaia e de Freitas Zozi-Pó eram seus pés descalços que se moviam ritmadamente de um lado para o outro. Seu rosto estava coberto por uma almofada levemente acastanhada. – Lino Tchiva – repetiu Freitas Zozi-Pó –, levanta-te. Há alguém aqui que quer falar contigo. – É muito cedo para que eu receba visitas – menosprezou o recente presidiário ao apertar levemente o travesseiro contra seu rosto e sentir o desagradável odor que este emanava – ainda mais uma visita como tu, Carlos. Vá para casa. Esse assunto não é contigo. Não te intrometas de forma a tornares-te numa barreira a ser transposta por mim. Não irias gostar nada disso. – Qual é o teu plano? – perguntou Carlos Banzaia. – Porque fizeste com que fosses preso? Houve silêncio. Apenas o movimentar ritmado dos pés de Lino Tchiva davam vida àquela cela parcialmente escura impregnada por um odor esquisito. O som que o sistema auditivo de Carlos Banzaia conseguia captar era o dos murmúrios dos outros reclusos e o passar da mão de Freitas Zozi-Pó sobre seus cabelos grisalhos. Ainda assim, a cena parecia totalmente muda. Nem mesmo a ratazana que passou carregando um pedaço de pão em sua boca e bateu contra uma das vigas de metal foi capaz de quebrar aquela falta de actividade sonora. – Não estás a pensar nos teus filhos, pois não? – continuou Carlos Banzaia ao engendrar um coeso plano para o fazer falar. – O que achas que a Carla e a Liliana vão achar disso? Achas que isto vai te aproximar mais delas? Numa acção assustadoramente célere, Lino Tchiva levantou-se e bateu o travesseiro contra as grades. Uma nuvem de pó saiu da almofada e atingiu o rosto de Carlos Banzaia. – Estás a sentir o fedor? – perguntou Lino Tchiva com olhar assassino. – Acho que o suor de incontáveis criminosos já foi sugado por este tecido. É assim que é o vosso Usuku; esta almofada o representa muito bem. Se o pegares, se o abraçares, é entufado, fofinho, mas se chegares mais perto e inalares o que ele exala é repulsivo, repugnante. Ele é capaz de enganar o tacto, mas o olfacto – oh! não, não! – o olfacto ele não engana. Pensa comigo, Carlos. Sei que consegues seguir perfeitamente o meu pensamento. Este é o vosso Usuku – disse ao apertar a almofada contra o peito – fofinho, muito fofinho, assim como vocês o conhecem. Mas eu já cheguei mais perto dele, já senti o seu fedor e por isso resolvi que ele tem de – Lino Tchiva rasgou violentamente ao meio o travesseiro antes de continuar – ser exposto como essas esponjas aqui. Esponjas são sanguessugas, seres que se aproveitam da essência dos outros para se manterem vivos. Seres que sozinhos não significam nada. Seres desprezíveis, sem conteúdo. Se eu tirar uma a uma as esponjas do vosso Usuku – dizia enquanto esvaziava impiedosamente a almofada – ele vai ficar assim: um trapo acastanhado e mal cheiroso.
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– Esse teu discurso estranhamente metafórico não responde à minha pergunta – declarou o Banzaia. – Porque fizeste com que fosses preso? – Julgava-te mais inteligente – disse o Tchiva ao dar-lhe as costas e receber a almofada do presidiário do catre ao lado do seu. Depois dirigiu-se ao seu catre, deitou-se e colocou a almofada sobre o rosto. Seus pés voltaram a movimentar-se de forma ritmada. – Está tudo no travesseiro, Carlos. O travesseiro… – Este homem não está lúcido, rapaz – disse Freitas Zozi-Pó. – Vamos embora. Parece que terei de ordenar que ele seja transferido para a ala dos doentes mentais. – A sanidade tem várias definições, meu caro – disse Lino Tchiva ao voltar a apertar a almofada contra seu rosto e sentir o desagradável odor emanado pela mesma enquanto o som dos passos do Banzaia e de Zozi-Pó denunciava que se afastavam de sua cela. – Não te esqueças, Carlos. Está tudo no travesseiro, tudo no travesseiro… Antes que pudessem desaparecer do campo de visão dos presidiários e sair daquela ala da esquadra, dois dos reclusos gritaram: – Mande cumprimentos à Marlene, à Janeth e à Gisela, Carlos! – Sim! E diz a elas que, se continuarem solteiras, há aqui dois candidatos excelentes que desejam acordar todos os dias da vida delas ao seu lado, até que o nosso próximo crime nos separe! – Há muitos loucos aqui afinal – gracejou Freitas Zozi-Pó ao fazer sinal para que um dos policiais encerrasse as portas. – Só não sei se os homens que trabalham na ala dos psicopatas vão gostar disso. – Obrigado – disse Carlos Banzaia após ter recebido o documento que um dos policiais lhe entregara. – Pensei que o meu bilhete fosse ficar aqui para sempre… – Incrível – disse Freitas Zozi-Pó após o homem que entregara o documento ao Banzaia lhe ter murmurado brevemente algo ao ouvido e se retirado. – Bem – continuou o Banzaia –, vou deixá-lo agora, senhor. – Não pode ser! Ainda não terminaste o que vieste fazer aqui. Disseste que trazias informações sobre o Lino Tchiva a um dos meus homens, não? Vamos novamente para a minha sala e me contas detalhadamente o que sabes sobre ele. – Já lhe dei essas informações – embargou o Banzaia ao estender a mão ao outro em despedida. – Acabei de lhe mostrar que o Lino Tchiva sofre de perturbações mentais. Por isso, não sei se será boa ideia mantê-lo preso aí. – Ah! Era essa a sua informação? – inquiriu Freitas Zozi-Pó em tom de suspeita ao apertar a mão do outro. – Não há problemas. Fique descansado. Ele será muito bem tratado aqui. Não há arestas que as grades dessa esquadra não limem. Tenha uma boa tarde, Carlos. – Obrigado, senhor – agradeceu Carlos ao começar a andar em direcção à saída. Contudo, a voz de Freitas Zozi-Pó no fundo do corredor deteve-o mais alguns segundos. – Carlos – chamou Freitas Zozi-Pó –, já leste o A Três Degraus do Quarto. – Eu tenho um poema com este título. – Não me refiro ao teu poema, mas ao livro… – Não, nunca ouvi falar deste livro. – 0K. Continuação de uma boa tarde – despediu-se Freitas Zozi-Pó antes de desaparecer no meio das pessoas que iam e viam naquele corredor.
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– E então? – perguntou Márcio Pontes Nassembe após Carlos Banzaia estar no exterior da esquadra e perto do enorme auto preto. – O que conseguiste do teu amigo louco? – Ele tem um antagonismo forte pelo Usuku, e está a fazer de tudo para que o Usuku pague por algo que ele acha ser de total culpa do Usuku. – Quanto «Usuku» numa frase! – gracejou Márcio Nassembe. – Este teu amigo parece mais pirado do que eu quando tive aquele acidente horrível. Bem, não é hora para memórias. Vamos encontrar-nos como o Ndombaxi e o Cazenga e cumprir com o objectivo da nossa vinda aqui. – 0K. Let’s bazaring for – disse o Banzaia ao entrar para o enorme auto preto. – «Let’s bazaring for»? – perguntou o Nassembe ao abrir a porta do auto. – O que é isso? Inglês aldrabado? – É algo que um meu amigo diz sempre que está a ir embora – explicou o Banzaia ao ligar o enorme auto preto. – E não é inglês aldrabado. É uma mistura de inglês e calão. – 0K. Vou me calar e let’s bazar in for. Enquanto o enorme auto preto se enchia de leves gargalhadas e entrava em movimento, um homem apontou na direcção deles e gritou: – Um dos homens que está aí dentro participou no rapto de Ngoma Usuku! Parem esse carro! O chiar dos pneus do enorme auto preto contra o asfalto e a celeridade com que ele alcançou a auto-estrada foram totalmente surpreendentes. Num ápice, Carlos Banzaia e as três pessoas com ele desapareceram do campo de visão do agente que ficou estupefacto quando um de seus colegas o informou que era impossível que um daqueles homens tivesse participado o rapto de Ngoma Usuku visto que ele mesmo havia escoltado aquele enorme auto preto até à esquadra e ficado parado à distância com o intuito de se certificar que mais ninguém entraria para dentro deste.
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– CAPÍTULO V – ●
O homem de sobrenome Alves
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Absurdamente distantes do país onde Ngoma Usuku se encontrava, quatro mulheres tinham uma intrigante conversa num dos apartamentos que era imperceptivelmente atentada por pessoas com expressões faciais temíveis. – Tu não podes estar a falar a sério, Braulia – disse a mulher de sobrenome Silva ao segui-la para a cozinha. – Outro homem? Estás a pensar em desistir do casamento por causa de outro homem? – Eu não usei a palavra homem na minha frase. Eu disse presença. O amor não desaparece se não houver outra presença. – Pára de dizer as coisas assim! Até parece que somos crianças e que não conseguimos entender claramente as coisas! «Não usei a palavra homem.» «Eu disse presença.» Presença masculina obviamente, não? – E se for o meu emprego? – perguntou Braulia ao fixar o olhar no reflexo da mulher de sobrenome Fonseca que aparecia num dos espelhos da janela que ela abria. – Emprego? Emprego não usa calças e bigode! Não é uma clara tentação às fêmeas! Como é que podes desistir de um casamento duas semanas antes desse se realizar porque descobriste que te apaixonaste pelo senhor Emprego? Não tem lógica o que dizes... – O casamento pode causar certa medida de felicidade, mas também pode nos privar de muitas coisas – explicava Braulia ao ouvir algumas batidas em sua porta. – Mais visitas? – inquiriu a si mesma ao dirigir-se para a entrada. Quando abriu a porta e pôde ver o casal que a havia batido, sua garganta quase soltou um grito. Um deles lançouse a seus pés e principiou a chorar. – O que se passa? – perguntou ela no idioma falado naquele local. – É a nossa filha – explicou a pessoa que se mantivera em pé. – Ela piorou porque a senhora ainda não cuidou dela. – Eu sei que nós não temos dinheiro – disse a pessoa que se lançara aos seus pés; era uma mulher – mas será que a senhora não pode cuidar dela mesmo assim? Ela está muito grave… – Levante-se, por favor – pediu Braulia ao tentar erguer a outra com as próprias mãos enquanto a via desfazer-se em lágrimas. – O que tem a vossa filha? – A mesma doença que todos os outros ricos que a senhora anda a tratar – respondeu o homem enquanto as mulheres no apartamento de Braulia se aproximavam da porta – mas em estado mais avançado. – Entendo o seu desespero em não querer que algo ruim aconteça à sua filha, mas o senhor anda mal informado. Eu não tenho cuidado só de pessoas ricas. Tenho cuidado de todos imparcialmente. – Os ricos são sempre os primeiros a serem tratados por si. Os pobres são sempre os últimos. E a senhora só cuida de dois ou três da minha gente…
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– Deixa de ser arrogante com a senhora, homem! – ordenou desoladamente a mulher ao pés de Braulia ao retirar um embrulho dos panos que trazia enrolados em seu corpo. – Ela não sabe como se fazem as coisas na nossa sanzala, e nem entende que os ricos põem as crianças deles à frente das nossas. A culpa não é dela. Aqui tem, minha senhora. Este é todo dinheiro que temos. Cuide de nossa filha agora, por favor. Ela será o nosso quarto filho levado por essa doença se a senhora não fizer nada. A mulher ainda não havia articulado todas as palavras de seu dramático discurso quando a imagem de um rapaz carregando uma menina ao colo apareceu no corredor. O rapaz corria em direcção ao apartamento de Braulia. Dois homens uniformizados vinham atrás do rapaz. Eles queriam detê-lo – os porretes que traziam nas mãos e a forma como corriam atrás do jovem mostravam isso. Os dois homens uniformizados eram provavelmente os seguranças do hotel onde Braulia estava hospedada. E o rapaz fugia deles porque havia desobedecido sua ordem de não entrar para aí sem permissão. Ao ver os movimentos espasmódicos da rapariga, Braulia entrou rapidamente para seu apartamento. Quando voltou a sair carregando duas seringas em suas mãos, notou que os homens uniformizados já haviam alcançado o rapaz e o faziam recuar para a saída. Numa celeridade estonteante, Braulia alcançou-os e introduziu a agulha de uma das seringas no braço da menina. Os movimentos bruscos do corpo da menina cessaram. O rapaz que trazia no colo respirou aliviado. Os homens uniformizados ficaram especados, não sabiam agora se os expulsavam ou pediam desculpas à doutora. Sofregamente, Braulia recebeu a menina e carregou-a em seu colo até ao apartamento onde conversava com suas três amigas. Os pais da menina e o rapaz a seguiram. Os homens uniformizados continuaram especados. Braulia pediu-lhes para que fossem buscar algumas coisas na enfermaria do hotel, depois entrou para o apartamento e deitou a menina sobre sua cama. O olhar da menina era moribundo, mas parecia agradecer-lhe. Antes de colocar a agulha da outra seringa sobre a pele da menina e retirar-lhe sangue, a mulher chamada Miúda por Ngoma Usuku disse ofegante para a mulher de sobrenome Silva: – O casamento inibe o heroísmo.
♣ – O que aconteceu a pouco teve alguma lógica? – perguntou Márcio Nassembe enquanto o enorme auto preto conduzido por Carlos Banzaia era estacionado perto de uma residência que parecia abandonada. – Aquele policial deve ter confundido o nosso amigo caladinho aí atrás com o Ndombaxi – respondeu Carlos Banzaia. – Se parássemos e tentássemos explicar coerentemente que foi um engano, perderíamos muito tempo. Temos famílias e empregos, não podemos ficar aqui por muito tempo. Será que os três já estão aí dentro? – perguntou ao olhar para Kaculu enquanto os quatro desciam do enorme auto preto. – Já estão, sim – respondeu Kaculu. – A motorizada vermelha de quatro rodas do Ndombaxi e os patins do Cazenga serviram-lhes de grande ajuda. Eles já estão a esperar por nós a algum tempo. – Bem, então só nos resta entrar e começar com a coisa – disse Márcio Nassembe ao estalar os dedos no fim da frase enquanto todos andavam em direcção à porta da residência. – Finalmente o momento das descobertas terá o seu início. 34
– Continuo intrigado com as coisas que o Lino falou na cadeia – expos Carlos Banzaia. – E havia pessoas lá que conheciam-me muito bem. – Não te preocupes – confortou Kaculu. – Todas as coisas estão para ser resolvidas dentro em breve. – Ainda bem para todos nós, não? – arguiu o homem que até ao momento se mantivera calada ao abrir o portão da residência. Seu nome era Lourenço e partilhava o mesmo sobrenome com Ndombaxi Canzar; de facto, eram irmãos. Como sabido por muitos, Lourenço Filipe Canzar tinha a fama de falar pouco, mas era conhecido por ser um manipulador de sentimentos impecável. – Serei o primeiro a falar com ele. Espero que nenhum de vocês aqui se importe. – Nenhum de nós se importa – disse Kaculu. – Serás realmente o primeiro. Mas, antes disso, precisaremos iniciação. – Quem vai ser iniciado? – perguntou Ndombaxi Canzar ao aproximar-se deles com um pedaço de bolo na mão. – O nosso amigo Usuku – respondeu Lourenço Canzar ao retirar uma parte do pedaço de bolo e colocar em sua boca. – O Kaculu voltou a ter uma ideia estranha. Onde está o Usuku? – Está a escrever um poema com o Cazenga – explicou Ndombaxi Canzar. – Quer dizer, estamos os três a escrever um poema. Foi uma ideia que ele teve do nada! Nós gostamos e alinhamos. – Três pessoas a escrever um poema? – perguntou Márcio Nassembe ao retirar o que sobrara do pedaço de bolo da mão de Ndombaxi Canzar enquanto se dirigiam para a sala. – Terá algum nome para isso? – Triema parece-me bem – respondeu Carlos Banzaia ao sorrir em seguida. – Triema? – inquiriu Márcio Nassembe. – Onde é que foste buscar esta palavra? – Inventei-a agora – respondeu divertidamente o Banzaia. – Sou psicólogo, mas invento palavras nos meus tempos livres… – Inventor de Palavras nos Tempos Livres, que bom revê-lo – disse jocosamente Ngoma Usuku ao poder finalmente vislumbrar as faces dos homens que acabavam de entrar. – Não te confiscaram o carro? – Estavam quase a fazê-lo. Mas sou bom demais para ser pegue daquela forma. Saí voado muito antes de eles terem a ideia de me perseguirem. Dei o tirosa mais espectacular de toda história. – Também tratas do teus pacientes a usar calão? – gracejou Ndombaxi Canzar ao entregar-lhe um copo enquanto olhava para o que Cazenga escrevia no papel sobre a pequena mesa entre ele e Usuku. – Mó kamone, aquele mambo é outro cenário – continuou o Banzaia ao sorrir ao elevar o copo para a boca. – Aqui não tenho de falar tipo sou vosso papoite. – É melhor internarem esse anormal – aconselhou humoristicamente Márcio Nassembe ao sentar-se – senão sairemos daqui todos contaminados com isso. E não teremos moral para dizer aos nossos filhos que eles não devem usar essa linguagem rude. Xé! Estás a criar birita nos meus pisos, né, Cazenga? – Parem com isso – ordenou Ndombaxi Canzar ao abafar uma gargalhada. – Quero aproveitar o momento para pedir desculpas ao Ngoma Usuku por eu lhe ter coberto o rosto o carregado sobre o me ombro como se…
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– Não tens de pedir desculpas, Ndombaxi – disse Usuku ao terminar de escrever algo sobre o papel que Cazenga lhe entregara. – Eu entendi o que fizeste. Quando viste aquela gente toda a aproximar-se, pensaste em preservar a minha imagem. Não querias que eu me envolvesse num escândalo, principalmente com a polícia. E também pesaste no tempo reduzido que vocês têm para ajudar-me. Fizeste muito bem, e, se não o tivesses feito, eu teria escondido o meu rosto na nas roupas de um de vocês dois. Foi impetuoso e emocionante. Não tens de pedir desculpas. Pelo contrário, eu é que te agradeço. Lembraste-me das vezes que eu punha o meu pai no colo. Agora já não tenho loucura suficiente para o fazer. – Queres dar uma surpresa à mulher que amas no dia do vosso casamento, Usuku? – interrompeu Kaculu. – Sem sombras de dúvida – respondeu o outro. – Senão não será um casamento. – Sabes que para isso a surpresa terá de ser algo que surpreenda tanto a ela quanto a ti, não? – voltou a perguntar Kaculu. – Entendo perfeitamente o que queres dizer – respondeu Usuku ao fixar seu olhar cândido no olhar escaldante do outro. – Sim, sei que para isso terei de surpreendê-la com algo que ela não desconfie que possa ser engendrado por mim, posto que ela me conhece muito bem a minha forma de pensar. – Então nós estamos aqui para isso – continuou Kaculu. – Contudo, temos de fazer uma coisa antes. Precisamos testar suas habilidades: temos de ver até que ponto consegues lidar com e falar a verdade. – Interessante – reconheceu Ngoma Usuku. – E serão vocês a fazer o teste? – Tens algo contra? – Sem ofensas, mas acho que sei tudo o que vocês podem vir a me perguntar, e sinto que vocês também conhecem as minhas respostas. Seria melhor usarmos alguém que não esteja aqui. Alguém que não pense como nós, mas ao mesmo tempo entenda perfeitamente a nossa forma de pensar e seja capaz de me pôr em cheque com genialidade. – 0K. Sugestão aceite. E quem sugeres? – Ele só vai poder estar aqui ao entardecer. Mas falta pouco para isso mesmo, não? Vou ligar agora para ele. Enquanto isso, querem ler o poema que eu, o Kaculu e o Ndombaxi escrevemos. Podemos chamá-lo de triema, não?
♣ A noite havia chegado. O céu estava totalmente escuro, excepto nas zonas onde a imensidão nocturna era contrastado pelo branco das nuvens e o relampaguear incessante. Não – não havia o barulho temeroso de trovões, apenas o passar lúgubre de aviões entrecortava o emudecimento na soturna expansão. Contudo, abaixo da imensidão nocturna, o cenário era diferente. Candeeiros acesos à beira da estrada, carros e um enorme número de pessoas povoavam as ruas. Ao lado de um desses candeeiros, perto de um desses carros e entre este número exacerbado de pessoas, um homem andava apressadamente. Ele não parecia preocupado. Na verdade, seu rosto estava coberto por uma expressão inexacta. Seria alegria? Tristeza fingida? Ou uma nuance dessas emoções? O que se conseguia notar com clareza era que ele tinha pressa em chegar a algum lugar. 36
O homem era de estatura média e robusto. Seu rosto era parcialmente arredondado e sua pele era levemente clara. Ele conhecia Ngoma Usuku e, há alguns minutos, havia recebido uma ligação deste para que se encontrassem urgentemente. Eis a razão de ele andar de forma tão célere por entre aquelas pessoas. Há alguns metros à frente de si, o homem conseguiu ver o enorme auto preto que Usuku dissera que estaria a sua espera com os intermitentes ligados. O homem acelerou passo. Incidentalmente, seu corpo chocou-se contra uma mulher. A mulher desequilibrou-se, o homem também, mas ele conseguiu ajudá-la rapidamente a recobrar a verticalidade de seu corpo. O mesmo não aconteceu com a pasta do homem, pois, enquanto ajudava a mulher, sua pasta abriu-se e inúmeros papéis ficaram espalhados sobre o chão. O rapaz que andava com a mulher tentou ajudar o homem a ajuntá-los, mas ela puxou-o pela mão e o levou embora. Ambos desapareceram no meio da multidão numa brevidade estonteante. O homem meneou a cabeça e começou a ajuntar o que havia caído. Para evitar pensar atrocidades sobre aquela mulher, levou em conta o facto de que estava grávida e que o choque entre eles lhe causara um enorme susto. Ao levantar o rosto, após ter arrumado tudo em sua pasta, seus olhos captaram a imagem do enorme auto preto a afastar-se. Ele levantou-se apressadamente e correu para alcança-lo, mas não foi possível. O que acontecera? Teriam as pessoas no auto se fartado de esperar por ele? Haviam passado apenas nove minutos desde que recebera a sua ligação. Teria assim tanta pressa? O homem resfolegava ainda fortemente quando outro enorme auto preto parou ao seu lado. Ele sorriu. Fora um engano. O auto que vira com os intermitentes ligados não era o auto que esperava por ele. No mesmo instante, uma das portas foi aberta e ele entrou para a possante máquina de quatro rodas. Embora não soubesse, aquele homem tinha agora uma missão. E nem que abalos sísmicos estrondosos assolassem aquela área ele poderia ser descartado ou trocado por outro. Segundo Kaculu – o comummente conhecido como Homem do Saco – Ngoma Usuku precisava ser contrariado com lógica tendenciosa antes recomeçar a receber a ajuda daqueles cinco indivíduos. E, se havia um homem capaz de fazê-lo com extrema perfeição, tal só poderia ter um sobrenome: Alves. O auto entrou em andamento. O homem respirou com alívio. Em breve chegariam ao destino. As coisas começariam agora a correr de forma mais perceptível, afora o desestabilizador assunto que o Kaculu descobriria.
♣ – Vocês vão sair? – perguntou a mulher idosa de sobrenome Costa enquanto ceava com Sílvia e o noivo desta. – E eu? Com quem ficarei aqui? O teimoso do Usuku até agora não aparece… – Ele já deve estar a chegar. Ligou para mim a pouco e disse que está com uns amigos. Só não me disse os nomes… Mas o Nascimento confirmou-me que ele está bem. O Usuku anda assim nestas últimas semanas. Às vezes fica mais tempo no trabalho, outras vezes fica a andar pelas ruas. Tudo isso em busca da ainda não descoberta ideia para o casamento.
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– Talvez ele tivesse demorado da outras vezes por causa dessa absurdeza dele de fazer uma surpresa àquela menina – arguiu a mulher de sobrenome Costa – mas hoje eu sei que ele não voltará para aqui tão cedo por minha causa. – Talvez sim, talvez não – concordou o homem de sobrenome Manuel. – Só saberemos disso depois de sairmos os dois, eu e a Sílvia, sem mais ninguém dessa casa… Repito, sem mais ninguém dessa casa, e a avó ficar aqui sozinha para confirmar se ele chegou aqui um segundo, ou três horas depois de sairmos. – Sílvia, o seu noivo abriu a boca. Melhor usar agora um pano quente sobre a sujeira que ele acabou de fazer sobre a mesa – disse com sarcasmo a idosa. – Bem, eu sei que no fim das contas não vou ficar aqui sozinha mesmo. E vocês? Como vão os vossos preparativos para o casamento? – Estamos a ter… – Desculpa-me – embargou a idosa enquanto o homem de sobrenome Manuel tentava responder-lhe. – Eu disse «vocês», não foi? Perdoa-me por ter pluralizado a questão. Estou oficialmente a singularizá-la agora, e não para ti, mas sim para a minha neta. E você? Como vai o teu preparativo para o casamento? O teu noivo tem preparado uma surpresa para ti também? Ele já desmaiou nesse processo? – Não seria uma surpresa se eu soubesse que ele está a preparar uma – defendeu Sílvia ao apoiar a cabeça sobre o ombro da única presença masculina naquela sala. – Mas, eu não preciso que ele me surpreenda para mostrar o quanto ele me ama. Já sinto isso quando ele olha para mim. Até as minhas células tremem quando ele está por perto… – O meu neto não está a fazer isso para mostrar o quanto ama aquela menina. Ele só está a fazer aquilo porque… ele quer fazer aquilo. E também porque as células dele sentem que, excepto eu e a mãe dele, não há outra mulher que mereça que ele gaste até a sua última gota de sangue para mimá-la. Não há nada mais romântico que isso. Alguém com calças e bigode nessa sala devia aprender isso… – Cada um entende o romance como o seu coração quer – continuou Sílvia. – As pessoas não podem ser iguais. É fisicamente impossível que tal aconteça. Cada um sente, ama, chora, vive diferente. Não se pode comparar o amor de um casal com o amor de outro casal… – Não tentes definir o romance a quem nunca soube que o viveu, Sílvia – afogueou o homem de sobrenome Manuel colocando jocosamente a mão sobre a boca em seguida. – Bem, Chegou a nossa hora. Vamos? – Vou tirar a loiça da mesa primeiro, querido – disse Sílvia ao levantar-se. – Eu ajudo-te – demarcou ele erguendo-se e colocando um molho de chaves sobre a mesa. – Não iria gostar muito de ficar aqui na sala com nossa querida avó. – Lembra-te que a neta é minha e que o vosso casamento ainda não aconteceu – disse a idosa antes do casal entrar para a cozinha com o que havia recolhido da mesa. – Onde guardas o livro O Homem do Saco do teu primo, Sílvia. – Pode ver ao lado da estante perto do televisor, avó – respondeu da cozinha enquanto ligava a torneira. – 0K. Achei. Também estão aqui o Paixão Literária, O Sonho dos Meus Homens e o A Três Degraus do Quarto. E O Pior Filho? Uh! Cá está. – O quer fazer com esses livros todos? A avó já não os leu? – Quero ajudar o meu neto. Tens algo contra, menina?
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– Era só uma pergunta, avó. Responder rispidamente às pessoas ainda vai lhe trazer mais rugas… – Não me importo. Há muito que o exterior deixou de me interessar. O interior foi e será sempre mais intelectual. – Uau! Palavras sábias. Devias vende-las ao Usuku. Assim ele as pegava e escrevia mais um livro com elas. Podes passar-me aquele guardanapo verde? – pediu Sílvia ao dirigir-se para o homem que estava com ela. – Temos mesmo de lavar agora? – inquiriu ele ao atender o pedido. – Não quero chegar ali a cheirar detergente. – Não te preocupes. Vou impregná-las com o meu perfume. – Achas mesmo que o Usuku está bem? – perguntou ele para camuflar o desconforto que sentira ao ouvir as palavras dela serem proferidas com estonteante sedução enquanto a idosa saía sem que eles percebessem. – Pelo tom de voz dele ao telefone parecia-me feliz. Acho que ele já encontrou a tão esperada ideia. – Achas que ele vai gastar muito dinheiro? – Aquele?! Só riscassem a economia do dicionário e dessem infinidade ao valor do dinheiro! Aquele meu primo é um dos poucos homens que tem como hobby poupar dinheiro. É o passatempo dele mais divertido e não sei se um dia abrirá mão dele… – Não exageres… – 0K. Reconheço que há 0,1 % de exagero no que eu disse, mas não deixo de estar certa. Contudo, acho que pela Braulia ele poderia quebrar as regas. Como saberemos. Faltam só duas semanas mesmo, não? Daqui a pouco saberemos. Terminámos – disse ao limpar as mãos. – Vamos embora. Os teus amigos já devem estar à nossa espera. Como correu o teu trabalho depois da hora almoço. – Não houve nada de especial. A única parte boa é que pensei em ti a cada três segundos. – E quem pensavas nos outros dois segundos? – perguntou com ciúme fingido ao dirigirem-se para a sala. – Em mim, por ser o homem mais feliz do mundo por estar a casar com a mulher mais maravilhosa do universo. – Uau! Que… Onde está a avó? – Deve ter ido a uns dos quartos. Estamos atrasados. Vamos embora. Fica bem avó – despediu com voz alta ao puxar a outra pelo braço com brandura. – Espero que não encontremos a casa a desabar – disse Sílvia após terem saído e pisado a rua. – Ela não é tão má assim. Oh! Esqueci-me das chaves do carro aí na sala – disse apalpando os bolsos. – Podes ir buscá-las? Enquanto Sílvia tentava articular a resposta, o rosto de ambos foi fustigado pelo desaguar célere da luz dos faróis de um carro. O auto aproximava-se lentamente deles. – Quem será esse maluco? – demandou o homem de sobrenome Manuel ao cobrir a face. – Não sei – respondeu Sílvia. – Mas parece ser o teu carro. – Não parece – disse ele enquanto a luz dos faróis diminuía o auto parava bem na frente deles –, é o meu carro.
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– Demoraram muito vocês aí dentro – disse a pessoa dentro do auto após ter baixado o vidro de uma das janelas e colocado o rosto para fora. – Subam, senão vamos chegar atrasados. A Sílvia senta aqui á frente comigo. Tu sentas aí atrás. Mas cuidado com os livros, ouviu? O homem de sobrenome Manuel quis fazer algo, mas Sílvia impediu-o. Ambos entraram para o auto e colocaram os cintos. A pessoa que dirigia o auto olhou para o banco de trás e disse sorrindo para ele: – Acho que quando estávamos a jantar eu disse «eu sei que no fim das contas não vou ficar aqui sozinha mesmo.» Quem diria que eu estaria tão certa. Digam-me, para onde querem que a avó vos leve?
♣ – Acabaste de ler? – perguntou Ngoma Usuku ao homem de sobrenome Alves após se ter passado mais de um quarto de hora desde que este havia chegado e se acomodado naquela residência. – Já sim – respondeu ao levantar o rosto e ver um dos gigantes que viera com ele no enorme auto preto sair. – Interessante essa ideia. É para um novo livro? – Pode vir a ser – velou Usuku por não poder ainda esclarecer-lhe o caso. – Mas tem mais que ver com a Miúda, por enquanto… – Sinto-me um pouco estranho por estar aqui e não saber o nome desses senhores aqui na sala, nem daquele que acabou de sair. São teus familiares? – Pode-se dizer que sim. Mas não sobre eles que precisamos falar agora. Preciso que me faças questões sobre o que acabaste de ler. – Como sempre tenho feito, não? – inquiriu ao levantar-se e reparar de forma perspicaz para cicatriz no rosto de um dos homens. – Sempre que escreves um dos teus livros, gastamos horas durante meses a debater sobre a coerência das ideias expostas no mesmo. Se bem que continuo sem entender bem o que escreveste n’O Pior Filho. O que posso dizer sobre o que escreveste aqui? Vejamos… O que é o amor? – Como? Esta não é realmente a pergunta que eu… 0K. Entendi. Queres fazer uma incursão lenta… Amor é o imperceptível, o ilógico. – Já o sentiste alguma vez? – Já tive muitas emoções parecidas a ele. Tristeza, tensão, comoção, ansiedade. É difícil reconhecer o amor quando impomos a nós mesmo que só o podemos sentir com intelectualidade. Isto é, quando amamos com o cérebro, embora fiquemos protegidos, não podemos sentir o mesmo se o fizéssemos com o coração. Não existe entrega total quando há o medo pelo sofrimento. Se não há entrega total, não há amor como tal, mas uma porção deste apenas. – Resposta confusa, mas continuemos. O que sentes pela Braulia? – Acho que a melhor pergunta será o que eu quero sentir por ela… Só posso amála com o coração depois do casamento. – Então não confias nela? – Não é um caso de confiança. É um caso de estar ciente dos imprevistos que caracterizam a vida… – O que é mais importante para ti? A vida real? Ou os teus livros? 40
– Trocaste rapidamente a índole das perguntas… Mas são tu o interrogador aqui. O que é mais importante para mim? Os meus livros são uma cópia alegórica da realidade. Sendo uma cópia, não poderia gostar mais deles do que da vida real. Mas sinto maior prazer na vida quando os escrevo… – Se a vida real é mais importante para ti do que os teus livros, porque vives como as personagens dos teus livros? Porque te queres fazer passar por insensível quando não passas de um simples humano? – Eu não vivo como as personagens dos meus livros, mas sim passo para as personagens dos meus livros aquilo que vivo. – As personagens dos teus livros parecem ser todas um pouco amantes da dor, taciturnamente solitárias, frias e calculistas. Estás a assumir que assim o és? – É este o legado dos escritores do romance. Quando o romantismo atingiu o seu apogeu no século XVIII, algumas das suas características eram as emoções, os sentimentos, a morte, a tristeza e o destino cruel. O escritor romântico gosta de cenários escuros, tristes. Eu sou como eles, não apenas para me inspirar, mas porque vejo beleza na tristeza, me deleito com as lágrimas. Tinha de arranjar uma forma de lidar com o sofrimento, esta pareceu-me a melhor. Rir das lágrimas é mais produtivo do que lamentálas. – Já escreveste algo parecido num dos teus livros. Acho que foi uma das tuas personagens que disse isso. Como é que ele se chamava? Carlos? Era esse o nome, não? Carlos Banzaia. Carlos Chinengue Banzaia olhou com surpresa para o homem de sobrenome Alves. Seria verdade o que este acabara de dizer? Teria Ngoma Usuku uma personagem sem seus livros com o mesmo nome que o dele? – E como se chamava a esposa dele? – demandou o Banzaia ao olhar fixamente para o homem de sobrenome Alves. – Susana – respondeu ele. – E o sobrenome dela? – continuou o Banzaia. – Ainda te lembras? – Ela casou-se com ele, então é Banzaia o sobrenome. E acho que o sobrenome dela não aparece no livro… Só me lembro do irmão dela e da cunhada dela. O Júlio e a Beth… Ri muito por causa deles. É estranho que sejas familiar do Usuku e ainda não tenhas lido o A Três Degraus do Quarto. Mas deves pelo menos ter lido O Sonho dos Meus Homens, não. O livro que fala sobre aquela inteligente menina albina. Como é que ela se chamava? Daniela era o nome. Leste? Tens de ler. Há lá uma das personagens que cria uma prisão em sua própria casa por ter cometido um crime. Ler sobre a família Canzar é muito emocionante – comentou fazendo com que Ndombaxi e Lourenço olhassem fixamente para si. – Acontece tudo de uma forma que tu não suspeitas de nada. – Também há um Cazenga, um Márcio Nassembe e um Kaculu nos livros dele? – perguntou Lourenço Canzar com curiosidade mórbida. – Sim – respondeu alegremente o homem de sobrenome Alves. – Finalmente aparece um teu familiar aqui que já leu os teus livros. – Ele não leu nenhum dos meus livros – disse Usuku ao engolir em seco. – Acontece apenas que ele conhece a maioria das pessoas que acabaste de mencionar. – Como assim? – demandou o homem de sobrenome Alves reparando na estranha consternação dos outros.
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Usuku sentiu que a atmosfera ficara pesada. Seria isso o que Kaculu planejara? Seria essa a iniciação? Fazer com que aqueles homens soubessem que suas vidas haviam sido escritas por alguém daquela forma seria sábio? Alguns daqueles homens tinham a fama de ser irascíveis e assassinos? O que aconteceria agora? O que fariam com aquela informação? Ngoma Usuku segurou o homem de sobrenome Alves e o levou até à porta. – Obrigado pela ajuda, amigo – disse Usuku abrindo a porta. – Acho que o que acabaste de me dizer vai servir-me de muita ajuda. – Ainda agora? – perguntou o homem se sobrenome Alves ao acenar em despedida para os homens na sala. – Acabou? Já me vou embora assim? – Ir embora? – embargou um gigante que aparecera à frente deles assim se abrira a porta. Era Kaculu e parecia irritado. – Ninguém sairá daqui. Voltem para os vossos lugares, meus senhores. Temos ainda muita coisa pela frente. E apraz-me avisá-los que nem tudo será agradável.
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– CAPÍTULO VI – ●
Os casos Henriques e Pereira
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A imagem captada pelos olhos de Usuku era assustadora. Um homem gigantesco com olhar incandescente estava parado à sua frente impedindo-lhe a saída. Por cima dos enormes ombros do homem podia se ver a densa escuridão que invadia os céus e a luz intimidora das trovoadas que a entrecortavam. A cada clarão produzido pelas trovoadas a imagem do homem gigantesco passava de humana para mostruosa, sobrenaturalmente monstruosa. Sem trovoada – homem enorme com olhar intimiador. Com trovoada – silhueta abissalmente monstruosa, possuidora de um par de olhos bizarros, noctívagos, vermelhos escuros. À luz da quarta trovoada, o homem deu passos na direcção de Usuku, ao passo que este recuou paulatinamente e colocou o homem de sobrenome Alves atrás de si. O gigante continuou a andar na direcção de ambos e, antes de passar por eles e acomodar-se em uma zona velada para o seu campo de visão, disse friamente ao apontar com o polegar para a porta pela qual acabara de entrar: – Trouxe mais alguém para ajudar na iniciação. O alguém – o alguém não era individual, mas composto. Era um casal. Usuku reconheceu-os prontamente. O homem era de altura e de porte medianos e tinha Henriques como sobrenome. Seus olhos eram grandes e castanho-claros, assim como a tonalidade de sua pele. Não usava bigode nem barba. A mulher era levemente mais alta que ele e Pereira era o seu sobrenome. Seus olhos eram parcialmente vesgos e brilhantes. Suas feições eram graciosas e sua locomoção parecia ter sido requisitada aos contos de fada. O tom de pele também era levemente aclarado. – O que vocês fazem aqui? – perguntou Usuku dirigindo-se para eles. – Tu nos convidaste – respondeu o homem de sobrenome Henriques com expressão parcialmente admirada com a pergunta que fora feita e tom exageradamente sério. – Quer dizer, tu nos trouxeste aqui... – Eu vos trouxe aqui? Quando? – Agora – respondeu a mulher de sobrenome Pereira em tom de impaciência. – Viemos contigo, no teu carro. Tu o estacionaste ao lado daquele enorme carro preto aí atrás, entraste para aqui e enviaste este homem que acabou de entrar para ir nos buscar. Podemos entrar ou não? Daqui a pouco começa a chover... – Entrem – disse Usuku notavelmente perplexo. – E eu disse se vos trazia aqui para quê? – Para quem não gosta de dizer as coisas duas vezes, estás a gostar muito de repetição, Usuku – disse o homem de sobrenome Henriques ao cumprimentar o homem de sobrenome Alves. – Disseste que precisavas da nossa ajuda para o presente queres dar à Miúda. Vais nos contar já que presente é esse ou ainda vais querer que contemos tudo que falámos durante a viagem até aqui? – Não é preciso – respondeu Usuku. – Acho que já entendi o que se passou. Venham, vamos para a sala. – De quem é esta casa – perguntou a mulher de sobrenome Pereira ao estender a mão para o homem de sobrenome Alves.
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– Também não sei – respondeu este ao começar a andar com ela. – Acabei de chegar. – As pessoas que precisavam de estar aqui já estão aqui – disse Kaculu aquando da aparição de Ngoma Usuku e dos outros três que viam com ele na sala onde os outros homens se encontravam. – É hora de saber com quem estamos a lidar – Como assim? – perguntou o homem comummente mencionado como anónimo enquanto mergulhava e retirava calmamente em movimentos repetidos um pequeno pacote de chá sobre a chávena em suas mãos. – Façam as perguntas – disse Kaculu ao ser propositadamente vago. – Se fizerem as certas, chegarão a um entendimento superior ao do Lino Tchiva. – Lino Tchiva? – inquiriu o homem de sobrenome Henriques entre sorrisos. – Não é aquele louco do A Três Degraus do Quarto? Isto aqui é uma convenção dos leitores dos teus livros, Usuku? – Olha para o rosto de cada um desses homens – disse Usuku ao sentar-se. – Se chegares à uma conclusão melhor que esta ficar-te-ei grato para sempre. – Pelas feições parecem mais ser teus primos – disse a mulher de sobrenome Pereira acomodando-se ao lado de Márcio Nassembe. – Reuniste-os para o presente para a Braulia? Parece que será um presente pesado. Tantos gigantes aqui... – Como é possível que estas quatro pessoas conheçam tanto sobre as nossas vidas, Kaculu – perguntou Ndombaxi Canzar. – Eis o cerne da questão, meu caro amigo! – disse Kaculu ao levantar-se. – Girem em torno desta pergunta e terão muitas respostas. Estas quatro pessoas vão ajudar-vos muito. Tenho de voltar a sair agora, mas volto depressa. – O que vais fazer? – perguntou Usuku após se ter levantado e se aproximado dele. – Vais pegar mais alguém que tem participado dos bastidores dos meus livros? – Não. Estes dois homens e esta mulher bastam. Vou resolver algo que talvez diminua, não que aumente. – Como assim? – Entenderás mais tarde. Volto já. Ndombaxi, toma conta das coisas aqui. – Aquele homem acabou de perguntar como é possível que conheçamos sobre a vida deles, Usuku? – inquiriu a mulher de sobrenome Pereira. – E este outro que está a sair chamou-o de Ndombaxi. Estás a planear apresentar uma peça de teatro inspirada nas personagens dos teus livros como surpresa de casamento? – Não é um nome fictício o que ele acabou de me chamar – disse Ndombaxi Canzar ao entregar-lhe um copo. – É assim mesmo que me chamo. Como é que é a personagem que tem o mesmo nome que eu no livro do Usuku? – Basicamente como tu – respondeu ela. – Mas é violento, ou era... Chegou até a matar quase meia dúzia de pessoas. Mas a Bíblia transformou-o... – Falas do Ndombaxi como se ele fosse a personagem mais violenta dos livros do Usuku – comentou o homem de sobrenome Henriques. – O pior filho é cem vezes mais! Chega até a dar arrepios. Nem consegui ler bem as cinquenta primeiras páginas daquilo... – Porque achas que ele é cem vezes mais violento? – inquiriu Cazenga ao fixá-lo. – O que faz ele no livro? – Mata as pessoas de uma forma horrivelmente inexplicável dentro de um contentor. É horrível de mais para eu contar. Boa mesmo é a irmã dele gémea, a
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Maquiesse. É muito inteligente aquela rapariga. Ele também o é, mas usa a inteligência para o mal, o que o torna numa pessoa tola. – Terias coragem de dizer isso se ele estivesse parado à frente de ti? - inquiriu novamente Cazenga ao levantar-se e dirigir-se para perto do homem de sobrenome Henriques. Usuku engoliu em seco. – Dificilmente – respondeu o inquirido. – Acho que um assassino como ele nem me deixaria com a boca destapada. – Parece que este momento chegou – disse Cazenga enquanto retirava algo dos bolsos. – Nunca pensaste que... Alô? – disse ao levantar a mão que pegava um pequeno objecto preto e colocá-lo perto de sua orelha. – Bengui? Ainda bem que ligas para mim, irmãzinha. Como estás? Bem? Gostei de ouvir. Há um homem à frente de mim que acabou de me chamar de assassino, e não foi a brincar. O que queres que eu faça com ele? Perdoo-o? 0K. Tu é que mandas, irmãzinha. Fica bem – disse antes de a pessoa do outro ter desligado. – Se a minha irmãzinha diz que não sou um assassino então eu não sou um assassino. – Eu não disse que tu és – disse o homem de sobrenome Henriques notavelmente desconcertado – mas sim a personagem do livro do Usuku. – Esta brincadeira já se está a tornar aborrecida – disse a mulher de sobrenome Pereira. – Como te chamas? – Márcio Nassembe. – Não. O teu nome verdadeiro. Vá lá, diz-me. Como te chamas? – Márcio Pontes Pereira Nassembe. – Vocês devem ser todos malucos aqui – disse ela entre sorrisos. – E a Sara e o Bruno? Como estão? E a Márcia Gaílsa? – Também conheces a minha esposa e os meus dois filhos? Não me diga que está tudo escrito nos livros do Usuku... – É mesmo de loucos... Se és o Márcio Nassembe sabes que sofreste um acidente que quase acabou com a tua vida, não? – Porque achas que tenho esta cicatriz? – inquiriu o Nassembe ao virar-se para que ela pudesse ver o outro lado de seu rosto. – Impossível... – Como é possível que tenhas escrito sobre as nossas vidas, Usuku? – perguntou Ndombaxi Canzar. – Estou a pensar nisso desde que nos encontrámos pela primeira vez – respondeu hesitante – mas ainda não encontrei uma resposta lógica. Se vocês são personagens dos meus livros que ganharam vida... não, isso não é possível. – Se somos personagens dos teus livros – disse Carlos Banzaia andando pela sala –, tu és culpado pelo tiro que a Liliana levou e pelo trágico acidente que deixou a Gisela naquele estado. Pior, és culpado pela conturbada infância do Lino Tchiva. – Certo – disse Usuku ao ver o Banzaia aproximar-se de si. – Mas isso não tem qualquer sentido. É impossível que vocês sejam as personagens dos meus livros. – Então como explicas que tudo que escreveste é exactamente o que aconteceu connosco? – inquiriu o Banzaia. – No momento, acho que só Deus te pode responder a isso.
