NGOMA USUKU
DE PERSONAGENS (A PRIMOGENITURA) Pelรกgio Jorge Chaves Seca JANEIRO 2011
– CAPÍTULO I – ●
O alvorecer do pesadelo
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– Pai, o que são personagens? – São figuras, seres, coisas que fazem parte de uma história. – E o que é uma história? – É um enredo, um conjunto de acontecimentos vividos por personagens de um livro. – E o que é um livro? – É a soma das folhas que contam a história de personagens. – Então, podes falar-me sobre as personagens da história deste livro? – Quantas vezes tenho de te dizer, criança? Tudo o que se escreve se torna mentira e tudo o que se diz se torna verdade. Se te contar a história deste livro, coisas muito más podem acontecer. Não queres que te leia um livro que não seja do pai? – Isso quer dizer que o pai tem medo? – Eu posso até entrar na jaula de um leão se for desafiado para tal (claro que o leão tem de estar morto!), mas, por ti, até o piscar de olhos de um papagaio faz-me molhar as calças. – Muito engraçado o senhor… O único livro aqui em casa que não consigo ler é este. Sempre que o tento fazer, algo leva-me a pedir que o leias para mim. Não entendo! E também já me proibiste mais de mil vezes de o ler… Vais fazê-lo pela milionésima primeira? – Está bem. Hoje vou contar-te a história deste livro. Prepara tudo – disse levantose com o telemóvel à mão. – Vou à cozinha e volto já. Se entrasses num livro, que nome gostarias de ter? – inquiriu após ter ligado para uma mulher e esta ter atendido a chamada. – Eu já entrei em vários livros teus, Usuku… – Mas este é um novo… – Então tens de reformular a tua pergunta… – Responde apenas, Miúda; as secções de chatices e complicações não são a essa hora. – Tu é que sabes… Mas, que a pergunta foi mal feita, foi. Deixa-me ver… Podia chamar-me… Miúda. – Isso é o que eu te chamo. E já tens mais de um livro em que entras com esse nome. – A repetição é a mãe da retenção… – E do tédio também… – Estás com muitas respostas hoje… – E tu estás sem perguntas… – Voltando ao nome, antes que te faça uma pergunta da qual te arrependas. Pode ser Gardénia… O que achas? – Hum… é nome de manteiga!
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– Não! É nome de uma flor. E há uma actriz numa das telenovelas que está a passar que tem esse nome… – Hum… 0K. O nome é bonito, Braulia. Gardénia deve vir de garden, que quer dizer jardim. Só isso já me dá uma boa ideia. – Uh! Ainda bem que gostaste. – Sabes que as personagens dos meus livros têm de ter sobrenomes bantu, não? Vou ter de te arranjar um. Vou ver aqui na lista telefónica. – Espero que arranjes um bonito. Bem, acho que agora estou dispensada… – Ainda não. O que perguntarias que faria eu me arrepender? – Ficou curioso o menino, hein? – Não. Só interessado. – São sinónimos… Aqui vai a pergunta: Esta conversa toda de um nome tem haver com a criança aí em casa querer ouvir a história que pode fazer com que a percamos para sempre? – demandou com voz seriamente triste. – Sim. Tem que ver. – E decidiste contá-la assim do nada? Não tens medo que os teus pesadelos… os nossos pesadelos se tornem realidade? – Vivemos este terror desde que ela tinha três dias em teu ventre. Já se passaram mais de sete anos. Acho que ela precisa ter algum conhecimento sobre o que lhe espera. – Mesmo que tal conhecimento faça com que ela seja raptada? – Probabilidades não são certezas, e factos podem ser controlados. – Pareces estar realmente pronto para isso. Só posso dizer-te mais uma coisa antes de desligar: As lágrimas que choro agora são lágrimas de pânico absoluto. – Miúda, podes ter certeza que neste momento acontece o mesmo comigo. O homem esperou que a pessoa do outro lado da linha desligasse a chamada. Colocou o telemóvel no bolso. Gemeu suspiroso enquanto secava as lágrimas. Falseou um sorriso em seu rosto transtornado e voltou para a sala. A criança estava sentada sobre o tapete do compartimento. Apenas um par de calções vermelhos cobria seu corpo. O escritor despiu-se da camisola antes de se sentar ao seu lado. A criança olhou espantada para as estrias entre os ombros e o peito de Usuku. Havia seis em cada lado e tinham uma cor tepidamente abrasiva. Com as mãos beirando a trepidez, o escritor colou a agenda telefónica ao seu lado e olhou para a criança. Ela sorriu enquanto lhe entregava o livro. Ele recebeu-o e, com expressão paternal disse: – Aqui começa o fim, um fim que é o princípio.
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– CAPÍTULO II – ●
Quando o fim começa
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Um homem de Letras tinha uma paixão e um amor. A sua paixão não podia ser resumida – era extensamente profunda. Começava com ideias desprovidas de nexo que seguiam um caminho para a lógica penetrante e descansavam em escrita excepcional; despertavam dessas mesmas ideias com ímpeto fantasmagórico e despoletavam uma cadeia incomum e indefinida de outras ideias. O seu amor vinha dessa paixão. Contudo, o seu amor podia passar de abstracto a concreto – um corpo naturalmente feminino, um olhar cegante e uma mente inteligente respigada por humildade e sensatez –, mas tal não podia ocorrer com a sua paixão. O máximo de concretização – materialização – que a sua paixão podia ter era a escrita indelével em folhas de papel. Ideias serão sempre impalpáveis, imateriais, metafísicas; assim rezavam o tempo, a lógica e o mundo. Todavia, com o andar dos acontecimentos – oh! que revelação! – as ideias demonstraramse materiais. Não foi um caso de vir a ser ou tornar-se material. Foi precisamente isso: demonstração! O que o homem de Letras pensava ser ideias suas, fruto de sua imaginação, demonstrou-se existente fora de sua mente mesmo antes de ele vir ao mundo. As coisas que escrevera, os enredos que criara, as personagens que inventara – tudo existia antes de ele pensar em romanceá-las. Contradição! Paradoxo! Cúmulo do absurdo! No entanto, negar a realidade – renunciar um facto – é mais tolamente chocante que descobrir que a mentira é verdade. Por este motivo, palavras não se formarão mais como arguição desta descoberta alucinante. Facto é facto: há apenas argumentos para ele, não contraargumentos. Portanto, que se argumente. A descoberta alucinante causou um desmaio ao homem de Letras. Contudo, guardou-a apenas para ele. Contudo, tal achado era apenas a ponta do iceberg – coisas mais agravantes estavam por vir. Ele descobriu que a mulher com a qual se casaria era, na verdade, uma espécie de esposa prometida de uma das pessoas sobre as quais escrevera, mas que, para a protecção desta mesma mulher, a pessoa à qual estava prometida resolveu juntá-los em matrimónio. Casaram-se. A mulher ficou grávida. O homem alegrou-se e foi contar isso às pessoas sobre as quais escrevera. O seu encontro aconteceu da seguinte forma: – O teu carro contínua como novo – disse Ndombaxi Canzar após se ter aproximado de Usuku com sua enorme motorizada vermelha. – Uso-o poucas vezes – respondeu o escritor. – Não gosto muito de carros. – E disso que eu uso? – inquiriu Cazenga aparecendo de rompante à frente da janela do auto do escritor. – Gostas dos meus patins? – Não gosto de nada que tenha rodas. Não é que odeie. Apenas não gosto. – Entendo-te perfeitamente – disse Carlos Banzaia, posicionando o seu enorme auto preto no lado em que se encontrava o homem de sobrenome Alves. No mesmo instante, ouviu-se a buzina do auto de Lourenço Canzar. – Também não gosto de coisas com rodas. Uso-as apenas. Elas me causam um género de enjoo. Nem consigo ler quando
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estou dentro de um carro em andamento; parece que me acaba o oxigénio no cérebro quando o faço… – Estão a ver o sorriso nos lábios do Usuku – embargou Kaculu. – Não queres contar as novidades aos outros para que eles entendam a razão de tanto esmalte a ser exibido? – Como é que sabias que estávamos aqui? – inquiriu o escritor com displicência. – Nem sequer liguei para ti. Nem tens telefone sequer… – Não precisas de me tratar desta forma. Não sou o vulto disfarçado de… mim. Sou eu mesmo. Acho que ele desistiu de tentar complicar a tua vida. Sabes muito bem que sei de tudo. Então? Vais contar-lhes ou não? – inquiriu Kaculu enquanto Lourenço Canzar se aproximava deles após ter descido de seu auto. – 0K. Vou contar. Imaginem quem vai ser pai… – O teu carro? – gracejou Márcio Nassembe. – Acho que não fazem fêmeas desse modelo. – Esse gajo não está aqui connosco – cortou engraçadamente o Banzaia. – Ignorem-no. Tu, Usuku? Tu vais ser pai? – Sim. – respondeu com voz e expressão infantis. – Parabéns, homem! – disseram todos apertando individualmente a mão do outro. – Porque não desces para te abraçarmos? – inquiriu Ndombaxi Canzar. – Tens medo de ser esmagado? – Poupem o meu coração, sim? Ainda tenho de ver o meu filho e fazê-lo correr nu pelo quintal. Poderia até aguentar o abraço do Márcio e do Carlos. Mas o de vocês três? Não, obrigado. Estou bem aqui dentro. E, além disso, a forma que escolhi para vocês me felicitarem é outra. – Qual é? – inquiriu Lourenço Canzar. – Fazer suspense não vale… – Interromper-me também não – continuou o escritor entre sorrisos. – O Ndombaxi tem a sua moto. O Cazenga tem os seus patins. Tu, o Márcio, o Carlos e eu temos os nossos carros. O Kaculu… Bem, o Kaculu move-se à velocidade da luz. Então… que tal fazermos uma corrida até a praia e ver quem é mais rápido? O meu carro está pronto para vos vencer… – Tens certeza que podes fazer isso? – embargou Cazenga. – Não te vai fazer mal ao coração? – Queres provar que os teus patins não prestam ou que és um médico com diploma comprado na praça? – desafiou o escritor. – Vocês viram? – defendeu-se Cazenga. – Foi ele que pediu para perder. – O Kaculu está aqui para cuidar de tudo se algo correr mal – expos Ndombaxi. – Então? Qual será o meu prémio? – Depois de perderes? – continuou o escritor em tom gozoso. – Nada. Mas o meu será a satisfação de vos esfregar na cara que vos dei uma grande abada no dia que vos contei que serei pai. Prontos? – Prontos! – responderam depois de estarem todos em posição para o desafio. – Então me encontrem lá – disse o escritor, descolando ao mesmo tempo que os outros seis. – Porque estás a andar a esta velocidade? – inquiriu o homem de sobrenome Alves após ter despertado e retirado os auscultadores. – Por nada. Há poucos carros na via. Dorme. Daqui a pouco estaremos em casa.
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– Tu é que sabes. O casado e à espera de um filho aqui és tu. Eu só tenho de me preocupar com quem ficará com este meu telemóvel. Bem, acorda-me dez segundos antes de o carro capotar, para que eu possa pular… – Está fixe. Agora dorme. O enorme auto continuou a andar com extrema celeridade, assim como os outros autos, a motorizada e os patins. Não se podia ver Kaculu. Numa das curvas, os outros tomaram atalhos diferentes. Usuku sorriu. Sabia que assim demorariam mais para chegar ao local combinado. Acelerou ainda mais e, volvidos alguns minutos, manobrou perigosamente e estacionou o auto. – Ganhei! – disse após ter pegado o seu telemóvel e colocado a chamada em conferência. – É melhor que olhes aqui em baixo antes de cantar vitória – responderam os cinco. O escritor desceu do auto e olhou para baixo. Os seis homens estavam sentados e com roupas de banho. – Despe lá essa camisa, tira essa gravata e essas calças e vem tomar o gelado banho da derrota – gracejou Cazenga. – Não voltes a gozar com os meus patins… – …eles não gostam – terminou Lourenço Canzar. – Desço já – disse ao voltar-se e começar a tirar a gravata. Um homem estranho estava parado à frente de si e – fantasmagórico – uma voz bizarra cantava em seu ouvido as seguintes palavras: O Homem do Saco é trocado de dez em dez anos, essa troca a ti causará danos. – Posso ajudá-lo? – inquiriu com temor. – Querendo queres ajudar a mim? Sou em quem te oferece ajuda agora. Sou eu quem te oferece explanação. – Sobre que assunto desta vez? Começo a desconfiar que não passas de uma alucinação… – Não sendo sou. Sou real. E trago-te esclarecimento. Achas que o Homem do Saco te ajudou apenas a dar a surpreendente surpresa à Braulia, pois não? Lembras-te que foste iniciado? Passaste pela ngoma usuku, o ritual de passagem. Agora tens apenas dor pela frente. – Como assim? – Não percebendo percebeste? A ngoma usuku é um ritual de passagem de poderes. Neste caso, envolve a passagem dos poderes do Homem do Saco para alguém. – Para mim? – inquiriu sorrindo. – Para isso eu teria de ter dez anos e o tempo do Kaculu como Homem do Saco ser equivalente… Mas se agora é possível que alguém com vinte e oito anos seja iniciado e ganhe poderes sobrenaturais, não vejo sofrimento nisso. – É aí onde enganando-te enganas-te – dizia antes de proferir as suas últimas palavras e desaparecer deixando o escritor abismado. – A iniciação não foi apenas para ti, mas para a mulher que casou contigo também. Contudo, não é para vocês que o poder será passado, mas para o vosso filho. Ele será raptado a idade de dez anos e desaparecerá por tempo indefinido.
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– CAPÍTULO III – ●
Interrupção
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– Pai, o que é fantasmagórico? – Algo fantástico… – E o que metafísico? – Algo abstracto, que não se pode ver, tocar ou cheirar… – Então porque não usas essas palavras mais simples quando contas uma história nos teus livros? – Os meus livros são a minha zona segura, o meu esconderijo; é onde eu posso exprimir o que quero da maneira que realmente desejo. Tu, por exemplo, tens um lugar só teu, um lugar que criaste só com as tua ideias, e mais ninguém pode mexer nele. Todo o mundo tem um lugar assim. – Sim, mas não vou contar qual é o meu a ti, senão ainda vais lá e colocas termos difíceis – disse divertido. – Mas os teus livros não são para outras pessoas lerem? – Sim… – E não seria mais fácil escreveres de uma forma que elas entendam rapidamente? – Não estou aqui para incentivar a preguiça ao uso do dicionário – ripostou entre sorrisos. – Aprendi muitas palavras nos livros que já li. O que queres que eu faça com esses termos todos? Que os transforme em comida para peixe? Olhe para o teu vocabulário: Em parte, ele é rico por causa das coisas que ouves de mim e da tua mãe… – E ainda dizem que eu sou a pessoa mais teimosa dessa casa… Mudando de assunto. Pai, Ndombaxi Canzar, Márcio Nassembe, Kaculu e outros são personagens dos teus livros mais antigos que este? – Sim, criança, são. – E porque entras no livro também? E ainda mais com o teu nome Ngoma Usuku. – Nem tudo tem respostas lógicas… ou fáceis… É uma história que escrevi… – Mas, se tu és o Usuku desse livro e a tua esposa está grávida, então eu sou a criança na barriga dela… – É lógico pensar assim… – E isso de o teu filho ser raptado aplica-se a mim? – Acho que… O tocar da campainha da casa interrompeu a problemática resposta. – Deixa que eu atendo, pai – disse a criança, correndo em direcção à porta. – Não vais para aí descalço – demandou Usuku. – Aviso atrasado. Já abri… – Vens ver o que quero te mostrar ou vais pedir ao papazinho? – inquiriu a pessoa que batera a porta. Era um rapaz. Dez anos devia ser a sua idade. Seu nome? Seu nome era dispensável para o desenrolar dos atordoantes acontecimentos que se aproximavam. – Estou a conversar neste momento com o meu pai… – Sabia que a Vossa Mimosidade teria uma resposta como esta. Dispensais-me em mimos, Alteza? – zombou com vénia, fingindo retirar-se.
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– Espera! Será rápido? – Sim… Alguns segundos. Está mesmo perto do teu portão. A criança olhou para o interior de sua casa. Visionou seu pai conversando ao telefone. Ouviu-o chamar a pessoa do outro lado da linha de C e a mencionar a palavra hebdómada. Parecia tratar-se de algo muito sério o que falava com a pessoa do outro lado da linha. E, se era sério, demoraria algum tempo. Voltou a sua atenção para o rapaz com olhar decidido. – Vamos! – E o teu pai? – Será rápido. Ele nem vai notar a minha ausência. – E vais descalço e sem camisola? – Disseste que está perto do meu portão… – Tu é que sabes… Começaram a andar. Em breves segundos, abriram o portão e alcaçaram a rua. O local estava estranhamente desértico. – Onde está o que querias que eu visse? – Está a chegar – disse o rapaz com olhar maquiavélico. – Eh! Tranquei o teu portão sem querer. – Não te preocupes. Tenho as chaves aqui nos bolsos. – Parabéns para ti. Fecha os olhos agora. – Para…? – É supresa… – Se vou ver agora, qual a necessidade? – Falas demais! Fecha só já os olhos, xé! – Está bem – disse suspirando menosprezo. – Conta até cinco e depois podes abrir. – Idiotice! Mas, aqui vai… Um… dois… três… quatro… cinco! Os seus olhos abriram-se e – apavorante – dois cachorros ferozes corriam em sua direcção. Tentou entrar rapidamente para a casa, mas o rapaz à frente de si empurrou-o. Desequilibrou-se. Caiu em desalinho. Os animais aproximavam-se. Levantou-se rapidamente e começou a correr em escape. Em relativa celeridade, curvou em algumas esquinas, passou por algumas entradas estreitas, derrubou algumas latas de lixo – as bestas continuavam atrás de si. Os seus batimentos cardíacos estavam disparados. O seu corpo aquecia; começava a transpirar. Sem que se apercebesse, um dos animais lançou-se em direcção à sua perna, mas um enorme pedaço de maneira manipulado por um homem derrubou o cachorro. O cão gemeu antes de cair em derrota. O homem corria atrás da outra besta. A besta corria atrás da criança. A criança corria atrás de socorro. Se o homem chamasse por ela, talvez a sua reacção diminuísse a sua velocidade e o animal a alcançasse mais rapidamente. Não podia arriscar. Tinha de derrubar o animal com o pesado pedaço de madeira. Tentou desferir um golpe. Falhou. Voltou a tentar. O pedaço de madeira roçou a cauda do cachorro. Tentou pela terceira vez. Trágico – perdeu o equilíbrio e tombou no amontoado de sacos de lixo à sua esquerda. A criança estava sozinha. O seu redentor havia perdido o seu rasto. E, mesmo que voltasse a encontraá-lo, talvez fosse tarde demais. Continuava a correr. O animal também. A noite começava a evidenciar-se. Sem se aperceber, sangrava levemente na
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perna esquerda. Cortara-se num dos metais soltos pelos quais passara em extrema velocidade. Voltou a curvar numa das esquinas. Estranho – um grupo de jovens apareceu em seu campo de visão no fim da rua. Inquietante – alguns dos jovens tinham coleiras em suas mãos e as coleiras estavam entrelaçadas ao pescoço de cachorros enormes. A criança parou em estremecimento. O cachorro que a seguia lançou-se em direcção ao seu pescoço, mas – fantasmagórico – outro gigantesco cachorro vindo de uma rua transversal lançou-se ao pescoço do animal e o derrubou. O animal derrubado asfixiava-se. – Esteno! – chamou uma rapariga saindo também da rua transversal. – Larga! O gigantesco cachorro obedeceu. O animal derrubado levantou-se e bateu em retirada. O gigantesco cachorro aproximou-se da rapariga e lambeu-lhe a mão. Ela fez-lhe festas na cabeça. Seu nome? Liliana Tchiva. Filiação? Lino e Eduarda Tchiva, sendo este primeiro o homem que disparou contra ela quando tinha apenas nove anos. Os outros jovens eram Derito Tchiva, irmão dela; Bruno e Márcia Nassembe, filhos de um homem que sofreu um terrível acidente que o levou às margens da loucura; Hélder e Raquel Banzaia, filhos de um homem cujo cunhado era um sociopata; Daniela Canzar, filha de um homem que queimou meia dúzia de indivíduos e de uma mulher conhecida como Flagelo Desumano; Ivone Tchivela, filha de um homem que patrocinou o incêndio à casa de sete pessoas. Liliana aproximou-se da criança. Tentou tranquilizá-la, mas esta correu e abraçou o homem com o enorme pedaço de madeira que acabava de chegar. – Não te preocupes, criança – disse o homem. – Estas pessoas não te querem fazer mal. E nunca o quererão. Mas… – Mas precisas de entender porque estamos aqui, não é verdade? – inquiriu Liliana. – Pensavas que seriam novamente os nossos pais a aparecerem para te ajudar? – Sim. Mas acabo de perceber a sequência, a lógica: Quando precisei de ajuda para a surpresa de casamento para a Braulia, apareceram as personagens dos meus livros que são parecidas a mim, que pensam como eu; agora quem precisa de ajuda é um dos meus filhos, então aparecem vocês, filhos delas… – Exacto – disse Ivone Tchivela aproximando-se. – Contudo, a parte de chamares personagens aos nossos pais é um erro. Já devias ter superado isso. É tudo real aqui; somos todos reais. E alguns dos nossos pais já o eram quando tu mesmo pertencias ainda ao mundo dos sonhos. A Tchivela rondava-o enquanto falava. Observava-o com volúpia. Passou-lhe a mão delgada sobre o pescoço tepidamente suado e fixou o olhar em seu tórax despido. Descia lentamente os seus dedos quando a chegada de um enorme auto preto a interrompeu. – Entrem para o carro – disse o homem ao voltante. Uma rapariga estava sentada ao seu lado. – Não temos tempo a perder. A frota de jovens e canídeos obedeceu à ordem do recém-chegado. O escritor e a criança entre seus braços fitavam-nos. – Entras ou preferes lidar com esta situação sozinho? – voltou a pronunciar-se o condutor. – Sabes muito bem que não posso lidar com isto com as minhas próprias mãos. Estava apenas atónito por causa da rapidez com que apareceste – respondeu o escritor passando para o interior do auto.