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– Se foste tu que escreveste tudo o que aconteceu nas nossas vidas – disse Ndombaxi Canzar ao aproximar-se dos dois com Márcio Nassembe, Lourenço Canzar e Cazenga –, és o culpado por a Ivone Tchivela ter sido violentada... – E o culpado por o Fernando Cuchi ter feito com que atropelassem o meu animal de estimação, horas depois deste ter dado à luz – disse Lourenço Canzar ao respirar perto dele. – E o culpado de a minha mãe ter sido violentada por três homens execráveis – disse Cazenga ao pousar a mão perto do ombro dele. – Diz-nos, se fores o culpado dessas coisas, o que achas que te faremos? – Eu gosto de surpresas – gracejou Usuku com voz trémula. – Contudo, sei que vocês são inteligentes demais para crerem em algo tão ilógico. Tem de haver outra explicação. – Esperem! – pediu Carlos Banzaia. – Se o Usuku escreveu sobre as nossas vidas e é o culpado dos males que nos aconteceram, o que serão estes três aí sentados? – Bem notado – disse Márcio Nassembe ao voltar-se e dirigir-se para a mulher de sobrenome Pereira. – Vocês o ajudam a escrever esses livros, não? – Sim – respondeu a mulher divertida com aquilo por achar que tudo não passava de representação –, ele me dá para ler cada capítulo que ele escreve para que eu comente e ele possa, com os meus comentários, entender que ele conseguiu transmitir perfeitamente a mensagem desejada naquele capítulo. Também faço perguntas, e algumas dessas o inspiram a escrever outras cenas. Em suma, participo dos bastidores. – Porquê? Só para te divertires? – É para isso que serve a literatura, não? Para agradar os leitores... – Então te divertiste com os nossos desastres, com as mortes que aí aconteceram – concluiu o Nassembe andando em direcção ao homem de sobrenome Henriques. – E tu? Fazes o mesmo que ela? – Basicamente. Sou mais um zelador da justiça nos livros dele. – Como assim? – Ele tem uma forma diferente de ver as coisas. Algo que para ele está certo, para mim e para outros leitores pode estar totalmente errado. Eu sou o público sensível, o público dos finais felizes. Eu o ajudo nisso, a dar mais sensibilidade aos livros dele e fazer com que ou os maus paguem pelos seus erros, ou não comentam tais erros. – Então não o impediste de escrever aquela história toda sobre a minha viagem e sobre aquela mulher... – Ele escreveu aquilo porque era real, aconteceu com ele... Muitos dos acontecimentos dos livros dele são inspirados na vida real. – Mas ele não tem uma cicatriz no rosto, portanto, ele inventou o acidente que me deixou assim, e tu o aprovaste... – Basicamente... Mas o Márcio Nassembe não morreu. Teve um final feliz. Leste a história toda no Paixão Literária, não? – O que vocês vão fazer com essas informações? – inquiriu Usuku ao sentir uma forte dor em seu coração no momento em que Ndombaxi Canzar lhe pousou a mão sobre o peito. – Esta pergunta não terá uma resposta emergente – disse Carlos Banzaia ao afastar-se. – Agora entendo porque aqueles presidiários me conheciam.... O Lino deve saber disso há algum tempo, por isso quer acabar com este homem. Mas temos de pensar
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calmamente. O Usuku escreve livros e as personagens dos mesmo têm os nossos livros e superficialmente vivem as mesmas coisas que nós vivemos e com as mesmas pessoas. Há também a informação de que algumas das coisas que ele escreveu aconteceram com ele. Pode-se deduzir disso que os seus livros são um género de diário. Ele pode ter tido a infância que o Lino Tchiva teve ou conhecer alguém que a teve. Assim como pode ter vivido o que todos nós aqui vivemos ou conhecer alguém que o tenha vivido. «Os meus livros são uma cópia alegórica da realidade», disse ele nesta sala. Ele apenas expressa os seus sentimentos; ele não sabe que prejudica outras pessoas neste processo, se é que somos realmente personagens do livro dele... O Lino colocou-se na cadeia por este motivo? O que ganha ele com isso? – inquiriu ao ver que a mulher de sobrenome Pereira e os homens de sobrenome Alves e Henriques se dirigiam apressadamente para o lugar onde se encontrava Ngoma Usuku. – Onde está o Kaculu? Ele é o que tem poderes especiais entre nós... – Acho melhor fazermos uma pausa – disse Ndombaxi ao encaminhar Usuku para um acento. – O nosso amigo escritor aqui está a esvair-se em sangue.
♣ Sangue – a mulher que voltava para o hotel onde estava hospedada após cinco horas de trabalho intensivo havia visto muito deste líquido avermelhado recentemente. Cuidar da saúde de outros era exaustivo e constrangedor, contudo, o facto de se salvar vidas suplantava qualquer dificuldade resultante. A rapariga que a mulher cuidara na cama de seu próprio apartamento estava bem, assim como a maior parte das crianças que ela tratara após ter saído e se dirigido para um dos hospitais públicos daquele país – era isso o que lhe colocava um sorriso triunfante no rosto angélico. A conversa que começara com suas amigas sobre a realização de seu casamento havia sido interrompida, por isso adiaram-na. Será que todas haviam entendido o que ela tinha em mente? Será que alguma tinha percebido suas reais razões em dizer tais coisas sobre seu casamento? Só o tempo traria as respostas. Após ter cumprimentado algumas pessoas no hotel, colocou a chave na fechadura e abriu a porta de seu apartamento. Para sentir-se à vontade e poder descansar com maior conforto, descalçou os sapatos e soltou o cabelo. O resto da roupa em seu corpo foi caindo sobre o chão enquanto se dirigia para o quarto e, quando saiu deste, sua pele estava maioritariamente coberta por uma toalha branca. Entrou para o quarto de banho e, antes de ligar o chuveiro, sentou-se sobre o banheiro e começou a olhar para as próprias mãos. Surpreendentemente, não chegou a aperceber-se que dormira naquele instante por alguns minutos. Quando despertou, entrou para o banheiro e ligou o chuveiro. A água morna que precipitava sobre seu corpo revitalizou-a. O perfume do champô que deslizava sobre seus cabelos era intenso e aprazível. A mulher ficou por um quarto de horas sob a água e, quando saiu, a imagem de seu corpo molhado era de cortar o fôlego. Seus olhos brilhavam com o reflexo do luar que atravessava o vidro das janelas do apartamento e desaguava em sua pele que parecia sedutoramente arrepiada. Seus cabelos húmidos estavam dispostos de forma a outorgarem a seu semblante a aparência das musas. Com a lentidão e a graciosidade das ninfas, dirigiu-se para o quarto.
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A imagem de alguém em seu quarto fê-la ficar parada à porta por alguns instantes. Era – uma imagem masculina, era – a imagem de um homem. Ela fixou o olhar nos olhos do homem. Os olhos do homem já estavam fixados no olhar dela. Ela aproximou-se da imagem, pegou-a e levou-a até à sua cama. Enquanto discava um número no telefone sobre a cómoda, seus olhos continuavam fixados no olhar do homem. Os olhos do homem continuavam abertos, não pestanejavam. Era uma imagem estática, um retrato. – Oi! – cumprimentou ela após a pessoa do outro lado da linha ter atendido. – Como estão as coisas aí? – Está tudo bem aqui – respondeu uma voz masculina. – E aí? – Está tudo muito emocionante aqui. Estou até a pensar em ficar aqui para sempre... – E o teu noivo? Como é que ele fica? – questionou após ter sorrido. – Ele tem fotografias minhas aí. Acho que isso basta. Ele sempre tem dito que não sente saudades de nada. Então, se eu ficar aqui por mais três anos, ou eternamente... – Se ficares aí eternamente ele também ficará aí contigo eternamente. E acho que ele sente sim saudades, dependendo da pessoa... – Achas que sou especial para ele? – perguntou ao passar lentamente o dedo sobre o rosto do homem no retrato. – És a noiva dele, não? Ele faria o impossível para estar contigo. – No momento eu só quero que ele diga que me ama... – No momento ele não está disponível, mas posso servir de porta-voz... – Não quero o porta-voz, quero que seja ele. – Então terás de esperar muito. Ele está muito ocupado. – Com o quê? – Com uma mulher... Ele está a conversar com uma mulher. Talvez quando acabar tenha tempo para ti. – Essa mulher sabe que eu conheço mais de mil formas de fazê-la sofrer? – Acho que sim. Mas ela não tem medo de ti. E, depois, ela só está a ajudá-lo a pensar mais em ti. Se fechares os olhos, vais conseguir ouvir o que ele está a pensar. – Sim, consigo – disse ao fechar os olhos. – Mas ele parece estar com medo de algumas coisas... – Deve estar apenas ansioso... Ei! Tive uma ideia agora. Queres escrever um poema comigo agora? – Sabes muito bem que não sou boa nisso... – Já escrevemos tantos poemas juntos. Não importam as regras. Elas foram feitas por pessoas que não conhecemos mesmo. O que importa são os sentimentos expostos, e nisto tu és perita... – Se eu continuar a negar, vais falar tanto até me convencer pelo cansaço – disse em tom jocoso ao alcançar uma folha e uma caneta. – Qual será o tema? – Quando não estás... – O que acontece? – Só saberás se o escrevermos. Tens tudo pronto aí? – Tenho, sim. Faremos como das outras vezes, não? Tu ditas o que escreveste aí, depois eu dito o que escrevi aqui e tu anotas por baixo do que escreveste... – Sim, sim. Pronta? Aqui vamos: Frio, solidão e um leve toque de tristeza me assolam...
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– Porque será? – inquiriu ao escrever as mesmas palavras. – Tu não estás aqui. – Porque não estás? – Por medo, por exigência da distância. – E quando voltarás? – Quando a distância se desvanecer, quando o medo desaparecer. – Mas quanto tempo isso levará? – Um segundo, um minuto, um dia, um ano – dependerá de tua ajuda. – Quanto tempo achas que posso esperar? – Eu tinha de entrar em teu mundo para te dar esta resposta. Eu tinha de entender o que sentes quando não estou. – Coloca uma pausa aí no poema, moço – pediu após se ter levantado e se dirigido para a janela por causa do estranho barulho que ouvira. – Porquê? Perdeste a inspiração? – Estou a ver algo rapidamente aqui. – 0K... – Disseste a pouco que o meu noivo deve estar ansioso, acho mais que ele está a esconder-me alguma coisa... – O que poderia ele estar a esconder de ti? – Não sei. Talvez a viagem que ele está a pensar em fazer para aqui... – Viagem? Ele? Só se for um clone... E depois de tu estás aí para poder passar um tempo sozinha. Ele nunca pensaria em invadir a tua privacidade... – Nem com a minha permissão? – Bem, aí as coisas mudam de figura. Vou lhe dizer isto, depois te digo a resposta dele. Mas é melhor que a esperes sentada... – Porquê? Ele não vai querer invadir a minha privacidade? Ou tem outros planos? – Quem sabe? Mas eu tenho todo o tempo do mundo para ti. Não queres que eu o substitua? Tenho a certeza que te amo mais avassaladoramente do que ele e que te posso fazer feliz mais arrebatadoramente... – Sabes? Estou sinceramente a pensar em trocá-lo por ti – disse ao começar a vestir-se com celeridade –, mas se for para vires, tem de ser agora. – Porquê? Ainda nem desfrutei bem este momento. Tenho de saborear bem este instante em que finalmente respondes sim ao meu incessante pedido de estar contigo... – Há um tumulto na entrada do hotel onde estou hospedada, moço. Tenho de ir para lá o mais rápido possível... – Estás a ir assistir a uma briga na entrada do teu hotel? Já não há outra diversão aí? – Não vou assistir à briga, mas fazer com que ela pare. Há pessoas aí em baixo com familiares doentes e os seguranças do hotel não as deixam entrar. Maomé veio até ma montanha, mas não sabia que a montanha estava protegida pela muralha da China. Agora a montanha vai ter de partir uma parte da muralha... – Não será perigoso para ti?
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– Essas pessoas querem apenas receber tratamento médico, não querem ver os seus familiares morrer como se nada mais pudesse ser feito. Elas não são perigosas. Lido com elas todos os dias. – Disseste que há um hospital aí onde cuidas delas... – Há uma grande trapaça naquele hospital. Parece que aqui se tem um mau entendimento do que é serviço de voluntariado. Falo contigo depois, moço. Assim poderemos continuar com o poema. Agora vou usar os meus superpoderes... – Só espero que isto de trabalhares a qualquer hora não te ponha doente. – Porquê? Não irias gostar de uma mulher doente? Só estás a pensar em ti, não? – Não, não é isso. Se ficares doente, quem cuidará destas pessoas aí? – Pensaste rápido para te safares. Apanho-te depois. Depois volto a ligar para ti ou tu ligas para mim, está bem? – disse após ter pegado e colocado o retrato no seu lugar anterior. – Sem problemas. Daqui a pouco também sairei para ir apanhar um pouco de ar. Fica bem, Miúda. – Obrigada pela companhia – disse ao desligar e voltar a passar o dedo sobre o retrato. Ora, tanto a figura masculina no retrato como o homem que terminara de falar com ela ao telefone atendiam pelo nome Ngoma Usuku, o chamado moço por Braulia.
♣ O lugar captado pela visão das pessoas que povoavam o mesmo era sombrio, não pela falta de luz, mas pela execrável índole dos indivíduos nele enclausurados. Era um lugar habitado por ladrões e assassinos, onde o que mais se disseminava eram conversas obscenas e ameaças de morte. Havia grades de metal por todo o lado. As grades brilhavam como as lâminas das trevas. O odor impregnado nas paredes e no tecto era praticamente repulsivo. Os ladrões e assassinos dormiam. Ao menos era isso o que parecia. No corredor, um homem de feições e porte elegantes andava sozinho em direcção a uma das celas. Não, ele não era um dos guardas, muito menos um policial. Fato e gravata era o que trazia vestido. Os seus sapatos e os seus olhos cintilavam com a luz refletida pelas grades de metal. Após alguns segundos de locomoção branda, o homem parou à frente de seu destino. A cela abriu-se por si mesma e ele entrou. A cela voltou a fechar-se da mesma forma. O homem jogou o que pareciam ser pequenas fagulhas sobre o corpo presidiário à sua esquerda, depois abaixou-se e sussurrou no ouvido do presidiária à sua direita: – Acorda, Lino. Precisamos conversar. O presidiário despertou e sobressaltou-se ao ver o rosto do homem. Era – o rosto de alguém odiado por si, era – o rosto de Ngoma Usuku. – Como entraste aqui? – perguntou o presidiário ao olhar para o exterior da cela e ver que nenhum guarda acompanhava aquele homem. – Essa não é pergunta que mais te inquieta neste momento. Preciso saber duas coisas de ti: porque me odeias quem te enviou? – revelou após se ter sentado sobre a cama deste. 50
– Objectos de ódio não precisam de saber porque são odiados – respondeu ao pegar sorrateiramente a almofada atrás de di. – Precisam apenas de preocupar-se se haverá alguém sem seu funeral. – A tua intensão há algumas horas era matares-me. Tu vais poder fazer isso agora, mas diz-me antes porque o farás. – O cinismo é repulsivo, o fingimento é asqueroso. Tu transformaste-me no que sou. Separaste-me da minha família, das minhas filhas... Tornaste-me num foragido, em alguém odiado por todos e ainda vens peguntar-me porque te odeio? – Porque achas que fui eu que te fiz isso? – Escreveste sobre mim no A Três Degraus do Quarto... Sou uma das personagens dos teus livros, uma personagem defeituosa e tudo porque assim o quiseste. – Também escrevi que foste tu quem escreveu o A Três Degraus do Quarto. Não chegaste a pensar que podemos ter sido os dois manipulados? Mas, o mais estranho é, se és uma pesonagem dos meus livros, como é possível que estejas aqui vivo, em carne e osso? Como saíste do livro? – Sei apenas que saí e que te vou matar. – E depois de eu estar morto, o que farás? – Vou orar por perdão – disse sarcasticamente rangendo os dentes. Os seus olhos reluziam com brilho demoníaco; sua respiração era ferina. – E as tuas filhas? O que acharão elas de ti quando descobrirem que mataste um homem? – Não és um homem. És a personificação da repugnância. – Se te criei, criei também as tuas filhas. Se me matares, não estarás também a matá-las? – Pensarei nisso depois de deixares de existir. E ninguém achará o teu corpo, nem que eu tenha de comê-lo por toda a noite. Terás um funeral, mas não serás enterrado. – Tu não farás isso – disse ao cruzar os braços. – A tua intensão depois de eu estar morto será exibires-me como trofeu. Quererás que alguém tome conhecimento que alcançaste o teu objectivo... – Então vamos fazê-lo para confirmar – disse entredentes ao lançar-se ferozmente contra o outro e afogá-lo com a almofada. – Sentes o fedor? É-te familiar, não? Engraçado, é como se fosses tu mesmo a matares-te. O homem que estava a ser afogado não podia ver o ódio nos olhos e a forma espumante como o presidiário falava, mas conseguia sentir a excitação na s mãos dele. O corpo do homem movimentou-se bruscamente em busca da salvação, mas em vão. O presidiário mostrou-se mais forte. Após alguns segundos de relutância atarracada , as mãos do homem perderam a vitalidade e seu corpo ficou imóvel. O corpo do presidiário também ficou petrificado por algum tempo. A sua respiração era absurdamente ofegante. Após alguns instantes, sentou-se comodamente sobre o catre e seus olhos começaram a verter lágrimas. O que aconteceria agora? O suposto causador de sua existência e personalidade jazia morto ao seu lado – significava aquilo que todas as criações daquele homem também desapareceriam? Teria Lino Tchiva acabado de matar suas próprias filhas com aquela acção? Teriam os outros presidiários ouvido o barulho enquanto ele o matava? E o homem do catre ao lado? Porque não acordava? As respostas estavam com o cadáver. E o cadáver não demorou em dá-las.
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– Porque choras, Lino? – perguntou o homem de fato e gravata ao retirar a alfomada do rosto. – Não era isso o que querias? Lino Tchiva caiu para o lado, o seu corpo entrou em contacto brusco com o chão. Enquanto tentava recupar-se do susto, o anterior cadáver levantou-se e começou a ganhar proporções gigantescas. O que seria aquilo? Estaria Lino Tchiva a sonhar? De facto, parecia um sonho. – Queres matar o Usuku e nem sequer tens uma explicação realmente lógica para isso – disse o homem de fato e gravata após seu corpo ter ficado assustadoramente enorme. – Pensei que estivesses a ser usado por alguém, mas é apenas a tua estupidez que te fez agir desta forma. – Kaculu – reconheceu Lino Tchiva ao arrastar-se para a parede atrás de si. – O que fazes aqui? – Vim esclarece-te algumas coisas. – Isso é um sonho – disse ao ver os passos do gigante a aproximarem-se de seu corpo. – Só pode ser um sonho. – Tu vais deixar o Usuku em paz, e vais para um lugar distante daqui – determinou após tê-lo levantado e chocado o seu corpo contra a parede. – Não quero ouvir mais coisas sobre ti e sobre esse teu ódio sem nexo por ele, estamos entendidos? Agora vai dormir. Lino Tchiva obedeceu por saber das coisas macabras que aquele gigante podia fazer-lhe. Depois de se ter deitado, o homem de fato e gravata andou em direcção às grades de metal e voltou a corrê-las. O gigante não notou que o presidário deitado sobre o outro catre sorria com malícia visceral. Antes de voltar a correr as grades metal para fechá-las disse secamente com voz leonina: – Não procure por coisas pior que a morte e angústia crónica. Dorme bem e tenha uma boa viagem. Lino Tchiva adormeceu no mesmo instante. Contudo, após alguns minutos despertou por causa do retinir das grades de metal que a frente de si. Ao levantar-se, reparou que seu companheiro de cela não estava presente. Quando virou o rosto em direcção às grades de metal para ver o que causava aquele irritante retinir, seus sentidos ficaram atordoados. Uma figura encapuçada – uma figura encapuçada causava aquele desconfortante barulho ao bater a unha contra as grades metálicas. E havia três indivíduos à sua trás. Lino Tchiva reconheceu-os com dificuldade. – Como está, Lino Tchiva? – cumprimentou a figura encapuçada. – Também odiamos o Usuku. Vimos tirar-te daqui. Fantasmagórico – a figura encapuçada tinha uma voz sombria e sua mão parecia parcialmente queimada. Tenebroso – os indíviduos tinham Cuchi e Tchivela como sobrenomes, e tinham a fama de usar explosivos para eliminar os obejectos de seu ódio. O seu companheiro de cela apereceu atrás de si e sussurrou-lhe com voz atemorizante: – Agora temos tudo o que precisamos. A festa pode começar.
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À luz do céu parcialmente estrelado e do luzir parco da lua, Ngoma Usuku encontrava-se parado à entrada da residência onde usufria maioritariamente da companhia de pessoas que, supunha-se, eram personagens de seus livros que haviam ganhado vida. Por causa do estado adoentado em que se econtrava, o seu nariz havia derramado algumas gotas de sangue. Visto que precisava de ar fresco para acalmar-se e recompor-se, foi até ao exterior da residência desfrutar do reconfortante toque da gélida brisa nocturna na companhia efémera de Ndombaxi Canzar e Carlos Banzaia após ter conversado ao telefone com sua noiva. A atmosfera cheirava à chuva. O homem fechou os olhos. As suas narinas inalaram com êxtase o gélido frescor que pairava no ar. Os seus pulmões agradeceram soltando um aliviado suspiro pela boca. Ndombaxi Canzar e Carlos Banzaia voltaram a entrar para a residência. Ele permaneceu no exterior. O cenário nocturno e levemente sombrio fazia-lhe raciocinar com maior clareza. O Homem do Saco – o Homem do Saco agia como líder entre eles. Raramente era questionado. Qual seria o plano dele? Porque entrava e saía de cena em tão pouco tempo? O que estaria a fazer naquele momento? Teria ele os mesmos poderes sobrenaturais que Ngoma Usuku descrevera em seu livro? Porque razão engendrara aquele encontro? Vingança? Diversão? Onde havia ele conhecido Márcio Nassembe, os irmãos Canzar, Cazenga e Carlos Banzaia? Até agora a resposta tendia a ser a de que os conseguira encontrar por meio de seus poderes sobrenaturais. E a semelhança entre eles e Usuku? Como se explicava aquilo? O facto de que tinham um comportamento muito parecido ao seu não era de todo impossível, mas desfrutarem basicamente dos mesmos traços físicos era extraordinário demais para ser prontamente encarado como normal. O que queria o Homem do Saco mostrar-lhe? Qual era o objectivo de eles estarem aí? Como terminaria tal história? Ngoma Usuku tinha de ponderar incessantemente sobre estas questões, antes que fosse surpreendido com o bem, ou com o macabro. Enquanto Usuku pensava nas respostas a tais perguntas e decorria uma acirrada conversa no interior da residência, foi despercebido que um homem abordou-o e levou-o para um lugar isolado. – Eu não acho que isso será uma boa ideia – comentou a mulher de sobrenome Pereira no interior da residência. – O que não é uma boa ideia? – inquiriu o homem de sobrenome Henriques. – Isto que o Usuku está a tentar criar – continuou ela. – Pelo que vi aqui, ele está a tentar criar um livro onde todas as personagens que têm a personalidade dele nos seus livros participam. Isto é, um livro formado pelos protagonistas dos seus outros livros. Penso que este será o pior livro dele. – Porquê? – perguntou o homem de sobrenome Alves ao voltar a sentar-se. – Como é que ele iria explicar a existência do Cazenga e do Kaculu? – inquiriu a mulher em tom gozoso. – Segundo os livros dele, o Cazenga é alguém que ainda não nasceu, mas consegue falar com a mãe; o Kaculu, o Homem do Saco, é alguém com poderes extraordinários, poderes fictícos... Como conseguiria ele juntar o real e o fictício e dar uma explicação lógica para tal ambiguidade? Se ele decidisse juntar apenas o Carlos, o Márcio, o Ndombaxi e Lourenço teria mais sentido... – Acreditas apenas no lógico? – embargou Carlos Banzaia que estava de pé relativamente distante de todos os outros.
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– Mais do que isso – respondeu ela. – Acredito na razão e na intelectualidade. A sabedoria e o discernimento não estão fora deste conjunto... – Vês alguma lógica em diminuírem nove meses à tua vida? – prosseguiu o Banzaia. – Como assim? – Todos nessa sala têm nove meses, ou sete, diminuídos à sua vida porque, por convenção, começa-se a contar a idade das pessoas após serem dadas à luz. Antes disso, estavamos escondidos em um ventre. Mas estavamos vivos, não? Tal tempo é irrelevante? Creio que acabei de fazer um pergunta retórica – disse calmamente para impedir que a outra se pronunciasse antes de pôr termo ao seu pensamento. – Contudo, todos aceitamos isso sem sequer questionar por algum instante. Uma coisa tão importante e maravilhosa como o tempo desde a concepção ao nascimento de uma criança tão almejada por seus pais é relevada à inexitência; não é contada. Tem lógica isso? – Pode parecer que não tem lógica – defendeu-se a mulher com olhar triunfante – mas se todas as pessoas o aceitam, deve haver alguma razão para tal. Foi isso que eu disse, acredito mais na razão do que na lógica. – Então acabas de te contradizer – disse calmamente o Banzaia ao retirando-se para a cozinha.. – Desculpa-me, mas não vejo contradição nas minhas palavras. Vocês aqui ouvira-me a contrariar-me? – «Pode parecer que não tem lógica mas se todas as pessoas o aceitam, deve haver alguma razão para tal.» – repetiu Márcio Nassembe com intuito explicativo. – Se a razão reside em todas as pessoas, ou a maioria delas, aceitarem algo, qualquer coisa que se torne admissível por convenção seria vista por ti como sendo razoável e provida de intelectualidade. A sabedoria e o discernimento não estariam fora deste conjunto. Quer dizer, se todos aceitassem a existência do Homem do Saco, tu deixarias de achá-lo como fictício e assim a ideia que julgas estar na mente do Usuku para um novo livro se tornaria mais crível para ti. – Mas não estamos aqui para servir de inspiração para o Usuku – interrompeu Cazenga. – Não somos personagens do livro dele. É impossível que o sejamos. Mas, tendo em conta as semelhanças que vocês dizem que temos com elas só posso deduzir duas coisas: acaso extraordinário ou invasão de privacidade. – Invasão de privacidade? – inquiriu o homem de sobrenome Alves. – Alguém contou-lhe sobre as nossas vidas, obviamente sem a nossa permissão. Ele gostou das histórias, fez uma mistura com o que ele já viveu e transformou tudo isso em entretenimento para as massas. – Entretenimento para as massas – repetiu o homem de sobrenome Henriques levantando-se enquanto a ausência de Kaculu se tornava obsoleta. – Isso dá-me uma ideia. Todos os protagonistas dos livros do Usuku são escritores. Depreende-se disso que são excelentes contadores de história. Já que vocês insitem com a brincadeira de que são o Márcio, o Carlos, o Ndombaxi, o Homem do Saco, o Canzenga e o... Onde está o Lourenço? – Está a conversar com o Usuku aí fora – respondeu Kaculu ao desfazer de forma displicente o nó da gravata à volta de seu pescoço. – A conversa deles será longa e peculiarmente acidentada. Continue a expôr a sua ideia. Sei que gostaremos dela.
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– Como eu dizia, já que vocês dizem que são o Márcio, o Carlos, o Ndombaxi, o Homem do Saco e o Canzenga, com certeza não se importarão de participar no que acabei de pensar. A ideia é a seguinte: um de vocês vai começar a contar uma história, mas não pode terminá-la. Após três ou cinco minutos, apontará para qualquer outro de vocês para continuar. E assim será até terminarem todas as pessoas aqui na sala. – Muito bem – concordou Kaculu. – Mas não vamos fazê-lo aqui. Levantem-se. Vamos a um lugar especial. Ao terminar a enunciação do gigante, sete pares de sapatos foram descalçados ao sinal de Ndombaxi Canzar. Kaculu dirigiu os homens e a mulher para o piso superior da residência. O lugar era rústico, incomparável era a palavra. Havia areia branca húmida sobre chão, não havia teto, quatro tochas acesas estavam posicionadas nos cantos e havia uma fogueira no centro. A humanidade da areia causava arrepios aprazíveis quando os pés descalços entravam em contacto com ela. O cheiro do terreno arenoso embriagava a alma de prazeres indescritíveis, assim como a leve e gélida brisa que subia do mar à beira da residência. O queimar das tochas e da fogueira aqueciam tacitamente a pele parcialmente desnuda daquelas pessoas, ao passo que o céu esvaia mui serenamente gotículas frias sobre suas cabeças e seus ombros. Trovejava assustadoramente, mas não de forma incessante. Sentaram-se todos à volta da fogueira, sendo a excepção o Cazenga que começaria a contar a história. Alguns pegaram na areia húmida e a esfregaram sofregamente sobre as mãos enquanto a única pessoa que se mantivera em pé pigarreava e se preparava para falar. – Pediram uma história – dizia ele rondando-os. – Será que estão prontas para ela? Pode ser violenta demais para alguns de vocês? E eu não gosto de ferir sensibilidades. Mas os vossos rostos parecem ansiar por ela. Querem a versão curta ou a longa? Quem decide sou eu, não é mesmo? Bem, aqui vai: Fechem todos os olhos e vejam o homem da nossa história. Ele é alto e magro, e tem o rosto coberto por uma desalinhada e enorme barba. As roupas são indígenas. Ele está rodeado por capim alto, chanas é o nome. Está escuro, a noite pinta o cenário celestial, ao passo que, entre as chanas, no cenário terrestre, alguns pirilampos brilham na companhia da lua que no momento parece aterrorizadora. O homem não está parado nem sozinho. Anda de um lado para o outro tentando acalmar a pequena criança em seu colo. Há horas que ela chora. O homem está enraivecido, mas não pode fazer nada contra ela. Faz de tudo para que ela se cale – brinca, dá-lhe algo para comer, limpa-lhe suavemente as lágrimas e encosta a cabeça dela em seu ombro com ternura, mas é infrutífero e frustrante. A criança tem de continuar incólume e imaculada às suas mãos porque ela – a criança é sangue do sangue, sua primogénita. Contudo, a ela não age como sua filha. Chora, grita, esperneia, faz um berreiro estridente. O berreiro estridente atrai animais vorazes e sanguinários. O homem ouve-os chegar entre as chanas. Num acto impulsivo e bizarramente messiânico, esconde a criança entre o capim alto onde julga haver segurança e tenta afastar os animais. Todavia, os animais não cooperam com a sua ideia. São bestas selvagens; seu instinto demanda que matem. As bestas atacam o homem. O homem riposta, mas não o suficiente para escapar-se da morte iminente. As bestas o transformam rapidamente em banquete nocturno e se retiram. Os gritos angustiantes dele fizeram a criança calar-se, por isso as bestas não conseguem encontrá-la. Após alguns minutos, o pequenino ser humano chorador engatinha por entre as chanas escuras e encontra uma pequena poça. Ela brinca com as mãos dentro dela, salpica o líquido contra o seu corpo e sorri enquanto tenta
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apanhar um dos pirilampos. Mas a poça – a poça não é uma poça qualquer. Foi feita recentemente por um fluído que saiu do corpo de alguém que era sangue de seu sangue, seu pai. – O verde fluorescente dos pirilampos não pode ser claramente contrastado pelo vermelho vivaz do sangue – continuou Carlos Banzaia após ter sido apontado por Cazenga – pois, neste momento, a poça negra é apenas notada pelo reflexo da imagem fosca do astro aterrorizador. O cenário está completamente vestido de negro. O breu impera sem oponentes à altura. Distante das chanas, um casal aproxima-se com expressão aflitiva. Ecoam palavras de suas bocas. Nomes – nomes é o que eles pronunciam. O balouçar do capim é arrepiante. O som dos animais nocturnos à distância é desconcertante. O casal continua a andar por entre o cenário inóspito. Mal sabem que um dos possuidores dos nomes que enunciam jaz morto e que o outro pintalga em seu sangue. Os segundos correm. Os passos do casal estão cada vez mais próximos. A criança os ouve e chora. Eles seguem o som do berreiro e a encontram. A mulher coloca-a rapidamente em seu colo, sem reparar na vermelhidão de suas mãos e de seu rosto – a escuridão não permite o reconhecimento de cores. Por algum tempo procuram pelo indivíduo que a trazia ao colo. Uma forte trovoada os impede de continuar a busca. O medo toma conta de suas acções e decidem procurar um abrigo. Se chegassem ao abrigo, poderiam ver com claridade o quão ensanguentada estava a criança, mas a forte chuva que principia a cair sobre eles lava-lhe a pele. O homem é tio da criança e irmão da mulher. A mulher – a mulher é mãe dela e não sabe que se tornou viúva mui recentemente. O trio aproxima-se do abrigo. A chuva continua a assolar-lhes a pele. O abrigo é uma cubata situada entre outras cubatas. Cada cubata pertence a uma mulher. A cubata no centro é propriedade do homem à qual pertence – correcção: pertencia – cada mulher. A mulher, o seu irmão e a criança entram para o abrigo. Há claridade suficiente para que se veja tudo nitidamente. A mulher pousa a criança. O homem repara que as roupas da mulher estão manchadas de sangue. Ela preocupa-se em encontrar algum ferimento em seu corpo. Nenhuma laceração é achada. Susto – um susto trepida seus sentidos ao olharem para a criança. Terá ele sido devorado? O casal não deixa nada transpirar sobre aquele assunto durante anos, pois temem que durante eras se conte o mito da criança que comera o próprio pai para sobreviver. – Os anos são submersos em felicidade falcatruada – continuou Márcio Nassembe após ter sido apontado enquanto Carlos Banzaia retirava de seus bolsos um aparelho que já há algum tempo vibrava. – Oi, Susana – disse Carlos Banzaia ao atender o telefone. – Como estão as coisas aí? – Não é a Susana que fala, mas Freitas Zozi-Pó. Lembras-te de mim, não, senhor Carlos Banzaia? – És o homem que controla o lugar onde o Lino está preso. Como tens o número da minha esposa? – Finalmente fazes uma pergunta de alguém curioso. Pensei que nunca o fosses fazer. Sou uma pessoa razoável. Deixarei que ela mesma te responda. – Carlos – disse Susana Banzaia após ter recebido o telemóvel –, esses homens entraram aqui cheios de formalidades e agora colocaram algemas nas mãos da Raquel, do Hélder e nas minhas. Eles dizem que és culpado de um crime gravíssimo. Sei que não fizeste nada, miúdo. Eles são tão parvos que em vez de prenderem a ti, que dizem ser o
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autor do crime, prendem aos nossos filhos e a mim. Isso não será bom para eles em um tribunal. Eles querem-te aqui. Não voltes para a casa. Posso cuidar muito bem disso. Conheces os meus truques. Fica descansado. – Acreditas na tua esposa, amigo Carlos – inquiriu com falsa benquerença Freitas Zozi-Pó ao receber o telemóvel das mãos de Susana Banzaia Carlos ainda pode ouvir seus filhos dizendo. – Podes fazer o que quiseres connosco, mas se tocares na nossa mãe ou no nosso pai, o teu sangue saindo de teus olhos é a última coisa que verás. – Muito corajosos os teus filhos, não? E ingénuos também! Pelo que li no livro A Três Degraus do Quarto sobre ti, eles aprenderam isso contigo. Tens a mania do poder. Ameaças as pessoas com a morte quando estás com raiva. «Eu posso subornar a morte e dizer-lhe que te deixe vivo mesmo que estiveres com queimaduras do terceiro grau no cérebro», foi esta a frase que usaste contra o miúdo que cuspiu contra a face da Liliana, a tua sobrinha. Então? O que farás? Arriscas tratar três certidões de óbito ou vens aqui a correr com a urgência e a rapidez que o desespero te permitirem? – inquiriu desligando em seguida. A calma dos pensamentos e a serenidade do comportamento de Carlos Banzaia ficaram comprometidos. O único elemento que o deixava fora de si era o atentado à integridade física daqueles a quem amava arrebatadoramente. Podia-se fazer coisas execráveis contra ele que o homem não ripostava, mas mexer em seus entes queridos? Isto equivalia a ficar perto da explosão de bilhões de bombas atómicas e pensar em sobreviver. O homem teve de tomar uma decisão impensável. – Precisas de ajudar-me, Kaculu – disse ao embargar a subsequência da história que Márcio Nassembe contava. – O que se passa, amigo? – Perguntou Cazenga por achar estranha a expressão no rosto do Banzaia. – Dei o meu bilhete de identidade ao director da prisão onde se encontra o Lino. Acho que ele fez uma cópia deste e uso-o para achar a minha morada. Eles têm os meus filhos e a minha mulher algemados. A minha lógica não será suficiente para demovê-los de qualquer ideia que eles tiverem contra mim, pois é atingir-me o que eles querem. Precisas ajudar-me, Kaculu. Sou sereno para resolver os problemas dos outros, mas quando são os meus, principalmente se envolverem as pessoas que amo, sou até capaz de matar insensivelmente. Tu tens mais controlo. Ajuda-me, antes que cometa alguma atrocidade.
♣ Totalmente a leste do dilema que Carlos Banzaia começara a viver, Usuku e Lourenço Canzar conversavam no exterior da residência. O diálogo já era mantido há já algum tempo. Contudo, o objectivo do colóquio ainda não havia sido alcançado nem citado. – Sei que achas que estás preparado para tudo – disse Lourenço Canzar sentado sobre o banco do enorme auto preto de Ngoma Usuku que entrava em movimento – mas para a conversa que teremos os teus sentidos ficarão desordenados.
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– Estou ansioso para ver o que tens para mim – disse Usuku que dirigia o enorme auto preto. – Usa a sonoridade articulada com perspicácia. Quem sabe desse modo poderás surpreender-me? – Achas que é praticamente impossível as pessoas surpreenderem-te, não é mesmo? Acho o mesmo sobre mim. Acompanhei as tuas conversas com o Kaculu e os outros e reparei que somos assustadoramente parecidos. Reages às coisas exactamente como eu. Mas o que tenho para ti aqui é surpreendente. Tu não contas com isso. – Como já disse, estou ansioso, surpreende-me. – Deixa-me conduzir o teu carro, e verás que há alguém capaz de fazer o que ainda não pensaste. – Prova-mo – redarguiu Usuku entre sorrisos após ter trocado o lugar com o Canzar de deixá-lo dar locomoção e direcção ao enorme auto preto. – Aquele homem, o que tem o Alves como sobrenome, perguntou-te algo sobre o amor. Continuarei com a conversa dele… – Espera! Qual é o objectivo dessa conversa? – Fazer-te ver se há lógica em dares um presente à Braulia. Continuando com a conversa do Alves, o que é a Braulia para ti? Responda-me sem afirmações com informações ocultas. – A mulher que eu quero que se case comigo. – Se ela assim não fizer, choras? – Sim, por alguns segundos algumas vezes por dia. – E depois apaixonar-te-ias por outra? – Se esta me convencer que tem perspicácia suficiente para entender-me… – E durante o teu namoro com esta compararias a acções dela com a da Braulia? – Nunca! Cada ser humano é individual. Eu não a escolheria como uma substituta para a Braulia, mas como alguém que convenceu-me que merece a minha atenção. Nada de comparações. Quero apenas achar a minha princesa, e esta não se compara a ninguém. Além disso, seria imaturo e pusilânime fazer comparações. Interesso-me por seres humanos femininos maduros, não por suplentes de um amor perdido. – Sabes que estás sujeito a ser abandonado ou trocado por outro. Porque não paras de te apaixonar? – A vida é a mesma para todos nós. Qualquer humano passa por isso. O tempo e o imprevisto são colectivos. Apaixono-me porque sou humano, não uma reacção à atitude inexplicada do objecto do meu amor. – Com isso queres dizer que amas, mas não confias? – És abismalmente inteligente para fazer uma pergunta desta, Lourenço. Contudo, entendo a tua razão. Respondo-te com algo já dito por mim, o tempo e o imprevisto são colectivos. Confio na afeição dada pelo objecto do meu amor enquanto for credível; amoa se ela me amar. A amizade não colorida surge se ela mostrar de forma convincente que vive sem ser amada romanticamente por mim. – Então amas com o cérebro, não com o coração? – A Braulia disse-me algo parecido. Dei ao meu coração a maioria das propriedades de meu cérebro. Aquele que magoa qualquer ser humano por egoísmo ou por escolha tida como a mais acertada, não merece o sofrimento deste, Porque se sofre alguém? Por merecimento ou por sentimentalismo? As lágrimas são especiais demais para serem vertidas por algo que a razão vê como liberdade de escolha. Não se pode
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obrigar alguém a amar-nos. Não se pode sofrer avassaladoramente por alguém que não pode amar-nos. Temos pouco tempo de vida. Não podemos desperdiçá-lo com frivolidades. Acções maduras trazem-nos paz e contentamento. Acções sentimentais trazem-nos mal-estar e doenças imperceptíveis. Chora-se por motivos irreparáveis, não pela escolha concedida a todos nós. Amar-me não é uma obrigação. Cada uma é livre de fazê-lo ou não. Não me posso martirizar porque alguém resolveu encontrar a felicidade no lugar onde lhe aprouve. – Com isso deduzo que vives a vida maioritariamente sem tentar contorná-la – dizia o Canzar após ter parado o auto e ter deixado entrar neste uma rapariga albina. – Sim, só a contorno com decisões que cabem única e exclusivamente a mim; os outros são livres de fazerem o que quiserem. – Conheces a minha filha? Chama-se Daniela Canzar, e tem perspicácia capaz de colocar-te atónito – disse ao apresentar a rapariga albina. – Ela não é realmente tua filha. O teu irmão, o Ndombaxi, é o pai dela, mas os treze anos que conviveste com ela antes de saberes disso, incrustaram essa estranha paternidade em tua mente. Oi, Daniela. O que tens para mim? – O pai disse-me que precisas de ajuda – respondeu a rapariga. – Estás à procura de um presente para a tua noiva… – Sim, e marquei este dia como o dia em que teria a ideia final sobre o presente. Estou a pensar nele há mais de sete meses, mas não me ocorre nada. Podes ajudar-me? – Respondo-lhe mais tarde – disse a rapariga após se terem passado vários minutos de silêncio e o enorme auto preto ter estacionado. – Agora preciso descer e ajudar uma amiga. – Já passam das vinte e uma, filha – enunciou Lourenço Canzar. – Tens certeza que não será um incómodo para a família dela? – Ela já falou tudo com eles. Na verdade, a mãe dela quase me pediu de joelhos para que eu pudesse estudar com ela. As notas dela estão muito baixas. E daqui há duas semanas começam os exames… O único tempo disponível para nós duas é este. Estive a ajudar uma outra colega numa outra coisa antes de vocês me apanharem. Finalmente ela conseguiu entender algo que o professor já explica a mais de quatro aulas! Agora verei se consigo fazer o mesmo milagre com esta. – 0K. Voltarei dentro de uma hora. – Então até daqui a pouco, pai, e até daqui a pouco, senhor Usuku. – Como pode a Daniela ser real? – inquiriu Usuku no momento em que o auto entrava em movimento após a rapariga ter entrado para a casa à frente de si. – Ela é incrível, não? Tão jovem, tão inteligente, tão fascinante. Até parece que não tem qualquer problema. Ela quase foi morta pela própria mãe, e ainda assim age como se nada tivesse acontecido. – Não era bem a isso que me referia. Eu escrevi sobre esta menina. Até à manhã do dia de hoje, julgava que ela fosse fruto da minha criatividade. No entanto, acabei de falar com ela, face a face… – Porque escreveste sobre ela? – O mundo já falou e escreveu muito sobre o albinismo. Nunca tinha lido uma história em que o albino era o herói sem ser apresentado como alguém franzino, melancólico e vítima de maus-tratos e preconceitos. «O que faria eu se fosse albino?», perguntei para mim mesmo. «Tenho defeitos, sou mal interpretado e por vezes sou vítima
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de preconceito. Isolo-me por causa disso? Não me afirmo por causa disso? Sou infeliz por causa disso? Não. Sou uma pessoa madura ter passado e continuar a passar por essas coisas. Então deve haver albinos que encontraram a felicidade por serem albinos. Escreverei sobre esses.» Claro que não pensei exactamente assim a princípio, mas a ideia básica foi essa. – E porque uma menina? Porque não um homem ou uma mulher? – Quando criança, estudei com um rapaz albino e convivi com um homem com o mesmo tom de pele. A mulher albina que conheço veste-se indecentemente. Nunca me associei continuamente com uma rapariga assim. Nunca presenciei a infância de uma menina albina. Como seria? Só havia uma forma de saber naquele momento. Tornei-me numa menina albina de treze anos… – Então escreves sobre coisas que nunca viveste. Coisas que nunca sentiste. Isto torna as tuas histórias artificiais, não achas? – Tendo em conta que as pessoas reagem de forma diferente aos mesmos problemas, não daria tanta artificialidade assim aos meus textos. Mas cada um é livre de interpretá-los a seu bel-prazer e julgá-los conforme quiser. Alguém escreveu certa vez que o poeta tem carga de almas. Sou livre como escritor, transformo-me naquilo que quiser: uma mulher grávida, uma zungueira, um idoso mulherengo, um homem com alucinações, um muadié bué bilingueiro. Obviamente, peço a algumas pessoas para lerem os meus textos enquanto os mesmos não foram ainda totalmente terminados para que dêem o seu parecer sobre a naturalidade das personagens e das ideias expressas. Por outro lado, gosto de tentar entender todo mundo. Observo com atenção os problemas pelos quais passam e tento perceber o que sentem. Claro que as minhas conclusões não passarão de deduções susceptíveis à palmatória, mas serão maioritariamente deduções interessantes e provavelmente inéditas. Que posso fazer? Descartá-las porque alguns as acharão artificiais? Deus! Einstein defende-me com sua teoria da relatividade. «Tudo é relativo», disse ele. E, também, não posso a agradar ao mesmo tempo a gregos e a troianos. – Tens uma arrogância assustadoramente parecida à minha. E quase o mesmíssimo repertório discursivo. Disse-te a pouco que pensas que poucas coisas te podem surpreender, não. O humano normal estaria aterrorizado ou extremamente preocupado se descobrisse que os protagonistas dos seus livros são pessoas reais. Mas tu reages tão naturalmente a essa ideia, como se já tivesses conhecimento prévio dela ou não te importasses. Não será este teu comportamento anormal? Julguei que ao veres a Daniela poderias perder esta pose de segurança inquebrantável, mas as tuas emoções continuaram impecavelmente intactas. Não podes ser normal. Se o és, sabes há muito tempo que somos reiais. Quem te contou sobre as nossas vidas. – Temos realmente um repertório discursivo parecidíssimo. Ambos usamos exageradamente os advérbios no grau superlativo. Reagirias da mesma forma que eu se estivesses nesta situação. Alarmar-me não me levará a nada. Tenho apenas de viver cada segundo e tentar digerir com perspicácia o que se passa. Talvez seja algo maior que as nossas mentes, algo inacreditável, algo sobrenatural. – Estás a desconfiar do Kaculu, não estás? – No momento é a minha segunda teoria. Agarrar-me-ei a ela até que perca fundamento ou confirme que estou certo. E não estou de todo indiferente a esta situação de vocês estarem aqui. Desmaiei quando nos encontramos pela primeira vez, não. Sangrei
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pelo nariz a pouco tempo enquanto falávamos todos sobre eu ser o culpado das coisas más que aconteceram nas vossas vidas. Não sou artificial, não sou insensível. Sou calmo, paciente. Não vamos voltar para pegar a Daniela, pois não? – Porque perguntas? – Disseste que pensaste que eu fosse me comportar de outra forma quando eu a visse. Estavas a testar-me? – Sim. – Com que fim? – Isso, meu carro – respondeu o Canzar após ter acelerado o enorme auto preto de forma brusca –, terás de descobrir tu mesmo. – Estás com pressa para fazer alguma coisa? Se continuares nesta velocidade pode acontecer um acidente trágico… – Dizes isso por preocupação pelo bem-estar desses peões e dos outros automobilistas ou porque temes a tua morte? – Caso-me dentro de doze dias, é suposto ter medo. Contudo, por saber que isto é um teste teu, a minha coragem continua intacta. – E quanto ao bem-estar desses peões e dos outros automobilistas? – Comecei a orar agora para que nada grave lhes aconteça. E o Kaculu pode muito bem estar a protegê-las com os seu poderes… – Acreditas mesmo que o Kaculu tenha poderes? – inquiriu entre dentes ao fazer o auto curvar com violência. – As acções dele indicam isso. Ele conseguiu trazer dois de meus amigos que nunca o tinham visto para um lugar abandonado, e provavelmente tirou o meu carro da minha casa sem causar nenhum alarido. Os meus amigos não mostram indício de estarem drogados. Concluo assim que vieram de livre e espontânea vontade. E eles mesmos disseram que vieram comigo. Como poderia eu ter vindo com eles se estava convosco? Simples, o Kaculu adquiriu a minha aparência e fisionomia para tal. Humanos normais não conseguem fazer isso em menos de uma hora… O Kaculu, o Homem do Saco, tem poderes metamórficos. – Já pensaste por algum segundo que os teus amigos podem estar envolvidos nisso? A pergunta seca e directa deixou Usuku paralisado. Seria aquela uma questão a ser ponderada? O que ganhariam o homem de sobrenome Henriques e a mulher de sobrenome Pereira com aquilo? Estariam a tentar ajudá-lo na sua ideia magna para o casamento? Ou havia algo macabro em suas intenções? E o homem de sobrenome Alves? Estaria este também envolvido? Se não estivesse, porque direccionara tão rapidamente a conversa que tinham sobre a personalidade de Usuku para a similaridade de seu comportamento com o das personagens de seus livros? Porque haviam ficado os três naquela residência com os outros? Teria sido Usuku propositadamente excluído com o pretexto de falar com Lourenço Canzar para que pudessem fazer ajustes em seu ainda imperceptível plano? Havia lógica e razoabilidade nessas questões. Todavia, Usuku não era homem de ser desviado da verdade por deduções que saltariam à vista de qualquer um. – Se eles estão envolvidos, o plano foi perfeitamente elaborado – disse Usuku. – Colocar primeiro o Lino Tchiva para matar-me foi um toque de mestre. Chamar a polícia e depois evadir-se para aquela residência também o foi. É perfeito demais para ter saído
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da mente de alguém. Eu escolhi o Alves, não vocês. É impossível que os meus amigos estejam envolvidos. Se estivessem, a Pereira estaria mais preocupada comigo quando comecei a sangrar pelo nariz; ela sentiria culpa por causa daquilo. Não vi nervosismo contido nas faces deles. Eles não sabem de nada, queres apenas desviar o assunto. – Crias deduções muito rapidamente e pões fé nelas. Podes estar errado e eu certo, assim como podes estar certo e eu errado. Como saber? – inquiriu após ter parado bruscamente o enorme auto preto. – Temos de descer do carro e descobrir. Atreves-te? Usuku saiu do auto. Lourenço fez o mesmo. – No fim confirmarei que tenho razão – disse Usuku enquanto o outro andava à frente de si. – Embora as minhas deduções possam não ser as mais acertadas, sei que conduzirão à verdade. Isto equivale a estar certo. Mas, o mais importante para mim neste momento não tem que ver com este assunto. Prometi a mim mesmo que teria a ideia sobre o presente para a Miúda hoje. Se me podes ajudar, acho que não devias perder tanto tempo com testes psicológicos. – Estás disposto a sofrer para chegar até esta surpresa. – Daria até a minha vida – disse entre sorrisos. – Mas não posso casar morto. Estou como uma criança recém-nascida, ainda não cometi nenhum pecado. No momento, sou o humano que não deve nada à morte. Estou a fazer um bem, não vejo iniquidade no que faço. Sem articular qualquer palavra, Lourenço Canzar estalou quatro vezes os dedos de ambas as mãos. De repente, um colossal cachorro negro apareceu no campo de visão de ambos. O cachorro tinha os olhos vermelhos e a boca temivelmente húmida. Fantasmagórico – a besta corria em direcção a Usuku com ímpeto assassino. Tenebroso – o cachorro saltou sobre ele e o derrubou com seu peso majestoso. A enorme boca da besta cobriu a face dele. Lourenço não fazia nada nada, observava apenas Usuku sobre o chão suportando o esmagador peso do cachorro. Com olhar brilhante e sorriso gozoso, o Canzar sentou-se sobre um dos bancos ao lado e disse divertido com a cena: – Pela lógica, criança ou adulto, inocente ou culpado, todo mundo merece morrer. Porquê? «Eu … disse no meu coração, com respeito aos filhos da humanidade, que … eles mesmos são animais.» – Eclesiastes 3:18.
♣ As viçosas plantas no quintal davam uma imagem acolhedora à idílica residência. As flores, as gaiolas com pássaros e o rondar soturno dos cães acorrentados transmitiam paz e insólito sossego. Todavia, o que acontecia no interior da vivenda contrastava impetuosamente com tal cenário tranquilo. Com os cabelos desalinhados cobrindo-lhe parcialmente o rosto, uma mulher olhava para o casal sentado sobre o chão à frente de si. Ambos eram seus filhos. A rapariga tinha onze anos e o rapaz, sete. O casal estava algemado, assim como ela. A presença adulta masculina entre a mulher e o casal estava fardada. Raras vezes a sua mão se movimentava e, quando o fazia, arrebatava um fino objecto cilíndrico para os seus lábios. Quando a mão se abaixava – fumo! – fumaça tóxica saía de sua boca e empestava o ar. Mui propositadamente, expelia a fumaça 62
directamente para o rosto do casal. Tanto a menina quanto o rapaz padeciam de problemas respiratórios. Aquilo era uma agonizante tortura, tanto para eles quanto para a sua mãe. Os cabelos em desalinho da mulher estavam molhados por algumas lágrimas. Engolia em seco – não produzia gemidos de lamento nem gritos de histeria; não podia agradar ao homem fardado mostrando-lhe desespero. As crianças tossiam. Notava-se claramente o quão rubras estavas as suas faces. Os três tinham Banzaia como sobrenome. Sabia o homem fardado do perigo em que se colocara? O rosto dele não mostrava medo. Arrogância animal era o que a sua expressão facial exalava. Se sabia dos horrores que podiam acontecer-lhe naquela casa por afligir tais pessoas, tudo em seu corpo indicava que se havia preparado para o momento. O cenário no quintal perdia agora a quietação. Alguém colectivo acabava de se fazer presente. Os pássaros entraram em chilreio frenético, os cães latiam em alvoroço. O suspense instalou-se no ar. Os acontecimentos a desenrolavam-se então numa lentidão tormentosa. Os passos do alguém colectivo no quintal eram pesados. As baforadas do homem fardado no interior da residência exauriam-se – o cigarro estava prestes a terminar. Um dos do alguém colectivo colocou a chave na porta de entrada. A mulher e os seus filhos ficaram tensos e comedidamente esperançosos. O homem fardado apagou o cigarro na pele de sua própria mão. A porta abriu-se. Quatro homens entraram atrás do homem que a desfechara. Havia três gigantes entre eles. O homem fardado sentou-se com pompa altiva. Aquele dentre o alguém colectivo que abrira a porta andou de forma acelerada até as crianças algemadas, levantou-as e fê-las sentar comodamente. Depois voltou-se para a mulher e endireitou-lhe os cabelos com a mão. A mão – a sua mão tremia com tensão, bem como seus lábios. O homem fardado cruzou as pernas e sorriu mordazmente para ele. Enquanto um dos gigantes libertava as crianças e a mulher das argolas metálicas, o homem que abrira a porta aproximou-se dele com olhar marejado. – Porque fizeste isso com a minha família? – inquiriu sem intenção de ouvir a resposta visto que o seu único desejo consistia em estrangulá-lo com a ferocidade de um monstro indomável. – Mentiste para mim – respondeu ao diligenciar acender outro cigarro. – Perguntei-te se já havias lido o A Três Degraus do Quarto do Ngoma Usuku. A tua resposta foi negativa. Mas sei que tens um exemplar que te foi entregue pelo Lino Tchiva. – Isto não é motivo para envolveres a minha família. Eles são a minha família. Não sei se percebes o que quero dizer. Minha família – disse enquanto a sua mente imaginava coisas horrendas sobre o que podia fazer com o pescoço daquele homem com o molho de chaves em suas mãos. – Até onde sei, nada na lei te permite fazer o que fizeste. E eu não te menti. Querias saber se li o A Três Degraus do Quarto do Usuku. Eu realmente não li o do Usuku, mas o do Lino. – No momento em que te fiz a pergunta, não mencionei de quem era o livro… – O livro que me foi dado pelo Lino não foi lançado para o público, mas para todas as pessoas que são personagens do mesmo. Tu não és uma das personagens. Portanto, não era possível que falasses do livro do Lino. – Pensas realmente muito rápido. Mas ainda não me fizeste a pergunta mais importante…
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– Quero apenas que saias daqui, antes que eu invalidade partes importantes do teu corpo. – Sabes? – inquiriu no momento em que mais homens fardados apareciam na sala. – Não estou aqui sozinho. Esses homens estão aqui para prender-te assim que eu disser. – Por causa do que eu disse sobre o livro? – Não. Por seres conivente no rapto do Ngoma Usuku. Tu e estes homens que vieram contigo têm depoimentos a prestar. – Prestaríamos se esses homens fossem realmente policiais – embargou Ndombaxi Canzar após ter visto uma figura encapuçada parada distante de todos. – O que fazes aqui, Natércia? – Queres saber porque ainda estou viva ou se vim apenas assombrar-te? – inquiriu a figura encapuçada. – Parecias-me mais inteligente na última vez que nos encontramos fora da capital. Foste suficientemente perspicaz para achar-me e queimar-me. Mas não te preocupes. Descobri que não pertence a ti a culpa. Este a quem chamam Usuku tirou-me a dignidade e a beleza. Ele deve pagar por isso. A morte foi projectada para ele. E neste momento, ninguém personifica melhor morte do que eu. Onde ele está? Pensamos que viria convosco. – Então tudo isso não passa de um esquema para encontrar o Usuku? – inquiriu retoricamente Carlos Banzaia. – Vocês entraram aqui, traumatizaram os meus filhos e fizeram a minha esposa chorar por causa de um homem que todos vocês julgam ter vos criado nos livros? Até que ponto vocês conseguem pensar como estúpidos? – Xé! – interrompeu um dos homens fardados. O seu nome era Fernando Cuchi e tinha a fama de seguir a multidão para fins desonrosos. – Bate a bola baixa aqui, muadié! ´Cê pensa que ´tas a falar com um teu monami ou quê? Te fecho a boca com chumbo quente mesmo aqui à frente da tua mbiri! Mais respeito, hã? Nós só queremo o papoite Usuku. Vocês nos dão o gajo e nós bazamo tipo nada. – Tens concorrência no calão, Carlos – gracejou sarcasticamente Cazenga. – Vocês têm poucos minutos para sair daqui. Depois deste tempo, as vossas fardas podem vir a receber sangue como suor. Vocês atacaram a família inocente de um homem por causa de algo ilógico. Detesto quem ataca inocentes. Façam-se escassos! Ou o Camama muitos hóspedes eternos amanhã, se é que serão encontrados os vossos corpos. – Eh! Criatura! – exclamou uma mulher fardada. O seu nome era Anita Cuchi, mãe de Fernando e era sobejamente conhecida por seu comportamento escandaloso e vulgar. Num nos enche só a nossa paciência, yá? Estamos ‘mbora aqui para cumprir um obecti…? – Um objectivo – respondeu o seu filho. – Então esse homem que se julga já o Deus de tudo isso – continuou a mulher com tom e gestos vulgares – foi vos encher de qualidades assim como um bebé lhe embutem já de papa desde manha até a noite, e a nós nos entupiu de má-criação tipo os cães sarnento que estão cheio de carraças? Esse homem – é diabo esse homem! Merece só lhe bungular no caixão com capuca e kimbombo a nos divertir. Nos apresentam só o lugar onde ele está agora. Vocês também num são tão santinhos ué! Podem se ajuntar no nosso bolão e servir uma vingança bem refogada com olho e até acompanhar a coisa com gindun…? – Com gindungo.
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– É inconcebível esta situação! – vociferou Márcio Nassembe enojado com o que a mulher acabava de dizer sem se aperceber que entre os homens fardados havia alguém que tentara matá-lo por duas vezes há alguns meses. – Em que cabeça cabe tal coisa? Quem vos contou isso tudo? Que provas vos deu para que acreditassem nisso tão piamente? – O que está a te confundir é o teu português bonito, papoite? – embargou Fernando Cuchi. – Vais perder o outro lado da cara! – Não precisamos de delongar esta cena – disse um outro homem fardado. O seu nome era Inácio Tchivela e tinha a fama de ser um vingar-se de forma abismalmente desumana – Se estes homens têm a mesma cabeça teimosa que a tua, Ndombaxi, então passaremos sobre os vossos cadáveres para chegar até ao maldito Usuku. Perdi a minha esposa por causa dele. A minha filha foi queimada por ti por causa dele. Ele sofrerá angustiantemente por causa dele. – Ninguém fará nada aqui – cortou Carlos Banzaia. – Vocês estão dentro de uma residência para qual não foram convidados e nem são bem-vindos. Retirem-se! Se houver alguma lei que vos permita ficar aqui ou qualquer coisa que prove que temos algo que ver com o rapto do Usuku engulam-na! Isto não é trabalho de polícia. Não é trabalho de quem representa a lei, Zozi-Pó. E se não representas a lei para mim, não tens nenhuma autoridade aqui. O teu pescoço não está seguro enquanto estiveres nestas paredes. Retirem-se! – Ehé! Queres cumprir cadeia essa hora? Eye wasaluka! – disse Anita Cuchi outorgando-lhe insanidade em kimbundu. – Controla masé a tua boca, pá! Queres deixar a tua mulher sozinha por muitos anos? Esses homens todos que estão aqui vão lhe consumir então! Fecha essa boca! Onde está aquele que gosta de brincar de Deus? Onde está esse Usuku? Só queremos ele. Vocês podem ir nas vossas vidas. Nos vamos tratar de tudo com aquele homem. Ele está aí fora no vosso carro. Saiam da nossa frente! Nós só queremos esse Usu…? – Esse Usuku. Enquanto a discussão decorria, a mulher encapuçada andou discretamente até Freitas Zozi-Pó e sussurrou-lhe algo. Freitas Zozi-Pó arregalou os olhos com malícia e fez um bizarro sinal para os outros homens fardados. Sem dizer nada, os julgados invasores da residência dos Banzaia começaram a abandonar o local. – Onde vocês vão? – inquiriu Márcio notavelmente surpreso com aquela retirada. – O dono da casa ordenou que nos retirássemos – disse Freitas Zozi-Pó. – Vamos cumprir com a sua ordem. Além do mais, a pessoa que queríamos já foi encontrada. Os meus amigos terão a sua vingança dentro em breve. Foi bom passar esses momentos na companhia da sua família, Carlos. Sei que como bons anfitriões quererão que eu passe aqui mais vezes. Apreciei a hospitalidade, com certeza voltarei. Carlos Banzaia levantou-se bruscamente e, se não fosse interrompido por dois gigantes – Ndombaxi Canzar e Cazenga – algum sangue teria sido derramado. Os homens fardados abandonaram o local com celeridade estonteante. Carlos Banzaia e os consigo acompanharam seus movimentos até ao quintal. O que acontecia? Que situação estranha era aquela? Estaria Usuku realmente em perigo naquela altura? Porque Carlos e os outros não seguiam os homens fardados a fim de confirmar? A última pergunta receberia resposta em instantes.
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– O Kaculu não ficou muito tempo aí dentro – dizia Ndombaxi Canzar enquanto se dirigiam para o interior da residência. – Será que ele foi buscar o meu irmão e o Usuku? – Muito provavelmente – respondeu o Banzaia. – Mas isso não é o mais importante. Vocês reparam bem naquelas pessoas? – O que viste de estranho? – inquiriu o Nassembe. – Estou a começar a entender porque todos pensam dessa forma estranha – continuou Carlos. – Olhei bem para os olhos deles, para as suas pupilas. Eles estão hipnotizados.
♣ Distantes da multidão apeada e dos autos dirigidos com sofreguidão, dois homens sentados à beira do mar conversavam tacitamente. Entre ambos, um havia sido derrubado recentemente por um enorme cachorro. Por este facto, as suas roupas estavam parcialmente cobertas por areia. Arranhões? Não havia indícios de lacerações em sua pele. Contudo, algo pior estava para acontecer dentro de momentos. – Eu devia ter filmado a cena – disse Lourenço Canzar sorrindo. – Todas as emoções que inibes ficaram estampadas no teu rosto quando o meu cachorro pulou para cima de ti. – Ele olhou todo o meu rosto – comentou Usuku. – Devia processar os dois. Mas não acho que arranjem um advogado à altura. Tentativa de homicídio por baba é punível por castração … e isto antes do julgamento. – Não existe tal coisa! Coitado do cachorro. – A pena pré-julgamento é para o dono também… – És mais cruel do que eu pensava – disse enquanto passava a mão sobre a cabeça do cachorro. – Ao menos perdeste a pose de indiferente. Embora julgues que me conheces muito bem, consegui surpreender-te. O estranho é que o Dinake foi muito amistoso contigo. Esta é a primeira vez que ele te vê; és totalmente desconhecido para ele, e mesmo assim lançou-se contra ti como se fosses o Ndombaxi ou outro dos meus irmãos. – Tenho a certeza que o Kaculu tem alguma coisa que ver com isso. Tu não deixaste o cão, o Dinake, solto por esta praia, pois não? Senão muitas pessoas teriam sido feridas e ele provavelmente já estaria morto. Então como é que ele aparece assim do nada? – Curiosidade. É bom que a demonstres, mas não te será satisfeita. – Vocês disseram que receberam o convite sobre o meu casamento muito recentemente. Como é que podias ter preparado uma cena dessas aqui, distante da tua casa? Tu não sabias que o Kaculu levaria o meu carro para aquela residência. Como podias planejar estar aqui? Andar a pé está fora de questão. Por isso, posso deduzir que o Carlos emprestar-te-ia o carro… – Porque pensas nisso? Onde queres chegar? Não vais descobrir nada de importante por este caminho. – O que vocês estão a fazer parece elaborado, algo planejado durante um bom tempo. Parece-te que divago, mas é assim que chego ao âmago das coisas. Há realmente a 66
possibildade de estares a improvisar. Podes ter ligado para um dos teus irmãos e ele ter trazido o Dinake para aqui. Não são necessários tantos minutos para isso… – Sabes o que me tem intrigado mais nessas poucas horas que estamos juntos? – embargou com seriedade assustadora. – Tu nos reconheces como as personagens dos teus livros. Olhas para nós e vês que somos as pessoas que criaste nos teus textos. Como é isso possível? Nenhum escritor olha para alguém, por mais parecido que seja à personagem criada por si mesmo, e assume logo que é uma personagem dos seus livros. – Isso se ele olhar apenas para uma pessoa assim, acho. Mas e se forem seis? E se essas forem muito parecidas ao escritor? Coincidência? Quem sabe? Como ter certeza? Fazendo isso que estamos a fazer agora. Converso convosco e confirmo os vossos nomes. Oiço a vossa forma de pensar. Testo a vossa personalidade… – Então também estás a testar-nos… Interessante. Já pensaste se somos pessoas que leram os teus livros e resolveram fazer-te uma brincadeira descabida? – Quem se daria tanto trabalho? Devolvo-te a questão, mas reformulada: Porque não estás tão curioso em saber como fui capaz de escrever sobre as vossas vidas? Já pensaste se sou alguém com poderes paranormais e que brinco de Deus nos meus tempos livres? – Se eu responder a estas perguntas, saberás prontamente a resposta à pergunta que te fiz. Muito inteligente, mas é impossível que eu caia em algo assim. Assumires quase que espontaneamente que somos as personagens dos teus livros indica que já sabias que somos reais. Diz-me algo que escreveste sobre mim no teu livro, mas algo que seria praticamente impossível alguém saber. – Embora tenhas a filosofia de que as mulheres são irmãs, apaixonaste-te pela Paula, filha de uma tua colega, mas não declaraste a tua paixão porque resolveste pôr o interesse da Daniela, da tua mãe e dos teus irmãos primeiro. Como defensor dessa filosofia, não querias ser o primeiro a quebrá-la. Foste fraco, e te culpas por ela não estar contigo. Mas lidas com isso como se esse peso não existisse. E lutaste com um menino albino quando tinhas doze anos. – Certo, até deste o toque final da luta com aquele menino, coisa que nunca contei a ninguém. Mas nunca me apaixonei por Paula nenhuma. – Claro que não. Foi uma brincadeira para te ouvir corrigir-me. Apaixonaste pela Sandra. E ainda sei o sobrenome dela como quebra: Luremo. – Isto não definitivamente não é normal. Conheces mesmo a minha vida. – E sei que conheces artes marciais. Queres ensinar-me um golpe? – perguntou divertido ao levantar-se. – E o que farias com este golpe se eu to ensinasse? – Nada. Deu-me estalo apenas. O gigante Canzar levantou-se e pediu para que Usuku se colocasse atrás de si. Enquanto o escritor aprisionava a cintura do outro com os braços – desgraça! – a desgraça aproximava-se rapidamente e parecia não haver como impedi-la: um atirador furtivo apontava o cano de uma enorme arma para o rosto de Ngoma Usuku. Ao seu lado, havia alguém que parecia tirar fotos aos dois. Com o passar de um automóvel, Lourenço pôde ver a silhueta do atirador. O Canzar assustou-se e tentou salvar a si mesmo e ao outro. Mas já era tarde. O projéctil já havia sido disparado. Poderia aquela bala atingir o alvo desejado? O que se via apenas era um homem deitado sobre o chão e um outro
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clamando por ajuda, contudo seus gritos eram abafados pelo ladrar estridente do enorme cachorro negro. Enquanto o homem gritava por socorro – seus gritos pareciam os gritos de um pai que perdia um filho avassaladoramente amado –, homens fardados aproximavam-se dele. O homem tirou o telefone e tentou ligar para alguém, mas não havia rede no local. Os homens tinham expressões hediondas. As intenções em seus corações eram desumanas. Traziam a morte nas mãos, o sofrimento nos punhos e o desdém no olhar. Espancamento – eles espancariam o Canzar e o escritor até se sentirem vingados. Finalmente a morte mostraria a Usuku que ela não era uma inimiga a qual se podia mofar. Quem os deteria? Cristos de ocasião não aparecem quando notam que estão em desvantagem numérica. – Ainda bem que nos encontramos, Usuku – disse Freitas Zozi-Pó com displicência. – É uma pena que não poderei fazer apresentações. Conheces todos esses homens aqui, não? – Podes ajudar-me? – inquiriu escritor enquanto o cachorro não permitia que os homens fardados pudessem aproximar-se mais. – Tenho sangue nas minhas mãos. Não sei o que aconteceu… – Vais saber quando… Bem, acho que nunca saberás – comentou o Zozi-Pó enquanto o cachorro era imobilizado e Usuku era arrastado para o mar. O gigante Canzar não podia ajudá-lo. Sangrava e não podia levantar-se. O rosto de Usuku foi mergulhado na água salgada. A sua pele tocou na areia molhada. Antes de voltar a ser imerso – um Cristo! – um salvador apareceu no meio da multidão. Incidentalmente seu salvador era também o atirador furtivo e tinha Tchiva como sobrenome. – Vocês não o podem matar dessa forma! – imperou com extrema autoridade. Ele também estava fardado e vinha empunhado uma enorme arma. – Xé! Tá a te subir o quê, Lino? – inquiriu Fernando Cuchi. – Tás a bumbar assim a dois tempo tipo tens razão? Ou tens algo bué anormal pra fazer com esse gajo? – Exactamente – respondeu ao devolver a verticalidade ao escritor. – Ele fez coisas horríveis connosco. Tem de sofrer mais do que isso. – Não se pode dar muito tempo de vida às cobras – cortou Inácio Tchivela. – Às vezes temos apenas uma oportunidade… – Esse homem estragou toda a vossa vida – continuou o Tchiva. – Acham que ele merece breve minutos de sofrimento? Pensem nas vossas famílias, nos vossos filhos, nos vossos irmãos. Tudo o que aconteceu a eles deve-se a esse ser execrável. A morte de quem vocês muito amavam, as cicatrizes que têm em vossos corpos… Temos de tirar-lhe coisas importantes também. Sofrer na própria pele não lhe importa muito. Ele até acha que merece. Mas o sofrimento daqueles que ele ama, fere-lhe mais que uma bala incrustada no crânio – disse com ódio ferino ao colocar o cano da arma no meio da face do escritor. Já começamos com um. O Lourenço não vai sobreviver àquele ferimento. Depois acabamos com os outros. Depois tocaremos na família dele. Teremos então a oportunidade de eliminar a Braulia frente às fuças dele. Por fim, matámo-lo… dolorosamente. O resto dos homens fardados entreolhou-se. A ideia parecia descabida e ao mesmo tempo interessante. Após alguns minutos, concordaram com as palavras de Lino Tchiva e começaram a andar em retirada. Contudo, não deixaram de golpear brutalmente os flancos do escritor.
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Arrastando-se sobre a areia em forte agonia, Usuku aproximou-se do corpo do Canzar. O cachorro tinha a cabeça sobre ele. Parte da areia estava avermelhada. De onde veria um segundo Cristo? Os seus pensamentos ficavam nublados, assim como sua visão. O mundo começou a escurecer para ele. Antes que pudesse tirar o telefone de seu bolso para voltar a pedir ajuda, os seus sentidos voltaram a entrar em colapso e desfaleceu.
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– CAPÍTULO VI – ●
«Que é verdade?»
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O dia marcado por Usuku para chegar a ideia magna a respeito de seu casamento com Braulia já era chamado de ontem. Tudo o que acontecera naquele período estava recheado de mistério e contradições. No momento, o escritor estava deitado sobre a sua cama. Os seus olhos estavam fechados e o seu rosto tinha uma expressão indecifrável. A luz do sol entrava de forma exaurida pela janela e desaguava em suas costas. O computador estava ligado e enchia a atmosfera com melodias que exalavam mansidão. Quando sentiu pousar sobre seu ombro uma mão delgada, despertou. – Passei a noite toda a ler um dos teus livros – disse a mulher idosa enquanto ele se sentava sobre a cama. – Bom dia para ti também, avó – cumprimentou sem alegria. – Finalmente resolveste ler o que escrevo. Foi interessante? – Não tanto. Interessante foi ouvir-te a falar por quase toda a noite enquanto dormias… – Falei enquanto dormia? A que horas cheguei à casa? – Não sei. Encontrei-te já aqui. Fui atazanar um pouco o noivo da tua prima. Os dois foram a uma festa e eu levei-os até ao local. – Isso é atazanar? Parece-me mais «ser motorista». – Levei-os no carro dele e fiquei na festa sem sequer ter sido convidada. Só não fiz coisas piores porque tinha de ler os teus livros. – Esta conversa está a ficar cada vez mais estranha. Livros? Porque tinhas de levar os meus livros a uma festa? Notaste que eles estavam entediados por ficar dia após dia numa estante? – Não tenho motivos para responder às tuas perguntas. Mas as coisas que falaste durante o teu sono profundo… Não queres saber que livro li? – Mais cedo ou mais tarde irias dizer-me o tema. Não vejo necessidade em perguntar algo que me podes informar sem eu abrir a boca. O que é que eu falei durante o sono? – Eu li O Homem do Saco. Uma das províncias que dizes que de controla é a do Bengo, a província dos meus pais, dos pais deles e a minha. Contaste a história do teu ponto de vista e segundo a tua criatividade. Típico de quem nunca viajou para lá e ouviu as histórias dele. – Não é costumeiro eu receber insultos quatro minutos depois de acordar. Podes esperar até eu tomar banho, vestir-me, tomar o pequeno-almoço e ir trabalhar? – Se fosses trabalhar como é que eu te insultaria? – Tenho álbuns com muitas fotos minhas. Podias falar com elas o que quisesses. – Frase típica dos que nunca foram para outras terras. Continuando, quando cheguei aqui, ainda estava no meio do livro, e ouvi-te a falar: «Só o Homem do Saco tem poderes para fazer uma coisa dessas. Será que ele quer vingar-se de mim? Porque se vingaria?» O resto foi um blá, blá, blá sobre ti e a Braulia. O que não é de facto
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interessante. Ao ouvir estas tuas palavras sobre o Homem do Saco, pensei em algo. Estás a escrever um livro onde vocês os dois se encontram? – Talvez… E se estivesse? – Se estivesses e ele realmente fosse o culpado de alguma coisa, ele teria fortes razões para o fazer, sabias? – Quais? – Ele, embora tenha corpo de adulto e poderes extraordinários, é apenas uma criança de dez anos. Ele vive sozinho num lugar enorme, isolado de todos os seus amigos. Roubaste-lhe a infância e colocaste-lhe uma pesada responsabilidade sobre os ombros. – Ele está cheio de poderes! Pode fazer o que quiser. Está rodeado de animais. A Natureza lhe obedece. Tudo lhe pertence. E tem o Kazumbi e o Jacaré Bangão como amigos. – Amigos que vivem a quilómetros de distância e que só se encontram quando têm de lutar contra forças das trevas. Isso não é bem amizade. Por mais poderes que um adulto tenha, existe nele a necessidade de companhia. Quanto mais uma criança de dez anos! Se eu fosse o Homem do Saco, com certeza me vingaria de ti por me teres roubado uma infância alegre e despreocupada. Vais escrever isso no teu livro, não? – Sim, assim que a senhora sair daqui, deixar-me ir tomar banho, comer e ir trabalhar. – Já não vais trabalhar – disse a mulher idosa ao retirar-se. – Já passam das dez… Usuku sobressaltou-se. Pegou o telefone na banca e confirmou o que sua avó acabara de dizer. Como podia ter dormido tanto? Que pergunta era aquela? Havia questões de maior relevância a ser feitas. O que acontecera ontem? Teria realmente se encontrado com aquelas pessoas? Teria realmente sido vítima de espancamento? A sua avó não se mostrara excessivamente preocupada com ele, por isso, podia deduzir que não tinha lacerações no rosto nem nos braços. Fora tudo um sonho? Sim – um sonho explicaria muitas coisas. Mas não tudo. Porque os sonhos não acontecem na ordem que as coisas do dia passado aconteceram. Havia pontualidade, detalhes, cheiros, longas conversas com mais de um emissor, seriação – tudo se movia a velocidade da realidade. Pensar que fora tudo um sonho seria razoável? Que prova tinha que não fora? Para que pudesse pensar melhor, intentou levantar-se da cama e colocar-se por baixo do chuveiro. Contudo, enquanto se erguia – lancinante dor! – uma dor extremamente lancinante entre seus lombos fez-lhe gemer com agonia. Ao retirar calmamente a camisola, pôde ver os hematomas em volta de sua cintura. O que era aquilo? Provas do espancamento de ontem? Com dificuldades, voltou a cobrir-se com a camisola, pegou a toalha vermelha sobre a cadeira à frente de si e dirigiu-se para o quarto de banho. Totalmente desprovido de roupas, olhou para o seu reflexo no espelho e viu quão assustadoramente seu corpo estava avermelhado e levemente cicatrizado desde as coxas ao peito. Como se explicava aquilo? Quem o havia agredido fizera questão de macular partes de seu corpo que seriam prontamente vistas por outras pessoas. Senão fosse, o seu rosto e as suas mãos estariam pior estado. Se o espancamento foi real, como chegara até ao seu quarto? Se havia sido agredido – oh! não! – se havia sido realmente agredido, o projéctil que perfurara o corpo de Lourenço Canzar também era real. Lourenço Canzar – o que teria acontecido com ele? Estaria ainda sangrando sobre a areia húmida da praia? Estaria morto? Perguntas não
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resolvem problemas. Acções – acções solucionam dificuldades. Por este facto, Usuku deixou a água gelada refrescar-lhe o corpo por escassos minutos, vestiu-se e saiu apressado à rua. Enquanto andava, a cabeça do escritor mergulhava-se em pensamentos desconcertantes. Se a mulher de sobrenome Costa tinha razão, Kaculu era o promotor de toda aquela situação bizarra. Vingança? Usuku não tinha hipóteses de lutar vencer um vingador tão poderoso. Se a sua guerra era contra o escritor, porque eliminaria alguém como Lourenço Canzar? Por ser uma das suas criações que desfrutava diariamente da companhia de sua mãe, seus irmão e sua sobrinha? E os outros? Márcio Nassembe, Carlos Banzaia, Cazenga e Ndombaxi Canzar? Seria seu plano eliminá-los por razões semelhantes? Antes que pudesse continuar a pensar, um enorme auto preto parou à frente de si. – Já falaste com o Lourenço – disse Márcio Nassembe que estava posicionado ao lado do condutor. – Espero que a conversa tenha servido para alguma coisa. Agora conversarás comigo. Podes entrar para o carro. – Não antes de saber como está o Lourenço e o que o Kaculu quer comigo. – Terás essas respostas quando chegarmos à residência – continuou o Banzaia amigavelmente. – O Lourenço foi baleado ontem e eu brutalmente espancado! E tu falas a sorrir como se nada tivesse acontecido? Estou farto dessa vossa posição passiva! Vocês não têm a mínima noção do que passei ontem. Sabem o que é ver um homem a sangrar nos vossos braços e não poder fazer nada? – Não fales de ontem como se a vida tivesse girado apenas à tua volta – disse Carlos Banzaia saindo bruscamente do carro e fixá-lo de forma ameaçadora. – Não sabes o que vivi ontem. – Saberei se mo disseres – disse o escritor com arrogância. – A minha mulher e os filhos foram algemados por pessoas que querem o teu pescoço. Os meus meninos estão nesse momento numa clínica a serem examinados por estarem com dificuldades em respirar. Pessoas que não têm nada que ver com um assunto que é supostamente teu estão a sofrer. Tivemos a paciência de voltar a vir para aqui falar contigo, mesmo sabendo do perigo que representas para as pessoas que amamos. Por isso, entra no carro e fica calado até chegarmos à residência! – vociferou ao abrir-lhe a porta. – Finalmente uma reacção humana – disse Usuku entrando para o auto. – Pensei que isso seria sempre o encontro dos insensíveis. Será tu a falar comigo agora, Márcio? Que truques tens para impressionar-me, amigo? – Coisas que nem imaginas – respondeu intrigado com rápida troca de humor do escritor. – Quando chegarmos à residência saberás. Em seguida, o silêncio reinou no enorme auto por longos minutos. Kaculu, Cazenga e Ndombaxi Canzar também estavam presentes. Assim como aqueles homens, fazer perguntas não fazia parte da personalidade de Usuku. Mas, a seu ver, aquele não era um momento para se manter calado. – Alguém algemou o Hélder e Raquel? – inquiriu o escritor. – Foi o Lino? – Não – respondeu calmamente o Banzaia. – O Lino nem estava lá. Foram pessoas estranhas. Homens e mulheres que nunca havia visto em toda a minha vida. E todas se julgam personagens dos teus livros. Pelo que vi, ainda que nos afastemos de ti, eles
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voltarão a atacar-nos, porque julgam que assim poderão atingir-te. Eles nos vêem como teus filhos, tuas criações perfeitas. E querem destruir tudo que te pertence. – Por mais voltas que dê à minha cabeça, não consigo encontrar uma explicação razoável para isso – continuou o escritor. – Espero apenas que a Susana e os teus filhos se recuperem e nunca mais voltem a passar por algo parecido. Espera! Como é que eles acharam a tua casa? – Havia entre eles um policial que ficou a cópia de um documento meu. A minha morada aparece nele. – Policial? Ontem fui atacado por homens que trajavam roupas de polícias, mas era só fachada. A Anita Cuchi, o Inácio Tchivela e muitos outros estavam entre eles. Não me lembro apenas do homem que os liderava… – Se o estou certo, o homem chama-se Freitas Zozi-Pó – disse o Banzaia. – Foi ele que tratou mal a minha família. E estas pessoas que citaste também estavam em minha casa. – Então fomos atacados pelas mesmas pessoas. Começo a ver que dentro em breve as coisas podem piorar ou serem resolvidas de uma vez por todas. E, Ndombaxi, não podes mesmo dizer-me como está o teu irmão? O auto voltou a entrar em silêncio. O gigante Canzar pronunciou-se apenas quando chegaram à residência. – É melhor que, por enquanto, não toques no nome do meu irmão. Esperemos apenas que não tenhas nada que ver com essas coisas. Não seria nada bom se descobríssemos que nos mentiste. – Porquê? «É o lábio da verdade que será firmemente estabelecido para todo o sempre, mas a língua de falsidade só existirá por um instante.» – Provérbios 12:19.
♣ O local captado pelas pupilas de Braulia estava abarrotado de camas e de gente enferma deitada sobre elas. O cheiro de produtos farmacêuticos no ar viciava o seu olfacto. A mulher acabava de terminar uma cirurgia e sentia-se vazia. Um número maior de pessoas poderiam ser salvas se se disponibilizasse mais capital e mãos profissionais da saúde. Quanto dinheiro existe no mundo? Quantas pessoas morrem diariamente, tendo a má gerência deste como causa? Quantos assistentes sociais, biomédicos, dentistas, enfermeiros, farmacêuticos, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, médicos, nutricionistas, psicólogos e terapeutas ocupacionais existem? Serão o suficiente para cada indivíduo em toda a Terra? Existe alguma taxa de quantos profissionais da saúde um país, uma província ou um bairro precisa ter? O mundo não consegue pensar no colectivo. Dinheiro significa prazer e satisfação, não empreendimento para protecção comum. O cérebro da humanidade ocupa-se apenas com o seu ego e, portanto, a má logística prova a sua irracionalidade.
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Enquanto Braulia satirizava o comportamento das pessoas, uma mulher apareceu com mais um paciente. O caso não era grave, estava ainda no princípio. Braulia administrou à criança o necessário para seu estado e alojou-a em lugar separado para que ficasse em repouso por curto período. Embora tivesse como intenção isolar-se por algum tempo e reflectir sobre que passos poderia dar para ajudar melhor aquelas pessoas, a mulher que trouxera a criança suscitou-lhe curiosidade mórbida. Ela tinha a maior parte do corpo coberto, assim como o seu rosto. Porque se vestira assim? Algo que ver com a cultura do local? Punição? Para que pudesse receber resposta às suas perguntas, aproximou-se dela e começou a falar. – A sua filha parece ser muito forte – disse Braulia no idioma do local indicando um assento para as duas. – Acho que dentro de dois ou três dias ela estará como nova. – Ela não é minha filha – respondeu friamente. A sua voz era áspera, arrepiante. – Parece realmente ser muito forte. A mãe dela ficará feliz se ela melhorar. Os filhos deviam ser sempre a alegria dos pais, não? É uma pena que se tornem maldição. – Porque dizes isso? – Os pais desta rapariga não têm dinheiro para cuidar dessa doença, por isso, culpam-se por ela estar assim. Se ela morrer, o peso de suas consciências será maior ainda. Culpar-se-ão por toda vida. Provavelmente o casamento acabará por causa disso. Se nunca a tivessem tido, essa situação nunca aconteceria. – Falas com muita mágoa e insensibilidade – disse sorrindo ao reparar que ela tinha a pele das mãos queimada. – Quando te casares e tiveres filhos verás que o sentimento é totalmente diferente. – Tive uma filha a tempos. A vida dela custou-me toda a minha pele. Eu passava horas no espelho antes disso, admirando a minha beleza. Era cobiçada por qualquer homem e invejada por qualquer mulher. Todos os meus sonhos, todos os meus planos desapareceram por causa do nascimento da minha filha… – E o que aconteceu com a tua filha? – Deixou de ser minha filha e passou a ser filha do homem que me fez isso. – Então ela não está… morta? – Não. Apenas deixou de existir… para mim. – E porque ela ficou com homem que te fez isso? Ela não conhece esta parte da história? Desculpa-me se lhe estou a fazer perguntas indelicadas. – Não se preocupe. É a única que teve até agora coragem de as fazer. O resto das pessoas treme quando me vê. Elas pensam que represento perigo. Ela ficou com o homem que me fez isso porque ele é o pai dela e ela o acha um herói. Como já disse, os filhos são uma maldição. Tiram-nos a beleza e depois nos desprezam. – Talvez as pessoas não se aproximem de ti por causa da forma como te vestes. Não te sentes a aquecer por causa dessas roupas? – O tecido é leve… – Mas bizarro, e depois é de cor preta. Pareces até aquela personagem dos desenhos animados que elimina as pessoas – comentou entre sorrisos. – A morte? Este é um dos nomes que chamo a mim mesma. – Quais são os outros? – Vingança e fereza.
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– Deve ser por isso que as pessoas não se aproximam de ti. Se fores um pouco mais solta ou… sociável, com certeza terás muitos amigos. O primeiro passo seria poderes mostrar o teu rosto a elas. – Se elas virem o meu rosto, coisas más podem acontecer. – Como quais? – Raramente saio às ruas, mas, quando saio, sinto os olhares masculinos a assolarem o meu corpo. Não sabem que por trás das vestes que marcam a minha silhueta há pele totalmente deformada. Alguns já sofreram por tentarem assediar-me. Se vissem o meu rosto, seria pior. – Entendo. Mas, não queres ter amigos… ou amigas? – Não do género que tive no passado. Se te mostrar o meu rosto, aceitas ser minha amiga? – Preciso usar óculos? – perguntou com entusiasmo. – Não acho que tenha acontecido algo tão horrível assim. Podes mostrar-mo… Como te chamas? – Os nomes são importantes para si? – Sim, mas posso abrir uma excepção para ti, já que me vais mostrar o rosto. Com certa hesitação, a mulher baixou o capuz e continuou com a cabeça abaixada. Braulia levantou-lhe calmamente o queixo e pode contemplar com clareza o seu semblante. Admirável – era uma face detentora de uma beleza avassaladora. A testa era pequena, as sobrancelhas eram perfeitas, as pestanas eram compridas, os olhos eram castanhos-claros e assustadoramente brilhantes, o nariz era delgado, os lábios eram finos e cor-de-rosa e a pele era morena. Afora a queimadura que ela cobria com parte do cabelo nas têmporas, o seu rosto era indubitavelmente angelical. Como poderia um homem queimá-la? Ela parecia um anjo. – Não se pode compreender a humanidade – recomeçou a mulher olhando fixamente para Braulia. – Devemos apenas julgá-la e fazer-lhe pagar pelos erros que comete. – Você amava o homem… o pai da tua filha… que agora é dele? – O amor não existe. Há muitas histórias falsas sobre ele. É um mito, uma anedota. Gostas de alguém? – Sim, e estou noiva dele. – Ficaste noiva dele porque achaste que era o homem certo para ti. Também achei isso quanto ao pai da minha filha. Olha para o meu estado actual… Os homens não são de confiança. Prometem-nos felicidade, mas a única coisa que nos podem dar são filhos e doenças. – O homem com quem estou não é assim. – Como podes ter certeza? Como médica, podes até pegar em um coração e abrilo, mas não consegues ler o que está aí dentro. Acredita em mim, os homens são perigosos. A única forma de lidar com eles é não lidar com eles. – Se o meu noivo estivesse aqui, e poderia mostrar-te. Verias os olhos dele e sentirias a pessoa maravilhosa que ele é. – Achas que devo ir buscar alguma comida para a menina que acabei de trazer? – embargou ao voltar a colocar o capuz e levantar-se. – Sim, a comida daqui não é lá grande coisa mesmo. – Então eu vou. Depois envio alguém para trazê-la. – Está bem. Não ficaste curiosa em ver o meu noivo?