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– Há mais de sete anos que sabes que isto aconteceria. Não devias surpreender-te tanto, homem. Começaste a perder a tua insensiblidade? – inquiriu enquanto o auto entrava em célere andamento. – Sabes muito bem que sou apenas insensível quando a coisa tem que ver comigo; se for algo que afecte as pessoas amo… – Pai, quem são estas pessoas? – interrompeu a criança, sussurrando-lhe. – São amigas. Lembras-te do que te falei sobre um dia termos de viver uma situação muito estranha como nos desenhos animados? Pois bem; esta é a situação. Mantém a calma. É como nos teus sonhos. Sê amigável com elas. – Vou tentar. Mas o estranho é que acho que já as conheço. – De onde? – Da minha escola. Aquela menina dos olhos verdes e a menina ao lado do motorista ficam sempre sentadas no pátio… A moça que te tocou o pescoço e aqueles rapazes estão sempre a rondar os corredores e, sempre que saio, essa outra passa sempre com este cão dela…
– Dá-me a tua definição de sempre. Desde quando eles fazem isso? – Há mais de um mês… – E porque não me disseste nada? – Não sabia se tinha importância… – Tem, criança, tem. E muita! – Pai, há algo de errado comigo? – Não, não há. Há apenas algo sério, não errado. – Como assim? – As duas comadres já podem deixar de cochichar aí atrás – disse a Tchivela. – Chegámos! A frota de jovens e canídeos desceu do auto. O escritor e a criança – idem. O condutor e a menina ao seu lado – ibidem. A casa à frente de si era imponentemente descomunal. O local tinha isolado como adjectivo. O cenário pardamente nocturno causava calafrios aos mais sensíveis. Adentraram. – Queres continuar apenas de calções? – inquiriu o condutor ao escritor. – Tens algo que eu e a minha criança possamos vestir? – Claro! Tu vens comigo. Menina, podes levar a criança e dar-lhe o que vestir? A menina concordou com a cabeça. Deu alguns passos de aproximação e estendeu a mão para a criança. A criança não se moveu; fixou apenas o olhar na imagem dela. Os seus olhos eram alegres e celestes, assim como seu sorriso. Quinze anos era a sua idade. Seu nome? Bengui. Seu cognome? Massela. Anjo Bengui era o que comummente a chamavam por causa de suas feições encantadoras e seus gestos ponderados. Contudo, sua presença angelical escondia um passado traumatizante – um passado em que fora vilmente contaminada por uma doença hodiernamente incurável. – Podes pegar a minha mão – disse ela. – Não tenho garras e não ladro… A criança olhou para o escritor. Este incentivou-o a aceitar o convite. Fê-lo; pegou a mão da menina e esta dirigiu-a para o interior da casa, enquanto Usuku e o condutor encaminhavam-se para outro local. Ora, o condutor era pai de alguém entre a frota de jovens. – Porque o teu pai te chama de criança? Porque ele não diz o teu nome? – demandou Bengui com voz amigável. – Eu também só o chamo de pai… 10
– Qualquer pessoa com a tua idade pode ser chamada de criança… – Muitas pessoas na idade dele podem ser chamadas de pai… – Então porque ele não te chama de filho? A criança sorriu antes de responder. – Porque não sou filho… – Como assim? – Olha bem para os meus olhos e para os meus lábios… – Tens os olhos e os lábios do teu pai… – Então não vais entender o que quero te dizer agora… Que buraco é este? – Aproxima-te e verás… A criança hesitou. – Medo? – gozou Bengui. – Não, claro que não! – Claro… Então, muito medo? – Os meus pés responder-te-ão… Deu passos de aproximação enquanto falava. Bengui deu alguns de afastamento. À margem da abordagem receosa – espanto –, seu campo de visão foi preenchido por uma imagem extraordinária. Sete pessoas estavam dentro de uma jaula e – surreal –, do lado de fora, duas feras, duas gigantecas palancas brancas com listras pretas, rondavamna. As bestas tinham boca e dentição felinas. Os seus cascos eram extranhamente aguçados e pesados – o chão tremia com suas pisadas. Assustador – uma das feras sentiu a presença da criança. Virou o olhar ferino para ela. Começou a galopar – subia o buraco em direcção à criança. Saltou sobre ela. Esta caiu assombrada. À velocidade relâmpago, o escritor apareceu correndo em seu auxílio. A fera olhou de forma assassina para ele enquanto se aproximava. Não houve hesitação – Usuku lançou-se em esquivas para a criança e protegeu-a entre seus braços. A besta salivou sobre as costas dele. O escritor apertou mais fortemente a sua prole. – Não tenhas medo – sussurou Usuku. – É apenas como nos desenhos animados. Tudo tem graça; tudo é cómico, como nos teus sonhos…
Sentindo um estranho ardor em seu olfacto, a gigantesca fera rugiu e voltou para o buraco. – O bichano não iria fazer nada ao teu filho, sabes disso, não sabes? – inquiriu Ivone Tchivela. – Não estou interessado em calmantes no momento – respondeu com displicência. – Apenas não quero a minha criança traumatizada… – Isso é apenas o princípio do que viemos fazer aqui. E, depois, ele não se lembrará disso depois dos dez anos… – Tu também tens um filho. Como te sentirias se ele tivesse o mesmo destino? – Inundava o mundo para que todos morressem e para que ninguém pudesse lhe fazer mal algum! Não suportaria a distância de um dia. Quanto mais a de dez anos! Mas isso seria eu, não tu. Estamos a falar do teu filho e de ti. – Sabes o que é ser traumatizado pela tua irmã? Sabes o que é passar dias a fio relembrando surras, soterramentos, desmaios e o medo de perderes quem amas? – Continuas a tentar passar o teu problema para mim. Não tenho nada que ver com as acções da Natércia e, mesmo que tivesse, tu continuas a ser o assunto, não a minha família.
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– Senhores, senhores – acalmou o condutor. – Deixem o fogo para depois. Bengui, por favor, leve a criança para trocar de roupa. – Vem – chamou Bengui. – Prometo não te desafiar outra vez. – E eu prometo vencer outra vez se o fizeres – respondeu a criança, andando com ela. – Para onde foi o animal? – inquiriu o escritor. – Entrou para este buraco atrás de ti – respondeu o condutor. Usuku voltou-se e olhou para o interior da enorme cavidade sobre o chão. Viu os gigantescos animais rondando a jaula. Viu as pessoas aprisonadas. Reconheceu-as. Estremeceu. – O que fazem eles aqui? Porque estão presos? – demandou atónito. – São algumas das pessoas que fazem comentários sobre os teus livros enquanto os escreves – respondeu a Tchivela. – Isto já sei. Perguntei o que elas fazem aqui… – Quando precisaste de ajuda para a «surpresa surpreendente» para a tua esposa, apareceram os nossos pais e algumas das pessoas que contribuem com ideias para os teus livros foram reunidas para o processo – reconveio Liliana Tchiva. – Agora dá-se o mesmo, mas com o teu filho. – Percebo, mas porque estão presas? – O Kaculu quis ter a certeza que nenhum deles foi contaminado pelos vultos – continuou Liliana. – Porque, se fossem, o teu filho não estaria seguro aqui. – Bem pensado. E quanto tempo vai demorar até que ele tenha a confirmação da corrupção ou da incorrupção? – Não há um tempo real para isso. Os vultos estão cada vez mais fortes e astutos. – Mas eles não podem ficar aí para sempre… – Então teremos de arriscar. Escolhe um… – Escolher um? Para quê? – Para sabermos se eles não foram contaminados… – Mesmo que escolhermos um e descobrirmos que não foi corrompido, essa confirmação servirá apenas para ele mesmo, não para as outras seis pessoas… – Melhor do que nada, não achas? Vá lá, escolhe um… – Não acontecerá nada aos outros seis? – Se não estiverem corrompidos, não. – Já pensaram no trauma que isso pode causar a eles? E se eles falarem sobre esses montros na televisão? – Estás preocupado demais – respondeu Daniela Canzar. – Apagou-se da tua memória a lembrança de que aquelas outras pessoas que falaram com os nossos pais se esqueceram de tudo no dia seguinte? – Então tenho mesmo de escolher… Não posso ficar a me preocupar ao mesmo tempo com a minha criança e com os meus amigos. Quanto mais rápido sair desta situação, melhor. Eu escolho a mulher à extrema-esquerda. Podem deixá-la sair… A jaula abriu-se sozinha. Derito Tchiva desceu e retirou a mulher de lá. Houve alguma altercação vinda das seis pessoas na jaula que tentavam proteger a mulher, mas a presença das duas feras gigantescas demoveu-as. Derito subiu com ela. A mulher levantou os olhos e reconheceu Usuku. Correu para ele e abraçou-o aos prantos. O
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escritor encaminhou-a para um assento e tentou acalmá-la. Momentos depois, a criança e Bengui apareceram. A crinça reconheceu a mulher e correu para ela. – Também estás aqui para sorrir? – inquiriu com inocência. – Sim – respondeu a mulher com falsa alegria. – Devemos estar num sonho… – Sim, num sonho cómico – continuou a criança. – Como nos desenhos animados… Mas vais ter de ter coragem. – Porquê? – Porque aqui as coisas podem pôr medo. E quem sente medo sofre. – Vou tentar não ter medo então… – Tentar não vale… – Então não vou ter medo. – Levantem-se! – ordenou o condutor com voz altiva. Todos obedeceram. Um enorme homem apareceu em seu campo de visão. Era Kaculu, o homem que raptaria a criança entre a mulher e o escritor. Ora, o sobrenome da mulher era Samba.
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– CAPÍTULO IV – ●
Um passado presente no futuro
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– Mãe, o jantar já está pronto? – Falta pouco, criança… – Faltaria menos ainda se não estivesses aí na cozinha a tentar ligar a toda hora para o pai? – Atrapalharias menos se não ficasses aí a zungar no quintal enquanto tento cozinhar… – Foste tu quem pediu para que eu viesse para aqui… – O meu pedido foi para veres apenas se a roupa aí nos fios já está seca. – Mas não disseste por quanto tempo. Ainda estou a ver… – Sei… Ver formigas a transportar moscas mortas agora é o mesmo que ver as roupas. – As duas coisas fazem-se com os olhos… – Então faça uma coisa com a boca: fecha-a! – Agora? – Já devias… – Mãe… – O que é? As formigas estão a transportar as roupas agora? – Seria um mambo fixe se o fizessem, mas não é isso. Vamos dar uma festa? – Não! Não vês que estou preocupadíssima com as pessoas lá de casa? Pára de falar por uns instantes… – Então, porque convidaste estas senhoras aqui? Elas trouxeram bolos e pudim. E a vovó Lulu está aqui com elas… Braulia abandonou os seus quefazeres na cozinha e aproximou-se do quintal. Intrigou-se. Exceptuando a mulher idosa vestida de forma tradicional, não reconheceu nenhuma daquelas figuras. – Dona Luísa – cumprimentou entre beijos. – São suas amigas? – Hoje não sou Dona Luísa nem vovó Lulu – respondeu secamente. – Sou Mbambi, e estas mulheres vieram ajudar-nos naquele assunto… Braulia cumprimentou as mulheres. Apresentam-se em menções nominativas. A primeira – Sande Negage, uma mulher com passado de prostituição, vítima de estupro e acusada de vender os seus próprios filhos. (Ora, esta mesma Negage era a mãe da rapariga de cognome Massela, comummente chamada de anjo Bengui.) A segunda – Quela Caála, uma mulher religiosa cujo deslize carnal a levara às margens de cometer a profanação do aborto. A terceira – Nazaré Canzar, uma mulher gigantesca com passado de pedofilia e encarceramento. (Esta mesma Canzar era mãe do condutor que levara Usuku, sua prole e a frota de jovens e canídeos àquela casa descomunal.) A quarta – Paula Muhongo, uma mulher dada a beneficência, mas que partira um vaso na cabeça do namorado quando este tentou violentá-la. A quinta – uma mulher conhecida apenas como «Rapariga da Casa 48»; tinha o passado de treinar um gang de rua horripilantemente
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violento e de ser anti-social. (Esta mesma Rapariga era filha da segunda mulher, Quela Caála.) – Interessante – disse Braulia, enquanto conduzia todas para a sala. – Sobre que assunto, Dona Luísa? – Mbambi… O assunto sobre essa criança. – Como assim? Pensei que soubesses. A criança não é esta, mas a que ficou em Luanda com o Usuku… – Sei muito bem. Mas o assunto é convergente… Braulia levou a mão à boca. Tremeu quando conseguiu respirar. Tentou acalmase. Retirou o telemóvel do bolso de seu avental e intentou discar um número. Bárbaro – a idosa recebeu-lhe o aparelho. – O que estás a fazer, Dona Luísa? – inquiriu espantada. – Não podes fazer uma única coisa sem dar a conhecer ao teu marido? – É um caso de profundo respeito e consideração… – Parece mais despeito e subordinação… – Parecer e ser têm muita diferença semântica… – Até onde sabes. Mas não podes ligar para o teu marido, Braulia. – E se acontecer algo grave? – Poderás usar o meu telefone – respondeu Nazaré Canzar. – Mãe, já posso tirar essas tampas e devorar os bolos? – Ainda não, criança – respondeu em temores, puxando a criança para si e aprisioná-la protectoramente entre seus braços. – Primeiro o jantar, depois a sobremesa. – E se o jantar souber à sobremesa? – Não deixará de ser jantar. – E se eu servir a sobremesa no prato do jantar? – Antes ou depois de jantares? – Antes… – Já disse: primeiro o jantar, depois a sobremesa – disse, sentando-se com ela em desconcerto. – Deixa de entulhar a mãe de perguntas – interrompeu a mulher idosa. – Não tens algo a fazer agora? – Agora? Não. Só depois do jantar… – E o que é? – Devorar a sobremesa. – Como é que consegues suportar uma criança assim todos os dias, Braulia? – inquiriu Paula Muhongo entre sorrisos imaculados. – Suportar o pai dela é pior. E o que vocês querem fazer aqui? – Não preferes que te respondamos a esta pergunta longe dos ouvidos infantis aqui? – inquiriu Sande Negage. – Não. Prefiro que ela esteja aqui comigo. Assim ficarei mais descansada. – Não tens medo que ele fique abalado com o que ouvirá aqui? – continuou a Caála. – Já disse: Assim estou mais descansada. – A mulher demonstra-se preparada – embargou a rapariga da casa 48. – Falem de uam vez.
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– A quem culpas por um dos teus filhos ter o destino de ser raptado e ficar dez anos longe de ti? – demandou Nazaré Canzar. – A ninguém. Impossíveis, às vezes, acontecem. – Não seria mais fácil ter alguém em quem culpares, alguém em quem odiares por esta situção? – continuou a Canzar. – Odiar não me levaria a acções benignas. Queres ir directamente ao ponto? – Como queiras. Viemos mostrar-te que o teu passado tem tudo haver com o que acontece no presente… – … e que este presente levará a um futuro sombrio – terminou a mulher idosa. – Como assim? – É precisamente como ouviste – continuou a idosa. – Estamos a dizer-te que a culpada do destino dos vossos filhos és tu.
♣ – Quanto tempo se passou desde o nosso último encontro? – inquiriu Kaculu, estendendo a mão para o escritor. – Uns sete anos – respondeu o outro, retribuindo o gesto. – E não mudaste nada! – Nem tu… – Mas a tua criança mudou. Era uma coisa microscópica quando me falaste sobre ela. Como estás? – Estou bem, senhor – respondeu a prole do escritor. – Qual é o teu nome? – Kiela. – Interessante. Kiela, como o jogo… Deves ter algum jeito especial para resolver as coisas… – Sim, tenho. O nome do senhor é…? – Kaculu. – Interessante. Kaculu, como o nome que se dá ao mais velho de dois gémeos em algumas culturas daqui. Deves ter um irmão gémeo… – Não, não tenho… – Então, porque te deram este nome? – Não sei, mas se procurarmos por uma explicação lógica, talvez seja porque eu iria trabalhar com dois gémeos em um enorme projecto… – E trabalhas? – Sim. Nunca ouviste falar de Kitexi e Wanga? – São dois novos cantores de kuduru? – inquiriu em tom gozoso. – Não – respondeu entre sorrisos. – São os dois gémeos que trabalham comigo. E, se ainda procurarmos por lógica no meu nome, poderia dizer-te que alguém que é gémeo me substituirá no trabalho que faço. – Eu sou! Esse trabalho pode ser dado a alguém da minha idade? – Não há nada que as pessoas possam comer aqui? – interrompeu Usuku. O fácil entrosamento entre sua prole e o raptor intrigava-o – era-lhe desagradável. Kiela ainda não entendia, mas o que se passava aí era um angustiante encontro entre 16
predador e presa. Contudo, a espontânea interacção entre ambos era assombrosa. Pareciam partilhar pensamentos, emoções. Síndrome de Estocolmo? Impossível! Nem sequer tinha sido raptada ainda! E de onde viera aquela informação de que o nome de Kaculu se referia a gémeos? Quem ensinara aquilo à criança? Conhecimento não vem do nada – é necessário aquisição de alguma fonte. Usuku não era essa fonte, e não sabia quem poderia ser. – Machos com fome são machos com fraquezas – repudiou Ivone Tchivela, embargando os pensamentos do escritor. – Fêmeas metediças nem fêmeas são – depreciou Usuku. – Porque essa reunião tinha de ser feita três anos antes, Kaculu? – Parecia que nunca mais perguntavas – desoprimiu o inquirido. – Lembras-te que o Kazumbi e o Jacaré Bangão têm de ser substituídos em sete anos, não? – Não é bem assim. Escolhe-se duas pessoas que são treinadas três anos antes desta substituição. Só depois deste tempo é que os anteriores Jacaré Bangão e Kazumbi transferem totalmente os seus poderes para esses novos e voltam para a sua vida normal. Na verdade, a soma dos três anos de aprendizado e os sete de efectividade é igual a dez. Vendo bem, não há diferença entre o tempo de efectividade do Homem do Saco e desses dois. Todos demoram dez anos com os poderes. – Finalmente fazes algum comentário com alguma sabedoria – dissecou Daniela Canzar. Sua idade? Vinte anos. – Já estava a ficar com dúvidas sobre os comentários que ouvi sobre ti… – Nunca duvides deste homem, amiga – recomendou Hélder Banzaia. Catorze anos era a sua idade. – Ele é precisamente como o meu pai, o Carlos. Está cheio de jogos e testes. Tudo o que faz tem um plano… ou é aproveitado para um. – O meu tio Lourenço também assim – revalidou a Canzar. – Sei bem com quem lido. Mas uma coisa é o meu tio com quem vivo desde que nasci e outra é este homem que o vejo pela segunda vez em minha vida. – Quando foi a primeira? – inquiriu Raquel Banzaia. Idade? Dezoito anos. – Eu tinha treze anos na altura. Ele precisava de umas ideias para o seu casamento e o meu pai e o meu tio apareceram para dar uma ajuda. Apareci de raspão, nem falamos muito. – A secção de memórias sem nexo é lá fora, ó Canzar júnior – interrompeu Ivone Tchivela. – Estamos a tratar de coisas com sentido agora… – Vais deixar que ela fale assim contigo, Daniela? – sussurrou Raquel Banzaia. – Não te preocupes com isso – respondeu a outra com alegria. – Convivo com ela há muito tempo. É o jeito dela… – Disseste bem – recomeçou Kaculu. – Escolhe-se duas pessoas que são treinadas três anos antes da substituição do Kazumbi e do Jacaré Bangão. O tempo para esta escolha é este. Já se passaram sete anos. E este tempo corresponde a idade da tua criança. – Incorrecto – replicou o escritor. – A minha criança tem seis anos, não sete. – Não, pai – retrucou Kiela. – Tenho sete. – Tu nasceste há seis anos. Como podes ter sete, criança? Dá-me a tua definição de sete… – Lembras-te daquela história que começaste a contar para mim lá em casa? Se contarmos que aquele Homem do Saco havia recebido os poderes três meses antes do teu
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casamento, que a mãe ficou grávida três meses depois disso (já são seis meses) e que já se passaram cinco anos e nove meses desde então, teremos os sete anos. – Não – abjurou o escritor. – Teremos apenas seis anos e três meses. Faltam nove meses… – Se contares os nove meses que a mãe ficou grávida, teremos então os sete anos – culminou Kiela. Usuku trepidou. Como podia aquela criança ter chegado àqueles cálculos em tão pouco tempo e com aquela idade? Kiela não tinha a inteligência de uma criança normal – o escritor sabia disso sobejamente. Contudo, o que presenciava naquele momento era-lhe totalmente estranho, totalmente descomunal. Algo havia mudado no repertório gnóstico e epistémico de sua prole – Kiela parecia ter agora conhecimento incontestável e transcendental da vida humana, conhecimento que não fora adquirido de forma abstracta, intelectual nem discursiva, e conhecimento racional, científico, filosófico, teórico e empírico. Como era aquilo possível? O que Usuku podia entender era apenas que tal transformação começara apenas depois da chegada de Kaculu. Seria coincidência? Como poderia obter as respostas. Simples: esperando, observando e testando. E era isso o que fazia. – Não vejo porque tentaste me corrigir – disse Kaculu. – Tu mesmo já disseste que a tua criança tem sete anos, embora, na verdade, tenha apenas cinco anos e nove meses. – Uma coisa é eu dizer isso e saber porque o digo, outra é a minha criança entender esses cálculos com extrema facilidade explicar-mos com tanta precisão… – Tu tentaste corrigir o Kaculu antes do teu filho falar sobre os cálculos dos sete anos – replicou Ivone Tchivela. – Então eu devo ter outra coisa em mente – vagueou o escritor em tom cortante. – Podes continuar, Kaculu… – As pessoas que substituirão o Kazumbi e o Jacaré Bangão serão escolhidas hoje… – E o que isto tem que ver com a minha criança? – Enquanto os novatos estiverem a passar pela ngoma usuku, os vultos tentarão apoderar-se daquilo que mais amas. – Porquê? – Porque estaremos todos, eu (Homem do Saco), Kitexi (Kazumbi) e Wanga (Jacaré Bangão), com os poderes focados na ngoma usuku. – A minha pergunta permanece… – Se estivermos com os nossos poderes totalmente concentrados em apenas uma coisa, quem protegerá aquilo que amas? – Pelos poderes que os vultos têm, ninguém – respondeu o escritor em conclusão. – Por isso decidiste reunir-nos aqui para que, embora assistamos também a uma ngoma usuku à qual não pertencemos, possas proteger-nos. Mas, disseste que eles tentarão apoderar-se daquilo que mais amo. A Braulia… a criança… – Acalma-te. Nada lhes acontecerá. Providências também foram tomadas para tal. – Pai, quando é que vais acabar de contar aquela história? – interrompeu Kiela. – Assim que tudo aqui ficar calmo, criança…
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– Queres fazer o favor de parar de chamar o miúdo de criança? – vociferou Ivone Tchivela. – Ele tem nome: Kiela. É um rapaz que assumirá uma grande responsabilidade dentro em breve. Até pareces que banalizas a vida dele… – Nem o meu pai nem a minha mãe podem dizer o meu nome – revelou Kiela. – Porquê? – inquiriu Bengui. – Porque ele trocou os gémeos – continuou Kaculu. – O rapaz que vocês pensam que ficará com os meus poderes dentro de quinze meses não está aqui. – Como assim?! – inquiriu Ivone Tchivela em espanto. A prole de Usuku dirigiu-se ao meio e vageou brevemente o olhar para todos no local. Um breve sorriso ao escritor simbolizou um pedido de permissão. Usuku consentiu. A criança cruzou os braços e disse em triunfo: – Eu sou Kiela. Cinco anos e nove meses é a minha idade. Meus pais são Ngoma Usuku e Braulia. Partilhei o mesmo ventre com Lunga. Sou uma menina.
♣ – O que acabas de dizer não tem qualquer sentido – disse Braulia em espanto. – Não tem – reconheceu a idosa –, mas terá… assim que ouvires o que tenho a te dizer. – Se for mais uma daquelas suas histórias malucas, não me interessa ouvir, Dona Luísa! Já estou com problemas a mais para me preocupar com insanidades! – Mbambi… Já te disse que o meu nome aqui é Mbambi. Chama-me o que quiseres depois de ouvir o que tenho para te contar. Posso começar? – A senhora sabe muito bem o que pode acontecer dentro de momentos. Um dos meus filhos pode ser raptado. Acha que este é o momento ideial para contar histórias? Acha que lhe prestarei alguma atenção? E ainda mais, vens acusar-me? – O que sabes sobre o rapto do teu filho? – embargou calmamente Nazaré Canzar, a mulher gigantesca. – O que te contou o teu marido? – Contou-me que pessoas más iriam querer ficar com ele… – Só isso? E não perguntaste a razão? – continuou a Canzar. – Contou-me que era por causa de algo que ele escrevera nos seus livros… – E acreditaste? Alguém iria raptar o vosso filho por causa de algo que ele escreveu num de seus livros, e ainda assim ele continua a escrever e a publicar novas histórias? Não é meio estranho para ti? Não achaste que ele estava louco ou algo do género? Porque não nos contas a verdadeira razão de acreditares nele? – Vocês sabem de muita coisa – retrucou constrangida. – Quem vos contou isso tudo? – Confie em nós – disse Sande Negage, repousando a sua mão na mão dela. – Já passamos por coisas parecidas. Estamos aqui para oferecer ajuda, estamos aqui para oferecer esclarecimento… – Passaram por coisas parecidas? Como assim? – Vivi quase duas décadas distante dos meus filhos – disse a Negage. – A dor é insuportável. Sabes aquilo que sentimos quando os nossos filhos estão doentes e só podemos colocá-los no colo e esperarmos que o remédio que eles tomaram os ajude a
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melhorar o mais rapidamente possível? Bem, multiplique isso por cinco e coloque uma pedra de vinte quilos nas costas… Será parcialmente parecido ao que se sente… – Eu também tive de viver algum tempo distante do meu filho – disse a rapariga da casa 48. – O pai dele era um monstro! Tive de escondê-lo na casa da minha mãe por anos! – Eu quase perdi a minha filha por ser me comportar de forma estúpida – respingou Quela Caála. – Apenas o sentimento de que iria perdê-la por causa disso atordoa-me até o momento… – Já percebi – cortou Braulia. – Vocês querem deixar-me à vontade com as vossas historiaszinhas tristes para que eu fique à vontade e me abra com vocês. Bem, já estou mesmo sobre muita pressão. Falar sobre ela não vai piorar nem um pouco a angústia… Sim, pensei que o meu marido estivesse louco quando me contou isso. Mas algumas coisas que ele dizia que aconteceriam como prenúncio disso aconteceram. Coisas estranhas aconteceram… – Coisas tais como? – Coisas como eu estar no período fértil mesmo estando grávida. Coisas como eu ficar grávida de outro filho dois meses depois de já estar grávida de um. Coisas como eu dar à luz a um filho de parto normal e no mesmo momento dar à luz a outro por cezariana… – Coisa macabra! – deixou escapar Paula Muhongo. – E sobre quem raptaria o vosso filho? Ele contou-te? – Se é o nome que queres saber, não! Se não era um caso de apresentar queixa a polícia e o tipo ficar apodrecer atrás das grades… – Isso se se pudesse condenar alguém antes de comenter um crime – retrucou Nazaré Canzar. – Ele te mostrou a coisa que ele havia escrito nos seus livros que levariam tal pessoa a raptar o vosso filho? – Não, mas acho que foi porque nunca lhe pedi para me mostrar… – E não achas estranho nunca teres pedido? – continuou a Canzar. – É algo que envolve a vida do teu filho. Faltar-te interesse em algo assim é esquisto, não? – Sei lá! Talvez tenha apenas pensado na segurança do meu filho, não na razão de ela ter sido posta em perigo… – Tu nunca leste nenhum dos livros do teu marido, pois não? – inquiriu a rapariga da casa 48. – Apenas extractos. Sou médica; estou cheia de papeladas para ler e doentes para curar… Onde tiraria tempo? Porque perguntas? – Por causa dos nossos nomes. Apresentamo-nos e nem sequer achaste estranhos os nossos nomes – continou a da casa 48. – Se lesses os livros deles saberias quem somos. Mas não é sobre nós que viemos para aqui falar. É sobre ti. Lembras-te do teu casamento? – Como não podia me lembrar? Foi um dos dias que mais chorei de alegria e tristeza na minha vida… – O que dirias se te dissesse que o homem com qual casaste naquele dia não era o Usuku? – Simplesmente não acreditaria… – Então tens de ouvir a história que a a avó do teu marido tem para te contar…
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Braulia suspirou. Passou os dedos sobre os cabelos da criança em seu colo com sofreguidão. Fechou os olhos por alguns segundos. Voltou a suspirar, depois tornou-se audível. – Conta, Dona Luísa… – Mãe, a comida não deve estar a queimar na cozinha? – interrompeu a criança. – Não. Já está tudo apagado aí. Já servi para ti até. Estava a dar tempo para que a comida esfriasse. Podes ir tirar o teu prato. – Prefiro jantar na cozinha mesmo. Se eu quizer repetir o prato será mais fácil. A senhora Nazaré tem esse corpo por comer bolos e pudins? – Não – respondeu a Canzar entre sorrisos. – Porquê? – Porque vou deixar a senhora a controlar a minha sobremesa. És a maior aqui. Quem tentar colocar mão, podes fazer-lhe o que quiser. – E se for eu mesma a tentar colocar? – Então nunca mais confiarei em mulher alguma… – Mas estás apenas a falar da tua sobremesa. Também há sobremesa para nós aqui. Podemos comer a nossa parte… – Não! Só depois do jantar… Palavras da dona de casa. As visitas também têm de cumprir com isso. – Então vai… Como te chamas? – Lunga, o homem da casa. – Então vai, Lunga. A tua sobremesa será contralada por mim… Lunga deu alguns passos e desapareceu do campo de visão das mulheres na sala. As batidas do coração de Braulia acompanharam-no. – Sou toda ouvidos agora. Podes contar a história. – Muito bem – disse a idosa. – Aqui vai: «Uma mulher tinha poderes estraordinários – poderes capazes de asfixiar o sol e estuprar a lua. Contudo, a mulher não era uma mulher, mas uma menina, uma menina de dez anos. Ela havia sido separada de seus pais, raptada, para que pudesse cumprir um papel muito importante na história de seu país. A menina aceitou o papel, cumpriu-o com atarracado frenesi. Os poderes que tinham fizeram-lhe ganhar o corpo de mulher. Todavia, antes que se completassem dez anos, teve de escolher outra criança para a substituir. «Escolheu-a, treinou-a. Deixou os poderes com ela e desapareceu de sua vida. Mal sabia a menina-mulher que a criança se apaioxanara perdidamente por ela. A criança procurou-a, encontrou-a. A sua vida estava banhada por problemas e ressecada de soluções. A criança pensou em ajudá-la, contudo, se o fizesse, perderia parte dos poderes que tinha e os seres contra os quais lutava aproveitar-se-iam de tal fraqueza para prejudicar o país a que pertenciam. Amor e dever? O que escolheria a crinça? Escolheu o amor. Ajudou a mulher. Transformou seu corpo. Fez com que esquecesse seu passado. Colocou-a a ajudar pessoas. Deu-lhe um homem para casar. Contudo, tal homem não era um homem qualquer, mas um homem perspicazmente escolhido. A criança sofria por causa do que havia feito. Então, para que se pudesse despedir de uma vez por todas de seu amor, ela decidiu que, no dia do casamento deles, tomaria o corpo do homem, colocaria o anel na mão dela, beijá-la-ia, dançaria com ela e depois desapareceria para sempre.»
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– E o nome dessas três pessoas – interrompeu Braulia. – Não podes dizer claramente? Quem são a menina-mulher, a criança e o homem dessa tua história? – Creio que entendeste muito bem. Deixa-me continuar. No fim poderás falar. Enquanto as palavras ainda estavam na boca da idosa – assustador – um grito infantil cortou a audição das mulheres na sala. Braulia levantou-se em tremor e dirigiu-se às pressas para a cozinha.
♣ – Como pudemos trazer uma menina em vez do rapaz? – demandou a Tchivela em fúria. – Eu vi essa criança a correr apenas de calções. Não havia nada em seu corpo que dizia que era uma menina… – Eles são gémeos – comentou Raquel Banzaia. – E idênticos. Com a idade de seis anos, não deve ser de todo estranho não conseguir destinguir um rapaz de uma menina, principalmente se a menina estiver com roupas e corte de rapaz… – Tu cortaste o cabelo da tua própria filha apenas para que a confundíssemos? – voltou a atacar a Tchivela. O escritor permanceu em silêncio. – O teu plano é proteger o teu filho – julgou Daniela Canzar – E, para isso, decidiste entregar a tua filha na conta dele… – Que género de pai és tu? – aguilhoou a Tchivela. – Que tipo de pai protege um filho sacrificando outro? – Não deixes que os teus sentimentos maternais ofusquem o plano geral de teu encargo, Ivone – disse o condutor. – Que encargo? Um encargo que envolve ajudar um homem que sacrifica a própria filha? Espera! Tu já sabias disso? E ainda assim deixaste-nos trazer a pessoa errada?! E, pelo peneirar da fuba, o Kaculu também já sabia… O que se passa na cabeça de vocês, homens? Nenhum de vocês tem sentimentos? Pudera! Um é um indomesticável, o outro é uma criança com corpo de adulto e poderes e o outro é um escritor; só entende mesmo de letras e papéis! Como poderiam sentir alguma coisa? – Ivone – chamou calmamente Usuku. – O que é? Vais defender-te agora? Achas que há alguma explicação possível para o que fizeste? – Um dos dedos da tua mão esquerda está a sangrar – avisou o escritor. – Acho melhor cuidares disso… – Podem libertar o resto das seis pessoas aí em baixo – disse a Tchivela, enquanto se retirava em desânimo. – Já achamos quem foi corrompido. – O que quer ela dizer com isso? – demandou Usuku. – Ela tocou em todos que estão aqui antes de entrarem. Foi-lhe dito que aquele a quem ela tocasse e lhe fizesse sangrar seria o corrompido – respondeu o condutor. Ora, o seu nome era Ndombaxi Canzar, filho de Nazaré Canzar e pai de Daniela Canzar. – E tinha um tempo para isso? – continuou o escritor. – Sim. Trinta minutos fariam a diferença da última pessoa que ela tocou e a próxima que tocaria. – E qual foi a última pessoa que ela tocou? 22
– Tu, Usuku. O corrompido és tu…
♣ – Porque gritaste, criança? – indagou Braulia após ter alcançado a cozinha. – É essa louca da Marla – respondeu Lunga. – Ela estava aí em baixo da mesa e beliscou o meu pé. Assustou-me! Ela não devia estar a dormir, mãe? – Se virmos pela idade, todo o mundo sabe quem já devia estar a dormir – respondeu a rapariga entre caretas. – Se virmos pela doença, todo o universo sabe quem já devia estar a ressonar – retrucou Lunga. – Não voltem a assustar a mãe hoje, está bem? – disse Braulia. – O meu coração não está nos dias do «vou suportar tudo o que vocês fizerem» … – Foi ela que me assustou… – E foste tu que gritaste quando te assustei. Então também assustaste a mãe… – Parem! – imperou Braulia. – Além de não me assustar, não devem discutir, não devem gritar, não devem me incomodar, não devem colocar formigas na roupa do outro e não devem abrir a boca para fazer queixinhas! – Faltam quatro, mãe – disse Lunga. – Quatro? Quatro quê, criança? – Quatro mandamentos. Só disseste seis… – Marla, passa-me o macharico aí no lava-louça… – Ainda está cheio de funji… – Não interessa! Passa-mo! – Aqui está – disse a rapariga enquanto entregava o comprido pedaço de madeira lapidado. – Se voltares a falar alguma coisa que irrite a mãe – dizia Braulia em tom extremamente sério –, vais falar algumas coisas com o senhor Macharico aqui, e a conversa será longa! Estamos entendidas? – Sim – respondeu Lunga com expressão contrita. – Já tomaste os teus comprimidos, Marla? – redireccionou Braulia. – Sim. – Todos? – Sim… – Quando a criança acabar de jantar, tira a mesa com ela e lavem a loiça. Estou a conversar com a avó do Usuku e mais algumas senhoras aí na sala. Não quero ser incomodada. Mas, depois de arrumarem tudo, quero-vos na sala, quietas e silenciosas. – Está bem, mãe – respondeu Marla antes de Braulia desaparecer de seu campo de visão. Marla era alta e de tez escura. Tinha uma expressão melancólica, mas personalidade forte. Idade? Dezasseis anos. Filiação? Desconhecida – seus pais haviam morrido num terramoto na ilha de África em que nascera. Nove anos era o seu repertório etário quando a tragédia aconteceu. Várias doenças dizimavam outros que haviam sobrevivido ao abalo sísmico. Braulia servia como voluntária na altura naquela ilha – cuidava das enfermidades dos desafortunados. Acolheu Marla num hospital público. 23
Cuidou dela por alguns dias. No entanto, num acto de pura crueldade, a pessoa que fora designada pelos vultos para matar Braulia, Natércia Tchivela, o Flagelo Desumano, irmã mais velha de Ivone Tchivela, a Toxicodependente, raptou-a e acorrentou-a. Esta acção agravou o estado de saúde de Marla. Mas Braulia voltou a tratar dela. A menina melhorou. Ambas ficaram intimamente apegadas. Contudo, por causa da proximidade de seu casamento, Braulia teve de voltar para o seu país. A rapariga voltou a piorar – precisava urgentemente de uma intervenção cirúrgica. Para que fosse salva, transportaram-na de helicóptero desde a ilha em que vivia até ao país de Braulia. Quando chegaram, era a noite do casamento da doutora, mas, Braulia fez-lhe a cirurgia no meio do salão, em pleno copo-d’água, na frente de todos os convidados. Passados alguns meses de pura burocracia, ela e Usuku adoptaram-na como filha. – O que estás a fazer ao macharico, louco? – inquiriu Marla em gozo enquanto arrumava a loiça para ser lavada. – Estou a mostrar-lhe quem manda aqui, moma – respondeu . Não te metas, sim? Ele tem que saber quem é a formiga-soldado mais forte deste formigueiro. Estavas aí todo armando em senhor funjão enquanto a tua protectora-rainha-mamã te segurava, não é verdade, senhor Macharico? Agora foste abandonado às mãos do soldado mais kaenche e destemido da banda. O que vais fazer? Não podes gritar porque não tens boca. Não podes te defender porque não tens braços nem pernas. Que pena! Só tens funji na cabeça (o que quer dizer que és um ganda nabo). Amanhã vamos testar a tua força: vais bater um funji de pedras… de carvão! Agora a minha irmã vai lavar esse teu corpo de madeira sabão em líquido e palha-de-aço e, acredita, vai ser doloroso. Depois eu vou enxaguar-te com vinagre e sal, só no fim é que vou passar-te em água limpa. Se bem que a ideia era passar-te a ferro… – Como podes ser tão pequeno e já ter ideias tão cruéis? – embargou Marla enquanto recebia o pedaço de madeira lapidado das mãos de Lunga. – Como podes ser tão grande e fazer perguntas tão idiotas? – Desisto! Falar contigo vai fazer o meu estômago voltar a doer. O que vais fazer com esse banco? – Pensa! Sou criança, ó! Tenho de subir neste banco para poder lavar a loiça, eh! – Se as mulheres da minha terra te vissem a lavar a loiça gritariam: Yon nonm pa kapag fè sa! – «Yó! Não paga café à Sara!»? – Claro que não, louco! «Homem não pode fazer isso!» Elas são educadas a acreditar que há muitas coisas que os homens não podem fazer, e ficam confusas quando vêem um estrangeiro a fazer algo do género. Se bem que, olhando para ti, elas nem dariam conta que és um rapaz… – Deixa de te meter com a minha aparência, moma. No momento, só o senhor Macharico merece a minha atenção… – Diz-me, não te importas que sejas assim? Esse cabelo e essas tranças não te incomodam? – Não, ainda não. Mas está próximo o dia em que não precisarei ter essa aparência e serei eu mesmo em mim mesmo… – Sei que sim. Mas vejo-te tão despreocupado com isso. Parece que nem ligas…
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– Se eu ligar, o pai e a mãe ficarão tristes. Não quero que eles fiquem desanimados. Eles fizeram isso para o meu bem e para o bem da Kiela. Além do mais, apenas eles, a avó, tu, a minha irmã e eu sabemos disso. Então, não tenho de me preocupar com as estigas de ninguém na rua… – És um rapaz muito forte. Tenho orgulho em ser tua irmã. – És uma rapariga muito doce. Tenho orgulho em ser teu irmão. – Estás doente? – Porquê? – Acabaste de me fazer um elogio em vez de gozares com algo do meu corpo… – A mãe está triste. Não tem graça gozar contigo quando ele está assim. Mas não te preocupes, quando isso passar, vou colocar alguns ratos nas tuas gavetas. Ou preferes formigas? – Prefiro que te cales – disse jogando água na face do outro. – Voltei a ser toda ouvidos – disse Braulia, sentando-se. – Podes continuar a contar a história… Porque queres que te chame de Mbambi, Dona Luísa? – Daqui a pouco entenderás. Voltemos a história… «A criança – Kaculu era seu nome – tomou o corpo do homem chamado Usuku e casou-se com a sua amada, Chiange, que havia sido transformada em Braulia. Depois abandonou o corpo do homem e desapareceu. Mas havia mais algo – algo aterrador, algo angustiante. «Por trás da história de Kaculu que ama Chiange (Braulia) que ama Usuku que também a ama, outra historia decorria. Vultos – figuras incomummente sediciosas – conheciam o propósito de Kaculu ao juntar o escritor e a doutora. Por este facto, maquinavam contra tal intento. O propósito de Kaculu era transformar o filho do casal em seu sucessor. Visto que o papel dele era proteger o mundo dos vultos e fazer a existência destes beirar a extinção, as figuras incomummente sediosas decidiram fazer algo para sua própria protecção. Corromperam o corpo do casal para que a descendência deste tomasse o seu lado. O que Kaculu e seus oponentes não sabiam era que a mulher geraria, não um, mas dois descendentes. «O plano de ambos os lados chegou aos ouvidos do escritor. Usuku tremeu em convulsão angustiante. Perdeu-se em espírito – alcançou a alienação. Por semanas, revirou folhas e caracteres à procura de esclarecimento e desenredo. Quatro coisas foram descobertas por si. A primeira – as figuras incomummente sediciosas não podiam corromper indivíduos com menos de dez anos de idade. A segunda – Kaculu tinha poderes para transplantar o carácter de um indivíduo para o corpo de outrem. A terceira – uma personalidade corrompida em um corpo impoluto podia perder a corrupção. A quarta – as figuras incomummente sediosas corrompiam apenas a personalidade, não a carne; apenas com o decorrer de extensos anos, a corrupção da personalidade estendia-se por todo o corpo. (Esta última era a razão de os vultos terem corrompido o corpo do casal, pois, desta forma, o corpo daquele que seria gerado como primogénito seria também corrompido.) O que faria com tais informações? «Em apreensão e atemorização, após ter descoberto que Chiange estava grávida de gémeos e que o primeiro a ser gerado já tinha o seu espírito corrompido, instou com Kaculu para que este colocasse a personalidade do primogénito no corpo do segundo a ser gerado. O contrário também aconteceu – a personalidade do segundo a ser gerado foi
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transplantada para o corpo do primogénito. Tudo isso aconteceu na décima segunda semana da gravidez dela. Contudo, escapava o facto ao escritor e a Kaculu que os gémeos tinham diferença de sexo – eram rapaz e rapariga. «Quando chegou-lhes ao conhecimento que os gémeos eram um casal, a insanidade de Usuku piorou. Falou com Chiange – contou-lhe o sucedido. Em tremores, ela compreendeu-o e ficou do seu lado, ajudando-o. A hora de dar a luz chegou. Os gémeos vieram ao mundo em situação descomunal. Todavia, estavam com saúde impecável. Foram carregados para casa. Educação e amor era o que lhes era administrado ininterruptamente. O escritor achava que havia enganado as figuras incomummente sediosas. A única coisa que o preocupava era que um dos gémeos teria de assumir o papel de Kaculu depois de algum tempo. Contra isso não tinha qualquer artimanha que lhe pudesse ajudar. Embora em agonia, esperava apenas o momento que tal aconteceria. No entanto, outro facto escapava-lhe: Nunca se engana o mal – os vultos haviam corrompido o escritor e tudo o que ele havia feito era, na verdade, aquilo que eles haviam planejado para a sua protecção.» – Vou interromper-te novamente – embargou Braulia. – Explica-me, como é que a senhora sabe disso tudo? O Usuku contou apenas a mim e às crianças… – Sabes pouca coisa sobre mim, não é mesmo? – disse a idosa, sorrindo. – Mas não te culpo; também sabes pouca coisa sobre ti mesma… – Não esperas que eu acredite mesmo nesta história de eu ser a tal Chiange, pois não? Eu sou a Braulia. Sempre fui! – E como explicas as outras coisas? Também foram criadas por mim? – Que outras coisas? – Coisas como a personalidade do teu filho estar no corpo da tua filha e a personalidade da tua filha estar no corpo do teu filho… – O Usuku não sabia. Ele não fez de propósito! Estava apenas a pensar no bemestar das crianças! Como é que ele podia saber? O primeiro gémeo tinha dois meses e o segundo, algumas semanas. Como é que ele podia saber que havia um menino e uma menina? – Ele podia ao menos ter pensado na possibilidade de haver diferença de sexo entre os gémeos – conjecturou Paula Muhongo. – Podia, mas não o fez – concluiu Braulia em seriedade. – Atire a primeira pedra se nunca passaste pelo podia, mas não fiz em algo extremamente sério! As crianças eram pequenas demais para que ele soubesse que eram um casal. Ele deve ter pensado que eram dois rapazes ou duas meninas. Talvez tenha até ignorado o sexo delas e pensado apenas nelas como bebés que precisavam da ajuda do pai… – Mas ele devia ter-te consultado antes de fazer essa troca – disse Quela Caála. – Devia, mas não o fez. O que está feito, está feito. E nem sei se eu serviria de alguma ajuda se ele me contasse isso! Quem iria acreditar que é possível transplantar a personalidade de alguém para o corpo de outra pessoa? Rídiculo e impensável! E era numa época em que, sinceramente, pensei que ele estivesse a ficar louco; quase que o internava! – O Lunga está no corpo da Kiela e a Kiela no corpo do Lunga por causa da falta de comunicação entre ti e o teu marido, e a única coisa que fazes é desculpá-lo? – atingiu Paula Muhongo. – Tens algum sentimento por essas crianças?