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A mulher começou a andar sem responder. Braulia não a seguiu. Antes de desaparecer do campo de visão da médica, disse num volume que apenas ela mesma poderia ouvir: – Não te preocupes com isso. Porquê? «Vê-lo-ei, mas não agora; avistá-lo-ei, mas não de perto. E ele há de rachar as têmporas… e o crânio.» – Números 24:11.
♣ – O Kaculu estava convosco quando esse policial e os outros invadiram a tua casa? – inquiriu Usuku enquanto os seis entravam para a residência. – Eu estava – respondeu Kaculu que andava na frente de todos –, mas não demorei muito tempo. Queres deduzir alguma coisa? – Saíste de lá antes dos perversos abandonarem a casa? – Sim… – Isso demonstra que não estavas preocupado com a integridade física daquelas crianças, da Susana e, por extensão, de todos os homens aqui. Ou simplesmente depreendeste que nada de mal aconteceria com eles, visto que o objecto de sua vingança sou eu. Eles disseram algo antes de sair, Carlos? – Sim – respondeu o Banzaia. – Que já sabiam onde estavas, por isso abandonaram a minha casa. O que tens em mente? – Quando eles disseram isso, o Kaculu ainda estava aí? – Eu já tinha saído – voltou a responder Kaculu. – Isso deve ter feito com que o Márcio, o Carlos, o Cazenga e Ndombaxi não tentassem seguir aqueles homens e pudessem proteger a mim e ao Lourenço. Eles contaram com os teus poderes extraordinários; concluíram que tu mesmo nos protegerias. Mas eu fui espancado e o Lourenço baleado. Vocês deviam estar decepcionados com o Kaculu, mas, ao em vez disso, agem como se nada tivesse acontecido. Com isso posso concluir duas coisas. Ele está a controlar as vossas mentes… ou ele realmente protegeu a mim e ao Lourenço. – Como poderia eu controlar as mentes deles? – inquiriu Kaculu entre sorrisos. – E porque o faria? – Não sei – continuou Usuku. – Então deves realmente ter protegido a mim e ao Lourenço. A acção do Lino ao proteger-me é suspeita. Embora ele tenha dado a ideia de assassinarem todas as pessoas que amo, senti que ele havia desistido de me fazer mal. Estás a controlar o Lino? – Não controlo as pessoas. Cada um faz o que achar melhor… – Estás sempre a entrar e sair daqui – prosseguiu Usuku. – Numa destas vezes deves ter entrado em contacto com ele. Duas possibilidades: queres vingar-te de mim também e agora ambos estão mancomunados ou o fizeste ver as coisas de outro prisma para que ele se torne numa pessoa melhor.
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– O Lino não se comove com discursos sobre a paz mundial – comentou Carlos Banzaia. – Ele só faz o que bem lhe apetece. Poucas coisas lhe podem fazer mudar de ideias. – Falando sobre ideias – avançou Usuku – lembrem-me. Porque estão estas pessoas todas atrás de mim? – Porque julgam que és o causador de todos males em suas vidas – respondeu Márcio Nassembe. – Quão pusilânime é este pensamento! Contudo, se eles julgam isso, porque simplesmente não te convencem a escrever uma história que apague todos os infortúnios que lhes aconteceram e, assim, se tornem nas pessoas mais santas de todo mundo? Custa-lhes pensar deste jeito? – A tua mente é justa e sensata – respondeu Usuku surpreendido por o Nassembe ter chegado ao mesmo pensamento que ele quis expor com sua pergunta anterior. Pensas em fazer o bem às pessoas. Eles não são assim. Vingança é o que percorre em seus neurónios. – Então, se acreditarmos na ideia descabida que foste tu quem os criou desta maneira – continuou o Nassembe –, esta acção vingativa deles mostra apenas o quão execráveis são. Eles podem mudar, mas não querem. Vingar-se parece-lhes muito melhor. – Talvez tenhas razão – avaliou o Banzaia ao aproximarem-se da sala. – Esta acção vingativa deles pode realmente mostrar o quão execráveis são. Mas não se isenta a possibilidade de estarem a ser controlados por alguém. – E assim voltamos para o Kaculu – concluiu Usuku. – Ele pode estar a controlar todo o mundo aqui para… A visão de duas mulheres na sala emudeceu-o. Ele as conhecia. Como era possível estarem aí? Uma era notavelmente maior que a outra. Atendia pelo nome Erica e tinha uma silhueta espantosamente arqueada e um olhar incrivelmente encantador. Era capaz de ler os pensamentos de Usuku sem que este abrisse a boca. Ambos pensavam peculiarmente da mesma forma. Tinham quase os mesmos desejos e ideais. As músicas que ouviam tinham assustadoramente o mesmo teor. Embora tivessem a diferença de cinco anos, parecia que partilhavam o mesmo cérebro. A outra era de tez escura, mas radiante. Atendia pelo nome Jaciara e tinha contornos magníficos por todo o corpo. Os seus olhos escuros e cintilantes transmitiam paz e inocência. Usava habitualmente o cabelo prendido, o que realçava o aspecto formoso de seu rosto. Também partilhava de muitos dos ideias dele era capaz de influenciá-lo a fazer coisas que se tornavam paradoxais quando comparadas com o seu comportamento com outras pessoas. Porque estavam aí? Seria novamente obra do Homem do Saco? Perguntas demandam respostas. – Demoraste muito, miúdo – disse Erica aproximando-se para beijar-lhe o rosto. – Conta-me, qual é a surpresa que preparaste? – Surpresa? – inquiriu enquanto o seu olfacto se embriagava com o perfume dela. – Eu liguei para vocês? – Já começaste a brincar? – indagou Jaciara ao estender-lhe a mão. – Nunca ficas sério, pois não? – Ah! A surpresa que vos disse antes de um desses meus amigos trazer-vos para aqui – disse com lembrança fingida. – Como pude me esquecer? Volto já. Vou só ter uma conversa com este kaenche.
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– Usuku – embargou Jaciara enquanto o outro pegava o enorme braço de Kaculu – , nenhum dos teus amigos nos trouxe aqui. Você passou nas nossas casas, convidaste-nos e viemos até aqui no teu carro… contigo. Estás mesmo condenado a nunca ficar sério. – Tens razão. Estava apenas a brincar. Era apenas para ver se ainda continuas a esquecer-te rapidamente das coisas. Volto já. – Vais afogar-me em perguntas? – perguntou Kaculu, após terem desaparecido do campo de visão e de audição dos outros. – O que queres com os meu amigos? Primeiro o Alves, a Pereira e o Henriques. Agora a Erica e a Jaciara? Lamento, mas este teu plano parece-me estúpido demais! – Só porque não o entendes? Ou porque tens medo que aconteça alguma coisa com as pessoas que amas? – Digo apenas que ages de uma forma que parece estar tudo sob teu controlo. E, se for assim, tudo que acontecer de errado, será responsabilidade tua. Não é sábio brincar com a vida dos outros. – Ninguém está a brincar com a vida de ninguém, Usuku – disse Lourenço ao descer as escadas descamisado. Podia-se ver com clareza o seu ombro enfaixado. – Até a coisa mais estúpida pode ser vista como inteligente dependo do ponto de vista. – O que aconteceu contigo, amigo? – inquiriu Usuku ao abraçar o Canzar anteriormente alvejado. – Sei que foste baleado, eu estava lá, mas… O que aconteceu? – Estás emocionado? – perguntou o Canzar batendo-lhe levemente nas costas enquanto ainda estavam abraçados. – Pareces-me muito sentimental agora. Onde está a tua insensibilidade. – Só a tenho quando se trata de jogos – respondeu ao sentir uma leve dor. – Ontem senti medo, o mesmo medo que sinto quando as pessoas que amo estão em perigo. O meu botão de insensibilidade não resiste a estas coisas… – Isso nos teus olhos são lágrimas? – inquiriu o Canzar após se terem afastado um pouco. – Sim. Mas não penses que são por tua causa. Se não sabes, levei uma tareia de mil homens ontem. O teu abraço esmagador quase me partiu ao meio… – Estamos sem tempo, como sempre – embargou Márcio aproximando-se com Ndombaxi Canzar, Carlos Banzaia e um enorme cachorro preto. – A nossa conversa tem de ser agora. – Dinake! – exclamou Usuku colocando-se de cócoras e acariciar os pelos na cabeça do enorme gigantesco animal. – Também pensei que tivesses mal. – O senhor Lourenço já usou o Dinake – disse Ndombaxi Canzar. – Agora tenho de inventar outra coisa para minha conversa. Porque não me avisaste que o levarias? – A ideia surgiu-me na hora. Devias ter sido mais rápido… – E eu que trouxe os três cães do meu amigo? – disse Carlos Banzaia. – Tive tanto trabalho para nada?! Esses gajos nunca pensam nos mambos dos outros, né kamone Ndombaxi? Tenho que pensar em outro uso para a Esteno, a Medusa e a Euríale… – Vocês vão cuidar das nossas anfitriãs – disse Márcio pegando Usuku pelo braço. – Entretenham-nas com qualquer coisa. A minha conversa com este homem começa agora. Espero que desta vez a família de ninguém seja atacada. – Família atacada? – inquiriu Usuku com extrema seriedade. – Vocês acham que essas pessoas, o Fernando Cuchi, o Inácio Tchivela e os outros, seriam capazes de encontrar a Miúda e fazer-lhe algum mal? Não sei como é que eles encontraram a mim e
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ao Lourenço ontem, mas, se eles têm alguém da polícia do lado deles, seria fácil entrarem em contacto com alguém do aeroporto e saber o país onde ela está… – Estavas a acusar o Kaculu de ser o culpado pelos acontecimentos de ontem – disse Ndombaxi Canzar –, e agora falas isso sobre o país onde a tua noiva está? Podes estar a dar ideias ao inimigo, não? – Ele faz isso porque quer que eu proteja a noiva dele – respondeu Kaculu. – Ele não acredita que sou mau, mas sim que, de alguma forma, embora tenha poder para controlar tudo, permito que certas coisas ruins ocorram. Está a sentir medo como nunca tinha sentido antes. O objectivo da tua conversa foi alcançado, Lourenço. – Por causa do tiro que ele apanhou? – embargou o escritor. – É natural eu não querer que alguém morra, mas… se for assim, permitiste que o Lourenço fosse baleado apenas para que eu pudesse expressar o medo que tenho contido por toda a minha vida? O teu jogo é descabido! – Estás muito confuso agora – disse Kaculu entre sorrisos. – Em que vais acreditar? Nas tuas deduções? Ou deixarás que as respostas surjam por si só como sempre fizeste? – Medo… O objectivo da conversa era despoletar o medo que sempre inibi. Qual será o objectivo da tua conversa Márcio? – Tens de vir comigo agora para saberes… – E o que isso tem que ver com a surpresa que quero dar à Miúda? Medo? O que farei com o medo, Lourenço? – O escritor és tu – respondeu o Canzar com o ombro enfaixado. – Sei que podes juntar factos totalmente diferentes e criar um todo integralmente harmonioso. A resposta surgir-te-á quanto menos esperares. – O meu livro Paixão Literária foi complicado, bem como O Pior Filho. As coisas aqui parecem não fazer muito sentido, estou apenas a tentar colocar algum nexo em todos esses acontecimentos. O vosso aparecimento, a vinda do Lino Tchiva e dos outros, o envolvimento da Susana e dos meninos, a razão de o Kaculu trazer aqui os meus amigos e as minhas amigas que participam na escrita dos meus livros, a surpresa para a Braulia, a minha doença… Nada parece estar conectado. Talvez as peças se juntem dentro em breve. Só espero que não haja um fim trágico para ninguém. Outra coisa, qual de vocês estaria disposto a viajar comigo? – Para onde? – inquiriu Márcio Nassembe. – Para onde está a Braulia. Já tenho até aqui a minha reserva. Fi-la numa brincadeira quando fui ao aeroporto com o Carlos. Mas agora vejo que preciso estar perto dela, sinto isso. – E a surpresa que tens de preparar para ela? – demandou Kaculu. – Não posso concentrar-me na surpresa se estiver na minha mente o medo que algo terrível pode acontecer-lhe. – Podemos viajar todos contigo – respondeu Kaculu. – Respondeste desta forma para nos convencer que tens medo agora? Ela viajou para um país assolado por catástrofes naturais, pobre e cheio de doenças, e só agora sentes medo do que pode acontecer-lhe? Talvez tenhas realmente medo, mas estás a pensar em outra coisa também. – Sim – respondeu o escritor enquanto a bela imagem de sua noiva perpassava-lhe a mente. – Para surpreende-la, tenho de fazer algo que relacionado com o que ela vive neste momento, algo que nunca pensaria… e acho que nem eu mesmo.
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– É seguro que viajes nesse estado? – demandou Lourenço Canzar. – Fomos abordados pela morte ontem – respondeu o escritor em tom gozoso. – Continuamos vivos. Acho que ela ainda não quer algo sério connosco. Viajamos dentro de três dias. Combinado? – Combinado – respondeu Kaculu enquanto o escritor e Márcio Nassembe se afastavam. – Não tens medo de descobrir coisas estranhas na conversa que terás comigo? – inquiriu o Nassembe ao subirem as escadas. – Como quais? – Que tens vivido um sonho e que nada do que viste até aqui corresponde a verdade? – Neste caso faria das sarcásticas palavras de Pilatos as minhas palavras: Que é verdade?
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– CAPÍTULO VII – ●
Introdução a Abel
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– Voltei a esquecer-me do teu nome – disse Jaciara olhando para o gigante à frente de si. – Chamas-te…? – Cazenga. – 0K – continuou a mulher. – O Usuku ainda vai demorar muito, Cazenga? – Tenho certeza que sim – respondeu enquanto Carlos Banzaia, Kaculu, e os irmãos Canzar apareciam na sala. – Então como é que vamos poder ajudá-lo com a surpresa? Estou tão curiosa! Ele não contou ainda a nenhum de vocês o que é? – Também estamos à espera que ele diga alguma coisa – respondeu Ndombaxi Canzar. Dentro em breve ele estará aqui para explicar-nos tudo. – E vocês estão aqui para ajudá-lo nisso? – inquiriu Érica. – São familiares dele? – Sim – respondeu Kaculu –, estamos aqui para ajudá-lo. Quanto a sermos da mesma família… é uma história complicada. Por falar em história, vocês também participam nos bastidores dos livros dele, não? – Sim, participamos – assentiu Érica. – Mas eu sou mais de ler os livros quando já estão terminados… – Às vezes leio quando já estão terminados – perdurou Jaciara –, mas já participei em muitos que só tinham trinta páginas. – Então também fazem a apreciação das personagens, também brincam de deuses – concluiu Kaculu. – Qual é a tua personagem preferida, Érica? – O Márcio Nassembe. Ele é todo confuso e cheio de mistérios. Fiquei zonza ao ler o Paixão Literária! – Seria agradável para ti se pudesse conhecer o Márcio Nassembe pessoalmente, não? – conjecturou Kaculu. – Ele podia até estar connosco nesta sala… – Como assim conhecê-lo pessoalmente? – inquiriu Érica entre sorrisos. – Eu convivo com o Márcio Nassembe há anos! Se vocês leram livro, deviam saber disso. O Márcio Nassembe é o homem que o escreveu! O Usuku, o meu caro amigo Usuku é o Márcio Nassembe. – E tu também entras no Paixão Literária – continuou Kaculu. – O teu segundo nome é Gabriela, não? – Sim, mas como é que… – E o Usuku te chama carinhosamente de Briell. No livro, entras como a primeira esposa de Márcio Nassembe, a mãe de Bruno. Ficarias surpresa se descobrisses outra Gabriela que também é apelidada de Briell? – Leste realmente o livro – deduziu Érica com tom perscrutante. – E, se sabes disso tudo sobre mim, é porque o Usuku andou a contar-te várias coisas. Vocês devem ser muito amigos. Mas não me lembro de ti. Olha que conheço a maior parte dos amigos dele… Como te chamas?
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– Kaculu – respondeu, ao voltar a sua atenção para Jaciara. – E tu? Qual é a personagem do livro dele que mais admiras? – O Carlos Banzaia. Estas perguntas vão levar muito tempo? O que eu quero mesmo é saber da surpresa… – Também responderás que o Carlos é o Usuku se te fizesse a segunda pergunta que fiz à Jaciara – disse olhando para o Banzaia e reconhecer que outro começava a deduzir alguma coisa. – Tu entras no Sonho dos Meus Homens. És a Rosalina, a gerente do banco onde o Zau Canzar trabalha. Será que a reconhecerias só de olhar para ela, Lourenço? – Não – respondeu o outro sentando-se numa enorme mesa à distância. – São totalmente diferentes. – Mas se fosse para descrever a Rosalina – insistiu Kaculu –, que palavras utilizarias? – Pele escura, mas delicadamente cintilante. Olhos relativamente maiores que os meus. Lábios que começam num fraco castanho-escuro e terminam num tentador rosa claro. Ossos preenchidos por tecido muscular apetecível e pernas que transmitem a ideia mais provocante da sedução. – Agora olha atentamente para esta mulher, a Jaciara, e vê se não corresponde à descrição. – Entendi – embargou Carlos Banzaia sentando-se ao lado de Lourenço Canzar. – Aqueles presidiários que me reconheceram na primeira vez que falei com o anormal do Zozi-Pó não podiam identificar-me apenas por terem lido as descrições que o Usuku faz sobre mim no A Três Degraus do Quarto. É impossível que duas mentes imaginem um homem da mesma forma quando têm apenas detalhes escritos ou orais do mesmo. Se eu disser que me encontrei com uma mulher alta, de cabelo curto e magra, cada um nesta sala terá uma imagem diferente em sua mente. Se saírem à rua e encontrarem alguém com essas feições, nunca poderiam afirmar que se trata da mesma mulher que vi, pois existem milhares de pessoas que correspondem a esta descrição. Vocês só poderiam ter certeza se eu mesmo disse que era ela. Sou o único que a viu, assim como foi o Usuku que escreveu o livro e só ele tem a imagem «verdadeira» das suas personagens. Para dizerem o que disseram, aqueles presidiários provavelmente tiveram algum contacto com ele… – O que estás a dizer? – perguntou Jaciara aproximando-se do Banzaia e do Canzar – Usuku… presidiários… Carlos é o teu nome, não? – Isso não é importante – cortou Kaculu ao acenar para que Ndombaxi Canzar, Érica e Cazenga se recostassem à enorme mesa. – Além do mais, o Carlos estava apenas a falar com os seus botões, não é mesmo? Não estão interessadas em ouvir uma história enquanto esperamos pelo Usuku? – Que história? Essa que o Carlos começou a contar? – gracejou Jaciara. – Uma história que será contada por todos nós – respondeu Kaculu. – Cada um contará uma metade da história. Vamos criá-la agora. Aquele que for apontado pela pessoa que começou a contar terá de continuar com a história. Fizemos isso ontem e achamos interessante. Alinham? – Espera! – embargou Jaciara. – O amigo descamisado aqui, Lourenço é o teu nome, não? 0K. O Lourenço disse «pernas que transmitem a ideia mais provocante da sedução» quando estava a descrever a Rosalina do Sonho dos Meus Homens como se ela
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fosse alguém que ele conhecesse pessoalmente. Estavas na verdade a elogiar as minhas pernas, não estavas? – Tenho dores no ombro – respondeu Canzar inquirido. – Não consigo rir da tua piada. – Contudo – continuou a mulher –, não acho que o Usuku tenha retratado fielmente a minha forma de ser. Nunca trabalhei num banco! E aquela Rosalina parecia adulta demais… – Então, embora ele tenha usado a ti como inspiração para criar a Rosalina, não seguiu fielmente a personalidade da musa – deduziu Carlos Banzaia sentindo o vibrar de seu telemóvel num dos bolsos de suas calças. – O que faz com que ele tenha sido um pouco descuidado ou alguém lhe tenha influenciado os pensamentos… – Porque falas de um modo que outros não percebam? – inquiriu tenazmente Jaciara. – Até parece que escondes um segredo… ou que precisas de ser internado. Enquanto a mulher falava, Carlos Banzaia retirou o aparelho que vibrava em suas calças. «Uma nova mensagem» – era essa a informação que aparecia no visor. Clicou no botão abrir e ficou atónito com o que viu. Era uma fotografia que mostrava Usuku por trás de Lourenço Canzar apertando-lhe os lombos e este último tinha uma expressão de susto estampada no rosto. Parecia que o escritor segurava o Canzar para ser atacado. Parecia? Aquela imagem era óbvia, não dava margem para dúvidas. Para ter certeza se havia entendido correctamente, precisava de mostrar a alguém e deixar que sua expressão mostrasse que chegara à mesma conclusão. O alguém não podia ser Lourenço – fora a vítima e parecia ter uma afeição pelo escritor que o impossibilitava de dizer a verdade – nem Kaculu – pois respondia de forma enigmática e aparentava ter um poder dominador sobre todos eles. Restavam-lhe então duas pessoas naquela mesa. Contudo, ambas tinham a fama de ser assassinos cruéis. Seria prático pôr-lhes a par da situação? Sem pestanejar, o Banzaia reencaminhou a imagem e escolheu dois contactos como destinatários. Acrescentou um pequeno texto – «Seja discreto. Sorria se o achares culpado. Estale os dedos se o achares inocente. Recebi-a agora do Lino Tchiva.» – e enviou-a. Num ápice, duas pessoas naquela mesa pegaram em seus telemóveis, leram a mensagem, viram o anexo e olharam para o Banzaia. Assustador – ambas estalaram os dedos. Reconfortante – ambas concordavam com o Banzaia. – O que acham de começarmos a contar a história agora? – embargou Carlos enquanto Jaciara ainda falava. – Estou a falar demais, não? – demandou ela entre sorrisos. Cazenga e Ndombaxi estavam com os olhares fixados entre si. Parecia que combinavam alguma coisa apenas com o movimento dos glóbulos oculares. – Normalmente sou muito quieta. Solto-me mais quando falo com o Usuku. E como vocês se parecem muito a ele… – Isso acontece a qualquer um – confortou Kaculu. – Não te preocupes com isso. Podes te sentir à vontade connosco. Vão sair? – inquiriu vendo que Ndombaxi Canzar e Cazenga levantar-se. – Sim – respondeu o Canzar. – Voltamos dentro de duas horas. Acho que vocês três podem ficar a entreter as convidadas do Usuku até lá. Depois contaremos a nossa parte da história. – É algo urgente, irmão? – inquiriu Lourenço Canzar. Ndombaxi Canzar olhou com seriedade para seu irmão. O olhar – era marejado e tormentoso, como o de um tirano que implora por perdão antes de cometer um crime
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hediondo, o olhar – fez Lourenço Canzar tremer. A passos lentos e pesados, os gigantes abandonaram o local. Nada podia ser feito para impedir o que eles fariam. Para diminuir a tensão na sala, Carlos Banzaia levantou-se e deu prosseguimento a história do dia anterior.
♣ Sentado sobre a cadeira em sua sala na esquadra, Freitas Zozi-Pó pensava profusamente nos acontecimentos de ontem. Teria sido real a imagem da mulher e das crianças que vira algemadas à frente de si? Fora ele capaz de atormentar aquelas pessoas? Também se lembrava de ter liderado o espancamento de um escritor. Fora tudo um sonho? A cópia do bilhete de identidade sobre sua secretária não lhe permitia acreditar no onírico com facilidade. Carlos Chinengue Banzaia – era esse o nome estampado naquela folha. A personagem de um livro que mais se identificava com seu filho existia? Se fosse verdade, tal informação trar-lhe-ia apenas sofrimento e angústia. O seu filho jazia morto há quatro anos. E a fora um projéctil saído do revolver de Freitas Zozi-Pó que o levara à inexistência. O rapaz – Venâncio Zozi-Pó era seu nome – era inteligente, destemido e impetuoso. Submetia-se às ordens de seus superiores quando acha-se lógico submeter-se. Contestava sem temor a qualquer um. Desafiava a morte, convivia com ela como amiga que jamais se mostraria traiçoeira. Era um rapaz admirável. Porque aquela situação trágica teve de acontecer? – Com licença, senhor – interrompeu um homem fardado ao entrar para a sala. – O que foi? – Fiz a ronda no local dos enjaulados e constatei que faltam treze presidiários. Um dos colegas me disse que o senhor está a par desta situação. – E porque não acreditaste nele? – Porque também faltam treze fardas no nosso stock. Tenho de reportar isso… – E a quem reportarias? A mim, não? Acredite no seu colega. Sei de tudo. Os homens não fugiram, foram transferidos. Usei-os para uma missão antes disso. Podes sair. E, rapaz, que nada deste assunto transpire para uma terceira pessoa. – Compreendo, senhor – respondeu ao fechar a porta à frente de si. No mesmo instante, as pupilas de Freitas Zozi-Pó ganharam uma coloração estranha. Agora recordava-se de tudo e tinha um ódio visceral por… Carlos Banzaia? Não. O Banzaia era apenas um dos membros do corpo sobre o qual queria realmente desferir um golpe mortal. O corpo inteiro atendia por Ngoma Usuku e já se haviam feito planos na noite anterior para o seu fenecimento. Mas antes, havia um outro plano em curso. A sua noiva, Braulia, teria um fim trágico muito brevemente. E o anjo das trevas enviado para tal desfecho foi o pior de todos – Natércia Tchivela, a mulher encapuçada que nutria o desejo de matar a sua própria filha por ter sido desfigurada pelo pai desta.
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– Chegámos ao nosso cenário – disse Márcio Nassembe a Usuku após terem entrado para uma sala bizarra daquela residência. A sala estava absurdamente limpa – era branca e brilhava em alguns cantos. Mais ao fundo havia duas cadeiras pretas equipadas com uma espécie de capacete e amarras. Ambas estavam de costas voltadas para os dois homens. À frente destas havia o que parecia ser uma tela gigante. Algumas portas fechadas também podiam ser vistas. – Podes sentar-te – voltou a pronunciar-se o Nassembe. – Acho que agora já me podes dizer – verbalizou o escritor ao acomodar-se. Márcio Nassembe amarrou-lhe as mãos sobre as braçadeiras da cadeira e cobriu-lhe o rosto com um capacete. – Conta-me, qual é o objectivo dessa conversa. – Insanidade – respondeu sentando-se enquanto uma das portas era aberta por alguém. – Vou mostrar-te um pouco de insanidade. – De quem são esses passos? – inquiriu o escritor por não poder ver quem se aproximava dele. – Uma amiga tua. Ela também participa dos bastidores dos teus livros. Não te preocupes, não vou soltar um cão para cima de ti quando não te podes defender. E aqui o Lino Tchiva e os outros marados não nos podem alcançar. – O que está ela a injectar no meu corpo? – inquiriu sentido a ponta de uma agulha penetrar-lhe o ombro. – O mesmo que ela vai injectar a mim. Por isso, não te deves preocupar. Se morreres, também morrerei. – Como posso saber que ela te vai injectar o mesmo que me injectou? – Porque, como já disse, ela é tua amiga, e é médica – respondeu ao ser injectado pela mulher. – Quais das tuas amigas que lê os teus livros tem essa profissão? – Não preciso de citar o nome. Confio nela. Não havia como saberes que tenho uma amiga íntima que lê os meus livros, porque ela nunca foi uma personagem em nenhum deles. Já estava achar estranho haver apenas duas mulheres naquela sala. Ela estar aqui não me surpreende de todo. – Como assim? – Sabendo ou não, vocês estão a agir sempre com o número três. Ontem trouxeram três de meus amigos, vocês são seis, que é um múltiplo de três, o Lourenço ontem surpreendeu-me com três coisas: a Daniela, o Dinake e ele mesmo, por causa do tiro que levou… Há ainda a família do Carlos. A Susana e os filhos somam um total de três. – E o que tem o três que ver com isso? – O Carlos poderia explicar-te da melhor forma. Sou viciado no número três. Qualquer número que me calhe tem como resultado três. Às vezes o obrigo a ter este resultado. Deve ser alguma doença ou algo parecido. Quem está por trás disso tudo que começou a acontecer ontem conhece-me bem demais. E está a tentar enviar-me uma mensagem com isso. – E que mensagem seria essa? – inquiriu enquanto a mulher se ausentava. – Ainda não sei. Talvez seja apenas eu que me esteja a obrigar a ver as coisas dessa forma – disse sentindo-se entontecer. – O que me foi injectado está a fazer efeito. Tens certeza que não morreremos? – Seria totalmente desprovido de nexo se tal acontecesse. Bom descanso, Usuku. Encontrar-nos-emos no paraíso.
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No mesmo instante, o escritor fechou os olhos e contacto e o mundo exterior já não era captado por seus sentidos. Houve uma extensa névoa de escuridão. O silêncio reinava. Após algum tempo, as suas pestanas se abriram. O que via à frente de si era parcialmente sombrio. O cenário estava vestido por cores nocturnas. Havia árvores espalhadas a esmo pelo local. Nenhuma tinha folhas. O chão era relvado e exalava um odor fresco. Com certo temor, andou em direcção a uma das árvores. Quando tentou tocar em seu caule, percebeu que tocou em pele humana. Era a mão de um homem. Parecia que ele estava abraçado à árvore. – Quem és? – inquiriu Usuku enquanto o homem se sentava sobre a relva. – Alguém pacífico – respondeu com voz misteriosa. – Sou apenas uma exalação, a vaidade de alguém. – Tens problemas de personalidade? Parece que te rebaixas… – Reconhecermos que somos pó e cinzas significa humilharmos a nós mesmos? Tens uma má visão da vida. – Eu disse «parece» - repetiu reparando que o homem estava trajado com peles de animal. – Não afirmei nada. O que fazes aqui? – Estou a pensar sobre o meu comportamento. – Abraçando-te a uma árvore? – A árvore era para entender o meu irmão. Ele era lavrador. Gostava de trabalhar no campo. Às árvores são duras, frias. Contudo, possuem folhas frescas e produzem frutos com texturas aprazíveis. – Era assim o teu irmão? – Não. Ele era apenas a parte dura e fria. Conseguia plantar e colher os melhores frutos para a nossa família, mas nada disso se reflectia em seu comportamento. Como pode alguém conviver com a terra e ser rude? – As profissões não moldam comportamentos. Posso ser um polícia e ainda sim ser um criminoso. – As ovelhas que crio moldaram o meu comportamento – disse vendo o outro sentar-se ao seu lado. – A minha profissão moldou-me. Sou meigo e obediente, assim como elas. – Tenho a certeza que já eras assim antes começares a cuidar delas. O teu irmão sempre foi rude e frio? – Na maior parte das vezes. – Então te tornaste meigo por ele ser rude… A tua consciência não te permitiu seguir o mesmo caminho de ruindade. – Falas de um jeito que parece que insinuas que eu devo agradecer a ele por ser como sou. – Em parte… – Teoria estranha. Sabes o que o meu irmão fez por eu ser meigo e obediente? – Só me contares… – Assassinou-me. E fê-lo no lugar onde estás sentado. – Agora deixaste de fazer sentido. Se foste assassinado, como podes tu estar vivo e ele morto? – Não disse que estava vivo, mas que o meu irmão está morto. – Essa tua história… Estás a falar-me de Abel e Caim? – Eu que falo contigo sou o primeiro, e acertaste no nome do meu irmão.
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– «Isso deve ter alguma coisa que ver com o que me foi injectado. Isto não é real… mas deve ter algum motivo» - disse de si para si. – O que tens para mim, Abel? – Continue a falar comigo. Talvez descubras. Faça-me aquela pergunta sobre mim que tem intrigado desde a infância. – «Como podes saber que tenho perguntas sobre ti? Isto tem mesmo de ser um sonho ou um género de alucinação. Onde está o Márcio?» - voltou a dizer de si para si. – Como foi a tua morte, Abel? Defendeste-te? – Fui atacado de surpresa. – Mas conhecias o teu irmão. Sabias que ele era rude e frio. Provavelmente ele discutia com os vossos pais e os vossos irmãos. Talvez tenha lutado ou espancado alguns deles num dia qualquer. Como pudeste aceitar o convite dele de irem apenas os dois ao campo? Querias ser morto? – Prezo demais a minha relação com Deus para querer algo tão profano. – Então permitiste que fosses morto. Mesmo que ele fosse teu irmão, o facto de saberes que ele mau devia ter te posto de alerta… – Não conheces a vida por inteiro. Não sabes o que pode acontecer em apenas um segundo. Se permiti a minha morte, indirectamente suicidei-me. Deus não pode considerar justo um suicida. Contudo, é isto que tu és. – Como assim? – Apesar da doença que tens (e note que levaste uma grande surra), persistes com a ideia de dar um presente a Braulia. És inflexível e muito radical. Queres sacrificar a própria vida por uns momentos de alegria quando a vida é o melhor presente que podes dar à tua noiva. Por causa deste presente, Já desmaiaste meia dúzia de vezes e perdeste algum sangue. O que achas que acontecerá amanhã? Estás a comportar-te como um suicida. – Pareces a Braulia a falar. Tenho uma pergunta para ti: o que os pais fazem todos os dias pelos filhos? – Sacrifícios? – Certo! Para eles, vale a pena morrer pelos filhos todos os dias, mesmo sabendo que, se morrerem, os eles ficarão muito tristes e sem a sua protecção... – Ainda assim, o que fazes não deixa de ser suicídio. Pense, casarias para depois deixar viúva a filha de alguém? Que presente é esse? Aceitam-se sacrifícios «suicidas» se for para salvar a vida de alguém. Vida por vida. Se o motivo for gradar alguém, não se chama amor. Deve ter outro nome… – Egoísmo? – Provavelmente, visto que, no fundo, queres mostrar que podes surpreender. Estás a fazê-lo pelo êxtase que isso te dará. Estás a pensar no teu ego. – Vejo sentimentalismo nas tuas palavras. Tu nunca te apaixonaste. Não sabes o que é isso. E nem tens a mínima noção do que é o amor romântico. Deves ter teorias acerca disso, mas conhece-lo? Não! Tu não conheces o amor. – É por isso, meu amigo – dizia ao apontar para o longe – que terás de conversar isso com ele. Usuku seguiu o seu dedo e tremeu. Um homem enorme aproximava-se deles. Podia-se ver apenas a silhueta de seu corpo e um olhar avermelhado brilhante. O homem trazia algo à mão – uma espada. O outro homem saiu correndo. Usuku fez o mesmo. O homem com a espada desembainhada vinha atrás do escritor e era notavelmente mais
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veloz que este. Com um simples toque em seu pé, o escritor tropeçou e, quando tentou levantar-se a ponta da espada feria-lhe o lado esquerdo do peito. O homem de olhos avermelhados abaixou-se e disse com sorriso amigável: – Olá! Podes chamar-me Eros.
♣ – A criança cujo choro levara o seu pai a um fim trágico numa noite arrepiante cresce rodeada de desconfiança e afastamento – contava Kaculu dando continuidade a história da noite anterior. – As outras não brincam com ela – a bizarra mancha vermelha em seu rosto a torna temível. Aquela que a deu à luz e o seu tio têm medo de andar com ela quando a lua aparece. Dar à luz? Se o passar do útero para o exterior tem esta expressão como descrição, o que significará permanecer alojado no ventre? Luz tem o sentido de pureza e imaculabilidade. Se os humanos são dados à luz quando nascem, então vivem na escuridão antes disso. Escuridão tem o sentido de infâmia e corrompimento. Logo, os humanos vivem em densas trevas antes de virem ao mundo. Com esta criança não foi diferente. Contudo, a comunidade onde mora a acusa de ser possuída por forças tenebrosas enquanto embrião. Não o nega, nem concorda. Mantém-se em silêncio aterrador. Apenas o seu olhar cavernoso exibe alguma aflição. Fala raras vezes e, quando o faz, no espaço de uma semana alguém na aldeia fenece. Terá tido uma maldição? Seria apenas coincidência? O que quer que seja, não lhe permitia viver como alguém normal e tornava-lhe a cada dia a pessoa mais amargurada de que se tinha conhecimento. Quando fez sete anos, o soba teve uma ideia. Embora não lhe coubesse tal encargo, passou a alfabetizá-la num lugar longínquo. O professor da aldeia negara-se a ensiná-la e nenhum dos alunos – muito menos os pais destes – queriam qualquer tipo de proximidade com ela. A criança aprendeu a comunicar-se pela escrita. Contudo, sempre que voltava de suas aulas com o soba, este voltava mais idoso. Parecia que sua voz amaldiçoada também era capaz de envelhecer as pessoas. Se fosse verdade, porque sua mãe e seu tio ainda estavam vivos? Porque o homem com quem sua mãe se havia casado depois de perder o seu pai permanecia saudável? Porque não acontecia nada com seus dois novos irmãos? A sua família parecia prosperar, ao passo que o resto da aldeia perdia entes queridos toda a semana. Aquilo criava revolta aos aldeões. Muitos queriam vingarse. No entanto, como se vingariam de alguém que assassinava com a voz? E, se decidissem atacar antes a família dela? Se, quando falava, uma pessoa morria, o que aconteceria se chorasse desconsoladamente pela morte de alguém por quem tinha incomensurável afecto? Os aldeões tinham medo de descobrir, mas tinha de se pôr fim àquela carnificina. – Os aldeões decidem criar uma trama – a mais horrível e fatalista possível – prosseguiu Lourenço Canzar em tom de suspense. – A criança e todos que tém o mesmo que sangue que ela terão de morrer. Não se pode deixar a possibilidade de alguém como ela ser dada à luz novamente. E a única forma de o fazer é eliminando qualquer um que partilhe do mesmo genes que a amaldiçoada. A trama envolvia amarrar os seus familiares em sua cubata e atear fogo à mesma. Mas, como se calaria a criança. Um homem gigantesco disponibiliza-se a servir de sacrifício. O dia chega. A aldeia parece calma. Não se vêem pessoas no campo e em qualquer outro recanto. Todas estão reunidas em um 88
só local. Já não restam muitos aldeões. Conta-se apenas mais de cinco dezenas de habitantes. Os homens amarram toda a família da amaldiçoada. Quanto a esta, até a sua boca é amordaçada. O cheiro de combustível sobre o capim da cubata irrita o olfacto. O choro dos meninos amarrados é quase imperceptível, mas toca a alma de alguns. A criança amaldiçoada não faz movimentos bruscos. O seu olhar cavernoso está coberto de lágrimas. Como podem aquelas pessoas estarem a cometer tal atrocidade? O pano que lhe tapa a boca deteriora-se a cada vez que ela ofega. O seu corpo está imóvel. Um gigante está sobre si e tem as duas mãos enormes cobrindo-lhe o pano que cerra os lábios. O mundo parece-lhe chegar ao fim neste momento. Fora da cubata, cada aldeão agarra uma tocha acesa. É de noite. O cenário se parece muito àquele que onde seu pai fora devorado por animais demoníacos. A lua tem um luzir pardo. Alguns grilhos cantam escondidos nas moitas. O vento não se faz presente com açoites. Sente-se apenas o frio de uma inexplicável brisa. As nuvens estão avermelhadas em algum canto do céu. A mancha no rosto da criança está enegrecida. Ela tem agora dez anos. O pano em sua boca acaba de decompor por completo. Ainda assim, não pode falar para que aquelas parem com tal execranda acção por causa das mãos do homem forte. Ela bafeja e ele sente um ardor arrepiante. Parece que suas mãos se derretem. O homem forte eleva a voz no mesmo instante: «Queimem! Queimem!» E os aldeões tomam acção. As tochas são lançadas uma por uma contra o capim ensopado por combustível – ateiam fogo à cubata da amaldiçoada. As chamas se espalham rapidamente. Tudo queima. Os aldeões sentem-se aliviados por algum tempo. Contudo, entre as labaredas do fogo consumidor, um vulto aparece correndo. A silhueta – a silhueta mostra que se trata de uma criança. Ela é reconhecida prontamente. Antes que possa pronunciar qualquer coisa, os aldeões fogem em dispersão. Todavia, de nada lhes adiantaria correr, porque ódio que habitava agora aquele coração condenado espalharia a morte nos quatro cantos da aldeia e arredores.