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– Vamos cortar as faltas de respeito e as faltas de consideração aqui, agora! Está bem? Melhor parar de falar assim comigo porque, acredita, sou melhor em ferir com palavras do que todas vocês juntas! – Não te exaltes, Braulia – aconselhou a idosa. – A Paula falou aquilo apenas para te mostrar algo. Tudo o que te falamos, não importa o que seja, desvias sempre para o Usuku. A pergunta que te fiz foi: Coisas como a personalidade do teu filho estar no corpo da tua filha e a personalidade da tua filha estar no corpo do teu filho, também foram inventadas por mim? A questão era mostrar-te que o que falo não é invenção minha, mas a verdade. Contudo, desviaste o assunto para desculpar o Usuku. Não é que seja algo errado, mas não achas estranho? – Sou esposa dele, e sei que é o mesmo que ele faz quando falam contra mim. Mudemos de assunto, está bem? Se tudo o que Usuku fez é, na verdade, aquilo que esses tais vultos planejaram para protecção deles mesmos, então temos de nos preocupar com algo mais grave que o rapto de uma das crianças… – Sim – respondeu a idosa. – E tens alguma ideia sobre o que se pode fazer? – Sim. Por isso é que estou aqui como Mbambi. – É agora que me explicas a razão de quereres que eu te trate põe este nome? – Sim, é. Mbambi é como chamam uma cabra pequena cuja pele é muito usada na confecção de batuques. – Continuo sem entender… Ms, outro assunto, se esses seres sediosos guiaram os passos do Usuku até agora e aquilo que foi feito parece proteger as nossas crianças, o que querem eles? – O que eles fizeram parece proteger as crianças? – cortou a da casa 48. – Como assim? – Bem, pensem comigo, se uma personalidade corrompida em um corpo impoluto pode perder a corrupção, se esses vultos corrompem apenas a personalidade, não a carne, se a razão desses seres sediosos terem corrompido o corpo do meu marido e o meu é a de aquele que fosse gerado como primogénito fosse também corrompido e se eles permitiram propositadamente que o Usuku fizesse a troca de uma personalidade corrompida para um corpo impoluto, as crianças estão protegidas! Estão fora de risco! Nada lhes pode acontecer até a idade de dez anos, e, mesmo depois disso, talvez não aconteça, porque já se terá passado tempo suficiente para que a personalidade e o corpo corrompidos se purifiquem por causa dos corpo e personalidade impolutos. – Continuo a querer entender melhor a tua ideia. – Pense num rio. A água está sempre a andar e andar. Imagina que poluam o mesmo rio com uns bons litros de petróleo. Os peixes e outros animais nele morreriam. Mas, com o passar do tempo, por causa do fluir das águas, o rio voltaria a ficar puro. O mesmo se daria com um lugar infestado de mosquitos e onde, depois de algum tempo, foram lançadas lagartixas; os mosquitos desapareciam passadas extensas horas ou dias. Deixar as minhas crianças serem purificadas só serve para a protecção delas. Não vejo como eles as possam prejudicar a proveito próprio. A não ser que o foco de prejuízo não sejam as crianças… – Agora sim estás a colocar os teus neurónios a funcionar! – exclamou a idosa. – Voltemos à conversa do nome Mbambi. – Qual é o primeiro nome do teu marido? – Ngoma…
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– E o que significa? – Batuque. – O que seria de um batuque sem a pele que o cobre? – Sei lá! Não seria um batuque; produziria som algum; seria um tambor para se colcar o lixo… Continuo sem perceber a razão do nome. – Então temos de recuar um pouco na história. Tens de saber as origens do teu marido…
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– CAPÍTULO V – ●
As origens de Usuku
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– Não é uma novidade a corrupção em meu corpo, Kaculu – disse o escritor, enquanto retirava o telemóvel de seu bolso. – Então, porque tiveste de aprisionar os meus amigos? – É precisamente como ouviste; tínhamos de ter a certeza de que mais ninguém foi corrompido… – Estou corrompido há uns seis anos, e até agora não representei ameaça para ninguém. O mesmo acontece com a Braulia. Por isso, mesmo que estas pessoas estivessem corrompidas, não vejo o mal que poderiam causar aqui… – Dizendo isso, subestimas a subtileza dos ilembeketa. Sabes muito bem que a corrupção em ti é diferente; o propósito deles para ti é outro. No princípio, era apenas para que corrompesses a personalidade da tua prole a quem a primogenitura recairia. Agora, bem, agora talvez seja apenas para que morras… – O que queres dizer, senhor? – interrompeu Kiela. – O meu pai não pode morrer, o meu pai não vai morrer! – Todo mundo morre, menina – disse o poderoso gigante. – É normal que isso aconteça. – Disseste bem – continuou Kiela, enquanto os amigos de Usuku ora libertos se aproximavam. – Todo mundo morre, mas nem todo mundo morrerá. – Como assim, criança? – inquiriu Usuku, intrigado pelo sublime argumento da menina. – Dá-me a tua definição de morre e morrerá… – É simples, pai. Uma coisa é ser mortal, outra coisa é morrer. Quando se diz que todo mundo morre, quer-se com isso dizer que todo mundo é mortal, que todo mundo é susceptível à morte. Mas, se depreendermos disso que todo mundo morrerá, cometeremos um crime que lesa a lógica. Se todo o mundo morrerá, toda a humanidade desaparecerá. Logo, sendo religiosos ou não, os mais de sete biliões de humanos existentes neste século provam que as pessoas estão em expansão, não em extinção. A produção em série de humanos é, até hoje, ininterrupta. Portanto, a morte não provou a todos e não conseguirá fazê-lo, até à existência de provas contrárias. O meu pai é mortal, mas não morrerá por causa dessa corrupção. – Porquê? – demandou Ndombaxi Canzar. – Porque ele prometeu que ficaria comigo e com o Lunga até que não precisássemos mais dele – respondeu vagamente, para se desviar da derradeira resposta. – E nós vamos sempre precisar dele e da nossa mãe. Pai, porque não continuas a contar aquela história? – Porque agora é hora de ouvires outra coisa – interrompeu Liliana Tchiva. – E que outra coisa é essa? – Teorias – verbalizou Bengui Massela, aproximando-se. – Não estás interessada em saber que teorias são essas? – Claro que estou…
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– Mas esta não seria uma conversa que teríamos com o filho do Usuku? – embargou Hélder Banzaia. – Esta é a filha… – Se o Kaculu permitiu que viesse a rapariga no lugar do rapaz, quer dizer que podemos ter essa conversa com ela – respondeu Derito Tchiva. – Além disso – dizia Daniela Canzar em acréscimo –, como foi que aqueles dois cães começaram a correr atrás de ti, Kiela? – Um rapaz, um vizinho maluco, chamou-me para a rua, dizendo que tinha uma surpresa para mim. Que surpresa! Dentes, babas e pêlos atrás de mim! Fiquei louca quando abri os olhos e vi os imbua a correr na minha direcção, yá? Fiquei até petrificada por instantes. O que fazer? Ngalenge kubata? Não dava! O idiota tinha fechado o portão e empurrou-me quando tentei entrar. Levantei-me e (lengeno! lengeno!) corri com todas as pernas que tinha! Descalça e vestindo apenas calções. Ainda bem que o pai saiu de casa o mais rapidamente possível e derubou um deles a paulada! – Falas demais para uma criança que está a ter o dia mais estranho da sua vida – gracejou a Canzar. – Isso quer dizer que aquelas crianças estavam a ser controladas pelos vultos, Kaculu? – Sim. Aquele rapaz tem dez anos de idade; esta é a faixa etária em que os ilembeketa começam a corromper os humanos. – O meu amigo foi corrompido? Deus! Mas também não é de se estranhar. Ele já roubou as baratas do meu irmão mais de uma vez… – Acho que roubando as baratas do teu irmão ele fez um bem à humanidade – gracejou Bengui, acompanhando o humor de Kiela. – Voltando à minha pergunta, estás interessada em saber que teorias são essas? – Repito a minha resposta; claro que estou! – Então, prepara-te! Serei a primeira a conversar contigo. Usuku isolou-se. Olhou para o visor de seu telefone. Havia uma mensagem. Abriu-a. Leu-a. Psoas xtão aki. Sorriu. Escreveu outra mensagem em resposta e enviou-a. Intrigante – as palavras na mensagem enviada eram: Ñ t preocupes, Miúda. Tudo xtá a correr cmo planejámos.
♣ – Elucida-me – dizia Braulia, enquanto Lunga e Marla se sentavam em cadeiras atrás de si –, o que tens a dizer sobre a origem do meu marido? Ele nunca foi de ficar a tagarelar sobre o seu passado… – Tens histórias sobre quando ele era criança, avó? – incrementou Marla. – Ele já era assim chato? – E sobre lutas? – incitou Lunga. – Quantas vezes lhe partiram a cara? E vergonhas? Quais foram os momentos mais vergonhosos da infância dele? – O que tenho para vos contar é muito mais interessante que isso…
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– Isso diz a avó – cortou Lunga. – A avó é que acha que é interessante o que vai contar. Eu e a Marla já escolhemos o que é interessante para nós. Luta! Luta! Vergonha! Vergonha! – Eu não falei nada sobre lutas. Só perguntei se ele foi sempre chato… – Tu não sabes o que queres, Marla. Mas eu sei o que queres. Luta! Vergonha! Se nos contares isso, eu prometo te levar à praia amanhã, avó… – Lunga! – vociferou Braulia. – Mãe… – O que foi que falámos na cozinha? – Sobre os seis manda… O beliscão de Marla em seu braço interrompeu-o. – Sobre eu e a Marla não incomodarmos ninguém aqui, senão o senhor Macharico terá emprego de novo – reformulou o rapaz. – Muito bem. Então, se quizeres realmente que o senhor Macharico continue reformado, mantém o curriculum na boca. Podes continuar, Dona Luísa. Ou Mbambi… – Muito bem. Esta é a história… «Um homem tinha quatro esposas. Cada esposa tinha um número considerável de filhos. Cada filho era amado pelo homem. Contudo, com o tempo, nasceu outro filho que se destacou entre os seus irmãos. O homem dedicou-lhe parte de seu coração – amou-o mais do que a si mesmo. Todavia, nunca o demonstrava. Por este facto, todos os filhos acreditavam que eram amados da mesma forma. «Treze anos se passaram. O filho mais amado cresceu. Timidez e isolamento caracterizavam-no. Pouco saía de casa, pouco falava com os irmãos – pouco interagia. Muito com o pai conversava, muito escutava sobre cultura e a vida dos aldeãos – muito aprendia. Num dos dias, o homem ensinou-lhe a primitiva arte de confeccionar batuques. Juntos confeccionaram um. A pele de uma enorme hombo foi usada para a execução do mesmo. Explicou-lhe a estrita relação entre a humanidade e aquele instrumento. Contoulhe que os instrumentos de percussão são os mais antigos objectos de som na história dos homens. Disse-lhe que o ritmo da batida das mãos contra o batuque relacionava-se com as batidas do coração, o coração relacionava-se com as emoções e as emoções eram a génese das acções dos homens. Portanto, quem governasse a percussão do batuque governava as acções dos homens – não só as governava, como podia também extrair deles, os homens, os seus sentimentos mais profundos, as suas aspirações; fazê-los rir, fazê-los chorar; irritá-los, comovê-los. «Depois de instruí-lo sobre a história do bem fadado instrumento, o homem confeccionou um batuque sozinho e desafiou o filho amado a fazer o mesmo. O desafio foi aceito. Contudo, o rapaz escolheu o animal cuja pele usaria para fazer o instrumento. Saiu e caçou e pequena besta. Escalpelou-a. Entregou a carne ao homem como presente e colocou a pele a secar durante dias. Quando a pele estava pronta para a execução do intento, o homem revelou-lhe que guardara a carne num lugar distante para que também secasse com sal e que, se o rapaz conseguisse confeccionar perfeitamente o instrumento, ele, o homem, cozinharia a carne como repasto para ambos. O rapaz entusiasmou-se. Correu para o lugar onde deixara a pele, retirou-a e trouxe para o fundo da kubata onde se encontrava o pedaço de madeira que havia esculpido para a confecção do batuque. Enquanto cortava a pele em forma anular para cobrir a cavidade que havia feito na parte superior do pedaço de madeira – interruptor e distractivo –, dois de seus irmãos
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apareceram, convidando-o para se divertirem por baixo da chuva miúda que começara a cair sobre a aldeia. Indeferiu o convite. Eles insistiram. Indeferiu novamente. Eles voltaram a insistir, mas com o argumento que ele era covarde e que temia as gotas de água. As palavras «parece que não gostas de nós e te achas superior» também foram proferidas. Deferiu o convite – saiu com os irmãos. «Os três filhos do homem foram até aos limites da aldeia. Divertiram-se por algum tempo. Contudo, a ritmo descendente da chuva piorou. Resolveram voltar para casa. O rapaz sentiu-se aliviado – assim poderia voltar rapidamente para terminar o seu batuque. «A caminho de casa – desventura – um dos filhos do homem foi picado por uma cobra. Passadas horas, o filho – desgraça! – morreu. O homem entrava para a kubata onde combinara encontrar-se com rapaz quando o grito das mulheres e o choro dos mancebos desferiu um golpe em sua audição. Titubeou – inquietou-se. Antes que pudesse aproximar-se e entender o que se passava, uma das mulheres gritou um nome em tom lutuoso. Era o nome de seu filho, o amado, o único a quem a arte de fazer batuques tinha ensinado. A panela do cozido em suas mãos alcançou o chão com violência. Correu em esperanças, mas foi inútil – era verdade: o rapaz estava morto. «Chorou amargamente enquanto transportava o corpo do rapaz para dentro da kubata, mas não lágrimas que se pudessem ver. Eram lágrimas do íntimo, lágrimas da alma. Neste tempo, um dos rapazes que o tinha convidado para sair descobriu o batuque não terminado. Terminou-o por seu irmão em pesar. Culpou-se largamente. No dia do enterro, batucou peritamente em lamento enquanto a terra recebia o corpo de seu irmão. «Anos se passaram. O irmão que se culpava largamente casou-se. Seis foram o número de filhos que teve. O quarto filho – seu quarto filho tinha exactamente as mesmas características do rapaz que morrera com a picada da víbora. Atribuiu-lhe um nome. Contudo, à idade de vinte e dois anos, o quarto filho, por si mesmo, sem que ninguém lhe contasse a história de seu tio que fenecera pelo veneno de uma serpente, mudou o nome para Ngoma.» – Só isso? – demandou Braulia. – Não vais continuar a contar, Dona Luísa? – O essencial foi dito… – …mas não percebido. Olha, a história é interessante. Mas o que queres dizer com ela? Que o meu marido é um espécie de ser reencarnado? E, mesmo que o fosse, qual é o ponto de magnificência em ele o ser? – Claro que não falo de reencarnação – respondeu a mulher idosa. – Não sou apologista do cientificamente impossível e do divinamente refutado. Contei-te a história; o ponto de magnificência só pode ser entendido por um dos Usuku… – Eu sou uma dos Usuku! Casei com ele! E nem por isso entendi alguma coisa… – Porque não perguntas a um dos teus filhos? – Eu não entendi nada – respondeu Marla. – Mas fiquei emocionada. Ter o pai escolhido o nome Ngoma sem saber que um dos seus tios morreu no dia que confeccionaria um batuque é tão triste tão… dramático! – E tu, criança…? Onde foi ela? – inquiriu Braulia, apercebendo-se da ausência de Lunga. – Que a avó não é boa em contar histórias de vergonhas, mas é boa em trazer visitas que sabem fazer pudim – respondeu sentado sobre o chão, retirando a colher que acabara de colar na boca. – Quem fez esse? Foi a tia Nazaré?
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– Não. Fui eu, a tia Paula. Gostaste? – Muito! Depois podes comprar-me um cachorro quente? – Não posso. Não vim com dinheiro. – Compra mesmo assim… – Nem sei porque razão te dirigi a palavra – cortou Braulia. – Não perdes a oportunidade de te embutir de doces e de atazanar a minha cabeça… Voltemos à senhora, Dona Luísa. É lógico acreditar que a senhora sabe porque nos contou esta história e qual o seu ponto de magnificência. Porque não deixa o suspense de lado e nos fala abertamente? – Lunga… – Vovó… – Porque não explicas à tua mãe aquilo que ela quer saber? – Porque não é importante. – Isso dizes tu. Tu é que achas que não é importante. A tua mãe, Marla e todas nós já escolhemos o que é importante para nós. – A Dona Luísa está a falar a sério? – bradou Braulia. – Contou-nos realmente esta história e não sabe o seu significado? E ainda espera que a minha criança, de sete anos de idade, possa desvendar algum segredo nela? Se é que há algum segredo por se desvendar. É só uma história. Triste, comovente, mas uma história apenas. O Usuku tomou o nome do instrumento que o seu tio fazia no dia em que morreu. Pronto! Fatalidade e acaso! Não passa disso! Além do mais… – Eu não acho importante dar-vos essa explicação porque vocês querem recebê-la apenas por pura curiosidade – cortou Lunga, levantando-se em seriedade. – Mas, se a mãe quer realmente saber, ligue para o pai e peça para falar com a Kiela. Ela poderá explicar-vos. – E porque não explicas tu? – inquiriu a idosa em contrariedade. – Porque ela está com o meu corpo. Neste momento, só ela pode satisfazer essa vossa curiosidade despropositada… – Não é bem curiosidade despropositada, é interesse em saber mais coisas sobre o teu pai e entender essa história confusa – disse Paula Muhongo. – Qual a razão de vocês não estarem todos juntos. Porque tu, a Marla, a Kiela, a Braulia e o Usuku não estão na mesma casa? – Porque gosto de viajar para ajudar as pessoas em necessidade – interditou Braulia. – Todas sabemos que não é por isso – disse Sande Negage. – Embora gostes de ajudar as pessoas em necessidade, ficaste sem viajar por cerca de cinco anos. Estás aqui a nove meses, longe do teu marido e da tua filha. Se não voltas, é porque algo grave aconteceu e tens medo que se repita. Ou tens medo que algo do género aconteça… – Algo grave aconteceu – respondeu Lunga, voltando a sentar-se. – A avó já sabe de tudo, mãe. Então não há razão para guardamos segredo de algo que já não é secreto. A troca do meu corpo e da minha personalidade e o corpo e personalidade da Kiela aconteceu quando ainda estávamos na barriga da mãe. Embora eu seja o primeiro a ser gerado, não fui o primeiro a ser dado à luz. Nós os dois nascemos ao mesmo tempo. Portanto, ambos somos primogénitos. O Homem do Saco é trocado de década à década. Nós fomos escolhidos para isso, por isso e por causa da corrupção que herdei, quando tínhamos cinco anos, a minha personalidade tentou reaver o meu corpo. Foi o pior dia da
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vida Kiela. Para a Marla e para os meus pais também foi doloroso. Por isso, o meu pai decidiu que não podíamos viver juntos, para que coisas do género não voltassem a acontecer. – E porque aconteceu apenas quando tinham cinco anos? – inquriu Quela Caála notando a admiração lancinante de Braulia. – Porque não aconteceu antes, como quando vocês nasceram ou quando estavam no ventre da vossa mãe? – Porque eu e a minha irmã já tínhamos cinco anos. A soma da nossa idade tinha dez como resultado. E dez anos é a idade crucial, a idade do rapto, a idade da distância, a idade da recepção do legado de Homem do Saco. A nossa separação faz com que os nossos corpos não se atraiam e as nossas personalidades se aquietem, ganhando assim mais tempo com os nossos pais. Com isso, vocês podem entender que estou condenado a não chegar perto da minha irmã sem a magoar. Ligue para o pai. Será bom ouvir a voz da Kiela…
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– CAPÍTULO VI – ●
Fatalidades
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– Oi! – cumprimentou Usuku num lugar isolado da casa descomunal, após ter atendido a chamada em seu telemóvel. – Algo está a correr mal aí? – Mal não é a palavra adequada – respondeu Braulia. – Estranho seria o correcto. – A nossa vida tem sido estranha desde… sempre! Queres explicar melhor o que queres dizer com estranho? – Não ligues para o que eu disse. Posso falar com a criança aí contigo? – Podes, mas responde-me primeiro: Quem está aí? – A tua avó e mais cinco mulheres. – Nomes… – Sande, Quela, Nazaré, Paula e Rapariga… – Rapariga? – Rapariga da Casa 48… É esse o nome que ela me deu. – Conhece-as? – Desde hoje. Elas dizem que já escreveste sobre elas… – Sim, já. São realmente pessoas; não farão mal a nenhuma de vocês aí. Se sentires alguma presença de gente ou desconfiares de qualquer coisa do género, avisa-me assim que puderes. Responde: Porque enviaste aquela mensagem do teu segundo número e agora ligas para mim do teu primeiro? – A tua avó tinha recebido o primeiro. Acusou-me de não fazer nada sem dar a conhecer ao galo Usuku; disse que sou uma galinha que não sabe agir por conta própria, nem sequer quando se trata de cuidar de seus ovos… ou pintainhos… – Talvez ela deva rever o significado de casamento. Muitas situações matrimoniais desagradáveis poderiam ser evitadas se a esposa sempre consultasse o marido antes de tomar uma decisão; o contrário também é válido: muitos problemas poderiam ser evitados se o marido consultasse a esposa antes de dar algum passo importante… – Ó senhor, não liguei para ti para me explicares como deve ser um casamento! Use o teu saldo e ligue para a tua avó e explique isso para ela. – As coisas devem estar realmente quentes aí para me responderes assim. Ou deves estar apenas com saudades de fazer compras no Panguila com as tuas comadres… – Não me aqueça mais a cabeça essa hora, está bem? Vais passar o telefone à criança ou não? – Calma. Estou um pouco distante dela. Tenho algo a falar contigo que não vejo necessidade de outra pessoa aí ouvir… – O que é? – Podes afastar-te um pouco das pessoas que estão contigo aí? – Já me afastei desde o momento em que falaste das pessoas e da gente. Não podia revelar um código nosso perto de qualquer outra pessoa. Foi o que combinámos, não? E também não podia falar do meu segundo número perto delas, senão a tua avó
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entenderia que te mandei uma mensagem sem ela ver e entulharia a minha audição com zuela, zuela, bwata, bwata, e eu teria de me concentrar muito para não pegar o senhor Macharico para criar algum silêncio… – Sim, nem me apercebi destes indicadores. Como está a agir a criança aí contigo? – Como sempre, não deixa de falar coisas para irritar os outros… – Não notaste nenhuma mudança? Nada… estranho? – Estás a gozar, não? Já te disse que tudo aqui está estranho… – Deixa as gracinhas comigo. Responde o que te perguntei… – A única coisa estranha é que ela começou a falar sobre o dia traumatizante em que a personalidade dela tentou apoderar-se do corpo que está com a criança aí contigo… Também falou sobre a única que pode entender a história sobre as tuas origens que a Dona Luísa acabou de contar é criança aí contigo… Hum… E também disse que ela foi a primeira a ser gerada… – Essa tua única coisa estranha são três coisas estranhas… Tens uma estranha definição da palavra única, Miúda – gozou. – Disse que quem foi a primeira a ser gerada? Ela ou a criança aqui comigo? – Ela… – Interessante. Ela nasceu com nove meses e a criança aqui, com sete. Contudo, a criança aqui nasceu exactamente com o mesmo peso e volume físico que ela. Portanto, eu e tu não sabíamos quem foi o primeiro a ser gerado, mas ela dá-nos agora a certeza de quem foi. Isso quer dizer que estávamos certos quando, à primeira, pensámos que a escolhida para ser o Homem do Saco seria ela… – Ainda bem que depois mudamos de ideia; porque ela disse que, embora seja a primeira a ser gerada, não foi a primeiro a ser dada à luz. As duas nasceram ao mesmo tempo. Portanto, ambas são primogénitas. – Mas não unigénitas. O que quer dizer que, como pensámos, se até o Homem do Saco crê que os dois nasceram ao mesmo tempo, então as duas serão raptadas… – Ainda não descobriste nada que possa mudar isso? – Não. Mas ainda temos muito tempo para seguir com o nosso plano… – Não sei o que faria se ficasse dez anos longe delas… – Não posso entender o que uma mãe sentiria numa situação como essa, também não posso entender o que passaria na cabeça de um outro pai. Só posso entender o que eu sinto, e sinto que tudo vai correr bem. – O que queremos fazer é totalmente arriscado. Não sei se as crianças nos desculparão algum dia… se é que a nossa ideia passará de intento para exequível… – Basta que te lembres: Tudo o que se escreve se torna mentira e tudo o que se diz se torna verdade. – Tenho as minhas dúvidas… – É normal. Também eu tenho, mas precisamos de fingir que não as temos… – Fingir é mentir. Mentiras não diminuirão a minha tensão nem resolverão o problema… – As pessoas fingem que estão felizes todos os dias embora passem por muitos problemas. Ignorar o mal que lhes é feito produz paz e tranquilidade neles. Ignorância é sossego; ignorância é esperança; ignorância é satisfação. – Vais continuar a filosofar com o meu saldo? Quando der, ligas tu para mim e acabas um cartão inteirinho, agora só me interessa ouvir a voz da criança…
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– Eu sei que a situação é difícil demais para te aconselhar a ignorá-la. Estou a tentar fazer com que lides com um problema da minha forma. Desculpa-me. Tens a tua maneira de resolver as coisas. Faz como sempre fizeste. No fim, dará tudo certo… – Também não tens de te dar de vítima. Claro que estou com os nervos à flor da pele, mas isso não quer dizer que não deva ouvir a tua voz. Desculpa-me também. Seguiremos com o plano? – Sim. Lembra-me: Quando é que a criança aí falou dessas coisas? Desde manhã? – Não… – Quando a minha avó e as cinco mulheres chegaram? – Não. Demorou quase uma hora antes de ele começar a falar. – Viste se a avó tocou nela ou uma delas fez algo aparentemente suspeito? – Não. Ela começou a falar isso enquanto a tua avó contava uma história sobre um polígamo… – E o que fez o homem polígamo? – Depois te conto. – Está bem. Não acho que a história tenha alguma coisa haver com essa aparente mudança de comportamento. A criança aqui começou a agir de forma estranha depois de o Kaculu ter chegado. É como se houvesse uma simbiose, uma ligação de pensamentos, entre eles. Parece que o conhecimento de Kaculu está a ser dividido com ela… – A minha criança? Mas ela está bem? – Está, está bem. A nossa criança está bem. Só está mais inteligente que o costume. E parece que a criança contigo está mais livre para falar de certas coisas do que o costume… Nenhuma delas está a usar um perfume estranho? – Não. A única coisa delas que entrou em contacto com a criança aqui foi o pudim que ela comeu, e acho que já voltou a servir-se… – Pudim… A presença do Kaculu agiu como desinibidor do intelecto da criança aqui; algo que elas trouxeram deve ter agido como despertador da liberdade da criança ali… – Pode mesmo ter sido o pudim. Há anos que a tua avó tenta descobrir coisas sobre a morte dos maridos dela, desde que aquela descobriu que o Homem do Saco tem alguma coisa haver com isso que ela não fica descansada, principalmente porque ela acha que o mesmo acontecerá contigo. Essas quatro lutas vão acabar com a minha cabeça… – Quatro lutas? – A nossa para salvar as nossas crianças, a da tua avó para te salvar, a do Kaculu para impedir os vultos de disseminarem o caos e a desordem e a dos vultos para preservarem a sua existência… – É realmente de loucos! Mas temos conhecimento disso há mais de seis anos, estudámos a situação, perscrutámos, criámos soluções… – Tens a certeza que foram as mais acertadas. – Só se as colarmos em prática saberemos. E, até agora, ainda não ocorreu nenhum contratempo. – Colocar as personalidades das nossas crianças nos nossos corpos é muito arriscado! Os nossos corpos estão corrompidos. E se há alguma rejeição? E se até a personalidade deles for corrompida? – Não haverá rejeição! É como um transplante. Somos os quatro compatíveis. Tu com a criança contigo e eu com a criança comigo. A personalidade delas não pode ser
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corrompida porque já passaram uns sete anos que elas estão nessa situação: A personalidade corrompida do rapaz está no corpo impoluto da menina e a personalidade impoluta da menina está no corpo corrompido do rapaz; portanto, tudo – as personalidades e os corpos – já deve estar quase purificado, já não deve existir muitos traços de corrupção. Se elas ficarem com os nossos corpos corrompidos, acontecerá o mesmo; com o tempo, a personalidade delas impoluta purificará os nossos corpos e tudo ficará impoluto. – E as nossas personalidades corrompidas ficarão com os corpos delas impolutos para que sejamos raptados em vez delas. Tornar-nos-emos no Homem do Saco por dez anos, depois voltaremos e as nossas personalidades serão novamente trocadas e tudo voltará a ser como antes. Mas eu já fui Homem do Saco antes, será que isso não poderá impedir alguma coisa? – O Kaculu modificou o teu corpo. Temos de crer que isso implicou apagar vestígios de que foste o Homem do Saco algum dia… E mesmo que ele não o tenha feito, quando um Homem do Saco perde os poderes, tudo em seu corpo volta ao normal; tudo que é relativo a poderes descomunais é apagado. – E as personalidades? Se essa troca acontecer, estaremos em corpos de dez anos, mas com personalidades de trinta e quatro anos. Não achas que isso… – Temos de ter esperança. Temos de crer que nada alterará o nosso plano. Temos o Kaculu do nosso lado. Ter a companhia de alguém tão forte num plano tão arriscado é praticamente paralelo a executar perfeitamente o plano. – Não preciso das tuas palavras de raciocino agora! Não preciso de pensar, mas de ver, ver resultados – Teoricamente, o fluir das sinapses dos neurónios é o que resulta em pensamento. Para veres são necessárias sinapses. Então, teoricamente, ver também é pensar… – Pára de brincar com o que sério! Pões a falar com a criança ou não? Vou desligar… – Está bem. Ela já está aqui perto. Gente esquentada! Já nem se pode criar um pouco de humor que o rei estresse entra em cena… – Entrega o telefone a menina! – Está bem… – Antes disso, quem vai ao Panguila com as comadres és tu! E vais pagar o meu saldo! – Gente ressentida! Fica bem, Miúda. Amo a ti e ao teu estresse. – Fica bem, Miúdo. Odeio não poder te odiar. Beijos. – Oi, mãe! – cumprimentou Kiela. – Oi, criança. Está tudo bem aí? – O pai já te respondeu a isso… – És igualzinha a ele: repetição para ti também é mãe do tédio… – Sim, mas não ligaste para falar sobre o que nós as duas sabemos, pois não? – Não. Estás muito séria hoje… – És garota, quando tiveres a minha idade e dois filhos como os que eu tenho entenderás. – Louca! – disse Braulia sorrindo. – Afinal há ainda um pouco de humor nesses lábios. Liguei para ti para saber de algo que as pessoas dizem que só tu sabes porque estás com o corpo do teu irmão…
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– O que tem de estranho eu estar com o corpo do meu irmão? – Por estares perto do Kaculu… Deixa para lá! Depois falaremos sobre isso. A tua avó contou uma história sobre as origens do teu pai. O que tens a dizer sobre isso? – Depende. Ele contou-te sobre as origens dele paternas ou maternas? – Paternas… E se fosse das maternas? – Ainda nem te respondi sobre as paternas! Muito apressada a senhora! – Se tivesses a conversar mais de meia hora com o teu pai com o teu saldo entenderias a minha necessidade de querer que vás directamente ao ponto… – Está bem. Se a vovó Lulu contou a história das origens paternas do pai, quer dizer que ficaste a saber do paralelismo entre um tocador de batuques e um escritor. – E o que quer isso dizer? – O ritmo da batida das mãos contra o batuque relacionasse com as batidas do coração, o coração relacionasse com as emoções e as emoções são a génese das acções dos homens. Portanto, quem governa a percussão do batuque governa as acções dos homens – não só as governa, como pode também extrair deles, os homens, os seus sentimentos mais profundos, as suas aspirações; fazê-los rir, fazê-los chorar; irritá-los, comovê-los. Essa é também a definição de um escritor. O pai vem de uma linha de tocadores de batuque que acreditavam que o controlo dos homens estava no controlo das emoções dos mesmos. Esses tocadores eram escolhidos a dedo e iniciados para o processo. O tio do pai e o pai do tio do pai eram desses. – Eram um género de grupo de pessoas que queriam governar o mundo? É isso que queres dizer? – Não! Eles queriam fazer parte da solução, não do problema. Eles queriam que as pessoas identificassem os seus podres e lutassem contra os seus pensamentos maus; que erradicassem a maldade. Contudo, a humanidade por si só tende a inclinar-se para o mal e viver na ignorância do bem. Eles seriam então os indicadores, os guias, para o percorrer do caminho do bem… – E o teu pai sabe disso? – Não. Nunca lhe foi contada nenhuma palavra acerca deste assunto. Entenda desta forma: As origens paternas do pai e o seu presente indicam que ele é um instrumento do Bem para das pessoas que ouvirem as suas «batucadas», isto é, ler os seus livros… E não há nada de especial nisso. Quase todo o escritor, embora não tenha origens paternais como as do meu pai, é instrumento do Bem para o bem. – E se falássemos das origens maternais? – Aí o entendimento seria outro e se agravaria se juntássemos as duas origens. – Como assim? – Isso terei de te explicar mais tarde, mãe. Agora a Bengui tem algo importante para falar comigo. Fugi por alguns instantes para poder conversar contigo. O meu irmão está aí? – Está sim; na sala. Eu estou no quintal. Ele quer falar contigo. Chamo-o? – Não. Daqui a pouco voltarei a ligar e poderemos conversar. Até já, mãe. Amote. – Até já, criança. Odeio-te por te amar. Beijos.
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Distante da percepção de Usuku e da cautela de Braulia, a obscuridade mentora dos planos contra Kaculu, Lunga e Kiela divagava em pensamentos. Tchimba era seu nome. Lembrava-se da época em que fazia parte da humanidade, em que tinha mulheres, filhos, gado, escravos, riqueza. Recordava-se da felicidade, mergulhava-se em memórias de satisfação. Num instante, veio-lhe à mente o momento em que sofreu a amargura da morte. Com escárnio, recordou-se da história sobre si assentada nos livros de Usuku: «Kitexi e Wanga eram irmãos gémeos e muito inteligentes. Tchimba, por ser mais poderoso que os outros feiticeiros da aldeia, passou a subjugar o povo com tirania. Os gémeos, depois de presenciarem várias cenas horríveis envolvendo espancamentos até à morte e injustas perdas de bens patrocinadas por Tchimba, decidiram revoltar-se. Foram procurar um sábio em outra aldeia com o intuito de saber como poderiam derrotar o tirano. O sábio disse-lhes que somente quando houvesse quatro luas no céu nocturno é que o domínio de Tchimba cairia. Os gémeos, depois de pensarem por muito tempo no que isso significava, voltaram à aldeia com a solução. Quando chegaram, Kitexi e Wanga congregaram o povo e Tchimba, dizendo que derrotariam o último. Após estarem todos reunidos de noite, Tchimba, com sua voz arrogante, disse: – Desde quando é que formigas lutam contra rinocerontes? Mas, já que querem se ver livres de mim, eu vos proponho algo: cada um de nós terá de fazer uma mágica; a melhor vencerá, a pior condenará o seu feitor a ser imediatamente trespassado por lanças. Os gémeos aceitaram. Tchimba ordenou que homens fortes ficassem perto dele e dos gémeos apontando lanças contra seus peitos. Tchimba foi o primeiro: transformou uma criança em duas gazelas. Quando os gémeos disseram que fariam aparecer quatro luas no céu, Tchimba e alguns do povo soltaram gargalhadas imensuráveis. Mesmo assim, Kitexi e Wanga mantiveram-se concentrados; abaixaram as cabeças sete vezes e, de rompante, levantaram as mãos em direcção às alturas. Aos poucos começaram a aparecer mais três luas em adição à que já lá estava. Todos ficaram estarrecidos e bateram palmas. Num ápice, lanças perfuraram o coração de Tchimba. Aquela aldeia viu-se então livre de opressão.» Irritou-se com aquelas lembranças. O passado era doloroso, o passado era exasperante. Memórias – o que são memórias? São sombras, sombras que vão e vêm. E era isso o que ela havia se tornado depois da morte: uma sombra, uma obscuridade. Mas uma obscuridade com poderes descomunais, uma sombra capaz de exasperar os homens e fazê-los viver momentos angustiantes. – Ngana! Ngané! – chamou uma obscuridade menor, interrompendo os pensamentos da outra. – Não acha que já está na hora de colocarmos uma mão pesada nos assuntos do dyala ngoma? – Mukonda? – Porque ele está muito perto de acabar com o nosso assunto. – Como podes estar tão preocupado com o fim de algo que só entendes as folhas, não as raízes e o caule? – Como assim, ngana? – O que entendes do meu plano? Sabes o que realmente quero?
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– O ngana quer a prosperidade dos ilembeketa, o ngana quer a nossa prosperidade. – Continua a acreditar nisso, Ngamba – disse a obscuridade mentora, fazendo sinal para que a outra saísse. – Assim ainda saberás que consegues pensar em alguma coisa. Chama o Umbate para mim. Vamos usar novamente os serviços dele. – Como quiser, ngana – disse a obscuridade menor, retirando-se. A obscuridade mentora fechou os olhos, sorriu. Atrás de si – atrás de si aproximavam-se outras obscuridades. Dois era o número destas. Uma brilhava com sombreado avermelhado, outra, com sombreado arroxeado. – O que queres com tudo isso? – inquiriu a com sombreado avermelhado. – Vingar-me daqueles gémeos, vingar-me daquelas crianças perniciosas que causaram a minha morte. – Vingança é tolice, vingança é despropósito – perfez a com sombreado arroxeado. – Inexacto! Vocês é que acham que a vingança é algo despropositado. Eu sei o que é despropositado para mim. Causar sofrimento e interromper a felicidade de alguém é propósito; esperar ser feliz com quem pode te trair é despropósito. – Tens convivido demais com a família desse dyala ngoma. O teu repertório discurso começa a semelhar-se ao deles – alvitrou a de sombreado avermelhado. – Este teu comentário também é despropositado – desprezou a obscuridade mentora. – Similaridade discursiva em nada se relaciona com inexequibilidade de planos. O simples facto de falar como eles não significa que desistirei dos meus intentos. Vingança é propósito; perdão é despropósito. – Mas não foi a família dele que causou a tua morte. Como pode ser vingança? Como podes te vingar alguém fazendo mal a outrem? – continuou a de sombreado avermelhado. – Eles fazem parte da vingança. Para que eu atinja aqueles gémeos perniciosos, tenho de distrair o Kaculu. E nada soa melhor que a distracção de fazê-lo pensar que quero acabar com os seus sucessores e os pais destes. – Mas não podes atacar os gémeos agora. Sabes que eles são poderosos no momento – rememorou a de sombreado arroxeado. – Sim, no momento são poderosos. Mas hoje é o dia em que eles escolheram os seus substitutos. Isto significa que dentro de três anos, Wanga e Kitexi voltarão a ser normais. Quando isso acontecer, poderei então atacá-los, matá-los; vingar-me. – Mas o Sambu Mayala ainda poderá ajudá-los – lembrou a de sombreado avermelhado. – O Sambu Mayala ajuda-os apenas agora. E é um forte empecilho. Na verdade, é o empecilho. Dai eu ter planejado isso para distraí-lo. Wanga e Kitexi são, actualmente, os Jacaré Bangão e Kazumbi. Isso faz com que a família deles seja protegida contra todo o mal. Quando eles perderem os poderes, essa protecção desaparecerá e o Sambu Mayala poderá apenas intrometer-se em assuntos que humanos normais não podem resolver, assuntos em que este reino de ilembeketa esteja envolvido. Eliminarei um a um. O pai, a mãe, os irmãos, os primos – toda a família desses gémeos perniciosos. Depois será a vez deles; Wanga e Kitexi sofrerão às minhas mãos. – Absurdo! – esconjurou a de sombreado arroxeado. – Serás tu a atacá-los, o Sambu Mayala poderá envolver-se!
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– Não se eu for humano. – O queres dizer? – demandou a de sombreado avermelhado. – Com o tempo entenderás… – Estás a navegar sobre perigos – auspiciou em continuidade. – Aproxima-se a hebdómada. Muitos dos que estão aqui pensam que entregarão a sua vida para uma causa nobre, para uma causa magnificente; e todos esperamos pelo ente poderoso que criaremos por meio do dyala ngoma. Sabes o que o resto das ilembeketa podem fazer contra ti se descobrirem que, na verdade, o teu plano não passa do desejo de realizar uma ideia egoísta? – Nada. Isso era uma confusão antes de eu chegar. Organizei-os, indiquei-lhes formas metódicas de atingir os seus objectivos – dizia, enquanto outra obscuridade se aproximava. – O caos perfeito não pode ser atingido com desordem. É necessária organização, é necessária acção sistemática. Paradoxal, não? Ordem para criar caos! Contudo, para causar um mal irreparável, é necessária uma porção de bem; para que se acredite na mais descabida das mentiras, é necessária uma porção de verdade. Eu ensineilhes isso! E agora têm até o poder desconhecido pelo próprio Sambu Mayala de paralisar humanos a partir de sentimentos como raiva e inveja. No entanto, mesmo que descubram isso, ainda sairão a lucrar. Dar-lhes-ei caos, caos como nunca viram. – Chamando chamaste-me – disse a obscuridade que acabava de chegar. Seu aparecimento prenunciava que, a partir daquele momento, os assuntos relativos à família do escritor aconteceriam de forma célere e desconcertante. – Aqui estou. – Tens sido usado para camuflar as nossas acções. Tens agido bem. Consegues realmente confundir a mente do pusilânime dyala ngoma e distrair o Sambu Mayala. Sairás agora novamente; irás ao encontro deles. De acordo? – Acordando acordo – dizia, retirando-se. – Qual é a palavra de ordem? – A palavra de ordem é: fatalidades!
♣ – Agora que já sabemos o significado da história sobre as origens paternas do meu marido, vais contar-nos a história das origens maternas, Dona Luísa… – Com que propósito? – demandou a idosa. – Por simples curiosidade. Aguentei as vossas conversas mesmo estando totalmente no limite da minha tensão. É justo que agora façam algo que eu quero. – Parece justo – disse Nazaré Canzar. – Mas estamos com fome agora… – Não te preocupes. Posso cozinhar algo agora mesmo. Tinha feito apenas uma refeição para três, mas arranjo uns aperitivos num instante. Enquanto isso, vocês podem deliciar-se com os bolos que vocês mesmas trouxeram… – Não – abjurou Sande Negage, levantando-se. – Estas coisas doces são para as crianças. Queremos comida de verdade. E trouxemos alguma no carro. Quem vem ajudar-me? – Vamos todas – disse Quela Caála. – Não conseguiremos apenas as duas trazer aquilo tudo. – Aquilo tudo? – inquiriu Braulia. – Trouxeram o país da comida para aqui?