♣ – Podes levantar-te – disse o homem gigantesco que se apresentara como Eros a Usuku. – Não preciso de falar com alguém deitado sobre o chão. – Podia levantar-me se tirasses a espada do meu peito. – Tirar a ponta desta espada do lado esquerdo de teu peito corresponde a abdicares do amor que sentes por alguém que te é muito querido. Estás disposto a pagar este preço? – Se o que dizes é real, também tenho de morrer – disse erguendo-se e afastado a lâmina. – Porquê? – Humanos não vivem sem coração. – E o que tem isso que ver com o que acabei de dizer? – Abdicar do amor que sinto por essa pessoa significa perder o meu coração. E, como não fazes tensão de matar-me, posso levantar-me sem preocupações. – Lindas palavras. É uma pena serem ocas. Tu não sentes algo capaz de te levar à morte por ninguém. – Porque dizes isso? – inquiriu sorrindo enquanto ou outro embainhava a espada. – Tu pensas que me conheces e me sentes. Como já te disse, sou Eros. Antes de responder a tua pergunta, fala-me sobre mim. 89
– Eros… és a parte consciente do amor que alguém sente por outrem. És o amor que se liga claramente à atracção física, e usualmente levas as pessoas a manterem um relacionamento amoroso ininterrupto. – Muito bem. Descreveste-me basicamente bem. Mas não sou o que sentes por esta pessoa. Tenho reparado nas tuas acções, rapaz. Eu e os meus irmãos temos comentado sobre ti e sobre pessoas que têm o mesmo modo de agir. Tu não possuis Eros, Eros não está em ti. Em teu coração habita um dos meus irmãos, não eu. Pragma, é Pragma que está no teu íntimo. – Quem é o Pragma? Um dos teus irmãos? Tem alguma coisa que ver com pragmatismo? – Sim, Pragma é meu irmão. Um deles. E Pragma é diferente de Eros. Pragma não é como eu. Ele é o amor que prioriza o lado prático das coisas. Faz com que a pessoa avalie todas as imagináveis complicações antes de entrar para um romance. Isto é, a pessoa só investe se o namoro aparentar ter futuro. Caso contrário, desiste. A pessoa faz uma lista de pré-requisitos para o cônjuge ideal e pondera muito antes de se comprometer. A sua ideia é achar um excelente pai ou uma mãe esplêndida para os seus filhos e leva em conta o comodidade financeira. Usualmente questiona-se: O que pensará a minha família? Se me casar, em que estado me encontrarei depois de três anos? O que mudará em minha vida se me casar? Pragma é amor que tem como interesse fazer bem a si mesmo, amor que espera algo em troca. Não é sem causa que Pragma tem «prática» e «negócio» como significados. Tu possuis Pragma, Pragma está em ti. – Provavelmente tens razão. Mas não me sinto totalmente assim. Apresenta-me outro de teus irmãos. Talvez eu me identifique totalmente com um deles. Porque não me falas sobre Philia? – Philia?! Achas que possuis Philia, que Philia está em ti? Quem possui Philia coloca sempre a dedicação à pessoa amada antes do próprio interesse. Onde Philia está a pessoa amor entrega-se totalmente à relação e não se importa em abrir mão de certas vontades para a satisfação do pessoa amada. Investe de forma incessante na relação, mesmo quando não é correspondido. Sente-se bem quando a pessoa amada demonstra alegria. No limite, é capaz de até mesmo renunciar a pessoa amada, se acreditar que esta tem a possibilidade de ser mais feliz com outrem. Philia é forma incondicional de amar. Não é sem causa que Philia tem «altruísmo» e «generosidade». Se possuis Philia, só pode ser uma forma híbrida, o resultado de uma relação incestuosa entre ela e Pragma. Mas os irmãos e Eros não cometem incesto. Meus irmãos nem sequer se reproduzem. – Estás a testar-me? Ambos sabemos que tenho razão. O meu amor não é egoísta e, se for, não tem mal nenhum, pois faz jus ao que Deus disse aos que se casam: «Ambos serão uma só carne.» Se agrado a mim, agrado também a ela. O que faço é para ambos, visa a felicidade dos dois. E, na verdade, mais a dela do que a minha. Se fosse egoísta, não precisaria dela para nada. Nem sequer me casaria. Viveria apenas para mim mesmo. Se caso é porque amo, e da forma mais altruísta possível. – Tens argumentos fortes, rapaz. Contudo, são tolos. Eros tem outros irmãos. Psique, o amor «espiritual», que tem como base a mente e os sentimentos eternos. Amas com a mente, não com o coração. Ludus é outro irmão de Eros. É o amor que é exteriorizado como um jogo; o amor da folia. Storge é outro. É o amor afectuoso que se desenvolve paulatinamente, com base em similaridades. Mania é outra. É o amor excessivamente emocional, instável. Ágape também faz parte da família. Na verdade, é o
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mais velho de todos nós, o primogénito. É o amor altruísta; espiritual e respeito pelas regras da pessoa amada. Tu podes até possuir todos os irmãos de Eros. Todos os irmãos de Eros podem até estar em ti. Mas o que demonstra pela tua noiva neste momento é apenas um. Pragma é demonstrado por ti, e em excessivo grau. Os olhos do gigante passaram de um vermelho ígneo para um cinzento cadavérico. Os seus músculos colossais estavam entesados. As suas duas mãos seguravam a espada ao lado de sua coxa descomunal. Parecia que desferiria um golpe. – Há algo curioso sobre ti, Eros. Tem se estudado o cérebro das pessoas apaixonadas. E sabes a que conclusão usualmente se chega? O cérebro dos que amam assemelha-se ao dos doentes mentais. Tu activas a mesma área que as drogas, a fome, e a sede. Engraçado, és parecido ao vício das drogas. Se amo, sou louco. E os loucos não conhecem limites. Mas, já vi que não te posso convencer de nada. Ainda bem que é recíproco; também não me farás pensar de tua forma. Mudemos de assunto. Porque o Abel fugiu quando te viu chegar? – Porque Eros causa mágoa forte, quebra os ossos, corta profundamente o coração, devora o espírito, entesa a pele e faz o sangue fluir com extraordinária celeridade àqueles que o possuem. Entendeste? – inquiriu enquanto se voltava com violência e levantava à velocidade de um relâmpago a espada em direcção ao pescoço do outro. – Abel fugiu porque Eros, Eros mata. Antes que Usuku pudesse sentir se fora ou não atingido por aquela lâmina, os seus sentidos colapsaram e tombou inerte sobre o chão relvado. O gigante armado sorriu e voltou a embainhar a espada. Após olhar com desprezo para o corpo prostrado do escritor, deu passos calmos de retirada. O homem que assistia e comandava aquela cena sobressaltou-se. Márcio Nassembe era o seu nome. Embora o mesmo estivesse sentado sobre uma cadeira ao seu lado, o ecrã à frente de si mostrava um indivíduo estatelado. Outra máquina ao seu lado indicava o ritmo cardíaco deste como não existente. Teria o seu coração sofrido novamente uma recaída? Aquilo não estava em seus planos. A ideia era apenas mostrar ao indivíduo a sua insanidade em oferecer um presente à sua noiva mesmo sabendo que isso lhe custaria a vida. Não havia nada traçado que envolvesse desmaio ou morte. Para certificar-se que o indivíduo recebesse assistência especializada saiu às pressas em busca da mulher que recentemente aí estivera. Enquanto o Nassembe descia desesperadamente as escadas, algo bizarro aproximava-se do escritor. O ser estranho tocou com a língua bifurcada o corpo mortiço de Usuku que no mesmo instante arrepiou-se. Com alguma demora, o escritor levantouse. Havia uma árvore e um animal enrolado sobre ela à frente de si. O cenário permanecia escuro e tenebroso. Entre as trevas do panorama que permitia ver apenas a silhueta das figuras nele presentes, os olhos verdes sinistros da criatura brilhavam com fluorescência. Ora, a criatura mostrava ser um dos mais astutos animais que Usuku tinha conhecimento. Ela disse ao escritor: – É verdade que o Homem do Saco disse que tereis um casamento insólito e que isto tudo são ideias para a surpresa que preparas? E disse o escritor à criatura em tom gozoso: – Isto tem tudo que ver com a surpresa para o meu casamento, mas sobre o meu casamento ser insólito, ele disse: Tens te pensar bem se essa é a coisa certa a fazer para
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que erradamente não vos caseis. – Oh, não! – tornou a criatura – vós não vos casareis! Mas o Homem do Saco bem sabe que, no dia em que estiveres para vos casardes, vossos olhos se fecharão, e sereis como mortos, inertes na escuridão. O escritor, vendo que o assunto era digno de ser considerado e mui apropriado para abrir a inteligência, tomou-o a peito e decidiu apresentá-lo à sua noiva quando estivesse com ela. No mesmo instante, Márcio Nassembe e a mulher entraram para a sala estonteantemente branca. Estranho e aliviante – o escritor havia recuperado o ritmo cardíaco. – A história acabou? – perguntou Jaciara enquanto Ndombaxi Canzar e Cazenga voltavam a fazer-se presentes. – Ninguém vai contar mais nada? Falta o Carlos, não? – Já contei ontem – respondeu o Banzaia. – Faltam apenas o Ndombaxi e o Márcio. – Voltaram cedo – disse Lourenço aos dois que acabavam de entrar. – Não era para serem horas? Passaram apenas quarenta minutos… – O homem tem o número desligado – respondeu Cazenga olhando para o Banzaia visto que fora este quem lhes enviara recentemente o contacto telefónico da pessoa referida. O seu objectivo era contactar Lino Tchiva e mostrar-lhe que haviam entendido os seus pensamentos e que lutariam agora do seu lado. Mas a não operacionalidade daquele número fez com que tal intento sofresse protelação. – Dentro em breve voltaremos a tentar. Como ficou a história? – Horrível e excitante! – disse Érica. – Toda a família da criança foi morta pelos os aldeões da criança e ela agora quer vingar-se. Só não entendi uma coisa. Ela é uma ele ou um ele? – Se quiseres continuar a história, ela pode ter o sexo que tu escolheres – disse Cazenga sentando-se. – Eu? Contar uma história? Querias! Não sou tão criativa como vocês. O único poema que escrevi copiei de alguém. – Contudo, és boa em dar palpites das histórias do Usuku – descerrou Kaculu. – Uma coisa é comentar algo escrito por alguém e outra totalmente diferente é criar esta coisa – defendeu-se Érica. – Falando nisso, o Usuku não está a demorar muito? Já passou mais de meia hora… – Tenho certeza que dentro de poucos minutos ele estará aqui – disse Ndombaxi Canzar. E tu. Jaciara? Queres continuar a história? – Gastaste saliva ao perguntar – respondeu divertidamente a mulher ao encolher os ombros. – Não me acho capaz de participar desse vosso free style. Mas acho que poderia ser criado um programa onde escritores renomados participariam e quem desse uma continuidade melhor ao que foi contado pelo outro ganhava. – Não acho que escritores renomados quereriam participar em um programa assim – apartou Érica. – Talvez escritores que ainda andam no anonimato… Mas seria muito bom. Pena que eu nunca poderia participar… – Todo mundo é capaz de participar em um jogo assim – encorajou Ndombaxi Canzar. – Basta apenas criatividade e pensamento relâmpago. Bem, já que nenhuma das senhoras quer participar, tenho mesmo de ser eu a prosseguir com isso. Lembra-me,
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Jaciara, disseste que a história ficou de que jeito? – Horrível e excitante. Mataram a família da criança e ela agora quer vingança. E já não há muitos aldeões para contar historia… – Quem contou algo tão horrível? – voltou a pronunciar-se o Canzar. – O teu irmão – respondeu Kaculu. – Ele parece muito mansinho para contar algo do género, não? Mas todos aqui estão a contar coisas que têm que ver com as suas próprias vidas ou aconteceram com suas próprias famílias. – Espera! – embargou Jaciara. – Alguém na tua família foi queimado vivo, Lourenço? – Estava muito perto de acontecer – respondeu o inquirido. – Mas não é algo que eu goste muito de falar. – Bem, vou continuar a história – disse Ndombaxi Canzar levantando-se. – Daqui a pouco o Márcio desce e contará a parte dele. Porque tinha de ser ele a dar o fim? – inquiriu com graça. – Ele é louco demais para finalizar uma história. – A insanidade às vezes é uma bênção – disse Carlos Banzaia. – Muadiés marados não têm de se preocupar com os mambos malaykes que assolam a sociedade… – Falou o psicólogo do calão – depreciou em tom gozoso o Canzar. – Vou contar a minha parte da história. O que existe no coração da criança agora é o mais atarracado dos ódios. Os seus olhos cintilam com fúria e suas mãos fremem com fúria vingativa. O que poderia ela fazer? Se se vingasse, os assassinos de sua família morreriam. E depois? Onde viveria? Com outras pessoas que também morreriam ao abrir de sua boca? Se andasse pelo mundo, não estaria a condená-lo a exterminação? O que faria sozinha? Quantas pessoas haviam morrido casualmente por ouvir o tom assassino de sua voz? Quem amaldiçoa assim uma criança? Aquele que tem o poder da maldição possui também o poder da bênção. A criança sente que pode encontrar quem lhe outorgou tal destino cruel. Por isso, antes de se vingar daquelas pessoas com comportamento infame, decide procurá-lo. Anda dias e noites sem comer. A tristeza colocara os seus sentidos longe do desejo de satisfazer muitas de suas necessidades. Quarenta dias é o tempo que se somou até encontrar a bizarra cubata do acusável. Sem qualquer temor, entra para o local estranho e a sua visão é coberta por densas trevas. O seu olfacto é atacado por um odor horripilante e todos os pêlos e cílios de seu corpo eriçam-se. Pensava que fosse encontrar um ente medonho com o qual dialogaria enigmaticamente mas – aterrador! – a tenda começou a falar com ela. A bizarra cubata diz-lhe que existe uma oportunidade de ver novamente a sua família viva, mas que isso implicava que alguém teria de morrer. Quando o tempo marca a morte de alguém e se recua nele, nada pode ser mudado. O momento da morte tem sempre de marcado com morte, não importa de quem seja. Antes que a criança possa obter mais explicações a cubata desaparece. Ela não se apercebe que a cubata não é imune ao poder de sua voz assassina, pois, desde que aí entrara partes dela se derretiam. A criança sabe onde voltar a encontrá-la, contudo, voltaria a levar quarenta dias. E estava desprovida de forcas. Devia apenas resguardá-las para a sua cruel vingança. Por isso, com olhar extremamente feroz, decide voltar para a sua aldeia. – Os aldeões estavam imbuídos em folia antes de a criança voltar a aparecer – continuou Márcio Nassembe descendo as escadas com Ngoma Usuku e uma mulher. – Pensavam que se haviam livrado dela. Entre eles há mulheres cuja gravidez está no fim. Quando visionam o rosto monstruoso dela, as suas almas tremem como nunca antes. A estranha mancha em seu rosto é negra e brilhante. Todo o seu corpo é agora a
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personificação da vingança e da fereza. O terror graça à sua mercê. Cada passo seu representa ameaça e angústia. Os aldeões voltam a tentar fugir em dispersão, mas o som tácito do respirar colérico dela é agora tão venenífero que lhes enfraquece as pernas. Todos tombam. O vulto pueril com sede de retaliação aproxima-se cada vez mais deles. O que fará a criança com as mulheres grávidas? O que fará com as outras crianças? Alma por alma – será essa também a sua lei? Com pesada dor em seu íntimo, olha para a cubata onde viveu. Sobrou apenas uma camada preta de capim sobre o chão. Se se aproximasse, com certeza veria os esqueletos carbonizados daqueles que haviam divido o mesmo sangue consigo. O seu olhar voltou-se para as mulheres grávidas. Os seres em seus ventres estavam ainda em escuridão. Portanto, de alguma forma, eram seus comparsas; dividiam o mesmo mundo. Não podia matar um amigo quando nunca havia tido um entre a gente dada à luz. E, se não os podia trucidar, também não podia trucidar quem os carregava na madre. Passados alguns minutos de silêncio aterrador, tomou uma séria decisão. Se o tempo marcado por morte pode ser mudado apenas com morte, então já sabia quem tinha de morrer para que sua família voltasse a viver. No mesmo instante, o tempo fica estranho. Tudo começa a andar à volta. Ouvem-se trovões e um enorme raio parece rachar o céu ao meio. Os aldeões desaparecem. A criança também. Tudo fica calmo. A aldeia parece não possuir vida. Mas, num dos cantos, rodeando uma cubata, um grupo de pessoas tem tochas na mão. Dentro dela há uma criança com uma estranha mancha no rosto e sua família. Todos estão amarrados. Ela tem um gigante sobre ela, impedindo-lhe os movimentos. As mãos dele latejam com dores agonizantes por causa do bafejar da criança. Antes que possa gritar para que a cubata seja queimada, a sua garganta é atacada e toda a sua capacidade de usar a de articular sons via oral é comprometida. A criança amaldiçoada consegue soltar a sua família. Fora da cubata, as pessoas estão ansiosas para acabar com aquela praga. A densa escuridão não lhes permite observar o que acontece dentro dela. Sentem apenas o forte cheiro a combustível. A criança encaminha a sua família para um buraco que criara nas vezes que ficara sozinha e chorara por ser diariamente excluída. Antes de seu padrasto entrar, ela pede que ele grite: «Queimem! Queimem!» ele não entende a razão. Pensa que ela também entrará para o buraco. Mas tal não acontece. Com rosto ameaçador convence o padrasto a entrar e ir embora. Em seguida o cobre e fica sozinha. A cubata já está em chamas nessa altura. Tudo é devotado ao fogo, excepto o homem gigante que arrastou-se até a saída. Ninguém percebe os gestos que ele faz. Pensam apenas que foi atacado pela criança e que a cubata tem de queimar até o fim. E é o que acontece. A grossa fumaça é arrebatada para os céus com as chamas consumidoras. A criança morre. A sua família permanece viva. Vida por vida – é esta também a sua lei. A aldeia fica salva, mas não sã. A paz volta reinar. As mulheres grávidas podem agora dar à luz sem maiores preocupações. Mas uma pergunta ecoa ainda na mente de todos: Voltará uma criança como aquela a nascer? – O tempo decidiu dar a resposta a esta pergunta – continuou Usuku fazendo com que todos sorrissem estupefactos – e de uma forma que se tornava o advogado de defesa da criança. Descobriu-se que a aldeia estava infestada por uma praga. As lavras – o terreno onde semeavam estava depredado por resíduos tóxicos. Os alimentos eram venenosos e produtores de uma doença cancerígena bizarra. Era essa a razão de morte da maioria dos aldeões. Alguns possuíam doenças adquiridas por infidelidade. O envelhecimento dizimou outros. A busca por um culpado, a crença no oculto e na maldição e a ignorância no que tangia à técnica e à ciência cegaram a aldeia para a
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realidade. Não existia uma criança-demónio que tinha o poder de exterminar com exalação vocal ou nasal. Uma inocente havia sido morta. Ao menos era isso que saltava a vista dos perspicazes. Contudo, o assunto era abismalmente mais sério. Quando alguém se sacrifica voluntariamente a favor de outros, sua centelha de vida ganha imortalidade. E, se o sacrifício for feito por baptismo em fogo, o sacrificado também é outorgado com os poderes de Cihongo, o mais exuberante e temível dos Ankixi. Numa noite em que os anos submersos em felicidade falcatruada haviam sido totalmente esquecidos pelos aldeões, a sua atenção na grande festa que tinham é embargada pela chegada de um vulto. Ele uiva de forma estridente. Os batuques param. Os dançarinos cessam os movimentos. As palmas e os assobios se calam. A fogueira parece começar a apagar-se. O vulto aproxima-se e ganha cor. É totalmente castanho mais com variados tons cambiantes. As linhas do desdém e da punição estão bem traçadas em seu rosto. Mas seu rosto não é um rosto, mas uma máscara. Os aldeões estão imóveis e temerosos. Há muito que não viam Cihongo. Assim como Mwana Phwo, Cihongo é um mukixi a kuhangana ou máscara de bailado. O homem que a usa deve ser sempre um mukwa kukina ou profissional de dança. Cihongo representa o poder masculino, a virilidade, a autoridade e a prosperidade. No antanho, a utilização desta máscara era restrita aos chefes tradicionais, seus filhos e sobrinhos, que a usavam para recolher tributos para o soba da área tendo como galardão a protecção espiritual e militar deste. Todavia, não é esse o objectivo de Cihongo nesta noite. A figura mascarada dirige-se para o centro e faz um sinal. Os batuques voltam a produzir som. Cihongo começa a dançar. Há destreza na execução dos passos complexos e na coordenação entre as distintas partes de seu corpo. Há exuberância e êxtase. Os aldeões ficam maravilhados. Folia é o que reina em seu íntimo. As palmas e os assobios parecem clamores delirantes. Contudo, longe de sua percepção, algo suspeito se guardava naquela dança. O êxtase termina quando Cihongo faz algo impensável e considerado profano. A máscara – Cihongo tira a máscara. Os aldeões reconhecem-no. Muitos estremecem. Outros – seus familiares – estonteiam-se. Como podia alguém que tinha sido devotado ao fogo estar vivo? A resposta não era tão importante assim. O relevante era que a consciência de todos deixou de pesar lancinante e esmagadora. E, quando um de seus primos correu para abraçá-lo, todos sentiram o aperto reconfortante daqueles braços perdoadores. – Melhor assim – disse Jaciara ao som agudo de suas palmas. A maioria das pessoas aí desapercebia-se da entrada furtiva de alguém armado que ocorrera há enquanto Márcio Nassembe começara a narrar a sua parte da colectiva história. – Gosto de finais felizes. Ninguém morre. Típico dos livros do Usuku… Normalmente quem morre nos livros dele é aquele que o leitor não criou um forte laço afectivo. Quando morre alguém que o leitor criou um atarracada afeição, normalmente todos têm de morrer também… e acordar no paraíso. – Seria bom continuar a ouvir o que tens a dizer sobre os livros dele – embargou Carlos Banzaia enquanto se levantava – mas agora temos algo urgente a tratar. Vamos, Usuku? – Vamos, sim. Estou ansioso para saber o que terás para mim. Medo e insanidade já foram aprendidos, se bem que acho que sempre os tive. Mas dificilmente me foram expostos daquela forma. O intrigante é que não me apercebi da insanidade… O que tem de insano falar com Abel e Eros, Márcio?
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– Quando estive em coma, falei com a morte, a vida e a imortalidade. Elas ajudaram-me a ver o que não conseguia perceber falando com o meu sósia, os meus amigos e os meus familiares. Mostraram-me a minha falha de forma magistral, o que me levou a tomar a decisão acertada sobre um assunto muito importante… – Ele é mesmo louco – gracejou Lourenço. – Está a dizer que tem um sósia! – Isto tudo vi quando estava em coma – continuou o Nassembe. – Foi esta insanidade onírica que me levou a agir com madureza. O que te mostrei não é insanidade no sentido comum da palavra, Usuku. Pense nisso. E chegarás a surpreendentes conclusões. – A máquina que usaste é fantástica – apreciou o escritor. – Os efeitos parecem reais. É como se fosse um jogo de vídeo. Tens de me emprestar um dia desses. Ligo-a à minha avó e a coloco numa discoteca com gajos liambados e mboas spidadas! Estou a queimar o teu tempo, não, Carlos? Vamos. – E o que tens para nos contar sobre o teu casamento? – interditou Érica. – Já esperamos o suficiente. Não me digas que vais nos deixar aqui às moscas outra vez. – O Kaculu vai contar-vos – velou Usuku ao subir as escadas com o Banzaia. – Não te preocupes, Briell. Vais gostar de ouvir. – Espero bem que sim – disse após o outro ter desaparecido de seu campo de visão. – Muito bem senhor, Kaculu. O que tens para nós. A surpresa envolve muitas mulheres? Flores? Música? Sapatos com o nome da Braulia? – Espera! – suspendeu Jaciara. Já sei. A surpresa é não fazer uma surpresa… ou o Usuku desaparecer na hora de dançar com a Braulia. – Se vocês se calassem e permitissem o homem falar, talvez não desperdiçariam tanto tempo com banalidades tolamente articuladas – obstruiu Lino Tchiva aparecendo finalmente no campo de visão de todos. Estava armado como era da praxe. – Mas não precisamos de ouvi-lo ainda falar do casamento do medricas. Na verdade, quem está realmente interessado no casamento dele? Ele que case e morra! – Como entraste aqui? – inquiriu Cazenga ao levantar-se com Ndombaxi Canzar. – É simples encontrarmos as pessoas quando elas andam com telefones. Muito ingénuo o Carlos, não? Mas explico-vos isso mais tarde. E não pensem que desta vez eu não vos possa matar a todos – disse ao descobrir um dos lados de seu casaco. – Tenho granadas e outros brinquedos à volta da cintura. E ninguém quer que essas lindas meninas vivam na caixa de madeira tão cedo, pois não? Viram a foto? Entenderam do que o Usuku é capaz? – Estás a falar de quê, ó maluco? – indagou Márcio Nassembe. – Apareces sempre nos momentos inadequados e a falar imbecilidades. Este teu emprego é a tempo inteiro? – Vocês todos têm o displicente espírito engraçado do vosso pai e o usam nas horas mais inadequadas. Não se cansam de rir o tempo todo? Deviam contar as vezes que mostram os dentes por dia. Falando em contar, ouvi a vossa história… o vosso joguinho aqui dentro da criança amaldiçoada. Não concordo muito com o final, por isso, vou continuá-la. Vamos mesmo morrer todos aqui hoje. Então, se alguém um dia contar o que se passou aqui, espero que também conte o que contei – disse com desdém olhando para Kaculu. Ele tinha um pequeno aparelho preto em sua orelha. O seu telemóvel tinha uma chamada em curso desde que aí chegara e começara a ouvir a conversa deles. Tudo o que dizia era ouvido pela pessoa do outro lado da linha. – Vamos lá ver se endireitamos o fim enfadonho do vosso pai, sim? Aqui vai: Os aldeões sentem a alegria a invadir-lhes o
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espírito com o regresso daquele a quem tinham devotado cruelmente à destruição. Contudo, nem todos vêem as coisas da mesma forma. Alguns ficam temerosos. Porque razão tinha voltado? Vinha em paz? Ou planejava uma chacina? O facto de se ter tornado Cihongo transformava-o no mais exterminador dos inimigos. Querendo ou não, muitos começam a julgá-lo em suas mentes. O preconceito volta a disseminar-se. A exclusão passiva impera. Cihongo volta a viver a mesma angústia de sua infância. Tolos – tratar mal um imortal é a pior coisa que podiam estar a fazer. E não era um imortal qualquer. Era um imortal que tinha bem vivas em sua memória a noite em que a cubata de sua família fora incendiada pelas mesmas pessoas que o tratavam com afastamento. Seriam tão pusilânimes que não conseguiam enxergar que agindo assim despoletam a vontade de vingança que a todo custo ele tentava conter? O jovem sente-se abatido. Reconhece que é de facto amaldiçoado. Uma vez assassino, assassino para sempre. Para que possa reflectir bem no que fazer, anda avidamente entras o capim alto do local até deparar-se com um enorme embondeiro. É dia. O sol fustiga a terra como nunca antes. Mas a imagem que vê é apenas uma silhueta. Não consegue ver a cor dos troncos nem das folhas. Observa apenas uma enorme sombra avolumada à frente de si. Ouvira muitas histórias no passado sobre aquela árvore. Que só a podia ver quem estivesse em sérios apertos e que no devido tempo receberia ajuda. Onde estava esta árvore quando seu choro causou a morte de seu pai? Onde parava quando toda sua família foi queimada? Porque não apareceu para impedir as tragédias que destroçaram toda sua vida? Porque só agora aparecia? Para salvar aqueles assassinos? Mereciam eles um salvador? Seriam dignos de redenção? Cihongo parou para pensar sobre o que sabia sobre aquela misteriosa árvore. Em tom de perscrutância, olhou para o tronco bojudo, os galhos retorcidos e ressecados semelhantes a raízes e o fruto seco pendendo dos galhos. Lembrou-se que em seu tronco gigantesco se podem armazenar até cento e vinte mil litros de água. Porque tanta água? Seria apenas para manter-se viva ou para possível execução diluviana dos aldeões? Aquela árvore é vista também como o intermediário entre Deus e os homens e venerada como representação de entidades sobrenaturais. Segundo uma lenda, o embondeiro, por cobiçar o que era das outras árvores, foi punido por divindades, e posto de cabeça para baixo: a copa foi enterrada e as raízes ficaram para cima. Outra lenda conta que quando um defunto é sepultado dentro dela, a sua vida é ligada à árvore e só findará quando a planta deixar de existir. Se aquelas lendas estivessem certas, Cihongo sabia quem está agora no interior embondeiro. Podia apenas ser alguém cujo corpo não fora encontrado. Alguém que fora morto por causa do som de sua voz e cujas carnes foram arrastadas até o interior daquela árvore para serem devoradas. Alguém – sim, alguém que tinha o mesmo sangue que ela e que, se estivesse vivo, chamar-lhe-ia de pai. Porque aquele homem a levara ao colo quando criança àquelas chanas mesmo sabendo que animais ferozes rondavam aquele espaço? Que género de pai, por mais desesperado que esteja para embalar seu filho, anda com ele até à uma zona de extremo perigo? Aquele homem devia ter algum plano em mente para fazer algo que beirava o suicídio. E, se aquelas lendas fossem reais, seu pai havia feito isso para adquirir poderes sobrenaturais. Sendo assim, Cihongo crescera como criança amaldiçoada por causa da cobiça infame de seu progenitor. Portanto, o comportamento preconceituoso dos aldeões era a apenas a consequência da acção desprezível daquele homem. Os aldeões não tinham culpa. O seu pai era o culpado de tudo. Por isso, não tinha de ficar aí parada a ouvir o que o embondeiro tinha para
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dizer-lhe sobre que decisão tomar no que tangia à angústia que as pessoas de sua aldeia lhe outorgavam. Deu as costas e decidiu viver longe de tudo e de todos. – Agora que já estragaste a história podes retirar-te – disse Lourenço Canzar ao passar as duas mulheres para atrás de si – antes que nós também estraguemos algo em ti. – Ainda continuas a ter ideias messiânicas? – inquiriu o Tchiva atirando um telemóvel para Kaculu. Este apanhou-o e colocou-o sobre a mesa. – Todos aqui vão morrer. Mas a história ainda não acabou. A mulher com quem o teu irmão teve uma filha é que vai contar o fim. O telefone está num volume apropriado para que quando ela comece a falar vocês todos oiçam. Incrível este momento, não? Vamos morrer todos após termos contado uma história, assim como Usuku tem feito em seus livros. Somos todos escritores esta noite, e pagaremos pelos nossos pecados. O que tenho aqui vai explodir isso tudo. Não importa em que canto o vosso pai esteja, também morrerá. Natércia, estás pronta? – Claro, Lino – respondeu a voz no telefone. – Será triste perder-te, amigo. Sinto que temos muita coisa em comum. Principalmente o ódio. É um sarcasmo enorme morreres queimado hoje, não, Ndombaxi? Sei que não terás a mesma sorte que eu. Bem, vamos à história. Ao dar costas, Cihongo não se apercebe que o embondeiro começa a encolher. A árvore exaure-se tanto até atingir o tamanho e o formato de um homem. O embondeiro chama em prantos por Cihongo. O mascarado volta-se e seu campo de visão é preenchido pela imagem de uma silhueta masculina. A silhueta aproxima-se de si. Contudo, não ganha cor nem expressões. Continua escura qual sombra avolumada. A silhueta abraça-o. Cihongo fica imóvel. Os seus ombros ficam humedecidos pelas lágrimas dela. Sem poder controlar-se por causa da fúria desmedida que sente contra aquele ente, o mascarado faz com que o céu ganhe uma coloração assustadora. As nuvens transformam-se em fogo aterrorizador e chamas devastadoras começam a precipitar-se em direcção a ambos em velocidade mortal. Parecia que o maldito e o causador da maldição morreriam no mesmo dia. A silhueta abraça-a mais fortemente. Raios e trovões tomam conta do céu. Os olhos de ambos brilham com electricidade fulminante. No mesmo instante, tudo gira como um vórtice. Um enorme raio fende o céu em dois. Cihongo e a silhueta desaparecem. O cenário é agora detentor de uma grande calmaria. A aldeia parece mortiça. É noite – a escuridão impera. Dentro de uma cubata, pode-se ver um homem trajando roupas indígenas. É alto e esguio, e tem o rosto coberto por uma enorme barba desalinhada. Há muito que planeja receber poderes sobrenaturais para vingar a morte de seus pais. Os soldados da aldeia vizinha os haviam esquartejado por puro prazer. Nenhum de seus irmãos disponibilizou-se para lutar por sua causa. Acobardaram-se todos, inclusivamente o soba. Agora que lhe havia nascido uma criança, ficara difícil prosseguir com suas pesquisas. Sabendo que os animais mais terríveis do local dormiam e levavam o que caçavam para uma das fendas do embondeiro sagrado que aparecia uma vez por ano apenas na noite a seguir ao dia de lua cheia, resolveu sair e dirigir-se para aquele local. A forma mais rápida de conseguir os tão desejados poderes era ser sepultado naquela enorme árvore. Mas para isso, tinha de ser morto por alguém. Contudo, ninguém na aldeia concordaria em acabar com sua vida por causa de uma lenda. Por este facto, decide atrair as feras e torná-las seus carrascos. Será uma morte agonizante, mas tem de fazer sofrer aqueles que mataram seus pais. Para dar azo ao seu plano, dirige-se para fora da tenda. Está escuro, a noite pinta o cenário celestial, ao passo que, entre as chanas distantes, no cenário terrestre, alguns pirilampos brilham na
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companhia da lua que no momento tem uma imagem aterrorizadora. O homem está parado à entrada da cubata, mas não sozinho. Há uma criança em seu colo. Há horas que ela chora. O homem está enraivecido, mas não pode fazer nada contra ela. No entanto, não pode deixar que tal dia passe. O dia após a lua cheia é hoje. Tem de, sem falta, ser morto e sepultado. Faz de tudo para que a criança se cale e durma – brinca, dá-lhe algo para comer, limpa-lhe suavemente as lágrimas e encosta a cabeça dela em seu ombro com ternura, mas é infrutífero e frustrante. A criança tem de continuar incólume e imaculada às suas mãos porque ela – a criança é sangue do sangue, sua primogénita. Contudo, ela não age como sua filha. Chora, grita, esperneia, faz um berreiro estridente e o impede de executar seu plano. O que fazer? Seria prudente levá-la para aquele lugar com animais perigosos? Era sua filha não podia colocá-la em risco. E, se ganhasse mesmo os poderes, como ficaria sua família? Quem cuidaria deles? Abdicaria de sua vida com aquela bela mulher por causa da vingança? Não seria um comportamento que afrontava os desígnios de Deus? Com olhar resignado, voltou a tentar fazer a criança dormir. Desta vez ela se calou e colocou a cabeça no peito dele. Contudo tinha os olhos abertos. O homem voltou a entrar para a tenda e colocou-a sobre um luando. A criança começa a brincar com sua barba. O homem sorri. A sua sede de vingança parece ter desaparecido, mas seu plano é embalá-la e depois partir para o local onde pretende encontrar as feras assassinas. Os seus olhos e os da criança encontram-se. Ela tem um olhar inocente, apaixonante. Ele se deita ao seu lado. Está cansado. Brinca com o bebé por extensos minutos e sem se aperceber adormece. A noite após o dia de lua cheia passa. Agora, se no dia posterior acordar ainda com sede de retaliação, terá de esperar um ano para obtê-la. – O que fazem aqui em baixo? – inquiriu Cazenga ao observar Carlos Banzaia e Usuku atrás de si. – Não tinham de estar a conversar? – Não encontro os três cães que trouxe para aqui – respondeu o Banzaia. – Mas isto agora não é importante. O que fazes aqui, Lino? – Vim colocar um fim a esta história – redarguiu o Tchiva sem se aperceber que um enorme cachorro negro se aproximava sorrateiramente dele. – Mostraste-lhes a fotografia? – É a segunda vez que ele fala em fotografia – aludiu Márcio Nassembe. – Que fotografia é esta? – A fotografia que nos revelou a verdade que sempre esteve à frente de nossos olhos – disse Ndombaxi Canzar após ter entregado o seu telemóvel ao Nassembe com a imagem de seu irmão sendo agarrado por trás por Ngoma Usuku e começar a dirigir-se para o Tchiva com Cazenga. – O que quer dizer essa foto? – inquiriu o Nassembe beirando a rouquidão e a gaguez. – Que o Usuku é o culpado de tudo e está a tentar eliminar-nos um de cada vez – respondeu Cazenga. – Estamos do teu lado, Lino. Não precisas de continuar a apontar esta arma para nós. Aponta-a para o coração daquele escritor estafermo e acaba com isso. – Com muito prazer – disse o Tchiva enquanto levantava o cano do objecto assassino em suas mãos e mirava o peito de Usuku. Antes que pudesse premir o gatilho, sentiu suas costas serem atacadas por um monstro canídeo. Desequilibrou-se. Contudo, um disparo foi ouvido a seguir. O projéctil atingiu um dos móveis à frente de si. Cazenga colocou rapidamente as mãos sobre o Tchiva e retirou-lhe o cinto de explosivos. Ndombaxi levantou-o com ímpeto violento e
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bateu o seu corpo contra a parede atrás de si. O enorme antebraço do Canzar fazia forte pressão contra o pescoço do Tchiva. – Já não estás do meu lado? – perguntou Lino Tchiva com sorriso abafado por não poder respirar confortavelmente. – Pensas em trair o Usuku num segundo e no outro voltas para ele? Nem pareces ser um homem digno do corpo que tens. – Ainda tens a audácia de falar assim comigo? – inquiriu o Canzar ao projectá-lo conta o chão enquanto o escritor se concentrava no número que aparecia no telemóvel sobre a mesa. – Fuzilas o meu irmão e aindas te atreves a aparecer aqui? Sei que leste muitas coisas sobre mim e sabes do que sou capaz de fazer-te. O que querias com aquela foto? Achavas que éramos tão tolos ao ponto de acreditar que o Usuku tinha alguma coisa que ver com aquilo? – Fuzilas um inocente e tentas incriminar outro – disse Cazenga com olhar incendiado após ter partido uma das pernas de uma cadeira e começar a dirigir-se para perto dele. – O que eu mais odeio é que se prejudique alguém sem culpa. Estávamos para encontra-te contigo há mais de meia hora e te fazer pagar pelo que fizeste ao Lourenço. – E como vocês se aproximariam de mim? – inquiriu esquivando o pedaço de madeira que lhe fora jogado. – Fingiriam que estão do meu lado, que entendem a minha causa e depois me apunhalariam pelas costas? Que plano! São mesmo tão idiotas quanto o vosso pai. – Podemos ser idiotas até – disse Ndombaxi Canzar ao apanhá-lo e jogá-lo contra o corpo de Cazenga – mas és tu quem fez a pior parvoíce hoje, Vires até aqui é o acto mais insensato que cometeste. E vais morrer por causa dele. – Morrer? Eu? – inquiriu enquanto arrastava-se para distante deles. – Pode até ser. Mas, como já disse, morreremos todos. Vocês são mesmo idiotas. Acham que eu viria aqui sozinho? – interrogou ao som de um estrondoso barulho de uma das paredes atrás de si. A parede rachou-se e uma dúzia de indivíduos armados entrou pela enorme fenda. – Continuas a achar-me…? O que foi que me chamaste, mister Ndombas? Senhor pusilânime da estupidez burra, não? Nunca seria parvo o suficiente para crer que vocês passariam para o meu lado. Mas tinha de entrar em contacto com o telefone do Carlos e descobrir onde vocês estão. Por isso demorei algum tempo para chegar aqui. Tenho algo muito mais veloz que o GPS. A distância deste local com o que eu estava atrasou-me. Mas agora estou aqui, estamos todos aqui, prontos para acabar com isso de uma vez por todas. O criador e as suas aberrações morrerão todas hoje, e nada vai impedir este desfecho. – Falas demais! – vociferou Lourenço Canzar gemendo de dor enquanto levantava a enorme mesa e a usava ao mesmo tempo como escudo e arma. O gigante correu por alguns segundos com ela e lançou a colossal estrutura de madeira contra a dúzia de indivíduos artilhados. Eles tombaram e Ngoma Usuku apanhou o telemóvel de onde ecoava a voz de Natércia Tchivela ao som de alguns disparos. Érica e Jaciara foram rapidamente dirigidas para um esconderijo por Kaculu. – Se chegasses aqui a atirar contra nós, ser-te-ia mais fácil garantir a tua vitória, mas como qualquer vilão mentecapto, queres fazer poesia antes de levares por vencida o teu inimigo, então terás de perder. A partir daquele momento, houve uma saga titânica totalmente incomum. Três gigantes desarmados lutavam poderosamente contra treze indivíduos que carregavam material bélico a mão. Cazenga, Ndombaxi e Lourenço Canzar eram seus nomes. Os inimigos não viam de onde vinham os poderosos golpes que os derrubavam, apenas os
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recebiam dolorosamente. Muitos móveis foram quebrados, assim como incontáveis ossos e suas articulações. A cena era épica, imprópria para cardíacos. Usuku ficara paralisado olhando para o número marcado no telefone em sua mão. Devido a acção rápida de Carlos Banzaia de empurrar para o esconderijo onde haviam entrado as duas mulheres, Kaculu e Márcio Nassembe não fora atingido por um dos projécteis que trespassavam a sala. Contudo, o mesmo não aconteceu com os gigantes. O seu sangue salpicava sobre o chão do local a cada golpe que desferiam e se misturava. Todavia, pareciam insensíveis a dor. Os treze homens foram dramaticamente derrubados. Mas, um deles recusava-se a sentir-se derrotado. – Agora chegamos ao grande final – disse Lino Tchiva sorrindo sobre o chão enquanto Ndombaxi Canzar se aproximava dele. Ofegava e sangrava pelo nariz. – Tenho aqui explosivos que mandarão isso tudo pelos ares como já disse. Não importa onde o vosso pai se escondeu, morrerá estorricado também. – Deves estar senil por causa da carga de pancada na cabeça – disse o Canzar ao levantá-lo e aproximar o rosto desconfigurado dele do seu. – Já não estás com os explosivos. Como poderás mandar isso pelos ares? Mas eu ainda tenho razão para acabar contigo por teres tocado no meu irmão. – Elementar, meu caro Ndombas – disse abraçando-o fortemente. – Elementar. Tenho aqui um pequeno controlo remoto de uma bombinha no meio daquele sinto. E acabei de premir o botão. Espere mais dois segundos e seremos todos banquete de necrófagos. O coração dos três gigantes pulsou em desconcerto. O cinto estava distante de todos e fazia um barulho estridente. Estava tudo perdido. Naquele curto espaço de tempo, perguntas escrutinadoras passaram em suas mentes. Porque haviam lutado? Valia a pena estar a morrer por causa de um estranho? Que sentido fazia aquela história? Porque parecia que estavam todos conectados? Porque razão sentiam que tudo o que faziam era controlado por alguém? Como era possível Lino Tchiva e Natércia terem conhecimento de partes da história que haviam sido contadas no dia anterior? Teriam colocado escutas naquela casa? O que aconteceria com os seus familiares? O que seria de Daniela Canzar sem seu pai e seu tio? Como ficaria Bengui Massela, a menina portadora de VIH, sem seu irmão Cazenga para cuidar dela? Onde estava Kaculu para ajudá-los? Num momento de pura incredulidade humana, enquanto o fogo da explosão adquiria proporções devastadoras, uma figura abissalmente negra, possuidora de um par de olhos bizarros, noctívagos, vermelhos escuros, apareceu entre eles. Era um ser absurdamente colossal e com feições animalescas. Todo o seu corpo estava completamente coberto por pelugem. Repentinamente, a assombração fez algo que extravasou a impossibilidade. Os seus pêlos enormes e eriçados ganharam a coloração de brasas e libertaram uma energia que atraía as chamas da explosão para si. Tudo o que se passava naquele momento não era fisicamente exequível, mas acontecia. Fogo não podia atrair fogo e contê-lo. Monstros com poderes sobrenaturais não existem. O que sucedia ia bruscamente contra toda a lógica aprendida. Após a explosão ter sido absorvida, uma outra incongruência ocorreu. Os ferimentos de todos foram estancados e as partes de seus corpos contundidas regeneraram-se. A seguir, o monstro desapareceu abduzido por fortes raios luculentos e levou consigo os treze indivíduos.
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– Vocês não deviam ter-se arriscado tanto – disse Kaculu saindo do esconderijo com Márcio Nassembe, Carlos Banzaia e Ngoma Usuku. Os dois primeiros conversavam ao telefone com suas esposas. – O que queria que fizéssemos? – inquiriu Cazenga. – Que lhe déssemos o nosso consentimento para explodir isso tudo? Às vezes precisamos atacar. Vidas estavam em jogo. – Porque razão tiveste de entrar com os outros para o refúgio, Kaculu? – indagou Ndombaxi Canzar. – Não era mais fácil ficares aqui e cuidares de tudo sozinho? – Não há razões para irrompermos em discussões agora – embargou Lourenço Canzar. – O Kaculu sabe o que faz. E, como vimos, ele usou os seus poderes de Homem do Saco para impedir que uma catástrofe acontecesse. Onde estão a Érica, a Jaciara e a outra mulher? – Tive de levá-las rapidamente para a casa – respondeu Kaculu. – Assim como fiz ontem com o Alves, a Pereira e o Henriques. Elas já têm as informações que precisavam de ter. Lembrar-se-ão delas no momento apropriado. – Deves realmente ser muito poderoso – elevou Cazenga. – Tudo aqui aconteceu muito rapidamente. Teres levado aquelas mulheres e conseguires proteger-nos faz de ti o ser mais rápido e extraordinário que conheço. – Não fui assim tão rápido. Protegi-vos ao mesmo tempo que as levava. Não podia estar em dois lugares ao mesmo tempo… O que se passa Usuku? – Vocês são realmente estranhos – disse enquanto segurava o telemóvel de onde ecoara a voz de Natércia Tchivela. – Vocês quase morreram por razoes que não entendem bem e agem como se nada tivesse acontecido. Mas não têm de se defender disso que acabei de dizer. Entendo-vos muito bem. Tenho um problema mais grave agora. Vêem esse número? – perguntou ao aproximar-se de dois deles com o telemóvel. – Este número não é nacional; é um de um outro país, o país onde está a Braulia. A insensível da Natércia está no mesmo país que a Miúda. Isso não pode ser bom. Por isso, não posso ficar mais tempo aqui convosco. Vou viajar hoje. O mais rápido que puder. Se quiserem vir, aceitarei solenemente a vossa ajuda. Se não puderem, entenderei respeitosamente. – O Carlos e o Márcio são casados e têm filhos – disse Ndombaxi Canzar. – Eles podem ficar com suas famílias. Nós vamos contigo. – Tu também tens uma filha – disse o escritor. – Estás disposta a arriscar deixá-la órfã por mim, alguém que nem há dois dias conheces? – E o que farias sozinho lá? – retorquiu Ndombaxi Canzar. – Eu conheço a Natércia. Sei do que ela é capaz. Tu és só um homem da escrita e das ideias. Precisarás de alguém como eu. Quanto a minha filha, não te preocupes. Voltarei para cuidar dela. Já estive mais perto da morte do que imaginas e sempre me livrei. Pode parecer estranho, mas sinto que devo a minha vida a ti, todos nós sentimos isso. Por isso te protegemos desta forma. – Não menosprezes os casados – disse Carlos Banzaia após ter confirmado que sua família estava bem e desligado o telemóvel. – Nós também iremos. Com a ajuda do Kaculu, nada de grave pode acontecer às nossas esposas e filhos. Não sei de onde ele tira os poderes que tem e como os tem. Sei apenas que funcionam. E isso me basta para confiar às mãos dele a saúde da minha família. – Então não precisamos de continuar a falar – disse o escritor ao começar a correr velozmente em direcção à saída. – Vamos! Aquela mulher pode estar muito perto da
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Miúda e, se ela consegue localizá-la da mesma forma inexplicável que o Lino e os outros, já deve ter entrado em contacto com ela de alguma forma. – Não acho que bom que estejas tão alterado, Usuku – disse Carlos após estarem todos no interior do carro. Ambos estavam sentados sobre os bancos da frente. – Ainda podes prejudicar o teu coração. – Este coração atura qualquer doença e nível de pressão – disse o escritor enquanto o enorme auto preto entrava em andamento. – Só não posso garantir o que acontecerá com ele se algo de mau suceder à Miúda. – Comé? Não estás interessado em saber o que te ensinaria na nossa conversa? – Estás a tentar desviar a minha atenção para outro assunto? Não queres mesmo que eu sangre pelo nariz e suje os tapetes do teu carro, não é? – inquiriu em tom gozoso para tentar acalmar-se. – Estás mesmo preocupado comigo, psicólogo do calão. Diz-me então… O que mostrarias na nossa conversa? Algo diferente de medo e insanidade? – Claro, mô ciente. Mas uma que rima com a última. O man Kali aqui vai te ensinar algo sobre criatividade. – Dificilmente poderias ensinar-me algo sobre isso, man Kali. Sofro de criatividade. Mas fiquei curioso. Conta-me. O que me ensinarias? – Tenho a certeza que fizeste esta pergunta apenas para te mostrares interessado. No fundo, as tuas emoções continuam ao rubro. Tudo que eu te disser não será plenamente compreendido pela tua mente. Vou manter-me calado. Sei que o silêncio pode vir a fazer com que tenhas ideias insanas, mas não posso importunar-te. Falarei da criatividade apenas quando for propício. As vozes humanas cessaram no enorme auto preto. Apenas o estrépito do girar das engrenagens da viatura ocupavam a atmosfera sonora. A expressão de Ngoma Usuku estava acentuada por um sorriso totalmente artificial. As suas ideias beiravam a selvajaria. Tudo o que havia aprendido sobre quietude em momentos tensos havia desaparecido de seu consciente. Sorria para disfarçar o monstro em que aquela situação aflitiva o estava a transformar. Disfarçar não era realmente a palavra certa. Sempre sorria – não importava o seu estado de espírito. Contudo, quem o conhecia podia facilmente diferenciar o seu sorriso feliz do seu sorriso desditoso. Ninguém melhor do que aquelas seis pessoas com ele podiam entender o sorriso esboçado naquele rosto. Eles agiam da mesma forma. O seu comportamento era incompreensivelmente parecido ao do escritor. Cinco deles não sabiam ainda a razão, mas estavam muito perto de descobrir. – Boa tarde – cumprimentou Usuku após estarem dentro do aeroporto. – Tenho aqui uma reserva. Gostaria que emitisses um bilhete para que eu viaje agora para este país. Estes senhores comigo não têm reserva. Será que pode fazer algo por eles? Temos urgência em viajar juntos. – Faltam vinte e seis minutos para o último voo para lá sair – respondeu o senhor com certa displicência. – Desculpe, mas acho que não estou a altura de ajudá-lo. – E quem poderia estar? – interrogou o escritor. – O meu chefe. Mas no momento está a cuidar do embarque dos passageiros. – Podes ligar para ele para que venha ter comigo? – Já é difícil falar com ele na hora do check in, meu caro. Agora que ele está naquela sala a colocar as pessoas para dentro do avião é possível… com o im no princípio da palavra.