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– Acho que não nos deixariam passar no aeroporto se trouxéssemos tantas coisas – gracejou a Rapariga da Casa 48. – Trouxemos o necessário para hoje. Vamos ficar aqui a noite toda, acordadas. Temos de fazer algo. E nada melhor que conversar e cozinhar, não? – A ideia é vossa – disse Braulia, saindo com elas. – Não posso concordar, nem discordar. Vou apenas acompanhar-vos. Andaram até à porta que dava para a rua. Abriram-no. Um enorme auto preto estava parado à entrada da casa. Retiram as coisas com celeridade e voltaram para o interior da vivenda. – Eu vou pilar a kizaca – disse Nazaré Canzar, transportando um enorme almofariz e um pedaço de madeira do mesmo tamanho. – Vocês discutam quem cuidará da carne, do alho, do fuba, do feijão e do resto… – Aproveitando-se da força para escolher o trabalho mais fácil. Que vergonha! – disse Paula Muhongo em humor. – Eu cuido do alho! – Cada uma cuidará daquilo que tem em mão – interrompeu a idosa por sentir que algo funesto se aproximava. – Podemos entrar para a tua cozinha, Braulia? – Claro que sim. É toda vossa. E eu? O que faço? – Acompanhas-nos. Vamos ficar todos na tua cozinha… – E a história das origens maternas do Usuku? – embargou Marla. – Vamos dar um intervalo – notificou a idosa. – Mulheres sábias conseguem controlar a curiosidade. Entraram para o compartimento. Dispuseram-se em um círculo. As que colocaram os alimentos sobre os almofarizes pilavam-nos, cantando em tom baixo e melancólico: Eh! Monadyala Eh! Monamuhetu Eh! Kiela kyami Eh! Lunga yetu
♣ – Achas que será possível? – inquiriu Ngoma Usuku a Kaculu. Ambos conversavam em secreto. – Não to confirmaria senão fosse. Essas duas palancas fazem parte de mim, logo têm parte do meu poder. – Então os vultos não poderão fazer nada contra mim e a Braulia. As crianças estarão nas tuas mãos. Cuide bem delas. – Não é necessário pedires isso. Ambos temos o mesmo interesse. – Outro assunto: Achas possível a criança aqui comigo desenvolver um poder de absorção de conhecimentos? – Como assim? – Ela parece estar a falar como tu e todas as pessoas aqui. É como se ela absorvesse os nossos conhecimentos e os entendesse simultaneamente. – A ideia é interessante. E tu mesmo podes chegar até à resposta.
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– Eu escrevi a tua história e a história de Wanga e Kitexi. Segundo o que escrevi, os escolhidos para serem Homem do Saco, Jacaré Bangão e Kazumbi têm de ser crianças muito inteligentes – dizia, enquanto o telefone num dos bolsos de suas calças começava a vibrar – mas o que está acontecer com a minha criança extravasa isso. É algo completamente diferente do que escrevi. – Continue… – Eu acho que… Uma paragem cardíaca interrompeu o seu discurso. Alarmante – não conseguia respirar. Funesto – caia, tombava. Kaculu tentou ajudá-lo, mas o corpo do escritor estremeceu com violência. Tentou gritar, mas som nenhum saiu. Atingiu o chão em desalinho. Os seus olhos avermelharam-se. Lágrimas caíram deles. Os seus braços movimentam-se em desordem. Tentou falar – infrutífero. Fechou os olhos. Pereceu. Incidentalmente, a sua queda accionara o botão de atendimento de chamada em seu telefone, as palavras que saíram da boca da pessoa do outro lado da linha foram: – Pai, vem rápido para casa! A mãe… a mãe morreu.
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– CAPÍTULO VII – ●
…mortos
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Corações partidos – sentimentos destroçados. Estupefacção, dúvidas, raiva. Incompreensão, tristeza, mágoa. Rostos banhados por lágrimas gravitavam em desalinho sobre o cadáver de Braulia. Num outro lugar distante daí, o olhar noctívago e arrepiante do Homem do Saco repousava sobre o corpo inerte de Usuku. O que aconteceria com os planos do casal agora? O que seria de seus filhos? A ideia de suas personalidades serem transplantadas para os corpos de Lunga e Kiela e, com isso, serem raptados em substituição – o que seria feito dela? Em que pé ficaria o seu heroísmo, a sua afeição redentora, a sua empatia desmesurada? Antes que qualquer outra pergunta lutuosa pudesse ser feita – perverso – homens enviados pelas figuras sediosas apareceram para se apoderar do corpo de Braulia. Arrombaram a porta de entrada. Vociferaram ameaças contra as mulheres. Tumultuoso – Nazaré Canzar, a Colossal, tentou impedi-los. Atacaram-na. Derrubou alguns deles. Atacaram-na com mais força. Resgatador – as outras mulheres vieram em seu auxílio. Os enormes pedaços de madeira que utilizavam para pilar os alimentos serviram de armas. Os homens sentiram os pesados golpes contra seus corpos. Gritaram, caíram. Contudo, reergueram-se e voltaram ao intento de sequestrar o cadáver. As mulheres não desistiram – pugnavam com maior ímpeto. Marla e Lunga foram ordenados a trancar a porta do compartimento da casa onde jazia o corpo de sua mãe. Fizeram-no em temores. A seguir – aterrador – vultos, obscuridades, apareceram na parte de fora da cozinha. As crianças podiam vê-los através das janelas. As obscuridades partiram os vidros das frestas e entraram. Marla abriu a porta para avisar as mulheres, mas – apavorante – uma gigantesca e feroz palanca apareceu no lugar onde a porta de entrada fora derrubada. O monstro atacou as obscuridades com frenesi assassino. Elas tentaram prevalecer. Dominou-as. Ausentaram-se em debandada. O mesmo aconteceu com os homens – saíram em fuga. A fera aproximou-se do corpo de Braulia. Colocou-o entre seus dentes e saiu a galope. Uma faísca rasgou os céus e deixou as mulheres e as crianças caídas em desmaio. Em instantes, outra monstruosidade, outra gigantesca e feroz palanca, apareceu ao lado daquela. Bizarro – também transportava um cadáver em sua boca. Era o corpo de Usuku. Galopavam com fúria. Passavam estradas, matas, rios, pedras e montanhas em indescritível celeridade. O brilho da lua segui-as. O véu nocturno escondi-as. Contudo,
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enquanto se desviam de árvores – interrompedor –, silhuetas que pareciam ser um jacaré e um espectro atacaram-nas. Esquivaram-se. Continuaram a galopar até à beira de um morro. As silhuetas perseguiam-nas. As bestas pularam para alcançar outro morro, mas – assolador – uma das silhuetas desferiu um golpe que fez com que uma delas largasse o corpo em sua boca. O cadáver caía em direcção às rochas embutidas sobre o chão. A fera que carregava o outro corpo lançou-se e tentou abrandar a queda do cadáver com suas costas. Facto – o cádaver embateu contra o seu dorso. A monstruosidade que o perdera aproveitou-se do afrouxamento e recuperou o corpo. Os quatro alcançaram o chão em dificuldades. A silhueta com aspecto de espectro preparava-se para voltar a atacar, mas a com cariz de jacaré impediu-a. – Deixa estar, Kitexi – disse, segurando o forte punho da outra. Ora, a outra silhueta era seu irmão, aquele a quem também pertencia o nome Kazumbi. E ela, que falava, era Wanga, o Jacaré Bangão. – O odor de corrupção não vem do corpo das palancas do Homem do Saco, mas dos cadáveres. Os animais do Kaculu estão bem. Vamos voltar. Num instante, Wanga e Kitexi desapareceram, tendo levando consigo duas crianças. As palancas voltaram a galopar. Segundos depois, chegaram perto de um homem colossal. Bizarro – o homem cavava covas. As palancas colaram os corpos perto dos buracos e desapareceram. Ora, o nome do cavador de covas era Ndombaxi, o mais perigoso dos Canzar. Distante daí, um dos vultos acabava de chegar aos aposentos de negrume da obscuridade mentora. – Como foi? – inquiriu a obscuridade mentora em malefício. – Acontecendo aconteceu. O dyala ngoma e a Chiange estão… – …mortos!
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– CAPÍTULO VIII – ●
À Usuku
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O rosto do cavador de covas estava molhado em desmesura. Mas não eram as suas lágrimas que o haviam deixado naquele estado; eram as lágrimas que viam do alto, lágrimas que caíam das nuvens. Os céus choravam, mas não a morte do casal. Nuvens não têm qualquer sentimento ou compreensão da dor, portanto, choravam apenas porque era essa a sua missão, era esse o seu propósito. Nuvens foram criadas para destilar chuva e nada mais. Contudo, para o cavador de covas, era como se derramassem aquelas lágrimas em lamento inconsolável – para Ndombaxi Canzar, era como se chorassem a sua perda. As gotas eram frias e fortes; surravam seu corpo gigantesco. Os buracos enchiamse de água. Cavou por mais algum tempo e, sem que colocasse o cadáver de Usuku em um féretro, rolou-o para dentro da cavidade lamacenta. O corpo fez um barulho aquoso ao embater contra a terra molhada. Ndombaxi começou a cobri-lo com terra e, no acto, lembrava-se da visão da vida à maneira do escritor – sim, recordava-se do que era viver à Usuku. Ngoma Usuku via a vida como sendo uma preceptora de testes. Para si, a vivência nada mais era do que uma reprodução de situações em que ou se aprovava ou se reprovava. Isto é, ele via a vida como sendo uma repetição de casualidades que testavam a argúcia, a paciência e a empatia dos humanos. E, por isso, por não se passar apenas de testes cuja existência não tinha controlo nem ponto de vista a fruir, limitava-se a estudálos, domá-los, jogá-los. A seu ver, a vida era lúdica – uma réplica de verificações para se recrear. Mas não um simples recrear, era um recrear do espírito, um recrear de domesticação de personalidades, um recrear que resultaria na escolha dos mais aptos – ou mais pontuados – para a sobrevivência e a vida perpétua. Talvez esta sua forma de ver a vida fosse para ajudá-lo a esconder os seus sentimentos mais sombrios, os seus horrores mais hediondos e as suas inclinações mais impúdicas. Provavelmente buscava consolo, força e afoiteza com essa visão em ludo do viver. Talvez, provavelmente. Mas era assim que vivia e sentia-se em paz com isso. Não se permitia perder para a tristeza ou para alegria. Trocava a sua própria personalidade conforme o «teste». Se era normal para a situação sorrir, trancava-se em seriedade. Se era chorar, trancava-se em indiscrição. Afiliava-se comummente a relações estreitas, estritas e restritas. Oferecia ajuda, mas não pedia auxílio. Recomendava à consciência intrínseca – conselhos só dava e recebia com prévia requisição e permissão. Agia de forma enigmática – dificilmente era percebido. Era apologista do imprevisível e antagonista do
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facilmente presumível. Não dava o sangue por si – morria pelos seus. E era neste estado inerte, triste e contrito que se encontrava. Os punhados de areia lançados para o buraco tocavam seu corpo e o cercavam em cobertura. Os olhos do cavador de covas ganhavam vermelhidão. As suas mãos enrijeciam-se. Baixavam, levantavam. Baixavam, levantavam – faziam vénias à morte e a procissão de enterro que acompanhava. Usuku voltava ao lugar onde ganharia a sua forma natural. Pó, areia, argila – homens são isso; tal formação é rezada no divino e no científico. Não há testes no pó, não há provas na areia, não há petição de casualidades na argila. É morte é entediante, a morte não joga, a morte não é lúdica. O buraco ficou totalmente coberto. Já não se via o corpo do escritor. Longe da vista – longe da vida –, longe do ludo. Seria assim a partir daquele momento. Não se viam voltas nem repetições. Ndombaxi terraplenou os montes de areia em aresta e avançou para o próximo cadáver.
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– CAPÍTULO IX – ●
À Braulia
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O semblante da mulher estava pálido. Mais de meia hora havia se passado desde que parara de respirar. Morta era o adjectivo para si. O homem gigantesco a seu lado preparara-lhe uma cova. Ndombaxi levantou o corpo lívido da mulher e jogou-se para o buraco com o mesmo. Lama respigou sobre o seu rosto e o resto de suas roupas. Pousou o cadáver sobre o local encharcado em pompa melancólica. As gotas de chuva fizeram com que o respigado lamacento precipitasse de suas vestes e caísse sobre o cadáver. Com exígua dificuldade, saiu da cova e começou a jogar areia para dentro da mesma. O produto alagadiço tocava o corpo da mulher, velava-o. Ndombaxi começou então a lembrar-se do que ouvira falar sobre ela, sobre qual era a visão dela para a vida, sobre como era viver à Braulia. Se pedissem àquela mulher para resumir a vida em uma única palavra, o que sairia de sua boca seria: viver. Sim, viver – assistir à vivência, entristecer-se, alegrar-se, conformar-se; oferecer as suas mãos para o bem, desviar os seus pés do mal; entreter, lamentar, sofrer, salvar. Talvez também a resumisse em um não sei vago e misterioso, pois sentia que a ignorância também pertencia ao rol de sinónimos da existência humana. Sim, ignorância – humanos vivem sem saber o futuro e a tentar compreender o passado. A única coisa de que têm sumo conhecimento é o ínfimo momento em que chamam presente. Quanto tempo tem o presente? Segundos? Milésimos? Para Braulia, era neste ínfimo instante que o humano tinha certeza absoluta de todas as coisas necessárias – sabia que estava vivo, doente, deprimido, alegre, adorava, louvava, odiava, amava, amaldiçoava. A vida era corrente demais para se dar azo a definições precisas. A vida era bênção, amor, paixão, simplicidade, sabedoria, dádiva – um imiscuído infindável de definições que não lhe permitia ser resumida ou descrita em filosofias individuais e inconstantes. Simplicidade – sim, simples como o ADN; algo elementar mas que escondia em si um universo de interações e reproduções surpreendentes. Braulia era dada à conversa, ao convívio. Também testava as pessoas, gostava de ver a reacção em cadeia dos humanos. Testava para aprender. Aprendia para salvar. Salvação – não houve quem fizesse isso para ela. Agora estava aí, molhada, soterrada, morta. O viver e o não sei não foram incapazes de salvá-la. O seu corpo jazia sob o solo lamacento. Não pensava, não interagia, não curava. Nenhuma filosofia de vida era capaz de salvar aquele que a possuía, aquele que a vivia. A filosifia de não filosofar não redimia nos momentos cruciais; a filosofia de filosofar não resgatava em horas decisivas. O mais sábio dos homens podia ser o mais triste; o mais ignorante podia ser o mais feliz. O
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contrário também era verdade. Amor e ódio andavam juntos. Fidelidade e traição interagiam. Vida e morte eram amantes. O cavador de covas terminou o seu trabalho. Não se notava indícios de cansaço em seu corpo. Apenas uma leve nuance de taciturnidade pintalgava em seu olhar. Alinhavou as saliências de terra. Jogou sementes sobre os sepulcros. Deixou que, por momentos, a chuva lavasse a lama em seu corpo. Depois andou em quebranto com a pá em sua até à sua enorme motorizada vermelha. Ligou a máquina e afastou-se à toda velocidade, deixando como companhia para os enterrados uma enorme névoa de fumo, gotas de chuva e terra molhada.
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– CAPÍTULO X – ●
Máfia
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Entre a quietude da escuridão e a inércia do mobiliário da casa de Usuku, uma figura – uma silhueta – andava lentamente, tendo o feixe de luz saído da lanterna em sua mão como guia. Tinha contornos femininos – era uma mulher. Vasculhou os móveis – encontrou uma pen drive. Remexeu as gavetas – achou um computador portátil. Revistou os livros – encontrou outra pen drive. Sentou-se. Ligou o aparelho e colocou uma pen drive numa das entradas. Um clique – abriu o dispositivo. Ladeado por alguns documentos do Word e alguns ficheiros de música, estava uma pasta de arquivo com o nome C. Dois cliques – abriu-a. Um documento solitário do Word apareceu no ecrã. Dois cliques – abriu-o. Interruptor – uma palavra-passe foi requerida. Sorriu. Introduziu seis caracteres, premiu enter – a informação do documento apareceu. As palavras que leu a seguir foram as seguintes: Estou morto – esta é a razão de estares a ler este documento. Use as informações que encontrares no outro dispositivo de armazenamento com cuidado. Partilhe as instruções com a D, a J, a M e a N. Com o intervalo de seis meses, leve um livro àquela editora para que pareça que ainda estou vivo. Faça isso durante cinco anos. Visto que consegues ler os meus pensamentos e prever as minhas acções, use este dom para escrever cartas minhas e enviá-las para «a criança». Inclua nelas comentários da Miúda. Use a perícia da M em fotos para que as nossas famílias recebam sempre imagens nossas. Entregue às mãos da D, da J e da N aqueles segredos. Elas saberão o que fazer. Continuem firmes. Continuem Imuka. A mulher levantou-se – fechou o computador e retirou o dispositivo de armazenamento no acto. Tinha o olhar parcialmente marejado. Tentava congraçar-se quando – imprevisto – um raio rasgou o céu e iluminou a casa. Desestabilizante – a luz do relâmpago delineara a presença de um extenso grupo de mulheres e duas crianças caídas sobre o chão da sala. Reconheceu-as. Tapou a boca para não soltar o alarde em seu íntimo. Aproximou-se e – tranquilizante – viu que as pessoas respiravam; não estavam mortas. Andou até à porta. Abriu-a. Saiu e, à melodia de cães latindo, desapareceu. Nem se deu conta de que dois enormes monstros rondavam a casa e que era essa a razão de os canídeos ladrarem.
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♣ – Finalmente podemos conversar só as duas – disse Bengui Massela. – Senta-te naquela cadeira, Kiela. – Não, prefiro sentar-me no chão. – Vais sujar a roupa que acabei de te dar… – Tenho o hábito de ficar sentada no chão. Se não quiseres que eu suje a roupa que me deste, aceita a minha ideia de falarmos aí fora. Estaremos mais à vontade. – Está escuro aí fora. E há o perigo de sermos atacadas por aqueles vultos. – Então vou sentar-me sobre o chão… – Como quiseres – disse sorrindo e traçando as pernas. – Depois ponho-te no tanque a cuidares disso… – Vais arranjar sérios problemas com a minha mãe se o fizeres… – Acho que ela vai gostar de saber que te coloquei a assumir a responsabilidade dos teus actos. – Bengui falava com pureza e inocência de espírito; não sabia da morte de Braulia. – Bem, começamos? – Sim – disse acomodando-se sobre o chão. – Sobre o que falaremos? – Sobre uma teoria de conspecção que chamo de Teorema da Oposição. – O que queres dizer com teoria de conspecção? – Teoria de conspecção…. Como te explico isso…? – Explicando – gracejou. – Teoria de conspecção é o mesmo que teoria de visão, o mesmo que um teorema, uma proposição, uma tese… É algo que designa a forma de alguém ver, entender, o mundo. Eu e os jovens que viemos contigo naquele carro criamos esse nome para denominar as diferentes formas que temos de ver o comportamento humano. – Então foram vocês que criaram o nome… – Sim! E criámo-lo por causa da conversa que cada um denós terá contigo. – Interessante… e bajulador. E o que envolve esse Teorema da Oposição? – A Humanidade entra em constante oposição ou contrariedade com aquilo que lhe é dado ou criado para si. Não é uma oposição ou contrariedade de puro contraste como preto e branco ou escuridão e luz, mas uma oposição ou contrariedade que desvaloriza o que lhes é oferecido. – Exemplos…? – Entregaram-lhes a Terra como casa, transformaram os oceanos em sua latrina; deram-lhes o ensino secular, criaram a cábula; ofereceram-lhes o serviço de bancos comerciais, inventaram o assalto a mão armada; outorgaram-lhes o amor, engendraram a traição; concederam-lhes a vida, geraram o suicídio; presentearam-lhes com a cinematografia, produziram a devassidão pornográfica. Precisas de mais exemplos? – Não. Contudo, essa tua teoria de conscepcção parece defender a ideia de que o mal existe por causa do bem… – Só se a entendermos mal. Esse teorema mostra apenas que o mal só sai à rua após o bem já estar a andar pelo passeio após algum tempo. Isto é, o mal aproveita-se de uma acção do bem para aparecer. Não é o caso de existir o bem para existir o mal, mas de o mal evidenciar-se por causa do bem. A fadiga já existe, mas só depois de trabalharmos arduamente é que ela aparece…
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– Sim, mas a fadiga vem do trabalho árduo, é produto do trabalho árduo. O que me faz pensar que esta teoria defende sim que o mal vem por causa do bem. – Talvez tenha dado o exemplo errado, mas pense no seguinte, só há roubo se houver o que roubar, só há assassinato se houver o que se assassinar, só há – isso! – só há paludismo se houver água. A culpa não é da água, mas o mosquito precisa dela para se desenvolver e te colocar doente. O mal precisa do bem para aparecer, mas o bem não necessita do mal para qualquer coisa. Mas o Teorema da Oposição não é basicamente o contraste entre o bem e o mal, mas de uma acção desencadear outra totalmente improvável ou quase não conjecturável. Quem criou o revólver não pensou nas Guerras Mundiais; quem criou a corda não pensou em enforcamentos. – O teu teorema não é sobre o contraste entre o bem e mal, mas está sempre focado em ambos… – Sim, tens razão. Tenho falado apenas da ordem bem para aparecimento do mal, mas também existe a ordem mal para aparecimento do bem ou a ordem situação para aparecimento de ciência. Olhe para as tantas logias, ticas e grafias que temos. Apareceu o delito, criaram a criminologia; apareceu o comportamento desregrado e/ou desleixado, geraram a estética; apareceu a luta por posse de terras, conceberam a geografia… – E a conclusão? Um teorema ou uma teoria demanda uma conclusão. Qual é a deste teorema? – Sim, o Teorema da Oposição tem como finalidade defender o seguinte: O homem estará sempre em oposição ao seu meio, ainda que essa oposição um dia não signifique errar ou pecar, mas desenvolver, progredir. – Interessante. E porque tivemos essa conversa? – Tivemos esta conversa porque agora eu vou dar-te perigo – disse, enquanto o chão sob Kiela se abria – e quero ver o que gerarás em oposição. Kiela mal ouviu as últimas palavras de Bengui – caía em desalinho para dentro da estranha abertura que se fizera no chão. Escuridão era a única coisa que conseguia ver. Rugosidade era única coisa que conseguia sentir em sua pele. Atingiu o fim da abertura – a queda cessou. Estranho – uma porta ladeada por trepadeiras abriu-se atrás de si. Fez-se luz. Kiela voltou-se. Visionou o que estava além da porta. Parecia – um lugar calmo e ajardinado, parecia – um paraíso. Aproximou-se. Passou pela porta – pisou a relva. Olhou para as árvores – visionou frutos. Andou. Chegou perto de uma das árvores. Tentou retirar um de seus frutos. Amedrontador – um barulho entre as folhas atrás de si chamoulhe a atenção. Voltou-se. Algo movia-se entre elas. Deu alguns passos de aproximação. Curioso – visionou um coelho amarrado sobre relva e uma tabuleta que dizia não salve o animal. Contudo, o coelho asfixiava-se, beirava a morte. Ignorou a tabuleta – salvou-o. O animal quase que não se movia. Colocou-o em seu colo. Perigoso – uma serpente aproximava-se atrás de si de forma inaudível. O coelho sentiu a abordagem taciturna do ofídio; sobressaltou-se, pulou dos braços de Kiela. Claudicava; não conseguia afastar-se com rapidez. A criança voltou a segurá-lo. Arrepiante – Kiela sentiu algo encrespado enrolando-se em sua perna esquerda. Assustou-se. Em movimentos instintivos, sacudiu pé. Assustador – o algo era uma cobra. Gritou. Alarmante – seu grito despertou a atenção de outros animais, animais mais perigosos que aquela serpente. Barulhos – galhos e folhas moveram-se para causar susto. Rugidos, grunhidos, uivos – feras de aparência indomável apareceram à frente, à direita e à esquerda de Kiela, mas estavam parcialmente distantes. Andavam em rangeres de dentes – aproximavam-se
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com exígua subtileza. A rapariga deu passos temerosos de afastamento. Perturbador – quase que caía; não se dera conta que estava à beira de uma falésia, então, ao recuar – quase que caía. As feras continuavam a aproximar-se. Transtornante – o coelho voltou a pular de seu colo e a andar em cambaleios. As bestas salivaram em delírio esfomeado. Kiela apressou-se em pegá-lo. Apavorante – caiu da falésia no acto com o animal em suas mãos. Água foi o que seu corpo encontrou no fim da queda. Rio – caíra dentro de um rio. Contudo, nem a sua respiração ainda se havia estabilizado quando ouvira o barulho de outro corpo caindo ao seu lado. Era uma das feras. Assustou-se. Gritou. Em dificuldades dolorosas, nadou até à margem. Outros barulhos aquosos foram ouvidos – eram as outras feras caindo para dentro do corpo de água. Saiu do rio rapidamente. Nem sequer sentiu o roçar dos dentes selvagens de uma das bestas perto de seu calcanhar. Ora, o tempo todo, uma voz sussurrante dizia ao seu ouvido: «Não salve o coelho.» A sequência da caçada então tomou os seguintes contornos: Criança – passos céleres e molhados. Feras – pisadas velozes e encharcadas. Passos, pisadas. Passos, pisadas. Esconder-se. Ser encontrado. Gritar. Correr novamente. Passos, pisadas. Passos, pisadas. Encurralamento. Ranger de dentes. Rugidos, grunhidos, uivos. Salivar esfomeado. Aproximação para ataque derrubador. No entanto – sinistro – plantas trepadeiras enroscaram-se nos pés da criança e a derrubaram sobre a relva. Sombrio – as plantas trepadeiras arrastavam Kiela com celeridade esmagadora. Os animais medonhos seguiam-na. Dentes roçavam a cabeça do coelho e os dedos dela. Gritava. Estar entre dois perigos não tinha quaisquer resquícios de conforto. Segundos depois, as bestas perderam seu rasto. Todavia, as plantas trepadeiras continuavam a arrastá-la. O arrastamento delongou-se por mais algum tempo, depois cessou. Entre resfôlegos e trepidações, Kiela deu ao seu corpo a posição vertical. O coelho permanecia em seus braços. Perscrutou sua pele e a do animal, mas não encontrou sinais de lacerações – não havia arranhaduras nem cortes em nenhum de seus membros. Voltou-se. Uma estranha fenda ocupou o seu campo de visão. A fenda – era alta e estreita, a fenda – estava parcialmente coberta pela flora do local. Tentou passar para o seu interior. Hesitou – era extensivamente escura. No entanto – repetição do alarmante – voltou a ouvir os sons assombrosos das feras; entrou para a fenda sem demora. Andou entre trevas e texturas rochosas. A cada passo que dava, a fenda alargavase e ganhava exiguidades de luz. Passo, alargamento, luz. Passo, alargamento, luz. Deduziu que, na posição em que se encontrava, a fenda tinha a estrutura de um cone deitado – estreito no princípio e extensamente largo no fim. Passo, alargamento, luz. Passo, alargamento, luz. Fim da fenda. Maravilhou-se. No meio da relva, um pedaço de tecido rectangular estava estendido, e sobre ele havia preparativos para um pequeno banquete. Duas crianças estavam sentadas às margens das extremidades do pedaço de tecido, uma à esquerda, e a outra à direita. Aproximou-se. Reconheceu-as; faziam parte do ror de jovens que vieram consigo para aquela casa descomunal no enorme auto preto conduzido por aquele homem gigantesco. Bruno e Márcia Nassembe eram os seus nomes. Eram irmãos. – Oi! – cumprimentou Bruno. Dez anos era o seu repertório etário. – Vejo que a conversa com a Bengui está a ter resultados… – Não sei o que ela quer com isso – disse Kiela. – O perigo que ela me ofereceu pode ser respondido de várias formas. E, mesmo que eu o responda da forma que ela
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quer, servirá apenas para aumentar o ego dela e provar que a sua Teoria da Oposição está certa… – E não achas que esteja certa? – inquiriu Márcia, fazendo sinal para que a outra se sentasse ao seu lado. Seu repertório etário? Sete anos. – O que acabei de dizer não é referente a ela estar certa ou não, mas ao objectivo disso. Qual a finalidade deste teste? – Terás de descobrir por ti mesma – continuou a outra. – Mas não tem nada relacionado ao ego dela. Fazemos isso por ti. Assumirás uma responsabilidade indescritível. Por isso, jogos de conhecimentos são necessários. Teorias, testes, suor, sangue… Tens de passar por muitas coisas antes de chegar à idade crítica. – Idade crítica? Referes-te à idade em que me tornarei no Homem do Saco? – Sim… – E o meu irmão? O que acontecerá se ele não passar por isso? – Pergunta interessante, mas não ta podemos responder. Descobrirás isso na devida altura. O que pensas fazer com esse coelho? – Salvá-lo. Não é o mais sensato a ser feito? – Um coelho que põe em risco à tua vida merece ser salvo? – demandou Bruno. – Um amigo que põe em risco à tua vida merece ser salvo? – Terias razão se o coelho fosse teu amigo. Acabaste de encontrá-lo há pouco tempo. Ainda é um estranho para ti. Não há qualquer laço de intimidade entre vocês. Nem sequer é um animal de estimação que acabaste de receber… Queres salvá-lo apenas para desafiar a Bengui? – Talvez sim, talvez não… – Acompanha o meu pensamento – disse Márcia, Gaílsa era o seu segundo nome – Se a Bengui soubesse de antemão que salvarias o coelho, não estarás então a contribuir para as ideias dela? – Sim. E é isso que faço. Quero ver o objectivo deste teste. – Criança corajosa. Então não tens dúvidas sobre muitas coisas. Queres apenas furtar informações de nós para que chegues a resposta do teste o mais rapidamente possível. – Porque vocês todos são tão inteligentes? Com a idade que têm, não deviam ainda ter pensamentos com tanta perspicácia e entendimento… – Não é raro encontrar crianças inteligentes – respondeu Márcia Gaílsa. – Mas pertence à raridade a descoberta de crianças tão inteligentes – emendou Kiela. – Vocês passaram pela mão do Homem do Saco? Receberam um género de poderes dele? – Não! – redarguiu a outra. – Somos inteligentes por natureza, todos nós. Daí termos sido escolhidos pela mostrar-te o que te mostraremos. – Mas continua a ser estranho para mim… – Achas estranha a tua inteligência? – demandou Bruno. – Um pouco… – Mas a aceitas? – continuou o outro. – Sim, sem questões nem suspeições… – Questões e suspeições – repetiu Márcia Gaílsa. – Interessante escolha de palavras. Será agradável conversar contigo.
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– Digo o mesmo – assentiu Kiela, enquanto tirava algo para alimentar o coelho. – Pelo que sei, a maioria de vocês tem pais parecidos ao meu, não só no comportamento e no pensamento, mas também na aparência. Não vos é estranho este facto? – Se é um facto, é-o e pronto… O que queres descobrir com essas perguntas? – Quero entender melhor o Homem do Saco. Se dentro em breve o serei, quero saber como o meu antecessor pensava e agia. Escolher pessoas idênticas desta forma beira a impossiblidade. Nunca vos passou na mente que ele pode ter criado os vossos pais? Criar no sentido de usar os seus poderes para formar um humano… – O Homem do Saco não tem poderes para criar humanos, mas para protegê-los. Além do mais, os nossos pais são largamente mais velhos dele. Sabias que ele tem apenas dezassete anos? – Sim. Se o Homem do Saco ganha os poderes aos dez anos e já se passaram sete desde que o Kaculu os auferiu, é básico deduzir isso. Mas ele pode colocar a informação na cabeça dos vossos pais e fazê-los acreditar que eles vieram à existência muito antes dele. Ele fez algo parecido à minha mãe. Ela era o antigo Homem do Saco. Foi ela o antecessor dele. E agora ela não se lembra de nada, e tem uma vida diferente… – Se a tua mãe foi o antecessor dele – dizia Bruno – então não podes pensar que ele criou os nossos pais. Ela nasceu antes dele e os nossos pais já existiam neste tempo. Contudo, se houvesse alguém que pudesse criar algo do género, devias pensar na tua mãe como opção mais sensata. – Voltaremos a esse assunto mais tarde – cortou Kiela. – Digam-me, porque vocês estao a usar animais nestes vossos testes? – Como assim? – demandou Márcia Gaílsa. – Foram buscar-me com uma matilha de cães, usaram uma das palancas do Homem do Saco para assustar-me, estão a usar esse coelho para ensinar-me algo que ainda não entendi e mandaram animais medonhos atrás de mim a pouco tempo… – Tens um olho atento – disse Bruno. – Contudo, voltaremos também a este assunto mais tarde. Agora temos de falar de outra Teoria de Conspecção. Pronta? – Qual é o nome desta teoria? – Teorema de Outrem.
♣ – Chegou a hora de fazer-mos algo pelo Usuku – disse a mulher que estivera recentemente na casa do escritor e da doutora. Conversava ao telefone. Seu nome? Usuku chamava-a de C. Sua localização? Margem do mar. – Estás distante? – inquiriu a pessoa do outro lado da linha. – Estou bem à frente da casa de praia do teu pai. Avisa o resto da Máfia que está aí, J. Venham agora. Ligação desligada. C colocou o telemóvel num dos bolsos de suas calças e fitou – generalização – o mar – precisão – as ondas. Iam, voltavam, embatiam em explosão; exalavam calmaria, esporeavam tristeza. A lua cheia e imponente dramatizava o local, o céu nocturno outorgava-lhe melancolia. O tempo passava. Olhar, ondas, sentimentos. Olhar, ondas, sofrimentos. Angustiava-se. Tinha de tentar recompor-se antes de dar a lutuosa notícia às outras. Tremia na carne. Gemia no espírito. O tempo não parava. Olhar, 56
ondas, sentimentos. Olhar, ondas, sofimentos. Deixou-se cair em desalinho sobre a areia molhada. Chorou brevemente. As ondas bateram-lhe nos pés; gelaram-lhe a carne, resfriaram-lhe o espírito. Limpou as lágrimas em pompa funesta. Levantou-se. Sacudiu a areia que se encrustara em suas roupas e sua pele. Resfolegou – recompôs-se. Ouviu passos e vozes na sua direcção. Voltou-se. Quatro mulheres ocuparam o seu campo de visão. Seus nomes? Usuku chamava-as de N, D, M e J. – O que se passa? – perguntou N, sendo surpreendida pelo forte e desconcertante abraço choroso de C. – Diz-me o que se passa, amiga. Não houve resposta perceptível. Apenas o soluçar lacrimoso de C era ouvido, e transmitia inigualável dor, transmitia indescritível angústia. N sentiu-se enfraquecer. Entendeu o que se passava. Partilhou do choro da amiga. D, M e J abraçaram-nas. Choraram em coro desventurado. O tempo passava. Abraço, lágrimas, dor. O seu amigo estava morto. A pesquisa que haviam feito para ele com o intuito de evitar o infausto fracassara. O tempo não parava. Abraços, lágrimas, rancor – o culpado tinha de ser achado e responsabilizado. Soluçaram, diminuíram as lágrimas – acalmaram-se. – Ele deixou instruções para todas nós – verbalizou C. – E uma delas diz que temos de dar, para edição, os novos livros dele, durante cinco anos. Ligou para mim há algumas horas para falar sobre o assunto da hebdómada. Pareceu-me estranho, mas o que não é estranho no Usuku? Contudo, acho que a morte dele não é bem uma morte… – Como assim? Começas a acreditar nas histórias que investigámos por meses absurdos sobre os poderes do Homem do Saco? – inquiriu M em motejo. – Sabes muito bem que aquilo eram apenas histórias. Ele queria aquelas informações para ganhar inspiração. – Acreditas piamente no que acabaste de dizer? – demandou C em seriedade. – Não foram pesquisas de meses, mas de anos. Começou tudo quando ele nos pediu para investigar a vida daqueles cinco homens, lembras-te? – Sim – respondeu a outra. – Havia um Carlos, um Lourenço, um Márcio, um Ndombaxi e um com o pseudónimo Cazenga… Mas o que tem isso de estranho? Demoslhe os ficheiros deles e pronto! Ele quis confirmar se eram pessoas reais e confirmámos! Fim do assunto! – Achas que alguém pediria para confirmar se um humano é real? – recolocou D. – Só se não fosse normal! As pessoas pedem para confirmar a autenticidade de alguém, não se o alguém pertence ao mundo real. É mesmo estranho ele ter pedido isso … – Sem mencionar nas pesquisas exaustivas sobre o Homem do Saco e sobre aquelas obscuridades – disse N. – Às vezes questionava-o sobre a razão de ele querer tão absurdamente aquelas informações, mas ele dava voltas… – Acrescente a isso o que descobri recentemente: Todas as pessoas sobre as quais pesquisámos são personagens dos livros dele – proferiu C. – Como assim? – demandou J. – Ele convivia com elas e ainda assim pediu-nos para pesquisar sobre suas vidas? – Não – respondeu C. – Ele escreveu sobre a vida delas sem qualquer erro cronológico ou físico antes de as conhecer. Tudo que ele escreveu era o que aquelas pessoas eram na realidade, mas ele não sabia que elas existiam. – E como descobriste isso? – litigou D. – Porque não me disseste nada? – Não achei muito importante na altura. Também só o descobri porque comecei a ler os livros dele. Nenhuma de nós tinha lido os livros dele, apenas os poemas, mas houve
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uma vez que ele me deu um livro para ler; foi neste onde descobri alguns dos nomes que pesquisámos. – Agora que dizes – acrescentou D – lembro-me que ele já me deu O Sonho dos meus Homens para ler. Embora não o tenha terminado, lembro-me que havia um Ndombaxi Canzar na história… – Ele enviou-me um livro por e-mail – aditou M. – Acho que era O Filho Mau ou O Filho da Raiva… – O Pior Filho – corrigiu J. – Ele também enviou-me esse por e-mail. Mas não o li… – Também eu – continuou M. – Mas, pelo resumo que ele fez para mim antes de mo enviar, vejo agora que se assemlha muito com a história daquele Cazenga… – Mas ainda não explicaste bem o que acabaste de dizer, C – cortou N. – O que queres dizer com a morte dele não ser bem uma morte. – Ele colocou um tempo específico na mensagem que deixou para nós: cinco anos. – Mas isso não quer dizer nada – infamou D. – Edita-se os novos livros por cinco anos para que as pessoas continuem a ler a obras dele e pronto! – Ele também disse para mandarmos fotos e cartas aos filhos e à família dele para que acreditem que ele ainda está vivo… – E à esposa dele? – perguntou N. – A Braulia? – Pelo que li, ela também morreu. Eu sei que parece abursdo, mas acreditem em mim. Ele não morreu, e eu sei como encontrá-lo. – Como podes ter tanta certeza de possibilitar o impossível? – afrontou M. – Porque eu conheço o Usuku. Sei como ele pensa. Se ele escreveu algo assim para nós, é porque quis que lêssemos nas entrelinhas. – Suponhamos que ele esteja vivo – auspiciou J – achas que ele quer ser achado? Se ele falou em cinco anos é porque quer esconder-se de alguma coisa, não? – Sim, tens razão – respondeu C. – Mas só posso fazer o que ele me pediu depois de confirmar que ele está vivo… – E como o farás? – demandou D. – Pelo que lemos, Usuku é um dyala ngoma, e só um dyala ngoma pode encontrar outro dyala ngoma. – E o que farás para encontrar um dyala ngoma? O avô dele já morreu, enao sabemos a localização dos outros… – Ainda há um outro bem perto de nós. Um que passou despercebido na história que lemos sobre ele. – Quem? – voltou a demandar D. – O pai dele… – Estás louca! – bradou M. – Se chamarmos o pai dele agora, ele ficará a saber que o Usuku morreu, e não é isso que ele quer! Ele não quer que se saiba da sua morte. – Não precisaremos contar-lhe da morte do filho. Ele fará o que pedirmos sem entender a real razão. E, preparem-se, ele já vem a caminho.
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– Teorema de Outrem? – perguntou Kiela, degustando um pedaço doce do que estava servido sobre o mantel estendido sobre o chão. – Qual é o ponto de magnificência deste teorema? – Antes de chegarmos ao ponto de magnificência, temos de definir o teorema – disse Márcia Gaílsa. – Não sejas apressada. – Simplesmente quero passar por estes testes rapidamente e falar com o meu pai. Ele tem uma história para me contar… – Seremos breves – consentiu Bruno. – Mas outras pessoas ainda falarão contigo. Não te foi dito? Todos os jovens que vieram contigo naquele carro têm uma teoria de conspecção para ti… – Isso eu já sei. Por isso é que quero que seja breve. Há muito que estou à espera que ele me conte aquela história… – Acho que ele não te contará esta história hoje – auspiciou o outro. – Porquê? – Esta noite está reservada apenas para ti e para nós. Tudo que acontecer aqui definirá coisas soberbamente relevantes no futuro. Esta noite é tua, esta noite é nossa, não do teu pai… – Entendo. Já esperei tanto; o que são mais algumas horas? Conta-me, qual a definição deste teorema? – O Teorema de Outrem ou Teorema dos Outros fala sobre, como o nome diz, os outros – principiou Bruno. – Argui que a existência de outros tem problemática como adjectivo e que as coisas seriam menos complexas se os mesmos não existissem. – Exemplos… – As coisas que fazes – dizia Márcia Gailsa, brincando com as orelhas do coelho – são coisas que tu mesma pensas, tu mesma engendras, sabes que também são susceptíveis a acabarem bem ou a acabarem mal; e sabes como lidar com a raiva ou a frustração se derem errado. Contudo, se contares um de teus planos a alguém, este aconselhar-te-á a mudar algumas coisas no mesmo, adulterando-o. O plano passará então a não ser teu, mas de ambos, quando, na verdade, querias apenas que ele o escutasse sem conselhos nem juízos. – Queres dizer que não podemos pedir a ajuda e que devemos fazer tudo sozinhos? – Não! É claro que não! – continuou a outra em negação. – Quero dizer que a existência de outros cria barreiras, obstáculos, empecilhos, que não ocorreriam se eles não estivessem connosco, por nós ou para nós. – Preciso de mais exemplos… – Os outros, por tentarem ajudar, complicam em vez de simplificar. Uma amiga talvez fale de uma coisa errada que tu lhe fizeste a uma outra amiga apenas para desabafar, mas esta outra amiga entenderá que tu, que fizeste a coisa errada, és uma pessoa má e que te deve desprezar. Outro exemplo: tu talvez queiras fazer algumas coisas acertadas, mas, por causa daquilo que os outros falarão, inibes-te. Outro: sabes o que deves fazer e o fazes todos os dias, se ficares um dia sem o fazer, os outros insurgirão contra ti como mil juízes que acusam, mas não analisam. – Entendo parcialmente o que queres dizer. Os outros podem ser redentores, mas, na redenção que oferecem, dão também dificuldades.
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– Exactamente – anuiu Bruno. – Por isso é que um dos pontos do Teorema de Outrem diz que os outros, em quantidade, fazem mais mal do que bem, em qualidade, fazem mais bem do que mal. – Agora perdi-me – disse Kiela entre caretas. Ainda não havia notado que a luz no local começava a escassear-se. – O queres dizer com isso? – Os outros querem realmente o nosso bem, mas, ao fazê-lo fazem muitas coisas que nos irritam, decepcionam e magoam. O bem que eles farão para nós é um só, mas o mal dentro deste bem acontece várias vezes. Exemplo: Pedes para alguém acompanhar-te ao mercado. Tens a lista de todas as coisas que queres comprar, mas a pessoa convidada dará conselhos sobre o preço e a qualidade de cada um. Embora seja bom, toda vez que ele o fizer, sentir-te-ás triste, como se ele disse que não sabes fazer compras e que ele é melhor nisso. No fim, poderão até comprar coisas boas e mais baratas, mas por todo o caminho houve irritações e decepções. Um bem, dez males. – Entendo, mas a convivência com humanos tem dessas; é natural… – Ninguém disse o contrário aqui – recomeçou Márcia Gailsa. – Estamos apenas a dizer o que os outros normalmente fazem. E não são só os humanos. Mesmo entre os animais acontece. A existência de outros prejudica os nossos planos, mas conseguimos viver com isso. Até o Criador tem suportado isso durante séculos! Por causa da criação de outros, Ele teve de engendrar saídas para cumprir algo que era bastante simples no princípio: humanos viverem juntos, felizes e para sempre, tendo os animais aos seus cuidados, contudo, um outro complicou as coisas e agora têm de se passar um indefinido número de séculos para que o propósito simples se cumpra. – Tenho de digerir melhor essas informações para entender o que vocês me querem transmitir. Podemos passar para o ponto de magnificência? – Tu és mais inteligente do que todas as crianças aqui juntas – reconheceu Márcia Gailsa. – Creio que já entendeste o que te queremos transmitir. Estás é com vontade de ver isto terminar e poderes correr para o teu pai e ouvir a história que tanto queres. Mas, vamos ao ponto de magnificência – recomendou enquanto Kiela se levantava – O Teorema de Outrem tem como finalidade mostrar-te que os outros transformarão sempre a ajuda que lhes pedires em um ataque contra ti. Tu és tu, este coelho é um outro. Vejamos o que conseguirás por salvá-lo mesmo sendo insistentemente ordenada para não o fazeres. – Vocês também usarão o coelho neste teste? Então eu tinha mesmo de salvá-lo e chegar com ele até aqui para que tivéssemos essa conversa, não? – Talvez sim, talvez não, mas, lembra-te: A Bengui deu-te perigo, e nós damos-te consequência. Agora vai, volta a sair por onde entraste; o tempo escasseia-se… – Se eu sair por onde entrei, encontrarei novamente aqueles animais assustadores… – Não tens escolha. O único local que encontrarás luz é aí fora e… Márcia Gailsa não acabou a frase. O local começava a ficar escuro, tão escuro que Kiela já não a conseguia ver. A escuridão chegou até aos pés do coelho. Kiela apanhou-o; colocou-o entre seus braços. Antes que pudesse fazer qualquer outro movimento, a voz de Márcia Gailsa voltou a soar, mas com teor amedrontador e imperativo. – Corre!