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Ngoma Usuku esboçou o mesmo sorriso artificial que delineara sua face no enorme auto preto antes de voltar a tornar-se audível. – Então eu vou falar com ele agora. Por onde entro? – Acabei de dizer-lhe que é impossível a esta altura! O nosso próximo voo para este país sairá às vinte e duas. Posso passar um bilhete… também para os senhores que estão consigo… para essa hora? – Não conseguiste entender que eu disse «urgência» quando comecei a falar contigo, meu caro? Preciso viajar agora! É urgente demais! Sei que podes fazer com que eu viaje. Por favor, fá-lo! Dá-me sete bilhetes! – O que se está a passar, Kudissanga? – perguntou um senhor roliço ao aproximar-se. – Este senhor quer viajar agora, no voo que está prestes a sair. Está difícil para ele entender que isso é totalmente viável… com o im no princípio da palavra. – Temos de realizar os desejos dos nossos clientes, Kudissanga. Ainda há espaço para treze pessoas aí. Alguns passageiros não apareceram e quatro não poderão viajar porque apresentam um estado adoentado. Não posso deixar que pessoas assim entrem para um avião desta companhia. Seria mau para a saúde delas… Pode mostrar-me o seu passaporte, senhor? – Claro – disse o escritor ao entregar-lhe o documento requerido. – Carniça! – interdisse o senhor roliço. – Poderia passar-lhe um bilhete agora mesmo, caro… Ngoma Usuku. O meu chefe iria entender. Mas não tem visto de passagem. Assim as coisas ficam complicadas… muito complicadas. – O que faço para obter este visto? – inquiriu reparando que alguém filmava o que acontecia. – Vá á embaixada deste país aqui perto, tire a norma dos documentos que precisará para o visto, trate-os, depois volte para lá e os entregue. – Isso parece demorar algum tempo… – Sim. Os documentos podem levar no mínimo um dia para serem tratados. Mas o visto sairá apenas depois de três dias úteis… – Com isso quer dizer que não viajarei hoje. Mas eu tenho de viajar. É extremamente imperativo que eu entre para aquele avião agora! – Lamento – pronunciou-se o senhor que começara a conversar primeiro com o escritor. Havia escarnecimento no seu tom de voz. – Não vai poder partir agora. O avião parte daqui a minutos, e nem com mágica poderia obter o visto a tempo de embarcar. – Sou eu quem lamenta – disse ao esboçar novamente o sorriso artificial – porque, se eu não partir naquele avião, partirei algumas das vossas máquinas aqui. Depois partirei para ignorância: partir-te-ei a cara! É suficiente partir para ti? – Receio que terei de chamar os seguranças para tirá-lo daqui, senhor Usuku – continuou ele em tom escarnecedor. – Ameaçar-me é prudente… com o im no princípio da palavra. Nem querias imaginar quanto estrago sou capaz de fazer aqui. Primeiro pegaria a câmara deste homem – disse ao receber a máquina das mãos do homem que os filmava. – Depois… – O que está a acontecer aí? – embargou o segundo senhor vendo uma multidão a sair pela porta da sala de embarque. – Acho que o voo cancelado – respondeu uma mulher atrás de si. Ela usava as mesmas roupas que ambos. – Ou encontraram alguma anomalia no avião…
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– O que foi, pai? – perguntou o senhor roliço, após se ter aproximado de um homem. – Porque saíram do avião? – O tempo está mal – respondeu o homem grisalho. – Ficou tudo escuro aí fora. Ninguém entendeu de onde vieram aquelas nuvens… Não havia previsão de chuva para hoje. Se o kibuto de água aí no céu cair, não é hoje nem amanhã que viajaremos. – Exagerei no show? – perguntou Usuku ao sorrir após ter-se aproximado dos outros. – Sim – disse Márcio no mesmo tom. Ambos falavam como se estivessem segredando. – Principalmente a parte do «se eu não partir naquele avião, partirei algumas das vossas máquinas aqui. Depois partirei para ignorância: partir-te-ei a cara!» Não pareceu de uma pessoa irritada de verdade, mas de um comediante. Se eu estivesse no lugar daquele senhor, descobriria rapidamente que essa tua raiva era fingida. – Tinha de ser – respondeu o escritor. – E agora que já tenho a fama de sobressaltado, posso pôr em prática a segunda fase do meu plano. É incrível como ele ainda teve a audácia de explicar-me o que é um visto! Deus! Fui eu quem tratou o visto da Braulia. E até trato os vistos de algumas pessoas na empresa onde trabalho… – Como é que ele podia saber? – inquiriu Carlos Banzaia em tom gozoso. – Perguntas-te como um autentico leigo! Mas não sei se adiantou alguma coisa esse teatro todo que fizeste. O voo foi cancelado… – Eu queria apenas falar com o chefe de escala deles. E é isso que farei agora. Vê e aprende. – Tens instintos de gangster – continuou o Banzaia. – O Lino tem razão em estar a querer acabar contigo. – Já disse: Vê e aprende. Como está, meu senhor? – perguntou após se ter aproximado de seu mais recente alvo. – Apoquentado – respondeu o agigantado senhor. – Muitos negociantes perderão muitas coisas se não viajarem dentro em breve. E já estão a rebentar-me os ouvidos… e a paciência. – Compreendo. Estou na mesma situação. Mas não lhe vim apoquentar. Sei que não pode fazer com que essa chuva não caia. Mas, queria lhe pedir o especial favor de colocar-me naquele avião assim que for possível. Tenho reserva e dinheiro para sete bilhetes. Mas não temos visto nos nossos passaportes. É a primeira vez que viajamos para aí. E alguém disse que espaços vagos… – Sim, há – disse suspirando. – Eu posso lhe colocar naquele avião. O problema será quando desceres lá. Sem visto não passarás do aeroporto. E, se passares, serás rapidamente encaminhado para uma cadeia. Se estiver disposto a ser preso, põe-lhe mesmo agora aí dentro – assegurou tendo como intenção fazer o escritor desistir. – Serás escravo das tuas palavras. Assim que a ameaça de chuva passar, eu e aqueles meus amigos entraremos no avião. – Como quiser – disse ao sorrir enquanto o escritor se afastava. – Tudo pronto – disse Usuku após se ter aproximado dos outros. Kaculu não estava com eles. – Agora é só nos sentarmos aí e esperarmos. – A conversa com Abel fez-te bem – reparou humoristicamente Márcio Nassembe. – Estás cheio de ideias insanas – E ainda virão mais de onde esta veio. Basta esperares pacientemente.
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– Se queres assim tanto saber se a Braulia está bem – embargou Carlos Banzaia – porque não lhe ligas? – Tenho medo da resposta… – Então não és tão corajoso e insensível quanto pareces ser – disse o Nassembe. – Liga-lhe, homem! – E falas tu com ela? Já comecei a tremer. Não vou conseguir pronunciar nenhuma palavra – 0K. Farei isso por ti – disse o Nassembe recebendo o aparelho. – E também assinarei no livro da conservatória como marido dela. Alô? Falo com a Braulia? – Sim – respondeu a pessoa do outro lado da linha. – E eu falo com alguém que está com o telefone do meu noivo. Qual a razão? – Porque ele está a pensar em fazer-lhe uma surpresa. Se falar consigo agora, acabará por contar-lhe. O que ele precisa antes de fazer a surpresa é saber que a sua noiva está bem. – És um amigo dele? Não me lembro de já ter ouvido a tua voz… – Sou, sim. Vejo que está muito preocupada com ele. Ele está bem noiva dele – disse sorrindo. – Precisa saber do seu estado para estar melhor. – Estranho. Mas estou bem, sim. – Ninguém tentou alguma coisa contra si? Não foi ameaçada? – Não, não fui. Apesar dos problemas aqui, as coisas parecem estar a correr bem para mim. Agora que já respondi a pergunta dele, posso falar-lhe. – Não. Lamento. – Porquê? – Porque agora a chamada vai cair. Adeus, Braulia – disse ao desligar. – Problema resolvido. O que faremos agora? – Tinhas mesmo de desligar-lhe na cara? – perguntou o escritor com expressão de incredulidade enquanto recebia o aparelho das mãos do outro. – Não vais gostar do que ela te vai dizer quando a encontrares. – Ela não saberá que sou eu – disse vendo que Kaculu se aproximava deles. – Ouviu-me apenas ao telefone… – Saberá, sim. É incrível como ela consegue gravar bem a voz das pessoas. Surpreende-me. Vais entender quando chegarmos. Perguntas-te o que faremos agora. Simples: Vamos ter de encostar o Kaculu contra a parede e exigir algumas respostas. – Nem que fossemos mil conseguiríamos realizar tal impossibilidade – recobrou Ndombaxi Canzar. – Sei que conseguiremos – disse o escritor ao desapertar um dos botões da camisola e retirar a gravata. – Já fomos passivos de mais. Com poderes ou sem poderes, ele terá de responder-nos. E fá-lo-á agora. – E se ele revoltar-se, Usuku? – Ele não vai, Márcio. Não vai… As pessoas são esperançosas.
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– CAPÍTULO VIII – ●
A verdade, somente a verdade
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– Não vamos usar nenhuma artimanha psicológica ou trama de qualquer outro género para descobrirmos de ti o que se passa – disse Usuku enquanto Kaculu se sentava ao seu lado. – Sei que já deves ter percebido que te encheremos de perguntas. E já deves ter preparado respostas evasivas. Mas não vamos aceitá-las. Vais falar abertamente o que queremos. Talvez isto até faça parte do teu plano: contares-nos a verdade apenas agora. Acho que fui directo o bastante. Espero que respondas da mesma forma. – Posso faze-lo com perguntas? – perguntou o gigante sobrenatural cruzando os braços. – Desde que entendamos plenamente… – Obrigado. Vamos então à verdade. Que a viagem não seja constrangedora. Achas que me criaste, Usuku? – Até há dois dias pensava isso. Agora penso que foi você quem me criou… – Voltaremos a esse último ponto dentro em breve. Qual foi a primeira história que escreveste? – A Três Degraus do Quarto, o livro em que o Carlos Banzaia é o protagonista. – Errado. Pense bem. Não perguntei o primeiro livro, mas a primeira história. E, curiosamente, o Carlos também a escreveu neste teu livro… – O Homem do Saco. Foi esta a primeira história que escrevi. Mas nem uma página cobria. No fim, o menino curioso era raptado pelo Homem do Saco e este dizia que o comeria. Só depois de cinco anos é que pensei em continuar a história, contando que na verdade, o Homem do Saco não o havia apanhado para servir de ração, mas como substituto. – Este foi o primeiro contacto que mantive contigo – continuou Kaculu sem se aperceber que os outros adormeciam. – Ficar sozinho naquele lugar é entediante. Então escolhi-te como escritor das minhas façanhas e de pessoas com histórias emocionantes. Para que não achasses estranho, escolhi personalidades parecidas a ti e a mim, tanto no comportamento quanto nas feições. Para manter-me mais distante ainda, fiz com que o livro em que falas mais abertamente sobre mim fosse o quinto. Mesmo que fosse o primeiro, dificilmente desconfiarias que estavas a ser usado por mim para contar as minhas histórias. Tens uma mente surpreendente, mas… Kaculu interrompeu-se estupefacto ao ver que os seis homens dormiam profundamente. O que acontecera? Quem fizera aquilo? Enquanto se questionava, visões estranhas apareciam na mente de Ngoma Usuku. Ele estava só. Não havia chão nem céu. Contudo, um livro enorme pairava no ar. O escritor pegou-o e começou a folheá-lo. O que leu foi estranho, mas parecia dar-lhe as respostas de que precisava. O que estava grafado aí era o seguinte:
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Num dia em que os arautos do Homem do Saco vieram apresentar-se perante ele, sucedeu vir também entre eles o líder dos vultos. – Donde vens? – perguntou o Homem do Saco ao vulto. – De perambular por Luanda e andar por ela – respondeu o vulto. – Acaso notaste o meu escritor Usuku? Não há ninguém em Luanda como ele, excêntrico, insólito, homem que escreve sobre mim e extravasa o teu mal. – É a troco de nada que o Usuku escreve sobre ti? Não cercaste como de uma muralha a sua mente, as suas inspirações e tudo o que ele vê para que seus livros sejam prodigiosos? Abençoas tudo quanto ele escreve e suas ideias grassam livremente por muitos leitores. Mas estende a tua mão e toca no dia de seu casamento; juro-te que te amaldiçoará e deixará de escrever sobre ti. – Pois bem! – respondeu o Homem do Saco. – Tudo o que ele tem está em teu poder; mas não estendas a tua mão contra a sua sanidade. E o líder dos vultos saiu da presença do Homem do Saco. Ora, um dia em que o filho e a filha de Carlos Banzaia estavam à mesa e banqueteavam-se em casa da irmã mais velha do psicólogo, um homem de porte enorme que adquirira as feições do Homem do Saco veio dizer-lhe: – Trago comigo um convite aliciante. Sei que isto te interessará bastante. Como psicólogo, será o teu caso mais especial. Se quiseres ajudar-me neste assunto, permita-me visitar-te mais algumas vezes. Longe daí, a mesma mensagem era dada a Ndombaxi e Lourenço Canzar por um outro homem, mas com as mesmas feições e porte: – Trago comigo um convite aliciante. Sei que isto vos interessará bastante. Como escritores e inventores, será o vosso caso mais especial. Se quiserem ajudar-me neste assunto, permitam-me visitar-vos mais algumas vezes. Nas cercanias daquele local, em moradias diferentes, Márcio Nassembe e Cazenga também lhes chegava aos ouvidos este recado: – Trago comigo um convite aliciante. Sei que isto te interessará bastante. Como alguém que já passou por situações bizarras, será o teu algo te fará sentir extrema comodidade. Se quiseres ajudar-me neste assunto, permita-me visitar-te mais algumas vezes. Os cinco homens decidiram então aceitar o convite, visto terem descoberto que tinham estranhamente algo em comum com o objecto daquele caso. Passados dois dias, após terem presenciado as acções sobrenaturais do homem de enorme porte, interessaram-se mais ainda e resolveram por combinação visitar o objecto do caso. Ao vê-los, o objecto correu, tropeçou e caiu. E, volvidos instantes, desmaiou por estar em choque, pois pensara que enlouquecera. Contudo, ao recobrar os sentidos disse: – Eu tenho de dar um presente à Braulia e agora me acontece isso. Deixa-me sair
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desse carro, por favor – pediu com enorme cortesia. – Preciso de apanhar ar. Em tudo isso, Usuku não cometeu pecado algum, nem proferiu contra Deus blasfémia alguma. Chegou de novo o dia em que os arautos vieram apresentar-se diante do Homem do Saco e o líder dos vultos também veio no meio deles. O Homem do Saco disse ao vulto: – Donde vens? – Estive dando uma volta por Luanda, passeando por aqui e por ali. – Notaste o meu escritor Usuku? Não há ninguém em Luanda como ele, excêntrico, insólito, homem que escreve sobre mim e extravasa o teu mal. Persevera sempre em sua excentricidade; foi em vão que me incitaste a perdê-lo. – É só tocar na pele dele para ver o que acontece. As pessoas não se importam de perder tudo desde que conservem a própria vida. Agora, se estenderes a mão e ferires a noiva dele, verás como ele, sem nenhum respeito, te amaldiçoará. – Pois bem. Faça o que quiser com o Usuku, mas não o mate. O líder dos vultos retirou-se da presença do Homem do Saco e enviou Natércia Tchivela, o flagelo desumano, para atacar Braulia, a noiva de Ngoma Usuku. E agora? E se ela morresse? O que faria o escritor? Amaldiçoaria o Homem do Saco mesmo sabendo que fora o líder dos vultos o cabecilha daquela situação? O ódio estava preso em seu coração. Ao acordarem, notaram que a situação climatérica se tornara propícia para viajar pelos ares. Passado algum tempo, os passageiros dirigiram-se para a sala de embarque. O mesmo fizeram os seis após terem comprado os bilhetes embora houvesse um certo nível de resistência vindo no homem que era o chefe de escala daquela companhia. A enorme máquina decolou e a conversa sobre o que realmente acontecia com a vida de Usuku permaneceu. Todavia, o escritor já não participava dela. Pensava apenas no estranho sonho que tivera e nas informações que lera naquele livro. Seriam verdade? O que queriam dizer? Seria o Kaculu aí presente uma fraude – uma criatura maléfica que queria divertir-se com o sofrimento do escritor? O que ganhava com aquilo? Mesmo que tudo que lera naquele livro fosse verdadeiro, não fazia sentido. Um ser sobrenatural planejara causar sofrimento indescritível a um humano apenas para provar – provar o quê? Que um escritor pode perder a sanidade se lhe for retirado o que lhe é mais querido? Se tal fosse uma disputa entre aquela criatura maléfica e o Homem do Saco – que tinha Usuku que ver com aquilo? Eles que resolvessem a questiúncula entre si! Porque tinha de ser escolhido como cobaia para responder a algo do qual tinha apenas conhecimento vago ou, melhor, achava ser ficção criada por si? O escritor queria apenas dar uma surpresa extraordinária à sua noiva. Como pôde a história tomar caminhos tão complexos? O avião começava então a aterrar. Em breve ter-se-iam as respostas. No entanto, algo que escapara à visão de todos, foi a conversa que Ngoma Usuku teve ao telefone antes de
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subir para a enorme máquina planadora com alguém do grupo comummente chamado Máfia. – Oi! Como estás? – cumprimentou ele após alguém ter atendido a chamada enquanto olhava para a sua imagem reflectida num dos espelhos dos quartos de banho do aeroporto. – Estou bem. E tu? – Precisando de um favor. Quero que me entregues à mão a vida de cinco pessoas. Arranja-me tudo o que puderes sobre elas. Morada, data de nascimento, número de conta bancária e de telefone, e-mail, local onde trabalha, família, conservatória onde foi registado… Tudo! Fazes-me esse favor? – Porquê? Tem que ver com a surpresa para o teu casamento? – Considera isso o presente que o vosso grupo quer me dar neste dia. – Melhor para nós! Menos dinheiro gasto. Diz-me os nomes e os terás dentro de poucos dias fechados em caixas de madeira. – Façam o trabalho como vocês sempre fizeram. Que nada sobre esse assunto transpire directa o indirectamente. Cacem-nos para mim. As presas são: Carlos Chinengue Banzaia, Márcio Pontes Pereira Nassembe, Ndombaxi Ilídio Canzar, Lourenço Filipe Canzar e – o nome do último indivíduo o escritor falou em tom extremamente baixo, pois era um nome que devia ser mantido em segredo para sempre. – Enviei-me tudo por e-mail. Façam o scan das fotos e de outros documentos que conseguirem. Quero essas vidas aqui o mais rápido possível.
♣ – Ela está a reagir bem ao tratamento? – perguntou Natércia Tchivela num dos idiomas falado naquele país. – Estás preocupada com ela agora? – redarguiu Braulia sorrindo enquanto colocava a mão sobre a testa da menina deitada sobre a cama. – Não. Estou a penas a tentar fazer o papel dos pais dela. Se eles ainda estivessem connosco perguntariam isso, não? – Como assim se eles estivessem connosco? Foste tu quem a trouxe e até agora não apareceu alguém dizendo ser seu familiar. Acho que deves reformular a tua frase. – Não há qualquer erro semântico ou sintáctico no que eu disse, muito menos fonético. O único erro aqui é a tua lentidão em perceber que os pais dela morreram. – Como assim? – inquiriu desconcertada. – O que aconteceu? Também estavam doentes? – Não. A casa onde eles viviam desabou sobre os seus corpos. Eles gritaram, mas não havia quem os pudesse salvar. As equipas de busca e salvamento não estão naquele local. Estão todas aglomeradas nos sítios onde o sismo e o tsunami atacaram com maior força. Parece que a casa deles estava numa zona onde apenas o eco dessas catástrofes a
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abalou. No princípio manteve-se firme a residência. O passar dos dias deve ter feito com que começasse a ruir paulatinamente. Agora eles estão aí soterrados, desfigurados e completamente cadavéricos. Assisti-os até ao seu último suspiro. Senti a estupidez deles em tentar salvar uma filha que os fez esquecer de cuidarem de si mesmos. Agora que estão mortos como a protegerão? – Falas da morte dessas pessoas como se contasses uma história que te dá prazer. Como achas que ficaria esta menina se te ouvisse falar da morte dos pais dela desta forma? – E de facto está. Olha bem para os olhos dela. Estão cheios de lágrimas. Achas que ela está a chorar por neste momento está a ter um pesadelo? – inquiriu com sarcasmo. – Não admira que não tenhas amigas! – disse tristemente enquanto abraça de forma fraternal a criança. – Não podes disseminar tristeza e sofrimento aos outros só porque fizeram o mesmo contigo. Assim te tornas um mero papagaio; uma imitação barata daqueles que te oprimiram. Perdes toda a tua personalidade e importas para o teu íntimo um comportamento copiado, um proceder clonado. Não chores, bebé – falou consoladoramente à menina. – Estou aqui para proteger-te. Dar-te-ei tudo o que precisares. – Porque te importas com estranhos? Porque estás aqui? – indagou a Tchivela colocando-lhe a mão sobre o ombro. – Porque não faria sentido nenhum receber um dom de Deus e não usá-lo para ajudar aqueles em maior necessidade. Uma lâmpada não é acesa para brilhar sobre outra lâmpada. Não teria lógica alguma se assim fosse. Uma lâmpada é acesa para dissipar a escuridão. Trabalho onde faz mais sentido fazê-lo. – Então o fazes por lógica? – A ideia não é bem essa. O amor me guia – disse com sofrimento enquanto seus olhos esvaiam lágrimas. – A preocupação com o próximo é a força motriz em mim. Vais ficar boa, bebé. Podes chorar o quanto quiseres. Cada gota que cair confirmará o forte amor que tinhas pelo papaínho e pela mamaínha. Não és culpada de nada. O tempo e o mundo é que são cruéis. – Falas como a minha mãe – evocou a Tchivela. – Ela tinha o mesmo espírito abnegado. E, como presente inefável, recebeu a morte. Os sentimentais não vivem; inexistem. – Tu não deves sequer fazer ideia do que significa ser pobre e a própria natureza roubar-te tudo o que tens, pois não? Se as pessoas não ajudassem umas as outras a palavra sociedade perderia até o significado sobrevalorizado que já possui. Os humanos têm coração; importam-se. – Como podes saber que não sou pobre? – Não disse que não eras pobre… Mas agora faz sentido não seres. Se usas um esse fato com capuz que te cobre quase todo o rosto e ainda assim consegues ver o que está à frente de ti é porque possuis algum dinheiro. O teu fato deve ser feito de algum material que permite que te permite ver-me mas não me permite ver os teus olhos, como aquelas folhas que são usadas para fumar os vidros de carros e das portas de empresas e lojas. Não sabia que se fazia roupa com esse material. Deves ser uma das poucas pessoas que a usa e conhece. – Não sou rica. Conheço apenas as pessoas na hora certa. Se eu fosse alguém fraco como vocês, teria de pedir desculpas pelas minhas palavras duras agora, não é
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verdade? Então vou imitar-vos. E espero que não esteja a tornar-me num papagaio, uma imitação barata vossa. Desculpa-me, mulher. Desculpa-me, criança. – Gostamos de ouvir. Entendo-te um pouco porque acho que esse teu comportamento está ligado a quatro consistências: compartimentação, complexo de Medeia, complexo de Quasímodo e conaçao. – Estou familiarizada com as quatro. Mas quero eu ouvir o que sabes sobre elas, para depois contrariar-te. – Compartimentação é um termo de psicologia que tem que ver com isolamento; manter separadas partes da personalidade que deveriam conservar-se juntas; fragmentação psíquica. Separas os teus sentimentos humanistas quando te sentes tentada a usá-los. Complexo de Medeia. Tens desejos homicidas em relação à tua filha. No complexo de Média os desejos de morte contra os filhos são, na grande maioria dos casos, motivados inconscientemente pelo desejo de vingança contra o pai. É isso que acontece contigo. Complexo de Quasímodo: Conflito emocional, distúrbio de personalidade ou desajustamento social que se desenvolve em consequência da pessoa ser desfigurada ou disforme. Nem preciso comentar sobre isso. Conação: inclinação, tendência, intenção, esforço dirigido para realizar algo activa e deliberadamente. – Desisti de tentar contrariar-te. Sei que terás argumentos fortes e não nos entenderemos. Vamos agora falar do teu sentimento de comunidade. Acho que… – Desculpa-me – disse ao retirar um aparelho do bolso da bata branca que trazia vestida. – Oi, noivo? – cumprimentou ao atender a chamada. - Como estás? Porque não falaste comigo há dez horas? Um dos teus amigos usou o teu telefone… – Não ligues para aquilo. Agora estou aqui, bem perto de ti. – Como assim? Vieste para aqui?! – exclamou enquanto olhava para o televisor à frente de si. Incidentalmente a imagem passada naquela máquina mostrava o aeroporto nacional. – Cheguei agora. Desci há alguns segundos do avião. É incrível como há tanta gente aqui no aeroporto. Não entendo a razão das pessoas gostarem tanto de viajar. Basta me dizeres onde estás que vou… Houve interferência na linha e a seguir a chamada caiu. Fantasmagórico – o chão no aeroporto tremia. Tenebroso – as pessoas estavam alvoroçadas e tombavam a esmo. A imagem era totalmente angustiante. O coração de Braulia parou. A sua boca tremia em desalinho. Os seus olhos estavam marejados. Natércia Tchivela pegou em sua mão e disse: – Não chores, bebé. Estou aqui para proteger-te. Dar-te-ei tudo o que precisares. Porquê? «Ó mulher atribulada, sacudida pela tormenta, não consolada… Se é que alguém fizer um ataque, não será às minhas ordens. Quem fizer um ataque contra ti cairá.» Isaías 54:11, 15.
♣ – Ainda não se enjoou de ver tantas letras avó? – perguntou Sílvia. – Não fazes outra coisa senão ler desde que chegaste. Não achas melhor usares as tuas mãos para 112
lavares a louça ou varreres algum canto da casa? Daqui a pouco tenho de ir ver algumas coisas sobre o meu casamento. Não queres acompanhar-me? – Fazes muitas perguntas de uma vez só – respondeu folheando. – Se fossem retóricas teriam alguma inteligência. Já leste todos os livros do teu primo? – Já sim. Agora que já respondi, vais fazer alguma coisa útil? – O que é útil para ti tem o prefixo in para mim. Esse já é o terceiro que leio e vejo mencionado o Homem do Saco ou cenas míticas. Qual é o interesse dele em falar tanto dessas coisas? – Ele é a pessoa indicada para responder. Porque não lhe ligas? Ainda tens o telefone que te ofereci o mês passado, não? – Ele ligou para mim há doze horas. Contou-me que vai viajar. Não me disse para onde. Espero que não esteja a fugir do casamento – disse com graça. – Mas não é a resposta dele que quero. Talvez ele escreva coisas das quais não sabe a razão de fazê-lo. Na mente dele pode parecer apenas criatividade inusitada, mas a meu ver convergem todas para o mesmo ponto, como se saísse pensamento de uma só pessoa. – Vá lá, avó! – disse entre sorrisos. – Tens de reconhecer: Esta é a coisa mais tola que já disseste em toda a tua vida. Deus! Claro que têm de parecer (e o são!) que saem da cabeça de uma só pessoa. Um escritor tem a sua marca, a sua forma de pensar. Se tudo é escrito pelo teu neto, é óbvio que todas têm de convergir para um ponto comum. – Não entendes o que estou a dizer. Já pensaste se o teu primo é marioneta de alguém? – Como assim? – Alguém pode conduzir os pensamentos dele enquanto escreve. Ele pode assentar por escrito as ideias nas suas próprias palavras, contudo não foi ele quem as concebeu. – Como aconteceu com os homens que escreveram as Sagradas Escrituras? Ficar tanto tempo sem trabalhares na tua lavra está a entorpecer-te o raciocínio! Como é que és capaz de pensar numa coisa dessas? Já sei: o vizinho da casa ao lado voltou a piscar-te o olho? Tens de parar de ler os livros do teu neto. Vão levar-te mais cedo à senilidade. Com a idade que tens não acho que falte muito… – Estás irritada comigo? – Não! Irritada? Eu? Só chateada por andares a tratar mal o meu noivo. O que acaba sendo a mesma coisa… – Aquilo é só diversão inocente, Sílvia – disse com expressão infantil. – Ainda faltam seis dias para o vosso casamento. Depois disso prometo ser a melhor avó do mundo para ele… no pior sentido da palavra. – Agora já sei de onde vem o meu comportamento. Espera! Disseste que o Usuku viajou?! Naquele estado? Não levou roupas nem medicamentos? E se lhe acontece algo? – Continuas a fazer muitas perguntas de uma só vez, menina. Ele ligou para mim na hora que já não havia muito que fazer para demove-lo dessa ideia. Viajou, viajou! Esperemos apenas que ele não destrua o país onde aterrar. – Tens um neto realmente estranho. Nunca gostou de viajar e de uma hora para a outra o faz! Só pode ter que ver com a bendita surpresa para a Braulia. Vais mesmo continuar a ler ou vais ajudar-me agora? – Ajudar-te em quê? – A tentar descobrir onde ele foi e se está bem…
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– Insiste nisso. Tenha calma. Não tarda ele vai ligar para nós a contar que confirmou que viajar é entediante. – Que seja assim, avó. Que seja assim. Já me bastam as preocupações com as duas festas de casamento, a minha e a dele. Não posso agora ter uma terceira… – Concordo. Já falei demais contigo, não? Agora preciso ler. Fala um pouco aí com esses talheres que estás a lavar. Acho que se entenderão lindamente, já que não queres ponderar a ideia de que alguém controla o teu primo. – As histórias mitológicas da tua aldeia estão a baralhar-te a razão. Não é bom quando se confunde a realidade com a ficção, avozinha. – Acredita em mim, menina. Alguém controla o teu primo e quer algo impossível dele. Ainda não descobri o que é, mas está num desses livros. Muitas pessoas já me falaram do que ele escreve antes de eu começar a lê-los. Sempre achei estranho. Mas agora começo a ter certeza disso. – Então o que disseste sobre de lê-los para ajudar o teu neto a finalmente chegar ideia sobre a surpresa para o casamento é mentira? – Não totalmente. Não é normal o teu primo ter ficado sem ideias para o casamento. A mente dele é criativa demais para ter um momento de bloqueio. Se tal acontece, é porque alguém quer que aconteça. E este alguém só pode ser aquele que lhe controla a inspiração. Esse ser controlador quer algo relativo ao casamento dele. Só pode ser isso. Casamentos marcam uma mudança total de modo de vida. Este ser deve provavelmente estar com medo de perder o Usuku como escritor… e não quer que ele se case, ou quer algo que só o casamento do meu neto lhe pode dar. – O Usuku tinha de estar aqui para ouvir-te! Tenho certeza que ele escreveria um livro sobre isso. Como é que podes isso e dizê-lo com tanta certeza? Vê lá se passaste a bungular com aquelas tuas vizinhas, avó! Não vamos querer mais receber-te aqui… – Lave a tua loiça, indouta netinha. Surpreender-te-ás quando as coisas que falo acontecerem. Eu não porque antevejo sempre qualquer coisa. A idade e o conhecimento que tenho já não me permite ser surpreendida. E acho até que posso impedir que certas coisas aconteçam. Só tenho de ler mais um pouco…
♣ O íntimo de Braulia encontrava-se completamente agitado. O seu noivo estava soterrado. Como podia aquilo estar a acontecer? Como era possível um aeroporto desabar? As esquipas de busca e salvamento dirigiram-se rapidamente para o local do nefasto. Muitos são resgatados. A taxa de mortalidade tende a zero por enquanto. Os sete homens ainda não foram encontrados. Se Usuku estivesse fora de perigo, teria contado a um deles que seu plano era ser interditado pela polícia no aeroporto e ser detido por não ter o visto de passagem. Assim poderia manter contacto com as autoridades do país e dificultar os planos de Natércia Tchivela. Contudo, o local onde o escritor se encontrava no momento era escuro. Escombros apertavam-lhe o corpo. Sangue escorria sobre sua cabeça. Nenhum de seus sentidos operava. Estaria morto? Teria a morte finalmente decido mostrar-lhe que era apenas um humano insignificante e que não podia fazer-lhe frente? As respostas chegariam dentro de três dias.
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♣ – Já se passaram mais de duas horas desde que te pedi para ajudares-me alguma coisa aqui em casa, avó – lembrou Sílvia segurando a maçaneta da porta. – Vou sair agora para cuidar de algumas coisas do meu casamento. Não queres mesmo acompanharme? – Estou a cuidar de coisas mais importantes do que a domesticidade e a banalidade dos preparativos de uma festa de casamento. Estou a tomar conta de todos vocês. Se já não estiverem vivos, de que interesse será a limpeza de uma casa ou as compras que fizeste para a boda? – Começas a assustar-me com o dizes. Acho que me enganei sobre quem estava a endoidecer nessa família. – Falas dessa forma porque não acreditas no que te digo. Mas entendo-te. Ignorância é zombaria. – Pára de falar dessas coisas, avó! Anda. Levanta-te e acompanha-me. – Não posso, netinha. Estou à espera dos meus convidados? – Convidados? Vais bodar aqui e não me avisaste? – Estou a fazê-lo agora. E não será uma festa. Bem que podias participar. Mas estás ocupada demais. Vai. Quando estiveres mais livre receberás um convite meu. – Só espero que não me limpem tudo o que tenho na garrafeira – disse ao abrir a porta e preparar-se para sair. – Fica bem, avó. Vou ligar para umas amigas e ver se elas se tornam mais prestáveis que alguém. Alves? – inquiriu em vias de esbarrar-se com o outro. – O que fazes aqui? Sabes do Usuku? Tens notícias dele? Ele está bem. – Calma – aconselhou o outro entre sorrisos. – Qual das perguntas queres que eu responda primeiro? Não, não sei nada do teu primo. Vim a convite da tua avó. O Henriques, a tua irmã, a Jaciara e mais duas mulheres também estão a vir para aqui. Acho que pararam no caminho para comprar a chiquanga e macaiabo para a tua avó. Eu trouxe o cabrité e o franguité – disse levantando os sacos em suas mãos. – A tua avó disse que faria kizaca com bagre seco, fumbua, quissangua e mais outras coisas que, se eu mencionar, comerei a minha própria imaginação de tanta ansiedade. – O Usuku vai colocar a casa de quarentena por causa do cabrité e do franguité. Ainda bem que ele não está aqui, se não atiraria pedra em todos vocês e gritaria: «Impuros! Impuros!» – Ele não sabe o que perde. Mas tu sabes, não? Vais sair? – Yá, vou. Mas a minha avó está aí dentro. Podes entrar à vontade. Porque não me disseram antes que dariam a boda mais fixe de todas épocas? Vou perder isso?! Não quero, yá? Mas tenho mesmo de ir. Se não for, ainda corro o risco de no meu casamento ter apenas água para lavar as mãos e copos descartáveis para o pudim que nem será peito. Mas guarda umas boas metades para mim, hein? Não me mayes no mambo! – Combinado – disse enquanto a outra se retirava. – Mas vou deixar com a tua avó. Não sei se ela vai devorar depois. – Vou fazer de tudo para chegar cedo! Tchauzinho, Alves. Beijo, beijo. – Tchau, Sílvia. Com licença, avó… – Podes entrar, Alves. E os outros? – Vêm a caminho. Está a ler O Sonho dos Meus Homens? 115
– Estou, sim. E quase no fim até. Estou a lê-lo mais rapidamente que os outros. Não dá para parar nem por um segundo! – É viciante, não? Já descobriste de quem a Ivone Tchivela é filha? – Há muito! E já desconfiava disso. Para o Kalu gostar tanto dela e apoiá-la apesar das acções estranhas e imaturas dela, tinha de haver um forte motivo. E, já que ele dizia também que as mulheres são apenas irmãs como os seus quatro irmãos, o motivo disso tinha de ser basicamente fraternal. É triste que ela tenha de ter um pai tão devasso. Aquele Constantino Canzar não tem qualquer sentido de pudor! – Concordo – assentiu após ter colocado os sacos sobre a mesa e se sentado. – A Ivone é muito diferente da meia-irmã dela, a Natércia Tchivela, embora tenham sido criadas pelas mesmas pessoas e no mesmo meio. – Isso não quer dizer nada. E a Ivone não passou pelo trama de quase morrer queimada. Para tornar-se tão vingativa ao ponto de querer a morte própria filha, ela deve ter perdido muita coisa. Acho que as duas tinham uma forte ligação com a mãe delas, mas o Usuku não menciona muito isso no livro. Pelo menos até onde li… – É interessante o que a avó disse. Não tinha pensado nisso. É realmente muito estranho, e acho até exagerado o comportamento da Natércia Tchivela. O Usuku devia ter dado mais detalhes sobre ela no livro. Mas como ele vai escrever a segunda parte do mesmo em breve… – Vai?! Estarei ansiosa para lê-lo! Mas deixa-me acabar de ler este ainda, netinho. Liga o televisor ou o rádio, queima a casa ou atira-te ao chão para te distraíres, mas não fales mais com a avó, sim? Tenho de acabar isso e entender o que fazer. – Acho que avó quis dizer: «Tenho de acabar isso e desvendar o segredo». – Não. Expressei-me correctamente. Vais entender melhor quando os outros chegarem e eu vos contar o motivo de vos ter convidado. Agora… chiu! Procura por formigas na casa e deixa-me acabar de ler isso.
♣ Braulia encontrava-se com os olhos fechados. Havia marcas de lágrimas secando em sua face. Dormia entre soluços. As linhas de comunicação com o exterior haviam sido cortadas. Não podia avisar a ninguém sobre o nefando acontecimento. Devia apenas esperar que a mídia reportasse o caso numa altura em que alguém da família de seu noivo pudesse ver. Contudo, não tinha a certeza se eles sabiam da viagem dele e se seria para aquele país. Encontrava-se totalmente abatida, desolada. Estava impedida de fazer qualquer coisa. Nem se lhe permitiu ficar muito tempo no local onde abarrotado de escombros. No momento em se aproximara dos destroços, as suas mãos se tornaram debulhadoras – retirara avidamente as pedras na esperança de encontrar o escritor. A única coisa que obteve foram alguns arranhões em sua pele morena. Alguns homens e Natércia Tchivela retiraram-na do local e a levaram para seu apartamento. O pesar era tanto que adormecera ao som de seus próprios gemidos de lamento. Natércia Tchivela ficou a observá-la por alguns momentos. Depois pegou em uma enorme faca e aproximou-se de seu corpo. Tocou tepidamente os seus cabelos com a ponta da lâmina. A oportunidade para causar sofrimento indescritível a Usuku estava à frente de si. Com um 116
simples golpe poderia acabar com a vida daquela mulher. Todavia, sentiu que seria fácil demais e desprovido de emoção. Assassinos. inveterados não atacam pelas costas. Dão sempre uma oportunidade às vítimas de defenderem-se para que saibam quem os matou e feneçam de olhos abertos. O que faria? Acordá-la-ia e depois penetraria o reluzente metal sobre uma parte crítica de seu corpo? Parecia pouco clássica aquela acção. A Tchivela achou por bem protelar. Abriu a porta e saiu. O quarto estava escuro. Não se registavam movimentos nem sons. Apenas o respirar soluçado de Braulia se tornava a excepção. Contudo, passados alguns minutos, a porta voltou a abrir-se. Um homem fez-se presente. Todo o seu corpo estava molhado. A cabeça e o queixo respigavam água. Tinha um olhar inocente. Poucas peças de roupa cobriam sua pele. Andou até a mulher deitada sobre a cama e acordou-a. – Usuku? – perguntou ela ao despertar. – Sim. Não me perguntes porque ou como cheguei aqui. Vim apenas para dizer que te amo. – Não precisas de dizer-mo – disse ao abraçá-lo fortemente. A humanidade da pele dele passou as roupas dela e fez com que se arrepiasse. – Sei disso, moço. Pensei que te havia perdido. – A morte não precisa de mim agora – revelou sentindo as lágrimas tépidas dela sobre seu ombro. – Preciso que digas que não há nada parecido a nós os dois. Que teu coração sofre como o meu sofre. Assim poderei sair daqui e esquecer todo esse pesar. Apaixonei-me por ti e quero que essa paixão aumente a cada segundo ao teu lado. – Oiço e obedeço, Miúda. Senta-te aqui sobre o chão comigo – pediu transportando-a no colo. – Deixa-me primeiro acender uma vela para poder te ver melhor, moço. O escritor fê-la descer. Ela deu alguns passos e alcançou um saco do que procurava. Com lentidão romântica, acendeu seis velas e dispô-las de modo a formar um círculo. – Espero que o dono do hotel não me processe – gracejou ao sentar-se no centro do anel afogueado criado pelas velas. O seu olhar continuava marejado, mas agora chorava porque não conseguia distinguir medo de perder aquele homem da felicidade de tê-lo para sempre. A sua face direita e a sua mão esquerda tocaram o tórax dele. Conseguia sentir e ouvir os seus batimentos cardíacos. Ele passava lentamente o polegar da mão direita sobre a sobrancelha dela enquanto a outra mão deslizava sobre os seus cabelos. – trouxeste um presente para mim? – Tudo o que tinha de material para ti ficou soterrado no aeroporto. Agora posso apenas te dar o meu amor, que na verdade sempre foi teu e… se colocares a mão no bolso desta metade de calça que trago terás também toda a minha alma. Braulia fê-lo com sofreguidão. Ao retirar a mão, os seus olhos brilharam com paixão incandescida. Os seus lábios tocaram o ombro dele em agradecimento. – Casas comigo aqui e agora? – perguntou ele. – Com estas roupas e sem convidados? Antes que o escritor pudesse dizer algo sedutoramente discordante – trágica e repetida desgraça! – o hotel foi abalado de forma sísmica. As paredes tremiam assim como as chamas do círculo ígneo formado pelas velas. O escritor intentou levantar-se rapidamente e descer com ela, mas Braulia apertou-o fortemente contra seu corpo. Ele
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suspirou. Não aceitou a razão de ela fazer aquilo, mas percebeu-a. Abraço-a também. O edifício tremeu com maior frenesi. A Natureza mostrava que condenava à inexistência o amor de ambos. As placas da terra pareciam não concordar com sua felicidade. A gravidade era a maior inimiga – se não tivesse de cair todo o corpo a qualquer distância da superfície nenhum mal poderia ocorrer-lhes. Mal – o mal aconteceu-lhes. O edifício começou a desabar. Dramático – as paredes ruíam e penetravam no solo. Catastrófico – os corpos de Usuku e Braulia caíam com os escombros. Uma densa nuvem de poeira tomou conta do local. A escuridão impenetrável fazia-lhe companhia. – Usuku! – chamou Braulia após alguns minutos. A sua voz era abafada e entrecortada por tosse. – Onde estás? – Atrás de ti – respondeu ele em tom sofrido. – Consegues aproximar-te mais? – Sim – respondeu rastejando. A dor em seu corpo foi aumentada ao reparar que apenas a cabeça dele e uma de suas mãos não estava sobre os escombros. Tentou retirar algumas das pedras, mas foi inútil. Eram gigantescas. – Alguém nos ajude! – pediu em agonia por dezenas de vezes. Não houve resposta. – Não te preocupes com isso, Miúda. Poupe as forças. Ajuda chegará em breve. – Como podes pedir-me isso agora? – inquiriu ao tocar-lhe a mão. – Não vês que é impossível? – O que queres que te diga – comentou paternalmente. – Que deves chorar? Que deves ficar triste se algo pior acontecer comigo? Não estaria a ajudar nenhum de nós desta forma. – Não! Não quero que me digas isso – negou depois de algum tempo. – Ficarás bem, Miúda. A felicidade ainda poderá encontrar-te. – Falas como se estivesses a pensar em morrer… como se dissesses que depois disso tenho de me apaixonar outra vez. – É o que tem de acontecer. A vida é assim… – Não! Não! Sem ti não serei a mesma Braulia! Prefiro morrer aqui agora contigo a substituir-te! – Não será uma substituição. Será apenas a vida a acontecer… – Não! Pega o anel que me deste antes dessa desgraça acontecer – disse ao colocar a pequena jóia sobre a mão dele. – Lembras-te? Estávamos sentados sobre o tapete do meu apartamento, no meio daquelas velas… Estavas a pedir-me em casamento… E não tive a oportunidade de responder. – Porque te casarias com alguém tão perto da morte? Não faria sentido nenhum… e terias uma lua de fel. – Quero apenas casar-me – disse sorrindo desconcertada. – Mesmo nesta situação ainda fazes piadas. Quero casar-me contigo. Quero morrer contigo… casada contigo. – Até que a morte nos separe? – Não. Até que a vida nos junte novamente. Ele levantou a mão. Estava tremulo. Com os olhos fechados, ela encostou o dedo e a pequena jóia o atravessou. Braulia abaixou-se e aproximou o seu nariz do dele. Ambos sentiram fragrância de suas respirações. Os seus olhos estavam embebidos de lágrimas. Ele respirou uma última vez. Ela inalou a sua expiração e tremeu.
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Antes que pudesse gritar de forma estridente e gélida, abriu os olhos e reparou que estava em seu quarto. O local estava escuro, mas podia reconhecer as paredes a afabilidade da cama onde estava deitada, e a mulher encapuçada à frente de si. Não passara tudo de um desalmado pesadelo. Contudo, o mundo onírico não se diferenciava muito do real. O seu noivo continuava desaparecido e, às vezes, desaparecimento corresponde à morte. Em busca de algum consolo, levantou-se e abraçou a mulher. Não viu a faca que esta trazia empunhada. A lâmina entrou em contacto com sua pele. Natércia Tchivela sentiu que a havia lacerado no estômago – pressentiu que dentro em breve Braulia se esvairia em sangue e pereceria. Articulando palavras com sua voz cortante, o flagelo desumano disse sussurrando na orelha dela: – Numa situação como essas vocês pediriam perdão, não? Mas não tenho culpa nenhuma por isso ter acontecido. Sou apenas capaz de te dizer que o culpado disso é o Deus do qual dizes ter recebido um dom para ajudar aqueles em maior necessidade. Porquê? «Porque é que ele não me entregou definitivamente à morte, desde a madre, para que a minha mãe se tornasse para mim a minha sepultura…? Porque é que saí da própria madre, a fim de ver trabalho árduo e pesar, e que meus dias devam chegar ao fim em mera vergonha?» – Jeremias 20:17,18.
♣ – Claro que não – retrucou com graça a mulher de sobrenome Costa após terem acabado de degustar uma refeição. – As pessoas com mais idades têm sempre razão. Mesmo quando estão erradas, acertam… Bem, agora chega de conversa sem sentido. Vamos a razão de eu vos ter convidado. Podes pegar-me aquela pasta de plástico aí, Henriques? – Sim – respondeu ao realizar o pedido. – Já estava a achar estranho a senhora convidar-nos aqui apenas para comermos e jogar conversa fora… – Está mais do que explícito que tem algo que ver com o Usuku, não é avó? – questionou a mulher de sobrenome Pereira. – Deixa-me concertar as palavras dela – disse Jaciara em tom gozoso. – Tem que ver com a surpresa para o casamento que ele está a preparar. Ele designou a senhora para cuidar de tudo… não! Quase tudo. – Já vamos chegar aí – disse a idosa ao entregar a cada um uma folha e um lápis. – Esqueçam-se que a situação vos parece estranha. Leiam o que está aí e não me façam perguntas. Respondam apenas. – Mas isso aqui é… – Chiu! – silenciou a idosa. – Eu disse para não comentar Érica. Leia e responda apenas. Vais entender depois disso. A quietação tomou conta do local em seguida. Apenas o som da grafite marcando as folhas era ouvido. O livro folheado pela mulher de sobrenome Costa também interferia no mutismo. O tempo passou. As sete pessoas terminaram o que lhes havia sido pedido.
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– Muito bem – disse a idosa enquanto recebia as folhas. – Como eu pensava. As perguntas sobre o que vocês viram seis dias antes de ontem e hoje foram respondidas sem qualquer anomalia. O Henriques trabalhou, a Pereira foi à escola, o Alves foi a um curso e assim por diante. Agora aproximem-se e leiam o que os três fizeram ontem a noite. – Dormiram muito – respondeu Jaciara por estar mais próximo. – O mesmo aconteceu contigo, a Érica e a doutora Ipanga aqui. Nos outros dias, não há nenhuma coincidência nas vossas acções. Mas olhem para o que fizeram hoje muito perto da tarde. – Dormimos muito – voltou a responder Jaciara. – Estranho, não? A amizade é tão verdadeira que o vício de dormir sem razão nenhuma é comum… – Não é para fazer piada, menina – embargou a idosa. – É estranho com certeza. Vocês nunca dormem a essa hora. Em que local vocês se entregaram ao sono? – Em casa – responderam os seis. Alguém no meio deles estava calado. O alguém era uma mulher de olhos gaiatos, pele morena e silhueta estonteante. Bartolomeu era o seu sobrenome. – Preciso apenas de dois voluntários. Henriques e Jaciara, liguem para alguém da vossa casa que podia estar lá no horário em que dormiam e perguntem-lhe se vos viu. – Já não tenho saldo – disse Jaciara. – 125 UTT’s não são suficientes para durar cento e vinte e cinco minutos no meu telefone… – Deves a andar a enriquecer a operadora telefónica – gracejou o homem de sobrenome Alves. – Deixa que eu ligo minha senhora. – Esperemos que o teu telefone não se desligue enquanto ligas – retorquiu Jaciara. – A vitalidade da bateria do teu aparelho é de sete segundos quando se faz uma ligação. Não sei porque não compras outro… – Não ligo para comentários invejosos – disse ao efectuar a chamada. Após a pessoa do outro lado da linha ter atendido e respondido a sua pergunta, o seu semblante ganhou uma expressão de incredulidade. – A minha irmã também respondeu o mesmo – disse o homem de sobrenome Henriques com a mesma expressão delineada em seu rosto. – Mas ela é muito distraída. O comentário dela de não me ter visto no quarto não conta… – E o da mãe do Alves? – pós em cheque a idosa. – Será coincidência. – Liguei para a minha sobrinha e ela respondeu o mesmo – disse a mulher de sobrenome Ipalanga. – O meu pai também – acrescentou Érica. – O meu irmão também – concluiu a mulher de sobrenome Pereira. – Deixou de ser coincidência assim? Não me parece… – E porque a senhora não fala do que a Bartolomeu escreveu? – Porque ela não estava aqui. Ela chegou do exterior na manha de hoje, lembramse? Se ela dormiu durante a viagem não é assim tão importante. Os aviões são aborrecidos, é normal que as pessoas cochilem durante longos voos. – Ainda não entendi nada dessa conversa – revelou a mulher de sobrenome Ipanga. – Onde a senhora quer chegar com essa conversa? – O que há de comum entre vocês todos? – Somos amigos e chatos – respondeu o homem de sobrenome Alves. – Além disso – continuou a idosa sorrindo. – Pertencemos a mesma geração e a mesma religião – respingou Érica.
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– Gostamos muito de ler e ouvir música – acrescentou o homem de sobrenome Henriques. – Ainda não nos casamos – incrementou Jaciara. – Todos participamos na escrita dos livros do Usuku – disse calmamente a mulher se sobrenome Bartolomeu. O seu sotaque era diferente, mas agradável. – Certo! – elogiou a idosa. – Parece que não deixaste de comer mandioca esses quatro anos que estiveste fora, menina. Sim, todos vocês participam na escrita dos livros do meu neto. – E o que isso tem de extraordinário? – inquiriu o homem de sobrenome Alves. – Vamos com calma. Mais algumas divagações e chegaremos ao ponto. Lembram-se do poema que o Márcio Nassembe escreve para a Sara Bernardo no Paixão Literária? – Qual deles? – inquiriu o homem de sobrenome Henriques. – Nosso encontro? Obstáculos? E se eu me perder…? – Não me transforme em… É este o poema. O último que aparece no livro. – É o meu preferido – disse Érica. – Posso lê-los para vocês? Sei que todos vocês já o conhecem, mas aquilo é uma obra de arte! Se desse para ter lentes de contacto com esse poema gravado neles, o meu mundo ficaria completo. – Exagerada – adjectivou Jaciara ao enroscar-lhe engraçadamente o dedo sobre a testa. – Não admira que ele goste tanto de falar contigo. Aumentam a realidade do mesmo jeito! – Pois, pois – disse Érica sorrindo. – Pode passar-me o livro, avó do Usuku? Vou recitar paixão. – Bem, esse privilégio é para a Bartolomeu. Ela vai recitar em italiano, a língua da paixão. Depois vocês entenderão tudo o que vos quero dizer. – Não era melhor eu recitar em português primeiro e depois ela em italiano – insistiu Erica com olhar ameninado. – Assim todos entenderíamos… – Vai ser chato ouvir duas vezes o mesmo poema – embargou o homem de sobrenome Alves. – Falou o homem que acha que tudo que é romântico é lamecha – disse Jaciara. – A opinião dele não conta, Érica. Recita em português e depois a Bartolomeu te rompe em italiano. – Vocês vão roubar o meu tempo – disse a idosa, retirando os óculos. – Mas façam como querem. Talvez até seja melhor assim. Podes começar Érica, a chorona. Não me transforme em… Não me transforme em Um anjo descartável Não faça de mim uma Paixão que com o tempo perde o valor Não me transforme em Um desejo perdível Não faça de mim um Amor que serve de esconderijo para a tua dor Não pense em 121
Transformar-me num depósito de lágrimas Sara, não te escondas atrás de mim Não pense em Fugir deste sentimento usando os meus pés (me amas?) Chéldia, não te ponhas a pensar que para isso sou a solução, o fim Não me use Como teu protector contra os que te perseguem Tu és forte, consegues te defender Não tente criar Um Márcio que te salve de todos os que ficar contigo querem Tu és perfeita, não podes perder Me transforme em Teu amigo inseparável Faça de mim uma Pessoa importantíssima para ti, por favor Me transforme em Teu namorado insubstituível Moça, faça de mim um Homem perfeito, teu único amor – Vêem como esse poema é sem adjectivo? – indagou Érica após ter terminado de recitar. – Existe vida nessas palavras. A alma do escritor está exposta nelas, nua e indefesa. – Cansamos de ouvir português! – embargou o homem de sobrenome Alves. –A Bartolomeu pode ler agora? – Grave bem as suas palavras, Erica – disse a idosa. – A alma do escritor deste poema está exposta nele, nua e indefesa. Não vejo agora razão para a Bartolomeu ler, mas seja feita a vossa vontade. Lê, menina. Non mi trasformi in… Non mi trasformi in Un angelo di carta Non faccia di me Una passione che con il tempo perde valore Non mi trasformi in Un desiderio abbandonato Non faccia di me Un’ amore che serve di rifugio per il tuo dolore Non pensi in Trasformarmi in un deposito di lacrime
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Sara non nasconderti dietro di me Non pensi in Scappare di questo sentimento usando i miei piedi Chéldia non stare a pensare che per questo sono la soluzione, il fine Non usarmi Come tuo protettore contra quelli che t’inseguono Sei forte e riesce a difenderti Non ti creare Un Márcio che ti salve di tutti quelli che vogliono stare con te Te sei perfetta, non poi perdere Trasformami in Tuo amico inseparabile Faccia di me una Persona importantissima per te, per favore Trasformami in Tuo ragazzo insostituibile Ragazza faccia di me un Uomo perfetto, tuo unico amore – Agora a avó do Usuku pode recitar em kimbundu, não acham? – gracejou o homem de sobrenome Alves. – A ideia é até louvável – anuiu a idosa – visto que a pessoa sobre a qual falaremos está mais familiarizada com essa língua. Esqueçam que foi o Usuku que escreveu este poema. Pensem, hipoteticamente, que foi outra pessoa a fazê-lo. Alguém como… o Homem do Saco. Que sentimentos acham que ele quereria transmitir nesses versos. – O Homem do Saco é poderoso e ocupado demais para fazer uma coisa dessas – arguiu o Homem de sobrenome Alves. – não acho que ele poderia apaixonar-se ao ponto de declara-se desta forma a uma humana normal. – Mas ele podia ter uma mulher fictícia em mente – contra-argumentou o homem de sobrenome Henriques. – Uma mulher criada por ele mesmo. Uma mulher difícil de agradar. Uma mulher insegura por gostar de outro homem. Ele podia fazer isso apenas para passar o tempo, uma vez que ele tão solitário. – Se fosse o Homem do Saco a escrever, acho que seria mais profundo que isso – acrescentou a mulher de sobrenome Pereira. – Ele estaria a referir-se ao antigo Homem do Saco que o capturou e transformou-lhe no novo raptor de olhos vermelhos. Ambos estão destinados a casar depois de ele perder os poderes e voltar a ter uma vida normal, esquecendo-se completamente da cansativa vida de controlar todo um país. Ele pode estar 123
a pensar que ela o rejeitará, visto terão a diferença de dez anos… ou pode ser, como disseste, que ela começou a apaixonar-se por outro. – Não há dúvidas que és prima do Usuku e minha neta, Pereira – elogiou a idosa. – Chegaste exactamente ao ponto que desejava. Imaginemos que a Braulia é o anterior Homem do Saco e, portanto, está noiva do Usuku. O que acham que faria o Kaculu? No mesmo instante que a idosa parou de falar, um enorme trovão rebentou no céu. A casa ficou abismalmente escura e um raio pareceu estilhaçar uma das janelas. – O que está acontecer? – perguntou assustada uma das jovens mulher. Com expressão séria, a mulher de sobrenome Costa acendeu um isqueiro e disse em tom triunfante: – Simples de responder, menina: falámos a verdade, somente a verdade.
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– CAPÍTULO IX – ●
Avó
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– Porque pedes desculpas? – perguntou melancolicamente Braulia ainda abraçada à Natércia Tchivela, o flagelo desumano. – Não sentes dor neste momento? – Muita… sinto muita dor. O Usuku está desaparecido. Não sei o que aconteceu com as minhas amigas e os cônjuges delas. Não consigo entrar em contacto com ninguém. Não há linha telefónica. Não há internet. As estações televisivas estão inactivas. Não há como eu avisar a família de qualquer um deles… É triste. O que sinto nesse momento é pior que dor… é tão forte que… – Tão forte que pareces não sentir nada – disse afastando-a calmamente e acendendo uma lâmpada. Braulia olhou para a mão dela e ficou assustada. A mulher encapuçada empunhava uma faca estava manchada de sangue. Sentou-se desconcertada sobre a cama. – O que fazes com essa faca? – Acabei de ferir alguém com ela. – Quem? A pessoa está bem? Onde? Diz-me para que eu possa ajudá-la. Tenho tudo aqui para estancar uma hemorragia… – Tu que falas comigo és ela. Olhe para o teu abdómen. – Estou a sangrar…? – inquiriu soturnamente retirando a roupa que cobria a laceração. – Mas não sinto nada… – O teu sistema nervoso deve estar a produzir enormes quantidades de betaendorfina, a substância que inibe as vias da dor. É como um analgésico natural. Mas não sentir dor não significa que não morrerás se continuares a sangrar desta forma… – Podes… podes trazer-me álcool, gazes agulha e linha? Está tudo no armário da cozinha. – Não estás a sentir dor – respondeu dando às costas à outra. – A ferida é no abdómen, não nas pernas. Tu podes ir buscar… – E tu podes ajudar-me a ir buscar – disse após ter-se aproximado dela e segurado em seu braço. – Tu não entendes – disse entre dentes virando-a. Torceu um dos braços de Braulia e pousou a lâmina sobre o seu pescoço. – Vais morrer hoje. – Já estou morta… Se o meu Usuku não aparecer, já estou morta. Não me interessa o queres fazer agora. Peço-te apenas que me ajudes a estancar o sangramento. – Se já te julgas morta, porque queres parar a hemorragia? – Se eu não o fizer, será suicídio. E o Deus que adoro condena veementemente tal prática cobarde. – Então não te importas que te mate? – disse em tom dramaticamente homicida ao aproximar mais a lâmina do pescoço da outra. – Não tens medo que degole agora? Não darás luta? É o mesmo que te suicidares se não o fizeres.
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– Estou sem forças para fazer o quer que seja – respondeu com dificuldades em respirar. Algumas gotas de seu sangue haviam atingido o chão. – Pára com isso, mulher. Não queres realmente matar-me. Se fosse verdade, tê-lo-ias feito enquanto eu dormia ou há três segundos. Estás a falar demais para quem quer desferir um golpe mortal. Como médica uso coisas cortantes há muito tempo. Sei sentir a firmeza de uma mão que vai lacerar. A tua treme. E não foste tu que me feriste com esta faca. Fui eu quem te abraçou sem saber que a trazias na mão. – Não me conheces realmente. Não sabes o que sou capaz de fazer – disse soltando-a. – O teu cérebro deve realmente estar com alguns problemas por causa do choque. Vem! – ordenou ao retirá-la do quarto com violência. Contudo, o destino não era a cozinha. – Acho que isso te fará ver como real a situação em que te encontras – prognosticou colocando-a para dentro do banheiro e a abrir o chuveiro. A água estava terrivelmente fria. Braulia tremeu dos pés a cabeça. O líquido incolor e inodoro precipitando dos orifícios do metal acima de si juntaram-se ao líquido encarnado expelido pela laceração sem seu ventre e irrigaram o banheiro. Não havia espuma nem o aromatizado perfume dos champôs. Apenas o branco do banheiro confabulava com o vermelho aquoso que o embebia a cada segundo. Olhou para o seu rosto no rubro espelho de água que se formara. A imagem era oscilante por causa do líquido que caía incessantemente. Os seus cabelos molhados cobriam quase todo seu semblante. Não conseguia decifrar se sua expressão era pesarosa ou nostálgica. – A água faz com que o sangue flua mais rapidamente – disse enquanto Natércia Tchivela a fazia sentar-se no banheiro. – E isso, às vezes, estanca a hemorragia. Estás apenas a ajudar-me desse jeito. E a laceração não é suficientemente profunda para que eu morra daqui a algumas horas. Esta água caindo sobre mim me causa inveja. Se pudesse chorar como esse chuveiro faz agora, talvez o meu sofrimento fosse embora com maior rapidez. Já choraste alguma vez, para além daquela em que te deram à luz e tiveram de dar uma palmada nos glúteos? – Não estás a fazer qualquer sentido… – Deves ter chorado muito quando te olhaste pela primeira vez ao espelho e viste o teu corpo queimado. Se alguém te ameaçasse de morte naquele momento, terias coragem de reagir? – Esta pergunta não é relevante, e nem justifica o teu comportamento conativo. – A razão de me quereres matar também não está ainda justificada. O que te fiz eu? Será por prazer que o farás? Se é que o farás… – Não te importas mesmo se morres ou não agora, pois não? Dizes que o teu sofrimento te torna insensível… Então vamos fazer outra pessoa sofrer. Talvez assim entres em pânico. E vou matar-te neste exacto momento. Vem! – imperou ao retirá-la do banheiro e dirigi-la para a cozinha. – Trouxe-te um presente. Abra a porta da despensa. Braulia fê-lo com excitação. O sangue na laceração em seu abdómen começava agora a coagular. A porta abriu-se. Havia parcial escuridão no local, mas podia-se reconhecer rapidamente a silhueta de um ente amarrado. Desestabilizador – o ente era uma rapariga de nove anos. Chocante – a rapariga estava adoentada e fora raptada apenas para perturbar Braulia. – Não tens coração?! – exclamou enquanto retirava sofregamente a rapariga e lhe livrava das cordas em seu corpo e da mordaça em sua boca. – O que estás a fazer? Essa
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menina não pode deixar hospital antes de lhe ser administrado o suficiente para a doença em seu corpo entre em remissão! Imbecil! Não sabes que assim a matas?! – Não – respondeu a Tchivela. – Sei que assim poderei matar as duas. Agora que perdeste a pose de quem não se importa com a morte, posso ver medo na tua face e estripar-te ao som dos teus gritos. – Podes matar-me quando quiseres, mas deixa essa menina em paz! – disse cobrindo a rapariga com o seu próprio corpo. – Só para que fique registado: imbecil és tu. Queres que te mate para protegeres essa menina? Posso fazê-lo agora. Mas depois de morta, quem a protegerá de mim? Morrerá na mesma. Não faz sentido o que queres fazer. – Imploro-te que não o faças. Posso fazer o que quiseres. Posso cura-te… posso… dar-te uma pele renovada, macia e atraente. – Não és cirurgiã plástica. Não me podes tentar com o que não me podes dar. – Não sou. Tens razão. Mas conheço pessoas que o são. E são minhas amigas. O que eu lhes pedir é como se fosse o pagamento de mil e um favores que ainda me devem. Posso voltar a dar-te a imagem que tinhas antes. Voltarás a ser bela, reluzente… – Porque te importas tanto com a vida dessa menina. É uma estranha para ti. Ainda que eu não a mate, um dia morrerá. E talvez de forma mais agonizante. Não seria mais fácil antecipar-lhe o sofrimento. – Pensa bem, mulher. Vais voltar a ser linda, andando de qualquer forma pela rua. Podendo ir à praia, festas em qualquer lugar que quiseres. Vais poder fazer o que quiseres. Natércia Tchivela sorriu. Levantou a faca e apontou-a para a menina como se a fosse arremessar. Contudo, não o fez. Abaixou-a e limpou o sangue em seu braço. Aproximando-se das duas calmamente olhou com alegria de assissino para o rosto da rapariga e disse: – Sou compreensiva. A minha hora de acabar com a tua vida não é esta. Agora é hora de um assunto mais calmo. Porquê? «Para tudo há um tempo determinado: tempo para matar… e tempo para paz.» – Eclesiastes 3:1,8.
♣ A mulher de sobrenome Costa sempre teve um comportamento abarrotado de austeridade. Nasceu e cresceu no município da Quiçama, na província do Bengo. Mas estava inteirada sobre tudo o que acontecia em Ambriz, Dande, Icolo e Bengo, Nambuangongo, Dembos, Pango Aluquém e Bula Atumba, principalmente no que tangia aos rituais e aos contos. O velho ditado que expressa a ideia de que quem beber da água do rio Bengo ficará ligado para sempre a África sempre lhe trouxera uma aura de mistério insondável. Com certo interesse anímico observou a desagregação de sua província da província de Luanda em 26 de Abril de 1980. Observou todos ao seu redor e descobriu que vivia em um lugar onde a miséria se confundia com o sorriso das multidões 127
divertidas e folgadas. Estudou afincadamente a vida de Hoji-Ya-Henda, Deolinda Rodrigues, Agostinho Neto, Paiva Domingos da Silva, Neves Bendinha, e outros que tudo fizeram para dar continuidade ao propósito máximo almejado pelo seu povo durante muito tempo. Tornou-se esposa duas vezes em sua vida. O seu actual estado era o de solteira porque tanto o primeiro como o segundo foram abraçados pela morte. Ambos morreram misteriosamente. Eram excelentes contadores de histórias. Tinham as pupilas ao rubro sempre que começavam a falar sobre fábulas, contos e lendas. A sua mente era extraordinariamente criativa. Sempre que fossem ladeados por um grupo de crianças, a sua língua soltava-se ininterruptamente com histórias criadas no momento. Espalhavamse rumores que a sua habilidade de atrair as massas com os seus narrativas eram uma maldição por se terem casado com ela. Quando tinha a idade de dez anos, desaparecera misteriosamente. Acontecera o mesmo com um de seus primos da mesma idade. Tudo ocorreu na mesma época. Entre o diz-que-diz-que de uma aldeia e o diz-que-diz-que de outra, difundiu-se a informação de que ambos foram raptados e devorados pelo Homem do Saco. Procurou-se por eles durante dias, semanas e meses, mas nada foi coroado com êxito. Surpreendentemente, após muito tempo se ter passado, reapareceram com a idade de dezassete anos. Nada sabiam sobre onde e com quem estiveram todo aquele período, mas haviam voltado com uma sabedoria fora do comum. Haviam aprendido a ler e a escrever, coisa que era praticamente impossível no tempo em que as crianças eram apenas preparadas para combater os colonizadores e fugir as armas destes. O tempo voltou a passar. A história foi esquecida por alguns. Todavia, outros arguiam que ambos tinham sido amaldiçoados de alguma forma e que ninguém podia casar com eles. Ao ouvir o que se falava sobre as histórias escritas sobre o seu neto, lembrou-se das que seus falecidos cônjuges contavam. Havia sempre uma referência ao Homem do Saco. Lembrou-se que com eles as coisas eram assim: conhecia-os, namoravam, eles começavam a contar histórias extraordinárias, casavam, deixavam descendente e depois morriam. Tremeu ao tirar como ilação a ideia de que o mesmo poderia acontecer com Usuku. A princípio não havia encarado como suposições inteligentes as histórias sobre ter sido raptada por uma figura mítica. Contudo, desaparecer por sete anos e não ter nenhuma recordação a respeito causava-lhe dúvidas imarcescíveis. Nunca antes havia encontrado uma explicação plausível. Ao ouvir falar das histórias que o seu neto escrevia, interessou-se tenazmente. Há muito que procurava uma explicação para a morte de seus anteriores cônjuges e aquelas histórias pareciam contê-la. As pessoas que sabiam do que lhe havia acontecido quando criança já não estavam vivas. As que ainda possuíam o fôlego de vida em si haviam esquecido o ocorrido ou o recordavam mui distorcidamente. Tal informação nunca chegara aos ouvidos de Usuku. O escritor conhecia-a apenas como uma camponesa inteligente que conduzia um carro deslumbrante. Não lhe ocorria a ideia que ela esperava por tal assunto por anos e que procurara respostas por toda a sua vida. Três dias antes de tomar a decisão de visitá-lo e começar a ler os seus livros, uma criança parou-a na rua e disse seriamente: – Tem de ajudar o seu neto no casamento, avó, ou o Homem do Saco vai reclamar a mulher dele para si. A criança correu e desapareceu entre a multidão presente no grande mercado em que se encontravam. Foi então que lhe vieram à mente deduções alucinantes. Mas para
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que estas se mostrassem factos, teria de deixar os pensamentos passivos e agir. Sabia que em pouco tempo, por causa de sua sabedoria incomum, poderia rapidamente descobrir o que se passava. Entendia também que teria de fazer tudo sozinha, pois ninguém acreditaria nas palavras delirantes de uma idosa. O único a quem poderia esperar alguma ajuda era seu neto. No entanto, sabia que nele também poderia confiar, pois, para ele, o que escrevia eram apenas histórias fictícias, nada mais do que isso. O facto de viver em uma zona em que feitiçaria e espiritismo são grandemente divulgados tirava-lhe também o mínimo de crédito que poderia ter fruído. Corria apenas o risco de ser assassinada ou internada num hospício ou num lar para idosos. Feitiçaria? Que tinha aquilo que ver com o que se passava aí? Tudo o que a sociedade encara como sobrenatural é atribuído a Deus a espíritos maus. Todavia, essa também seria a ideia de alguém da idade Média que visse um avião a voar ou assistisse à televisão. O impossível para os humanos é apenas impossível para os humanos de uma determinada época. O facto de não entendermos algo não nos dá o direito de atribuirmos ruindade a tal coisa. A humanidade é iletrada – só entende o que lhe pode ser explicado e comprovado. Banais – não percebem o seu próprio cérebro e ainda assim acreditam nele. Não sabem porque bocejam mas não vêem nisso nada de extraordinário. Não sabem de onde vem a voz da consciência mas a escutam sem achar que é o resultado de um bruxedo lançado contra si. A existência do Homem do Saco é puramente natural, assim como a do crude. A decomposição de inúmeros corpos cria o crude, uma substância poderosa. A decomposição de sentimentos cria o Homem do Saco, um ente mais poderoso ainda. O processo extravasa a combustão, as reacções químicas, a radiação e o electromagnetismo. Infelizmente tal lógica não pode ser percebida por outros humanos. Ela tinha de esperar por um tempo em que as mentes das pessoas estivessem mais evoluídas; um tempo em que a ciência pudesse explicar tal coisas com os seus métodos demonstrativos. Mas a crença das pessoas sobre esse assunto não era primazia, nem sequer lhe interessava no momento. A única que ocupava seus pensamentos era descobrir a verdade sobre o acontecera em sua vida no passado longínquo. E isso fazia com que temesse por sua vida, porque, às vezes, descobrir a verdade siginfica morrer.
♣ O local estava pintalgado por trevas – era o subsolo. Nenhum feixe de luz podia ser visto. Apenas os animais que já estavam habituados àquele breu podiam caminhar livremente. Umas dessas criaturas tinha cem pés e uma membrana lânguida cobria a parte superior de seu corpo esguio. Deslizava de modo serpenteante entre escombros. Desviouse rapidamente para não entrar em contacto com as esfomeadas ratazanas que por aí degladiavam. O aguilhão de um escorpião foi outra coisa da qual teve de se esquivar. Serpenteando de forma mais célere, alcançou uma superfície diferente da que pisara até ai. Era lisa e quente, aconhegante. Decidiu subir mais por ela até encontrar um lugar ideal para descansar. Contudo, algo na superfície apanhou-a de rompante, apertou-a e jogou-a para longe. Esperneou por alguns instantes. Depois consegueiu retomar a sua posicao natural e serpentear para um outro local. Ora, o animal tinha o nome de centopeia e a
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superfície lisa e quente que encontrara era a pele de um homem, e o que o aremessara para longe fora a mão deste. Incidentalmente, o homem tinha Ngoma Usuku como nome. Sem poder acordar e sentir as fortes dores que assolavam seu corpo, deixava se guiar por imagens oníricas que pareciam absurdamente reais. Seis homens falavam com ele, e o que diziam parecia levar-lhe a um maior esclarecimento sobre toda irritante confusão que se passava em sua vida desde que se encontrara com eles há dois dias. – Se estivéssemos numa situacao mais propícia – dizia Ndombaxi – ensinar-te-ia valentia. – Eu te daria licoes sobre sangue – revelou Cazenga. – Sangue? – inquiriu o escritor. – Como assim. – Combinámos que só te daríamos os temas de nossas conversas, não? Então não te posso explicar. Talvez numa próxima ocasião. – Entendo. E tu, Kaculu? O que me ensinarias? Tenho de reconhecer que a tua licao seria a mais interessante, tendo em conta os poderes que tens… – O estupendo – respondeu o gigante. – Ensinar-te-ia o estupendo. – Vendo vês? – inquiriu uma voz sussurrante em seu ouvido. Usuku não o podia ver. – Eles acabaram de condenar-se. Revelaram o seu plano maquiavélico. – Como assim? – inquiriu o escritor ao afastar-se dos seis. – Pensando pensa nas seis coisas que eles te apresentaram. Repete-as calmamente para ti. – O tema da conversa do Lourenço foi o medo, a do Márcio, insanidade, o Carlos e os outros três ensinar-me iam criatividade, valentia, sangue e o estupendo. – Repetindo-as repete-as calmamente para ti… – Medo… insandidade… criatividade… valentia… sangue… criatividade. – Não entendo entendeste, pois não? Escreve-as sobre o chão. Agora separe algumas letras de todas as palavras e vé que outras palavras podes formar – disse após o outro ter escrito. – Continuo sem perceber. Há quarenta e uma letras no total. Posso formar muitas outras palavras com elas como: sangria, vaidade, santidade, medida… – Não entendo entendeste. Tens de tirar letras das seis e formar apenas duas palavras, não juntar duas palavras apenas. Retira o m e o do medo, o n e o s da insanidade, o c e o a da criatividade, o n da valentia, o g e o u do sangue e o u do estupendo. O que tens? – Uma grande baboseira. Mnscanguu. Nem sequer é português. – Não sendo o é. É realmente outra língua. Separa-as e forma duas palavras agora. Mas palavras que façam sentido para ti. – Canos guunm… Deve ser o latim falado pelas pombas – gracejou. – Mona cuguns. Deve ser a prima da Mona Lisa. Mosca nugun. Ngamu socuu. Ngoma usucu… Ngoma usucu! As palavras são ngoma usucu como no meu nome: Ngoma Usuku. – Entendendo entendeste? – Não… É apenas o meu nome… – O que significando significa ngoma usuku? – Noite de batuque… – E o que acontecendo acontece nesta noite?
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– Um ritual acompanhado por batucadas e ankixi dançando. Normamelmente acontece quando alguém é coroado ou escolhido para cumprir uma missão especial. O Homem do Saco passou por isso quando ganhou os seus poderes. – Fazendo fazem o mesmo contigo. Acabas de ser iniciado. O ritual terminou. Agora és definitivamente o escolhido para uma missão especial do Homem do Saco. Uma missão que não pediste. Uma missão da qual não estás a par e te fará sofrer. – Que missão é esta? – Pensando pensas que estas seis coisas eram apenas para te ajudar no teu casamento, mas vão para além disso. Foste enganado. Agora já estás entregue à má sorte. – Que missão é esta? Quem és tu e porque me revelas isso? Lembro-me da tua voz. É a mesma voz que falou comigo quando o Eros desapareceu no jogo do Márcio. É a voz daquele animal enrosaco numa árvore. Responde! Que missão é essa? Que missão é essa? A confusão em sua mente fez com que despertasse. Levantou-se com inúmeras dificuldades e gemidos. A seguir, uma estranha força fez com que caminhasse entre os escombros para que fosse abordado por uma criatura reluzente, mas obnóxia. Depois de passar quarenta minutos a andar, teve vontade de fazer algumas anotações sobre aquela insólita situação em seu telemóvel para que depois as transformasse num livro. Então a figura reluzente, mas obnóxia aproximou-se dele e disse: – Se tu és o escritor do Homem do Saco, escreva a verdade sobre ele. – Está escrito no meu livro O Homem do Saco: «É uma bênção proteger a natureza. Os animais te pertencem, te obedecem, as árvores, os rios, os mares... Tudo, tudo é teu e está ao teu serviço». Não há verdade maior que essa. Em seguida, a criatura reluzente, mas obnóxia levou Usuku para fora fora dos escombros. Então disse: – Se tu és o escritor do Homem do Saco, escreva que te salvei. – Está escrito no meu livro A Três Degraus do Quarto: «Fazer um favor desejando algo em troca é dar uma ordem egoísta.» Não compactuo com entes com tal comportamento Depois a criatura reluzente, mas obnóxia, levou-o para um lugar muitom acima da superfície e mostrou-lhe o seu dia de casamento e disse: – Eu lhe farei com que tudo ocorra como pensaste se me ofereceres o teu primogénito. – Vá embora, criatura! Está escrito no meu livro O Sonho dos Meus Homens Os filhos são para Deus não para nós. A criatura reluzente, mas obnóxia voltou a colocá-lo entre os escombros e foi embora. Vieram então seis homens e cuidaram dele.
♣ – Não era melhor a avó do Usuku indicar onde fica o quadro para que os rapazes aqui vejam se conseguem restabelecer a luz – disse Jaciara com voz temerosa. – Detesto a escuridão…
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– Não acho que se possa restabelecer qualquer coisa aqui – revelou a idosa. O seu rosto continuava a ser iluminado pela chama volúvel do isqueiro em sua mão. – Temo até que algumas coisas possam ser perdidas… – O quer dizer com «coisas», avó do Usuku – inquiriu Érica. – Que alguém entre nós ainda pode roubar o resto da comida que trouxemos – gracejou o homem de sobrenome Alves com voz sussurrante. – Ninguém encosta aqui. O puro mambo está no meu saco. Se alguém se atrever a mexer no meu cabrité… – Em vez de a luz ter isso, seria melhor que alguém apagasse a boca do rosto desse rapaz – interrompeu a mulher de sobrenome Ipanga. – Não há algumas velas na casa, minha senhora? – Tenho um saco ao lado do cadeirão onde estava sentada. Mas não vai adiantar nada. Elas se pagarão por causa do vento que passa por aquela janela que o raio quebrou. – Tem certeza que foi um raio? – inquiriu o homem de sobrenome Henriques. – Podia ter sido um tronco que caiu ou alguém que jogou uma pedra… – Vi o reflexo de uma luz azul a embater contra a janela – contou a mulher de sobrenome Bartolomeu. – Não acho que um tronco ou uma pedra causem faíscas azuis quando partem vidro. Mas estamos num local onde é pouco provável que tenha sido um raio. – Se contares sempre com o provável, surpreender-te-ás com muitas coisas todos os dias meninas – comentou a idosa. – Tenho de falar rapidamente convosco agora, antes que aconteça algo pior. – Algo como o quê, avó? – demandou a mulher de sobrenome Pereira. – Nem eu mesma sei. Peço-vos apenas que investiguem a vida da Braulia. Nada do que eu vos disser agora far-vos-á algum sentido, mas levem-no a peito. Procurem pelo nome da mãe da Chiange, a moça que era o Homem do Saco antes do Kaculu… – Eu ainda me lembro do nome dela – disse o homem de sobrenome Alves. – Quexilemba… Era assim que ela se chamava: Quexilemba. O que tem isso que ver com a Braulia? – É o mesmo nome da mãe dela – lembrou-se a mulher de sobrenome Pereira. – O que tem isso de estranho, avó? Pode apenas ter sido uma casualidade, ou o Usuku ter imitado o nome quando a Braulia lhe contou… – O Usuku não sabia o nome da mãe da Braulia nessa altura – continuou a idosa ao voltar a acender o isqueiro. – Se encararem como verdade o que vos digo, verão que o Homem do Saco por amor, deu uma vida mais aprazível a Chiange. Uma vida longe dos problemas que a assolavam depois de ter perdido os poderes. Mudou-lhe o corpo, apagou-lhe a memória, repôs-lhe a família e fez com que ninguém pertencente a ela se lembrasse que ela desaparecera misteriosamente por dez anos e trocou-lhe o nome. – Está a dizer que a Braulia é a Chiange transformada? – litigou a mulher de sobrenome Bartolomeu. – Uau! A senhora tem mesmo muita imaginação. Acho até que é mais fértil que a da mente do seu neto. Devia pensar em escrever alguns livros… – Não entenda essa nossa conversa como um debate para a criação de novos textos para o Usuku, menina. O que vos digo é real. É… Uma luz cegante emudeceu-a. Segundos depois, a densa escuridão voltou a tomar conta do local. Os reflexos de um relâmpago distante dissiparam por alguns instantes aquele angustiante breu. Todos olhavam para ela. A intermitência entre luz e escuridão era constante, mas algo bizarro acontecia entre o iluminar do relâmpago e o imperar das
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trevas. Escuridão – sete presentes. Relampaguear – Érica desaparecida. Escuridão – seis presentes. Relampaguear – mulher de sobrenome Pereira desaparecida. Escuridão – cinco presentes. Relampaguear – homem de sobrenome Alves desaparecido. Escuridão – quatro presentes. Relampaguear – Jaciara desaparecida. Escuridão – três presentes. Relampaguear – mulher de sobrenome Bartolomeu desaparecida. Escuridão – dois presentes. Relampaguear – homem de sobrenome Henriques desaparecido. Escuridão – um presente. Relampaguear – mulher de sobrenome Costa estendida sobre o chão.
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– CAPÍTULO X – ●
Apuração dos factos
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Tempo para o casamento: 258 horas. A história era de deixar qualquer um perplexo. Nada parecia fazer sentido ou encaixar-se logicamente. A seriação dos acontecimentos era absurda. Tudo o que ocorria estava desprovido de nexo. Contudo, ficar perplexo como qualquer um não era exactamente o mesmo que não entender as coisas como qualquer um. Perplexidade é também estupefacção, assombro, qualidade de quem admira boquiaberto uma dada ocorrência. E era isso o que acontecia com as mentes que já haviam entendido o que aí se passava; estavam atónitos com o que haviam descoberto. Até ao momento, poder-se-ia chegar a algumas conclusões interessantes. Tudo começou há três anos, quando Chiange, a então Homem do Saco teve a ideia de imortalizar os seus actos e contar ao mundo todas as suas façanhas bem como os feitos de algumas pessoas que correspondessem aos seus elevados requisitos. Porque tinha de ser Chiange e não Kaculu? Porque Kaculu adquirira mui recentemente os poderes de Homem do Saco – nada mais do que três meses. A primeira vez que Usuku escreveu algo sobre o raptor tinha vinte e cinco anos. Agora, com a idade de vinte e oito anos, era impossível que fosse Kaculu quem o escolhera visto que o Homem do Saco é substituído de dez em dez anos. Matemática básica: Chiange dezassete anos – Usuku vinte e cinco anos. Kaculu dez anos – Usuku vinte e oito anos. O papel do escritor seria apenas registar os acontecimentos, mas de uma forma que qualquer um entendesse como mera ficção, para que não fosse descoberta a verdade sobre o Homem do Saco, pois as pessoas não tentavam invadir o local onde julgavam ser o seu local de morada porque o conheciam como um terrível raptor e devorador de crianças. Três anos depois, ao ter completado vinte anos, Chiange teve de escolher um sucessor. Este foi Kaculu e, pelas ocorrências, este decidiu também continuar a usar o escritor. Após ter perdido os poderes de Homem do Saco, Chiange perdeu a memória de tudo o que havia vido durante aqueles dez anos. Kaculu interessara-se por tudo o que dizia respeito a ela. Estudou tudo o que ela fizera durante toda aquela década e apaixonou-se por ela. A vida de Chiange como humana normal estava abarrotada de problemas: excessivas tentativas de estupro, desemprego, cadeia, atentados contra sua vida e muitas outras coisas execrandas. O que fazer para ajudar sua amada? Lembrou-se que conforme a regra, o Homem do Saco anterior casava com o que o Homem do Saco sucessor, visto que o rodízio era feito por um macho, uma fêmea, um macho, uma fêmea. Tinha de proteger a sua prometida. O que fazer? Os anteriores Homem do Saco, embora perdessem a memória de tudo que tinham feito durante uma década, voltavam para as suas aldeias com um corpo extraordinariamente colossal e uma sabedoria acima da média. Era isto o que causava problemas de adaptação à Chiange – seu corpo estonteantemente acurvado gigantesco e sua inteligência descomunal. Kaculu decidiu diminuir estes atributos. Transformou-a numa rapariga meiga, com inteligência comum e
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silhueta parcialmente delgada. Visto que o Homem do Saco também ficava dez anos distante de seus familiares, resolveu apagar das memórias dos pais de Chiange e de qualquer um que a conhecesse esse período que ela havia ficado desaparecida. Transformou-a numa mulher comum. Atribuiu-lhe escolaridade superior no curso de medicina, curso este que estava indirectamente ligado ao de ser o Homem do Saco – amparar e salvar pessoas. Deu-lhe também um novo nome. A sua amada estava a salvo. Tudo parecia correr bem até o dia incomodativo em que seu olhar cruzou o de Ngoma Usuku. A casualidade às vezes não tem nada de casual. Juntar o escritor e sua amada parecia o plano de alguém que queria provocar-lhe. Sentiuse irritado, totalmente fora de si. Mas a sabedoria e o vasto conhecimento que possuía o impediram de cometer uma atrocidade. Ao ver que sua amada ficara feliz por conhecer aquele homem e que o homem poderia outorgar-lhe felicidade indescritível, decidiu ungilos para uma missão. Incidentalmente, o líder dos vultos também observava os acontecimentos e decidiu tomar providências, visto que a missão que seria outorgada a Usuku e a Braulia envolveria a exterminação de seu império. O Homem do Saco era alguém absurdamente sábio e não era possível enganá-lo. Por isso, decidiu fazer um plano que camuflaria perfeitamente as suas reais intenções. Propôs um desafio ao Homem do Saco que parecia que queria eliminar o escritor ou causar-lhe indescritível sofrimento. Os poderes do Homem do Saco devem apenas ser usados para resolver coisas que, de outra forma, a humanidade não acharia solução. E o problema tem de envolver a sanidade e a salvação de um grupo de pessoas, não um individuo apenas, pois denotaria egoísmo da parte do detentor dos poderes e este estaria sujeito a repreensão. No caso de Kaculu, a repreensão envolveu perder a omnisciência que possuía. Continuou extraordinariamente sábio, mas já não tinha o conhecimento e o discernimento sobre toda e qualquer coisa ou assunto. Este assunto transpirou até a morada dos vultos e decidiram usar tal informação quando lhes fosse mais favorável, visto que embora já não fosse omnisciente, permanecia descomunalmente poderoso. Quando soube do propósito que Kaculu tinha para Usuku e a nova Chiange, decidiu intervir de forma sorrateira. Adquiriu a forma de Kaculu e convocou cinco das pessoas cujos feitos o escritor havia registado em seus livros – sim, quem andava com Carlos Banzaia, Márcio Nassembe, Ndombaxi e Lourenço Canzar e o homem comummente chamado de Cazenga não era o verdadeiro Kaculu, mas o vulto disfarçado. Esta acção pareceu absurda para Kaculu. E era esta a sua ideia – confundi-lo totalmente. Para aumentar a desordem, dominou a mente de Lino Tchiva. Natércia Tchivela e outros. O papel destes seria manter o Homem do Saco ocupado com a segurança de Usuku enquanto o vulto encontrava uma forma de aproximar-se da nova Chiange. Ajuntar os amigos do escritor foi outro passo astuto, pois, além de confundir mais a situação estava implícita a descoberta do propósito do Homem do Saco para o Usuku, assunto este que desestabilizaria em grande parte a concentração do raptor. A inclusão de Freitas Zozi-Pó – um simples leitor dos livros de Usuku – e o enviar uma criança para falar com a mulher de sobrenome Costa fazia parte do mesmo intento. Tendo Lino Tchiva e Natércia como marioneta, as coisas ficavam-lhe mais acessíveis. Colocou o primeiro a perseguir Usuku e a segunda, a nova Chiange. A sua forma de agir continuou sendo vista como desprovida de nexo por Kaculu, visto que toda e qualquer acção que tomasse, o Homem do Saco poderia desfazê-la rapidamente, como a
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de explodir a residência onde o escritor e os outros quatro estavam e de esfaquear a nova Chiange. Estas acções pareceram cruéis tentativas de assassinato, mas na verdade, o penetrar da faca no ventre da nova Chiange possibilitava-lhe a exequibilidade de seu plano. Cometia também deslizes propositados em seu objectivo de estragar o propósito do Homem do Saco para aquele casal, como de fazer com que Lino Tchiva e Natércia Tchivela soubessem do principio da história contada por Cazenga e os outros sobre a criança amaldiçoada e permitir que Ngoma Usuku soubesse que a segunda estava no mesmo país que Braulia. Podendo finalmente atingir os corpos de Usuku e da nova Chiange faltava pouco para atingir finalmente o seu objectivo. E era neste ponto onde as mentes perplexas que haviam entendido o assunto a tal ponto demandavam perguntas como: Qual era o plano dos vultos para com aquele casal? Que propósito tinha o Homem do Saco para eles? O que tinham o ventre de Braulia e o corpo de Usuku que ver com o assunto? Qual era a origem dos vultos e do Homem do Saco? Apenas a última questão podia receber prontamente uma resposta. Os vultos são entes nefandos que têm como origem a decomposição da área do cérebro responsável pelos sentimentos como ódio, inveja e ciúme. Quando um ser humano fenece, o seu corpo decompõe-se e metamorfoseia-se em fertilizante. Nada desaparece, tudo se transforma. Se a parte física transmuta para adubo, o que acontece com os sentimentos que a pessoa nutriu durante a sua vida? Pela deterioração das células sensitivas uma substancia negra libertadora de energia negativa é formada. A energia segue um percurso e ao longo do mesmo agrupa-se a outras energias libertadas por corpos com sentimentos parecidos. No fim da jornada, agrupam-se à primeira energia saída do primeiro ser humano do território em que se encontram que demonstrou sentimentos do género. O mesmo acontece com o Homem do Saco. Contudo, a decomposição ocorre na área do cérebro responsável por sentimentos como amor, altruísmo, e humildade. A substância libertada é luzente e positiva agrupa-se ao primeiro ser humano que pereceu tendo um comportamento nobre. Não há nada ligado a espiritismo ou outras nuances do ocultismo. A existência do Homem do Saco e dos vultos é uma mutação natural que gera algo sobrenatural. As substâncias agrupadas servem de fonte de poder para o primeiro ente que feneceu nutrindo bons ou maus sentimentos. Como sobejamente sabido, o primeiro humano a morrer neste território teve sentimentos nefandos. (Entende-se aqui por território, não o planeta Terra, mas um país ou uma ilha. Por se terem apartado de Ente Supremo durante a construção da torre de Babel e espelhados por toda a terra, em todo o lugar em que decidiram habitar pereceu primeiro alguém pérfido, visto serem todos pérfido. Desta informação também se deduz que em cada tetrritorio haja um Homem do Saco e um grupo de vultos e que a omnisciência do primeiro e a perfeição em subtileza do segundo deve-se à vivéncia e os estudos dos seres com comportamento nobre ou ignóbil quando vivos. Entende-se também que os vultos podem apenas controlar aqueles cujo comportamento é sórdido, percebendo-se logo a razão de o seu líder ter controlado apenas Lino Tchiva, Natércia Tchivela e os outros e não Carlos Banzaia e os outros quatro, visto que os últimos eram de índole nobre. Perecebe-se assim também a razão de na transição de poderes, o novo Homem de Saco ter de passar por uma purificacao que envolve ser completamente
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jogado fogo para que perca todos os vestígios de sentimentos nocivos que teve antes da transformação, embora sendo apenas uma criança de dez anos.) Portanto, os vultos existiram primeiro. Em vez de se pensar que são produtos de ocultismo, os humanos que nutrem tal ideia deviam ficar aliviados por o primeiro humano com sentimentos nobres ter tido a ideia de transformar-se em um ser que aniquilaria os actos execrandos dos vultos e não um aliado seu. Os factos eram esses. Agora precisavam-se de mais respostas. E, como sempre, elas não tardariam achegar.
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– CAPÍTULO IX – ●
A minha bebé
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Tempo para o casamento: 247 horas. Distante dos problemas que se passavam com Usuku, uma mulher enfrentava angustiantemente os seus próprios fardos. Na noite passada havia combinado falar com o escritor, mas fraquejara pois tinha medo da reacção deste se soubesse o que havia feito. A mulher era a mesma que Usuku sentira enorme paz interior ao observá-la em seu escritório. Era a mesma que falara com ele após este ter retirado o telemóvel do bolso de seu chefe com o intento de fotografar os seis homens que era suposto serem apenas personagens de seus livros. Chorava amargamente. Nada parecia ter solução em sua vida. Havia feito uma entrevista de emprego mui recentemente com o intuito de começar a trabalhar em local e num horário que lhe possibilitasse fazer as coisas que só agora descobrira ser prioridades em sua vida. Mas, por causa do que havia feito, a esperança de trabalhar em novo local estava inviabilizada. Tinha também sobre sua responsabilidade o bem-estar de muitas pessoas. Precisava de um salário melhor. A desconfiança que havia no Grupo Wolf deixava-lhe totalmente deprimida. Num momento de extrema fúria, chegara até a quebrar uma garrafa na cabeça de uma colega. O suicídio passara por sua mente; passava até agora. No seu conceito, só o escritor poderia salvarlhe daquela situação, pois não a julgaria. Escutá-la-ia apenas e a ajudaria a achar uma solução. Usuku sempre fez tudo para protegê-la. Não importava onde ou com quem estivesse, abandonava tudo e saía correndo para socorre-la. As suas vidas estavam intimamente ligadas. O que um sentia, o outro sentia. Antes que um pudesse discar o número no telefone para ligar para o outro, este já o havia feito. Se um tivesse saudades do outro, sem entrassem em contacto para falar sobre o assunto, um recebia uma mensagem instantânea do outro dizendo que pensava nele. Se um estivesse doente, o outro adoecia também. Se um sorrisse involuntariamente numa reunião, sabia que o outro sorria também mesmo estando distante dai e sem saber do ocorrido. A ligação entre eles era mística. Havia poucas explicações para compreendê-la. Agora precisava de sua ajuda. Tinha de abrir-se com ele, ou explodiria. O que passava por seu íntimo era aflitivo, tormentoso. Contudo, havia um dilema: se lhe contasse, talvez o casamento de Usuku não mais aconteceria.
♣ – Acabei de falar com o meu amigo – disse Braulia abraçada a uma menina. – Ele concordou em fazer a operação. O objectivo dele em vir para este país é mesmo esse: dar 138
uma melhor aparência àqueles cujo terramoto ou maremoto retirou-lhe partes da pele. O teu caso será difícil. Não há como retirar bocados da tua epiderme saudável e colocá-los nas partes atrofiadas. Mas há muita inovação nas técnicas de cirurgia plástica. E ele é um dos melhores do ramo. Sei que no fim te será restituída a aparência que perdeste… e nos deixarás em paz. – Para que se faça uma operação destas, é necessário que a pessoa deixe os seus dados no hospital. Nem penses que cairei na artimanha de os dar para te possibilitar conheceres o meu nome e depois enviareis policiais para me prender. Ele fará a operação, nada mais. – Não pensei em nenhuma artimanha. És totalmente paranóica. As pessoas não se comportam todas como tu, sabias? Podias agora deixar-nos em paz? Não tens mais nada para fazer? Tenho de cuida de mais doentes naquele hospital. – Não te lembras mesmo de nada, pois não? – inquiriu em tom misterioso mudando bruscamente de assunto. – Nem sequer sabes com quem falas. Devias prestar mais atenção quando lés os livros daquele a quem chamas noivo. – Não me lembro de te ter dito que ele é escritor. Andaste a investigar-nos? Teres levado esta criança para o hospital não foi casualidade, certo? – Sei tudo sobre vocês. Todo o mundo sabe tudo sobre vocês. Apenas vocês dois não sabem nada sobre vocês mesmo. Olha bem para mim e diz-me se já não me viste antes. Talvez na tua imaginação ao leres um dos livros dele… Não? Nada? Nenhuma recordação? Que decepção. Achei que tivesses uma mente brilhante. Os boatos sobre o Usuku estar prestes a casar com alguém notavelmente inteligente não passam de boatos apenas… – Julgas que me podes provocar com mísera futilidade? – Não. Mas sei que se lançar esta faca na direcção desta criança – disse ao arremessar o objecto cortante na direcção da menina. O objecto roçou-lhe e ficou cravado na estante atrás delas – ficarás totalmente fora de ti. – Não voltes a fazer isso! – vociferou enquanto retirava a faca se levantava e a apontava para Natércia Tchivela. – Ou morres aqui e agora. – Vem. Aproxima-te – solicitou ao dar passos na sua direcção até que a ponta da lâmina penetrasse um pouco em seu pescoço. – Fá-lo aqui e agora se reside alguma coragem feminina em ti. Passas a vida a perfurar a pele dos teus pacientes. Não te deve ser muito difícil degolar-me. És fraca, não és? Mas eu não – patenteou torcendo rapidamente o braço da outra que carregava o objecto cortante e colocar-lhe a ponta de outra faca sobre a superfície do ferimento em seu abdómen. Não direi que sentiria prazer ao ver-te morrer porque seria banal. Mas não me importaria nada em esventrar-te e de asfixiar essa rapariga com os fluidos do teu estômago. Vá! – imperou ao jogá-la com violência para o tapete. – Proteja a tua criança de mim, embora seja fútil que o faças. – O que chamas de coragem feminina é puro espírito psicopata. Só há uma pessoa nesta sala com este espírito insano e cruel. As outras duas são inteligentes demais para o possuir… – O que chamas de inteligência é pura cobardia. Todos vocês no fundo pensam em livrar-se de quem se comporta como um empecilho em vossas vidas. Só não têm coragem suficiente de o admitir. Escondem-se no politicamente correcto e no religiosamente íntegro. – Estamos aqui há horas… e continuas anónima para mim. Começamos a ficar
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com fome. Dentro em breve o meu amigo chegará para cuidar de ti. Posso cozinhar. – Claro. Desde que não penses em envenenar-me ou telefonar para alguém. – Já te disse para não comparares os nossos comportamentos. E não sei agir de forma banal. Podes ter certeza que a comida será boa. E não te preocupes com a operação. Mesmo depois de estares toda enfaixada e sem acção, ninguém tentará nada contra ti. Sou confiável, não traiçoeira.
♣ Tempo para o casamento: 234 horas. Os minutos passavam. Há horas que aquela mulher estava deitada no seu quarto. Não tinha sono. Os seus problemas não lhe permitiam dormir. As lágrimas ensopavam os lençóis. Precisava de falar com Usuku, nem que fosse pela última vez. Sem saber que este havia viajado e que se encontrava soterrado, pegou em seu telemóvel e enviou a seguinte mensagem para ele: Estou prestes a me enforcar. Parece que quando vai dar certo, mais problemas surgem. Sempre família. Vou arranjar a minha vida e seguir em frente.
♣ Tempo para o casamento: 233 horas – Daqui a alguns segundos morreremos as três – disse Natércia Tchivela –, isso se eu sentir que colocaste alguma coisa nociva neste prato. Posso fazer um requintado serviço no rosto desta menina antes de morrer… – Para isso teríamos de morrer as três envenenadas, visto que comemos a mesma coisa – redarguiu Braulia ansiosa para que o que havia combinado com a rapariga desse certo. – Mais tarde ou mais cedo as pessoas no hospital virão à minha procura. Estamos aqui a quase um dia. Preciso ir para lá. – Isto não vai acontecer antes de cuidares de mim. Se alguém vier procurar-te não entrará. Se o fizer, levará apenas pedaços teus… e desta menina. – Alguém bateu a porta, tia – disse a menina agarrando fortemente ao braço da doutora. – Podes abrir, bebé – respondeu a doutora. – É a primeira vez que falas. Gostei de ouvir a tua voz. Se for abrir, a senhora má à nossa frente pensará que a denunciarei. Vais tu, mas não diga nada. Tenho a certeza que é o meu amigo cirurgião e mais quatro de seus colegas. Cumprimenta-os e deixa-os entrar. Vai, bebé. A rapariga obedeceu. Natércia Tchivela não se opôs. Tudo ocorria como o combinado. Andou a passos trémulos e abriu a porta. Os senhores entraram. Ela apontou
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para a cozinha. Eles seguiram a direcção. Ficou parada à porta a olhar a locomoção deles. O seu olhar vermelho lacrimejava. Desejou voltar e não cumprir com o plano que traçara à socapa com Braulia. Todavia, havia jurado que o faria. Por isso, saiu calmamente, fechou a porta e começou a correr. Alcançou a rua em alguns segundos. Os seguranças não lhe fizeram nada por causa das roupas elegantes que trazia vestida. As vestimentas foram-lhe oferecidas por Braulia. Corria como uma desvairada. O medo de morrer era devastador. O pesar causado pela morte era tormentoso. Estariam seus pais realmente mortos? Precisava de saber. Correu por horas até estar perto do local. Já estava escuro. O cenário era de pedras sobre pedras. Andou calmamente e viu a sua casa destroçada. Chorou amargamente. Aproximou-se e procurou por algo entre os escombros. Nada encontrou a não ser alguns copos, panelas uma esteira feita de folhas de palmeira. Retirou-a dos destroços. Procurou um lugar plano e estendeu-a. Os seus pais não estavam para contar-lhe uma história, beijar-lhe a testa, desejar-lhe boa noite e apagar o candeeiro. Por isso, sentou-se sobre a esteira, colocou a cabeça sobre as coxas e abraçou as pernas e, enquanto soluçava e balançava calmamente o seu corpo, contava a si mesma a última história que seu pai lhe contara antes de ser internada. Antes de mergulhar totalmente no sono, lembrou-se do dia em que ficara muito doente e os seus pais a levaram para o mesmo hospital público em que estava Braulia. Não foram atendidos por causa da enchente. Voltaram a tentar nos dias posteriores, mas o desfecho se repetiu. Num dos dias, apareceu uma mulher encapuçada, dizendo que seria capaz de fazer com que Braulia a estendesse. Eles ficaram temerosos. Mas, para mostrar que não tinha quaisquer intenções malignas, recomendou-lhes que a acompanhassem enquanto levava a menina e assistissem tudo à distância. E foi o que aconteceu. Foi atendida e pensou que fosse melhorar, trocara apenas – na verdade, juntara – o mal-estar causado por aquela doença por um pesadelo pior: o de perder seus pais, ser raptada e quase ser morta à facada. Era pequena demais para suportar tal sofrimento. Mas a vida não vê tamanho para outorgar dor e amargura. O medo de dormir ao relento apossou-se dela tardiamente. Estava absurdamente ensonada. Bocejou ao cair de mais uma lágrima tépida de seus olhos e adormeceu. Quando despertou, mais de dez horas haviam passado. Assustou-se ao ver animais comendo ervas perto de si. Um outro mastigava o pano com o qual se havia coberto de noite. Levantou-se e sorriu. Quando tentou andar, gemeu com fortes dores. O seu estômago – parecia que alguém lhe cortava o estômago. Era a sua doença. Não havia melhorado ainda. Precisava de tratamento. Colocou a mão num dos bolsos e tirou de lá um pequeno frasco. Abriu-o e retirou dois comprimidos. Não havia potável água no local, por isso colocou os comprimidos no fundo da língua, respirou fundo com a boca aberta e a cabeça inclinada para trás e os engoliu. Sentiu um pouco o sabor amargo do fármaco. Minutos depois, ficou zonza. Pensava em ir até à cidade e avisar alguém para salvar a doutora, mas não podia fazer nada naquele estado. Voltou a deitar-se sobre a esteira e, enquanto um dos animais lhe cheirava os pés, entregou-se ao sono. Acordou oito horas depois. Estava esfomeada e zonza. Andou por alguns instantes seguindo os animais que agora andavam em retiro. Volvidos minutos, achou uma casa abandonada. Estava em péssimo estado. O terramoto também a havia assolado. Mas o que era aquilo ao lado de uma das paredes rachadas. Parecia verde e esférico. Seria comida? Seriam… maçãs? Aproximou-se para ver. O seu estômago começava a doer-lhe
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novamente. Pegou um os esféricos verdes e seus tacto, visão e olfacto o identificaram como sendo uma fruta. Os outros também eram, mas de tamanho e sabores diferentes. Limpou-as em seu vestido cor-de-rosa e comeu as que pode, principalmente aqueles que estava cheias de suco, para que pudesse matar também a sede. O seu estômago voltou a fazer-lhe gemer de dor. Colocou a mão no bolso para achar o frasco de comprimidos, mas não o encontrou. Onde o havia perdido. Percorreu com perscrutância o todo o trajecto que havia feito até aquela casa desabada. Não o encontrou em lugar algum. Parecia que desmaiaria – já não conseguia locomover-se de forma erecta. Arrastou-se até a esteira e deitou-se. Havia uma protuberância por baixo de sua nova cama. Levantou-se em agonia e levantou parte da esteira. Alegrou-se ao ver que a protuberância era feita pelo seu frasco. Provavelmente o havia deixado cair enquanto dormia. Tomou quatro comprimidos por achar que assim se curaria mais rapidamente e comeu uma fruta suculenta. Lembrouse novamente de Braulia. Estaria bem? Enquanto os seus olhos observavam o céu e viam que a noite se aproximava, suspirou e cochilou. Acordou doze horas depois. Era madrugada. O sol começava a nascer. Sentia-se melhor. Estava na hora de ajudar quem lhe havia ajudado. Andou extensivamente até a cidade. O seu objectivo era chegar até ao hospital público onde estivera internada antes de ser raptada e ninguém ter notado aquilo. Continuou a andar. Viu algumas crianças a passear com os seus pais. Invejou-as. Chorou num dos becos. Voltou a andar e alcançou o hospital. O seu vestido estava agora notavelmente sujo. Entrou para o local. Havia um alvoroço. Algumas crianças haviam morrido e os seus familiares choravam a pulmões abertos. Um homem de bata branca veio ter ela. Era essa a oportunidade de que precisava. Bastava-lhe falar sobre o que acontecia com Braulia e ir-se embora. Mas não foi isso o que fez. Fugiu – correu o mais rápido que pôde. Havia feito a promessa que não contaria nada a ninguém. Braulia a fizera prometer tal coisa. Porque o havia feito? Não queria ser salva? Seria por causa do que acontecera com o seu noivo? Ou tentava humanizar Natércia Tchivela com aquela acção. Escondeu-se num dos cantos e ficou a observar a cidade. Viu alguns homens transportando um outro nos ombros. Pareciam cansados. Por isso, sentaram-se num dos bancos da calçada. Conversaram por alguns instantes. Depois, dois deles levantaram-se e dirigiram-se para uma das lojas. Aproximou-se do homem que ficara. Parecia moribundo. Era estrangeiro. Provavelmente não entenderia nenhuma palavra que ela diria. Por isso, sentou-se ao seu lado e dirigiulhe a palavra num dos idiomas daquele país. – O senhor também está doente? Dói-lhe o estômago? A mim também. Dói muito, muito mesmo. Mas sabe o que dói de verdade? A morte. A morte do papá dói, a morte da mamã dói. Ainda está para doer-me outra morte. E eu não quero que ela aconteça. É a doutora boazinha. Ela fez-me jurar que não contaria nada a ninguém para que a mulher má não viesse atrás de mim. Mas, se eu contar a você, você promete que não conta a ela? O meu coração já tem duas mortes doendo. Não sei se aguentaria mais uma. E o meu estômago também está assim. A doutora boazinha está a ser ameaçada por uma mulher com a cara tapada. É a mulher má. Ela tem muitas facas na roupa dela. A pele dela é queimada, por isso é que ela é má. Mas o meu estômago me dói e não sou má… A doutora está naquele hotel no fim da cidade, no terceiro andar, no apartamento da ponta. A doutora boazinha é muito boa. Não quero que ela morra. Assim ela poderá salvar mais crianças aqui. Podes ajudar a doutora boazinha? – inquiriu enquanto se levantava por ver que um homem com uma câmara na mão se aproximava. - Ela é bonita. E tem um nome
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bonito: Braulia. Talvez ela possa ajudar-te também. Ela consegue curar qualquer pessoa. Foi bom falar contigo, senhor. Agora vou-me embora antes que esse homem aí me apanhe e me leve para perto da mulher má – disse antes de começar a correr velozmente. Ora, incidentalmente, o homem que se aproximava era Márcio Nassembe e homem com aspecto moribundo tinha Ngoma Usuku como nome.
♣ Tempo para o casamento: 186 horas Natércia Tchivela estava deitada sobre uma cama. Estava enfaixada e inerte. Passara por uma longuíssima cirurgia. Ao seu lado estavam quatro homens e uma mulher. Os homens despediam-se desta e faziam recomendações. Passados alguns minutos, apenas as duas restaram no apartamento. A mulher sentou-se sobre o chão, com a cabeça encostada na porta de entrada. Lembrou-se de seu noivo e de seus amigos desaparecidos. Onde e como estariam? Os seus olhos avermelharam-se. Bizarro – uma conversa tumultuada fora do apartamento chamou a sua atenção. Eram vozes masculinas. A conversa era sobre alguém entre eles estar aí sem a permissão dos seguranças. Abriu a porta para averiguar se podia oferecer ajuda. Desestabilizador – entre os homens estava alguém que ela conhecia sobejamente. O alguém voltou-se e fixou-lhe o olhar. Ambos ficaram desconcertados. O alguém andou até ela e a abraçou. Entraram para o apartamento. Os outros ficaram no exterior tentando conter o tumulto. – Ainda bem que não te aconteceu nada – disse o alguém. – Sim. E a ti também. Pensei que aquele terramoto… – Não fales mais sobre isso – disse colocando o dedo sobre os lábios dela. – Estamos os dois bem. Agora precisamos ir embora. O teu prazo para ficares longe de mim acabou. Vim buscar-te. – Não sei se será possível. Tenho uma paciente no meu quarto. Vai demorar muito até que ela sare. A maior parte do seu corpo passou por uma cirurgia plástica. – Agora fazes operações plásticas? Que surpresa… – Não fui eu. Foi um dos meus colegas que veio comigo. Cuidar das pessoas aqui é totalmente diferente de cuidar das pessoas do nosso país. Mas a morte está em todo sítio… As crianças, as crianças aqui passam por coisas absurdas. – Crianças… cuidaste de muitas aqui? – Sim. Mas estou muito preocupada com uma que saiu daqui há quase dois dias. Não sei como é que ela está. Tenho de encontrá-la. Ela ficou sozinha. Os pais morreram num desses terramotos. – Temos que sair daqui, Miúda – disse ao encaminhá-la para o quarto para que pudesse começar a arrumar as suas coisas. – Não é seguro… – Sei disso. A mulher que está no meu quarto é uma prova disso. Ela tentou matar a mim e a menina de que te falei a pouco. Ela tem um comportamento estranho. E parece que te conhece. Cortou-me um pouco aqui – contou levantando a blusa para mostrar-lhe a laceração. – Deus! – disse extremamente irritado. – A Natércia vai pagar por isso! Estás aqui
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– inquiriu ao se fazerem presentes no quarto. – Toda enfaixada. Sem acção nenhuma. A morte terá agora prazer em apoderar-se de ti. – Não faça isso! – imperou Braulia. – Baixa esse vaso! Ela deve ter sofrido muito para comportar-se dessa forma. Mas agora é só um ser indefeso. Talvez tenha aprendido alguma coisa com isso tudo. – Tu não a conheces. Ela é a personificação da maldade… vinho só se transforma em água por milagre. Não me parece que qualquer ser divino se interesse em agir miraculosamente com alguém tão perverso. – E o que queres fazer? Matá-la? Parece que a conheces muito bem… Quem é ela? – Alguém que nunca pensei que existisse. – Não entendi… – Explico-te mais tarde. Vamos embora daqui antes que eu faça qualquer coisa horrenda. – Preciso primeiro achar aquela menina. Tenho de deixá-la aos cuidados de alguém aqui. – E onde a vais procurar? Pelo país inteiro? Não temos tempo para isso. Vem comigo! – Tu não entendes… É a vida de uma criança que está em jogo! – Desculpa-me – disse ao abraçá-la. – Desculpa-me dez mil vezes, Miúda. Só quero que nada de mal aconteça contigo. Mas, podes confiar em mim agora? – Sim… Em quê? – Aquela menina ficará bem. Acredita no que te digo. Ponho o meu sangue nisso. Precisamos ir embora agora. O teu regresso está marcado para hoje, lembraste? Também marquei o meu para esta data. É uma pena que não possamos ficar por mais tempo. Mas alguém cuidará daquela criança. Não te posso dizer quem… Mas confia em mim. Ela será encontrada e ficará bem. – 0K. Acredito em ti – disse suspirando. Olhava fixamente para os olhos dele. Reconhecia aquele olhar. Era assim que suas pupilas ficavam quando queria acreditar na possibilidade do impossível. – Deixa-me arrumar as minhas coisas… – Esta é a Natércia? – inquiriu Ndombaxi Canzar ao entrar para o quarto com mais cinco homens. – Finalmente a oportunidade de ela desaparecer de uma vez por todas cai novamente às minhas mãos. Antes que o gigante pudesse aproximar-se mais do corpo da mulher considerada o mais temível dos flagelos – trevas e raios sucedidos de sumiço! Escuridão – nove presentes. Relampaguear – corpo enfaixado de Natércia Tchivela desaparecido.
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– CAPÍTULO IX – ●
O casamento – a surpresa
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Tempo para o casamento: 3 horas Mais de quatro dias se passaram. Durante este período, pôde-se descobrir o estado salvaguardado e são das mulheres de sobrenome Fonseca, Silva e Machado e de seus cônjuges. O terramoto não lhes causara danos. Estavam em uma zona onde nenhum abalo sísmico ocorreu. As linhas de comunicação haviam sido repostas e havia helicópteros disponíveis para evacuar estrangeiros e nativos. Outros serviços se tornaram disponíveis para ajudar os sobreviventes daquelas tragédias. Ainda havia muito que se fazer para que as aquele país voltasse a ter uma aparência de terra de homens. E o mundo envidou esforços. Usuku contou a Braulia que lera sem querer a mensagem que a mulher de sobrenome Fonseca enviara para o homem de sobrenome Nascimento sobre ela, Braulia, estar a pensar em desistir do casamento. Esta contou-lhe que aquela conversa fazia parte de um plano para uma surpresa que estava a preparar para o casamento, mas que, devido aos nefandos acontecimentos com Natércia Tchivela e as catástrofes naturais, já não tinha ânimo para aperfeiçoá-lo e executá-lo a tempo. O desvio do fundo de maneio na Grupo Wolf teve o seu fim – o alguém colectivo rapinador foi descoberto. Eram os dois homens que estavam de férias a quem o director da empresa nunca havia interditado a entrada. Houve um enorme alvoroço aquando da descoberta dos criminosos. Foi feito um exímio plano para que eles voltassem para o país sem que desconfiassem que cairiam nas mãos da justiça. Usuku e a mulher que dissera que se enforcaria estavam entre os mentores da cilada. Sílvia e o homem de sobrenome Manuel casaram-se. A festa foi absurdamente animada. Érica, Jaciara, os homens de sobrenome Alves e Henriques e as mulheres de sobrenome Pereira, Ipanga e Bartolomeu também estavam em estado salvaguardado e são, mas haviam perdido a memória sobre tudo o que conversaram com a mulher de sobre nome Costa. Esta última também se havia esquecido de tudo que descobrira. Contudo, era inteligente demais para deixar que um simples apagar de lembranças lhe desviasse do caminho de descobrir o que acontecera em seu passado e salvar o seu neto. Tinha recursos para que rememorasse tudo. Usuku conversou com mulher com instintos suicidas. Morreu por segundos ao ouvir o que ela lhe contava. Quando voltou à vida, apresentou-lhe a mais acertada das sugestões. Embora os problemas não tivessem desaparecido ou se resolvido, exauriram em tensão. Carlos Banzaia e outros ficaram por mais dois dias naquele país. Depois voltaram para as suas casas, prometendo a Usuku voltar quando possível. Usuku tinha chegado finalmente à ideia para o seu casamento e usara tudo o que Márcio Nassembe filmara naquele país para o retoque final. Lembrou-se do tema das conversas dos seis homens: medo, insanidade, criatividade, valentia, sangue e estupendo. Usaria tudo isso na sua ideia. A menina cuidada por Braulia continuava desaparecida e sem comprimidos. Parecia estar agora em estado terminal. Senão fossem os homens que a descobriram deitada sobre os escombros de sua antiga casa e feito com que fosse evacuada num dos helicópteros, talvez tivesse fenecido.
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As horas para o casamento de Usuku e Braulia tornavam-se poucas. Todos os preparativos estavam feitos. Finalmente viveria sob o mesmo tecto com a mulher que despertara e correspondera de forma avassaladora o seu amor. Ela merecia receber tudo o que seus neurónios engendrassem. Merecia ser a proprietária de sua respiração. E era isso o que lhe daria. A surpresa revelaria isso. Os segundos passavam. Os noivos acabavam de chegar à conservatória. Havia exuberância nos trajes e pompa no andar. Os seus pais e amigos também estavam presentes. Houve uma longa espera até estarem na presença da conservadora. Abriu-se o livro. Ouviu-se o longo discurso. Responderam à costumeira pergunta. Assinaram. Usuku acariciou-lhe a sobrancelha e beijou-lhe a testa. Houve palmas. Despediram-se da conservadora e saíram. Volvidas três horas, entraram para a Casa de Deus e ouviram outro discurso matrimonial. Estavam oficialmente casados: para os homens e para o Ente Imortal. Desfilaram pela cidade e eternizaram o momento com inúmeras fotografias e filmagens. A noite chegou. Dirigiram-se para o enorme salão onde decorreria a festa e, consequentemente, a tão esperada surpresa.
♣ Tempo para a surpresa: 13 minutos Ngoma Usuku e Braulia, a Miúda, estavam parados à porta de entrada. O local estava decorado com esmero e abarrotado de convidados. Havia pinturas rupestres nas paredes. As mesas tinham um género de sobrinhas feitas de capim que faziam lembrar as cubatas das aldeias e o jango. O clima e o cenário eram totalmente africanos. O casal começou a andar. Os seus passos eram acompanhados pelo bater ritmado e produtor de suspense do batuque, da marimba e do kissange. O director da festa mostrou-lhes pomposamente o que deliciaria o paladar das pessoas presentes. Depois dirigiu-os ao centro ao fazer sinal para que a música produzida pelos instrumentos rústicos cessasse. O silêncio tomou conta do local. A música escolhida pelo casal para abertura da festa começou a invadir a atmosfera sonora. Contudo – incomodativo – um barulho estrondoso impedia a audição de todos de deliciar-se com a encantadora canção. O tecto do local começou a abrir-se lentamente ao comando de alguém. Todos puderam ver que o barulho era causado por um helicóptero parado acima de si. Havia um enorme cubo de plástico ligado àquela enorme máquina com hélices. O cubo caía paulatinamente na direcção de Usuku e Braulia até os enclausurar. As paredes do cubo possuíam alguns aparelhos usados em hospitais e um lavatório. – O que está a acontecer? – perguntou Braulia desconfiada falando na orelha dela. – Isto é uma das tuas ideias, não? – Claro que sim – respondeu Usuku do mesmo jeito. – Espero que gostes. Continue a olhar para cima. Ela olhou e – bizarro – uma maca descia do helicóptero. Homens enormes garantiam que ela descesse sem sobressaltos. A pequena cama pousou ao lado do casal. Havia uma caixa com matérias para cirurgia e alguém deitado sobre ela. Emocionante – o alguém era a menina que fora raptada por Natércia Tchivela. – Como é que a trouxeste? – inquiriu Braulia com lágrimas nos olhos. – O importante neste momento não é isso – respondeu ele. – Vieira Dias, podes
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trazer a bata e o sabão? O homem que atendia por tal sobrenome andou entre os convidados e chegou perto do cubo com as coisas demandadas por ele. Atirou-as para dentro das paredes de plástico. Usuku pegou-as no ar e entregou a ela. – Veste isso sobre o vestido e lava as mãos, Miúda. Tens uma cirurgia por fazer. – Aqui?! Diante de toda gente? Não sei se consigo. – Foste tu mesma que disseste que o estado desta menina é grave. Só de olhar para ela vejo que está a sofrer muito. Se não a operares agora, ambos sabemos o que lhe pode acontecer. Faz isso, Miúda – disse ao beijar-lhe a testa enquanto o helicóptero de retirava. – Sei que consegues. Braulia suspirou. Vestiu a bata e lavou as mãos. Abriu a caixa com materiais cirúrgicos e calcou as luvas. Dois homens vestidos com batas brancas e luvas calcadas entraram para o cubo. Os convidados assistiam a tudo totalmente estupefactos. Enquanto isso, garçons passavam pelas mesas servindo comidas e bebidas. Alguns manjavam e tragavam. Outros estavam atónitos demais para fazer fosse o que fosse. A rapariga foi sedada. A operação teve início. Os olhos de Braulia esvaíam lágrimas mui serenamente. A cirurgia levou quase uma hora. Quando terminou, retirou-se o cubo e a maca foi encaminhada para uma ambulância parada à porta. O auto entrou logo em andamento e levou a rapariga para uma das clínicas para que repousasse concordemente. O clima sonoro no salão foi preenchido por palmas estrondosas e choros singulares. Braulia retirou as luvas e a bata. Os outros dois fizeram o mesmo. O trio de médicos lavou as mãos e separou-se. Braulia continuou no centro com Usuku. Estava totalmente trémula e sem palavras. Ele sentiu que a havia surpreendido como nunca antes. Sentiu-se extasiantemente realizado. Um estranho esgotamento começou a apoderar-se de seu corpo. A música para a abertura da festa voltou a tocar. Ele abraçou-a. – Deixa ser eu guiar-te nesta dança – pediu ela ao beijar-lhe o ombro. – Agora sou todo teu – sussurrou-lhe. – Faz comigo o que quiseres. Ela pegou a mão direita dele com a sua esquerda e guiou-o na dança. Os passos eram leves e comedidos. Ela humedecia os ombros dele com lágrimas. Muitos dos convidados estavam abraçados às suas esposas ou acompanhantes. A mão da mulher de sobrenome Costa apertava a do homem de sobrenome Manuel. O casal girava paulatinamente em volta de si mesmo. Usuku sentia que perdia os sentidos. Braulia continuava a sorrir com olhar marejado e a conduzi-lo. A cada passo, guia-lo se tornava difícil. O seu corpo ficava pesado. A sua temperatura diminuía. O coração de Braulia começou a bater aceleradamente. Parou de dançar e, acto contínuo, começou a tombar com o corpo dele. Fez de tudo para que a cabeça do homem que acabara de surpreende-la não batesse violentamente contra o chão – esticou a perna para que o crânio de Usuku batesse contra a sua coxa, e foi o que aconteceu. A imagem era dramática. O seu exuberante vestido branco estava esparramado sobre o chão. Uma de suas pernas estava esticada para frente e outra flectida atrás de si. Ele estava deitado de forma perpendicular à sua posição, em postura desconcertada, com a cabeça sobre a sua coxa. Os convidados aproximavam-se. – Afastem-se! – imperou ela com voz chorosa. – Ele precisa de ar. Tentou reanimá-lo, mas estava em postura desajeitada. Por isso, levantou-se e colocou a cabeça de Usuku sobre o chão. Depois sobrepôs as mãos sobre o peito dele e fez-lhe uma massagem cardíaca. Os minutos se passavam. Muitas pessoas ligaram para
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alguns dos hospitais que conheciam. Não havia sinais vitais em seu corpo. Os dois doutores aproximaram-se e também tentaram reanimá-lo, mas em vão. Braulia afastou-os e voltou a tentar. Não podia acreditar que perderia aquele homem tão cedo. Em sua mente não existia sequer a ideia de um dia deixar de estar com ele. Mas já não conseguia ouvir o seu respirar, nem um fraco batimento cardíaco. Estava morto. Era essa a verdade que saltava à vista. Três ambulâncias chegaram ao local. Paramédicos entraram e recolheram o corpo inerte do escritor. Érica, Jaciara, Sílvia e as mulheres de sobrenome Pereira, Machado, Silva, Ipanga e Fonseca choravam desconsoladamente. A mulher de sobrenome Costa mão queria acreditar no que via. A mãe e as irmãs do escritor sentaram-se sobre o chão em desconcerto. Os irmãos destes entraram em seus carros e seguiram as ambulâncias, assim como os seus amigos. Parecia que havia cumprido com o seu objectivo: surpreender Braulia. Porque continuar ainda vivo? Os conselhos que recebera sobre o seu estado de saúde dos médicos só agora pareciam fazer sentido. E Braulia nunca havia chegado a saber dos colapsos que sofrera e das vezes que sangrara na sua ausência. Não soube da esmagadora surra que levara de uma dúzia de pessoas insensíveis e do sofrimento pelo qual passara quando esteve soterrado por dias. O corpo dos humanos é fraco. Não foi projectado para suportar o impossível. Era essa a verdade. Usuku não era a excepção. E desafiara a morte várias vezes. Parecia que haviam feito um pacto: «Deixame viver até que eu surpreenda a minha noiva. Depois podes tomar-me como teu.» A morte cobrava agora a sua parte. Não lhe permitira mais do que efémeros segundos após a surpresa. Nem sequer teve compaixão de Braulia ou de qualquer outro ente querido seu. A vida é injusta. A morte é indiferente.
♣ Braulia estava com a cabeça deitada sobre as suas coxas. A mulher de sobrenome Costa estava ao seu lado com a mão pousada sobre as suas costas. À frente delas estava o corpo do escritor e algumas máquinas ligadas ao seu corpo. Uma das máquinas mostrava que havia ritmo cardíaco e sangue sendo espalhado em suas veias. Não – não estava morto. O seu coração havia apenas parado de bater por alguns instantes. Esperavam que despertasse em qualquer instante. Braulia adormecera no processo. Ainda trazia o vestido de noiva cobrindo-lhe o corpo. Os doutores aconselharamna a voltar para a casa, mas estava resoluta e apresentou-se como médica para que desistissem de demovê-la. Usuku abriu os olhos de forma ensonada. A mulher de sobrenome Costa maravilhou-se e acordou a outra. Esta correu ao até ele e acariciou-lhe o queixo com o nariz enquanto se desfazia em lágrimas. – Porque choras, Miúda? – perguntou ele com voz fraca. – Estou assustada, moço. A morte assusta-me. – Acho que lidas com ela todos os dias no teu emprego. Já devias estar acostumada. – Nunca nos acostumamos à maldade… A morte de estranhos dói. A morte de pessoas queridas dilacera-nos.
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– Pensaste que havias te tornado viúva nove horas depois de te teres casado comigo? Não é assim tão fácil matar-me. A morte que to diga… – Continuas a brincar com coisas sérias – disse sorrindo enquanto enxugava as lágrimas. – Estraguei-te a festa, não? Não te preocupes daqui a algum tempo voltamos a dar outra… – Não fales mais sobre isso – recomendou. Duas enfermeiras acabavam de entrar. – O importante é que te recuperes. – Temos de cuidar dele agora, Doutora Braulia – disse uma das enfermeiras. – Pode ausentar-se, por favor? – Sou esposa dele. O dever de cuidar deste homem é meu. – Não sejas implicante, Miúda – disse ele. – Deixa as raparigas fazerem o seu trabalho. Se elas tentarem qualquer coisa, grito e vens socorrer-me, rapariga dos bisturis. – Estava apenas a brincar com elas. Vou ao quarto de banho lavar a cara e já volto. Vens comigo, avó? – Sim, menina. Ver-te a lavar o rosto é mais interessante que observar o meu neto deitado sobre a cama e a ser flertado por duas enfermeiras. – Que falta de sensibilidade, avó – gracejou o escritor. – Se está com inveja, peça para te internarem também. Acho que… Os lábios de Braulia sobre os seus emudeceram-no. Suspirou com prazer. Antes de sair com a mulher de sobrenome Costa e avisar as pessoas que esperavam ansiosamente no lado de fora da clínica sobre o estado do escritor, Braulia beijou-lhe o ombro e sussurrou-lhe: – Teres casado comigo é o melhor presente que me ofereceste até agora, moço. Amo-te, mocinho.
– EPÍLOGO – 149
Passaram-se três meses. Usuku encontrava-se em seu enorme auto preto com o homem de sobrenome Alves que dormia ao som da música nos auscultadores ligados ao seu telemóvel. Não podia andar sozinho por causa de Braulia – ela lhe recomendara a ter sempre alguém por perto até que se recuperasse completamente. Ligara recentemente para Carlos Banzaia, Márcio Nassembe, Ndombaxi e Loureço Canzar e Cazenga para que se encontrassem naquele local isolado. Havia conseguido tudo sobre a vida destes através da Máfia. Mas não era sobre tal assunto que queria falar com eles. O escritor sorria involuntariamente. Parecia grandemente animado. Porque estava tão feliz? A resposta chegaria brevemente. – O teu carro contínua como novo – disse Ndombaxi Canzar após se ter aproximado dele com sua enorme motorizada vermelha. – Uso-o poucas vezes – respondeu o escritor. – Não gosto tanto assim de carros. – E disso que eu uso? – inquiriu Cazenga aparecendo de rompante à frente da janela do auto do escritor. – Gostas dos meus patins? – Não gosto de nada que tenha rodas. Não é que odeie. Apenas não gosto. – Entendo-te perfeitamente – disse Carlos Banzaia posicionando o seu enorme auto preto no lado em que se encontrava o homem de sobrenome Alves. No mesmo instante ouviu-se a buzina do auto de Lourenço Canzar. – Também não gosto de coisas com rodas. Uso-as apenas. Elas me causam um género de enjoo. Nem consigo ler quando estou dentro de um carro em andamento… – Estão a ver o sorriso nos lábios do Usuku – embargou Kaculu. – Não queres contar as novidades aos outros para que eles entendam a razão de tantos dentes a serem exibidos. – Como é que sabias que estávamos aqui? – inquiriu o escritor com displicência. – Nem sequer liguei para ti. Nem tens telefone sequer… – Não precisas de tratar-me desta forma. Não sou o vulto disfarçado de… mim. Sou eu mesmo. Acho que ele desistiu de tentar complicar a tua vida. Sabes muito bem que sei de tudo. Então? Vais contar-lhes ou não? – inquiriu enquanto Lourenço Canzar se aproximava deles após ter descido de seu auto. – 0K. Vou contar. Imaginem quem vai ser pai… – O teu carro? – gracejou Márcio Nassembe. – Acho que não fazem fêmeas desse modelo.– Esse gajo não está aqui connosco – cortou engraçadamente o Banzaia. – Ignorem-no. Tu, Usuku? Tu vais ser pai? – Sim. – respondeu com voz e expressão infantis. – Parabéns, homem! – disseram todos apertando individualmente a mão do outro. – Porque não desces para te abraçarmos? – inquiriu Ndombaxi Canzar. – Tens medo de ser esmagado? – Poupem o meu coração, sim? Ainda tenho de ver o meu filho e fazê-lo correr nu pelo quintal. Poderia até aguentar o abraço do Márcio e do Carlos. Mas o de vocês três? Não, obrigado. Estou bem aqui dentro. E, alem disso, a forma que escolhi para vocês me parabenizarem é outra. – Qual é? – inquiriu Lourenço Canzar. – Fazer suspense não vale… – Interromper-me também não – continuou o escritor entre sorrisos. – O
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Ndombaxi tem a sua moto. O Cazenga tem os seus patins. Tu, o Márcio, o Carlos e eu temos os nossos carros. O Kaculu… Bem, o Kaculu move-se à velocidade da luz. Então… que tal fazermos uma corrida até a praia e ver quem é mais rápido? O meu carro está pronto para vos vencer… – Tens certeza que podes fazer isso? – embargou Cazenga. – Não te vai fazer mal ao coração? – Queres provar que os teus patins não prestam ou que és um médico com diploma comprado na praça? – desafiou o escritor. – Vocês viram? – defendeu-se Cazenga. – Foi ele que pediu para perder. – O Kaculu está aqui para cuidar de tudo se algo correr mal – expos Ndombaxi. – Então? Qual será o meu prémio? – Depois de perderes? – continuou o escritor em tom gozoso. – Nada. Mas o meu será só a satisfação de vos esfregar na cara que vos dei uma grande abada no dia que vos contei que serei pai. Prontos? – Prontos! – responderam depois de estarem todos em posição para desafio. – Então me encontrem lá – disse o escritor descolando ao mesmo tempo que os outros seis. – Porque estás a andar a esta velocidade? – inquiriu o homem de sobrenome Alves após ter despertado e retirado os auscultadores. – Por nada. Há poucos carros na via. Dorme. Daqui a pouco estaremos em casa. – Tu é que sabes. O casado e à espera de um filho aqui és tu. Eu só tenho de me preocupar com quem ficará com este meu telemóvel. Bem, acorda-me dez segundos antes de o carro capotar, para que eu possa pular… – Está fixe. Agora dorme. O enorme auto continuou a andar com extrema celeridade, assim como os outros autos, a motorizada e os patins. Não se podia ver Kaculu. Numa das curvas, os outros tomaram atalhos diferentes. Usuku sorriu. Sabia que assim demorariam para chegar ao local combinado. Acelerou ainda mais e, volvidos alguns minutos, manobrou perigosamente e estacionou o auto. – Ganhei! – disse após ter pegado o seu telemóvel e colocado a chamada em conferência. – É melhor que olhes aqui em baixo antes de cantar vitória – responderam os cinco. Desceu do auto e olhou para baixo. Os seis homens estavam sentados e com roupas de banho. – Despe lá essa camisa, tira essa gravata e essa s calças e vêm tomar o gelado banho da derrota – gracejou Cazenga. – Não voltes a gozar com os meus patins… – …eles não gostam – terminou Lourenço Canzar. – Desço já – disse ao voltar-se e começar a tirar a gravata. Um homem estranho estava parado à frente de si e – fantasmagórico – uma voz bizarra cantava em seu ouvido as seguintes palavras: O Homem do Saco é trocado de dez em dez anos, essa troca a ti causará danos. – Posso ajudá-lo? – inquiriu com temor. – Querendo queres ajudar a mim? Sou em quem te oferece ajuda agora. Sou eu quem te oferece explanação. – Sobre que assunto desta vez? Começo a desconfiar que não passas de uma alucinação…
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– Não sendo sou. Sou real. E te trago esclarecimento. Achas que o Homem do Saco ajudou-te apenas a dar a surpreendente surpresa à Braulia, pois não? Lembras-te que foste iniciado? Passaste pela ngoma usuku, o ritual de passagem. Agora tens apenas dor pela frente. – Como assim? – Não percebendo percebeste? A ngoma usuku é um ritual de passagem de poderes. Neste caso, envolve a passagem dos poderes do Homem do Saco para alguém. – Para mim? – inquiriu sorrindo. – Para isso eu teria de ter dez anos e o tempo do Kaculu como Homem do Saco ser equivalente… Mas se agora é possível que alguém com vinte e oito anos seja iniciado e ganhe poderes sobrenaturais, não vejo sofrimento nisso. – É aí onde te enganando te enganas – dizia antes de proferir as suas últimas palavras e desaparecer deixando o escritor abismado. – A iniciação não foi apenas para ti, mas para a mulher que casou contigo também. Contudo, não é para vocês que o poder será passado, mas para o vosso filho. Ele será raptado a idade de dez anos e desaparecerá por tempo indefinido. Fim
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