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A conversa entre o grupo denominado Máfia continuava acirrada. A explosão de ondas acompanhava as suas contradições; o luar pardacento oscilava ao som de suas impugnações. O cenário celeste era calmo, mas não acalmava. O cenário marítimo era detonante, e detonava. O cenário terrestre era ameno, mas não amenizava. O cenário figurante era discordante, e discordava – as cinco mulheres discutiam de forma incessante. Porque o faziam? A morte inesperada de seu amigo alvoroçara seus sentimentos. Precisavam de explicações, necessitavam de soluções. O caso era absurdamente inédito: um escritor morrera às mãos de uma das personagens de seu livro. O que se podia fazer? O que a lei previa para aquele caso? O irreal não pode ser julgado às margens de um tribunal; ao ilusório não se dá sentença de prisão. Porque morrera o escritor? Como morrera? Onde estava seu corpo? Perguntas demandam respostas. Respostas demandam acção. A discussão cessou. A razão? Um homem se aproximara delas num carro. Disfarçaram suas emoções; esboçaram sorrisos. O homem desceu do auto carregando um instrumento de percussão. Cumprimentou-as. Responderam. O que ele disse a seguir, deixou-as emudecidas por longos segundos. – Não se preocupem. Podem chorar. Eu sei que o meu filho morreu. Estou aqui para ajudar no pedido que ele vos fez… Antes que se desse azo a perguntas sobre como o pai do escritor sabia do estado inerte do mesmo e o que pensava fazer a respeito – infausto – um casal armado apareceu de rompante numa motorizada, disparando contra eles. Capacetes cobriam seus rostos. As mulheres e o homem idoso tentaram esconder-se – correram em direcção à casa à sua frente. Em velocidade aflitiva, C passou pelo portão, o pai do escritor também, contudo, cataclísmico – N, M, D, e J caíram. Os projécteis haviam atingido seus corpos. Rapidamente, o casal de atiradores colocou os corpos das quatro mulheres no carro do homem idoso e saiu em fuga celerada. Passaram-se breves momentos. A porta pela qual C e o homem idoso passaram voltou a ser aberta em brusquidão, mas não por ambos; soldados – homens armados saíram em formação de pleito. Entraram para os seus carros e saíram em perseguição. O auto dos raptores subia as descidas íngremes de areia do local em rapidez esmagadora. O auto dos redentores fazia o mesmo. Disparos não eram ouvidos. Sirenes? Também não. Apenas o chiar dos pneus e o ranger dos dentes dos soldados figuravam o cenário sonoro. A frase a seguir cortou o silêncio humano. – Se confirmação da morte das meninas – dizia um homem que parecia ser o líder dos soldados – abatam aquele carro! O auto dos raptores atingiu o asfalto – derrapou, expeliu fumaça e avançou em contra mão. Acidente – quase que causava um horrível acidente. Por obra da casualidade, poucos autos desfilavam sobre a estrada àquela hora; conseguiu esquivar-se com exímia facilidade do outro auto. Os carros dos redentores também conquistaram o asfalto em derrapagem. Fumo; avanço em contra mão. Perseguição lancinante e ininterrupta. Desvios. Aproximavam-se da presa raptora. Interceptor – um outro auto fez com que se desviassem para não causarem um acidente; a presa raptora voltou a afastar-se. Voltaram a aproximar-se; estavam mais perto do que antes. Um de seus autos bateu contra a parte traseira da presa raptora. Inacreditável – o condutor do auto dos raptores usou aquele embate como impulso para fazer uma manobra perigosa: derrapou, expeliu fumaça e
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avançou contra a direcção dos autos dos caçadores redentores. Antes que pudessem desviar-se, os soldados viram o auto da presa raptora curvar para uma zona sem asfalto, uma zona intransitável, uma zona suicida. Desesperador – o auto dos raptores despenhouse; era uma ravina. Os soldados desceram rapidamente dos carros. Olharam para baixo à procura do auto, mas a escuridão não lhes permitiu identificar coisa alguma. O homem que parecia ser o seu líder estava entre eles. Observou o local. Era impraticável descer por aí com a tropa apeada. Deu o sinal; tornaram a entrar para os carros e voltaram pelo caminho que já haviam percorrido. Derraparam – desceram a subida íngreme de terreno arenoso em rapidez esmagadora. Curvaram à direita. Fulminaram o lugar com o feixe de luz de seus faróis. Esquivaram árvores, desviaram-se de tendas. Esmagaram capim, desbravaram sendas. Chegaram às margens da zona premeditada. Tendo o cenário costumeiro como excepção, nada foi o que encontraram. Desceram dos autos. Vasculharam a área com as lanternas acopladas em suas armas. Iluminavam o que estava à sua frente enquanto esquadrinhavam o local: Lama, capim, latas, roupas, carcaças de animais, paus, cacos, garrafas, montes de folhas, carro despenhado, balde, pedaços de plásticos. Um momento – carro despenhado? Carro despenhado… Carro despenhado! Avançaram em posição de circunspecção – cercaram o auto. Impossível – a luz das lanternas desaguou para dentro do carro, mas não repousou sobre corpo humano algum – nem as mulheres nem os raptores se encontravam no seu interior. Quem poderia sobreviver a uma queda daquelas? E, se sobrevivesse, com que força seria capaz de arrastar tão rapidamente quatro corpos e os esconder? Esconder – sim, deviam estar escondidos e, pelo tempo, perto daí. O homem que parecia ser o líder dividiu o seu pelotão. Seria um erro? Dividir não seria o mesmo que diminuir a força de acção de seus soldados? Sim – mas só se ele fosse inexperiente. O homem era habilmente treinado na arte de combate, seus soldados, idem. Ocupava um posto proeminente no país. Os raptores, se soubessem de antemão por quem estavam a ser perseguidos, então eram suicidas, principalmente porque duas das mulheres que sequestravam eram suas filhas. Exiguamente distantes daí, os raptores acabavam de entrar para um esconderijo, arrastando dois corpos. As outras duas mulheres já se encontravam no interior de covil, inactivas, imóveis. Esperançoso – o casal de raptores, por causa da parcial escuridão do local e da pressa em desaparecer do raio de acção dos soldados redentores, não notara que apenas três delas tinham os dardos paralisantes incrustados em seus braços. Dardos paralisantes? Sim, dardos paralisantes. As mulheres não estavam mortas, mas paralisadas, sedadas. Preocupante – a mulher que fingira tombar com os disparos transportava em seus bolsos um aparelho de alta voltagem e engradara um ataque no momento em que os carros dos soldados redontores viam atrás de si. (Ora, o que realmente a fizera cair fora o embate contra o corpo em queda de J, e, decidira fingir-se de morta, pois pensara que a ideia do casal era apenas matar, e não levar os corpos consigo.) Todavia, a forte queda do auto dos sequestradores desmobilizou-a, atordoou-a, contudo, seus sentidos voltavam ao normal. Voltou a engendrar uma saída. Seria perigoso demais? Seria – mas só se ela não fosse alguém pertencente à Máfia. Os raptores, se soubessem de antemão a quem sequestravam, então eram suicidas, principalmente porque ela era M, a mais perigosa do grupo. Os raptores respiravam com difuldade. Os capacetes ainda cobriam seus rostos. Mas seus corpos demonstravam imponência – cansaço não era a palavra perfeita para adjectivar seu estado. Enconstaram os dois corpos rentantes na parede. Entreolharam-se.
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Se se pudesse olhar para dentro de seus capacetes, ver-se-ia que seus olhos não espelhavam preocupação. Estavam sossegados, confiantes. Os soldados redontores, se soubessem de antemão a quem perseguiam, então eram suicidas, principalmente porque eles, o casal, pertenciam ao rol da pior espécie de pessoas que a humanidade já viu. As quatro mulheres da Máfia, se soubessem de antemão quem as sequestrava e se projectavam qualquer plano fuga, então eram suicidas, principalmente porque eles, o casal, tinham Lino Tchiva e Natércia Tchivela como nomes. O casal deu as costas para os quatro corpos. Nenhuma palavra foi proferida. Nenhuma informação vazou. Nada. Apenas o barulho dos soldados vasculhando sorrateiramente a área era fracamente ouvido. M não tinha como saber com quem lidava. Por isso, decidiu recorrer à natureza humana: homens são fisicamente mais forte que as mulheres. Logo, devia atacar primeiro o macho, para diminuir as probabilidades de ser derrubada violentamente ao executar o seu intento. Retirou calmamente o aparelho de electrocussão de seu bolso. Levantou-se com a cautela de uma serpente e, num ápice, crivou electricidade na perna do homem. Fílmico – antes que o homem pudesse gritar qualquer coisa, já a mulher com o capacete havia agarrado a mão de M, torcido seu braço e a encostado contra a parede. O homem engoliu o grito entre rangeres de dentes, prostrou-se em dores. – O que pensas que estás a fazer? – inquiriu a mulher com o capacete. Ela era notavelmente maior que M. – Sabes quem é o homem que acabaste de atacar? – Sei. É um homem electrocutado. E tu seguirás o mesmo caminho. – Não sabes o que dizes – respondeu com maldade visceral. – Terias de viver dez séculos apenas para fazer um terço do terço que consigo fazer. – O que é que vocês querem connosco? – Deixar um recado. – Aproveita: Sou toda ouvidos antes de te atacar. – Deixem a morte do maldito escritor como está. – Senão…? – Senão não serão atordoadas por dardos, mas despedaçadas por balas. – Bela ameaça. É um acessório que vem com o seu capacete? – inquiriu enquanto atacava o peito da outra com uma forte marrada. Natércia Tchivela, levantou o seu corpo pela cintura e preparava-se para projectála contra o chão. M aproveitou a deixa para soltar o braço que era esmagado pela parede e arrancou o capacete do rosto da outra na queda. O homem tremia, não conseguia ajudá-la. O rosto de Natércia Tchivela ficou coberto por seus compridos cabelos. M levantou-se em dores e afastou-se por alguns metros em passos apressados. A Tchivela levantou-se em ímpeto assassino e começou a correr em sua direcção. Brusco – um disparo interrompeu as duas. Os soldados haviam chegado. O disparo não foi contra o corpo de ninguém, mas contra o alto, contra o ar. A área ficou grandemente iluminada. Podia-se ver com clareza o homem prostrado em tremores e o corpo das três mulheres encostados contra a parede. Os canos das armas ficaram divididos entre Natércia Tchivela e Lino Tchiva. – Mais um passo seu e a morte será sua amiga de fofocas – disse o homem que parecia ser o seu líder. – Como queira – respondeu friamente a mulher. Seus cabelos ainda cobriam seu rosto.
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– O que pensas que estavas a fazer? – voltou a demandar o homem. – A conversar com essas meninas. Pergunte à rapariga com o meu capacete se houver alguma dúvida. – Não gasto saliva desnecessariamente – anuiu o homem em seco, enquanto o resto dos soldados se fazia presente. – Nota-se claramente que era um rapto… – Então porque perguntou? Porque não gasta saliva desnecessariamente, gastandoa desnecessariamente? O homem levantou seu punho. Apontou a arma para o meio da testa de Natércia Tchivela. A distância entre eles era de meia dúzia de metros, mas parecia que o metal do arsenal bélico tocara sua pele com frieza assassina. – Qual é o teu nome? – inquiriu M, tentando perceber a calma da outra. – Natércia Tchivela. – Como conheces o Usuku? – Não é uma resposta fácil… – Tente… – Porque a conversa, General? – demandou um dos soldados em cochicho. – Porque não atacamos?
– Porque não sabemos ainda o que eles querem e qual é o estado das meninas aí à frente – respondeu entre dentes. – Resumo: não sabemos se realmente estamos em vantagem. – Digo-te apenas que ele sabe tudo o que já vivi – respondeu a Natércia Tchivela. – E sobre aquele homem? – perguntou M. – Ele também sabe tudo? – Sim é a resposta. Lino Tchiva é seu nome. M estremeceu. Seria verdade? Lembrava-se de um Tchiva quando investigara a vida de certo Carlos Banzaia e lembrava-se do sobrenome Tchivela quando lera sobre um certo Ndombaxi Canzar. O que se passava aí? Porque a mulher dissera para deixarem imóvel o assunto sobre a morte de Usuku? O que sabia aquela mulher sobre o paradeiro do escritor? Porque haviam se arriscado a sequestrar alguém da Máfia, ainda mais em sua própria zona de conforto? M precisava saber das respostas. Contudo, se seu pai levasse Natércia Tchivela como cativa, o interrogatório poderia levantar o assunto proibido. Tinha de ganhar tempo. – Como vocês nos encontraram? – indagou com falsa diligência. – Seguimos o pai do Usuku sem ele aperceber-se. Nunca descobriríamos vocês se não fosse ele. Nunca houve um grupo capaz de não ser encontrado nem identificado como vocês… – Agradeço o elogio… – Sobre que grupo ela fala, filha? – demandou o homem que já era óbvio ser o líder. – Um grupo de pesquisa sobre os livros do Usuku, senhor – respondeu C, entrando apressadamente com o homem idoso. – O que sabes sobre ele, mulher nociva? – Tudo e nada – respondeu em desprezo. – Tu vais falar, para o teu próprio bem – dizia C, aproximando-se dela. Os soldados tentaram impedi-la, mas o olhar do líder desencorajou-os. – Onde está o Usuku, estúpida? – inquiriu, tentando atingir o rosto da outra. – Podes chamar-me o quiseres – disse calmamente a Tchivela, após ter travado o punho da outra com extraordinária rapidez – mas não me podes tocar. – Já deixei o aviso, mas vou repeti-lo: Deixem as coisas como estão, ou a morte será a amiga fofoqueira de muita gente, principalmente das crianças. 64
– O que queres dizer com isso? – inquiriu C, soltando-se. – Sabemos do que querias fazer quando convocaste o pai dele. Ouvimos a vossa conversa ao telefone. Não atrapalhem as coisas, ou o terror será o pior. Recado dado, agora preciso ir embora. Atiras-me o capacete? – indagou, olhando para M entre seus cabelos. M atirou-lhe o que pedia. Agarrou-o num movimento seco, comedido. Fez seu rosto aparecer – prendeu o cabelo. Sua beleza era inigualável, mas os homens no local não prestaram atenção a tal distracção. Antes que pudesse colocar o capacete, dois dos solados avançaram rapidamente e tentaram derrubá-la. Sinistro – a mulher usou o capacete como arma; derrubou-os batendo-o marcialmente contra as suas caixas torácicas. Tombaram – dominou-os. Recebeu as suas armas. Apontou um dos canos contra os outros soldados que tentavam aproximar-se e o outro cano para a testa do líder. Sorriu. O líder entendeu o gesto. Não era para matar, mas uma forma de vingança, para lhe mostrar como se sentira quando era ele quem lhe apontava o cano no rosto. A mulher atirou as armas contra o chão. Apanhou o capacete – cobriu o seu rosto com ele. Antes de os soldados avançarem e a algemarem, colocou às mãos atrás das costas e disse em tom frio: – Aproximem-se calmamente. Façam o que devem fazer. Só não me peçam para ajoelhar.
♣ Kiela corria em desvario – o escurecer seguia-a sem tréguas. Já estava no meio da fenda. O local começava a estreitar-se. O escurecer estava a escassos segundos atrás de si. Embora fosse já uma zona onde apenas habitassem trevas, sentia que uma escuridão superior tomava conta do lugar. Aproximava-se da entrada. Já não podia correr – era demasiadamente estreito. Apertou o coelho contra seu peito e andou o mais rápido que pôde entre a rugosidade das paredes. Medonho – ouviu sons à sua frente. Parecia – um coçar, um escavar; parecia – o som de patas roçando a areia. Deu mais alguns passos. Viu claramente – as feras escavavam o chão à entrada da fenda com suas garras. Tentavam alargar a frecha para passarem para o seu interior; tentavam entrar para atacar e despedaçar. O escurecer aproximava-se por trás. As bestas escavavam à frente. Novamente entre dois perigos. Novamente entre a espada e a parede. Novamente entre Cila e Caríbdis. Medo, palpitar acelerado – pânico! Bestas, escurecer, temor. Bestas, escurecer, pavor. Terror – uma das bestas conseguiu entrar; corria selvagemmente na sua direcção. Aterrador – atrás de si, entre o escurecer, uma mão apareceu cobrindo a boca da criança. A mão puxou-a para si – Kiela desapareceu no escurecer, deixando a besta morder o vazio na sua tentativa insistente de devorar o coelho. A mão levou-a por algum tempo. Tentou libertar-se. Em vão – seu oponente era mais forte. Andavam sofregamente entre o escurecer. O lugar começava a perder o estreitamento. Uivo – ouviram um uivo. Apenas ela e o coelho demonstraram comoção. A mão continuou calma, impávida; arrastava-a apenas consigo sem qualquer demonstração de sentimentos. Curvaram – não notou que o haviam feito por causa da densidade das trevas, mas – curvaram, desapareceram do faro da besta. Kiela sentiu folhas húmidas roçando sua pele. Já não estariam na fenda? Talvez. Ouviu o barulho de 65
águas caindo contra pedras. Sentiu um estranho aroma flóreo do local embriagar-lhe o olfacto. A escuridão era implacável. Onde estava? Para onde a levavam? Nada era dito em resposta. Apenas o arrastar de seus pés contra o capim, os seus incessantes gemidos de redenção e o cair das águas contra as rochas eram ouvidos. Pararam. Fez-se luz – fluorescente luz. O local estava pintado de branco; as paredes eram rugosas, não polidas, mas caiadas. O verde do capim curto criava contraste aprazível com a cor nívea. A mão meia volta com o corpo de Kiela. À frente de si, a uma dezena de metros, uma figura dava as costas para ela. Estava acocorada. Parecia que mexia em qualquer coisa no capim. Bem à esquerda da figura – curioso – estava um espelho em oposição oblíqua. A figura levantou-se. Pegou o espelho. Fixou-o sobre um prego na parede. À distância, Kiela pôde ver seu rosto reflectido e a mão que lhe tapava a boca. Era uma mão humana. A figura voltou-se. Tinha feminilidade em sua silhueta – era uma jovem mulher. Sorriu para ela. Kiela reconheceu-a. Liliana Tchiva era seu nome. A mão fez com que andasse em direcção ao espelho. Tremores tomaram conta de seu corpo. Segundos depois, sorriu. O rosto da mão foi reflectido. Reconheceu-o também. Derito Tchiva – era assim que se chamava o detentor da mão. Vinte e cinco anos era a idade de ambos. – Porque me pregaste este susto? – inquiriu a criança, esmurrando amigavelmente o abdómen do outro. – Para introduzir-te à nossa teoria de conspecção – disse o outro, sorrindo. – E qual o nome da vossa teoria? – Teorema de Hegemonia – respondeu Liliana, aproximando-se. – Se eu pedir para vocês irem directamente ao ponto de magnificência, aceitarão? – Claro que não! – continuou a outra. – Que graça teria? Além disso, macacos que chegam à banana antes de passarem pela casca devem ser macacos geniais! – Acabaste de me comparar a um macaco? – Não! Acabei de falar umas palavras, o que você entendeu delas é contigo… – Muito respondona a menina – disse com expressão teatralmente séria. – Vai ficar de joelhos no canto da sala até as aulas terminarem e ainda por cima vai trazer o seu encarregado de educação aqui, sem falta, no sábado, à noite. – Mas nós não estudamos sábado à noite, senhora professora… – Por isso mesmo! Vou aproveitar entrar em vossa para roubar pudim enquanto estiverem aqui… – Porque não questionaste o Teorema de Outrem do Bruno e da Márcia Gailsa? – cortou Derito. – Questionar o quê? – Não te pareceu que o Teorema de Oposição da Bengui e o Teorema de Outrem deles é a mesma coisa? – Não. O Teorema de Oposição fixa-se no colectivo, o de Outrem, no individual. Acções em grupo são diferentes de acções particulares. A aglomeração de acções particulares cria um resultado colectivo, mas tal resultado colectivo é implicitamente diferente das acções particulares. Ainda nesta ordem, o individual pode descrever o colectivo, mas o colectivo não pode ser descrito pelo individual. Um humano que rouba é um ladrão, dez humanos que roubam são uma quadrilha. Um é um mal comportamental; dez são um mal social.
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– Ficou séria a menina – disse Liliana. – Mas podias simplificar as tuas palavras. Acabaste de falar por puro exibicionismo, e exibicionismo advém de orgulho, e orgulho é um sentimento nocivo. Concordas? – Não! Acabei de falar apenas umas palavras, o que você entendeu delas é contigo… – Só lido com loucas! – gracejou Deito. – Falemos sobre o Teorema de Hegemonia, ou Teorema de Sentimentos… – Qual é a relação entre hegemonia e sentimentos? – interceptou Kiela, entregando o coelho para Liliana. – Hegemonia é superioridade, supremacia, e o que governa os seres pensantes são os sentimentos – começou Derito em explicação. – Tudo o que fazes ou que te é feito tem um sentimento como sua génese. Sentimentos dão vazão a acções; são o seu princípio, o seu originador. – Qualquer ser pensante julga-se superior aos irracionais – continuou Liliana, passando lentamente a mão sobre a pelagem do coelho. – Os seres pensantes agem, modificam conforme as suas ideias, os seus intentos. Mas tudo o que se passa em sua consciência é consequência de um sentimento. Acções, reacções e interacções são o produto do que sentimos, não do que pensamos. Primeiro o sentimento, depois o pensamento. Sentes raiva, pensas em vingança. Sentes amor, pensas em companheirismo. – Mas o meu sentimento de raiva pode resultar em bom pensamento ou em boa acção – contrapôs Kiela. – A raiva pode despertar o desejo de vingança em mim, mas a minha consciência intervirá com lógica contraproducente quanto a este sentimento e me moverá a agir da melhor forma. Contudo, o contrário também é verdade, um sentimento bom pode ter, por fim, uma acção má. – Pensamento bom – anuiu Derito – contudo, não contrariou o nosso teorema. O que despoletará a tua consciência é um sentimento, o sentimento de fazer aquilo que é certo. Tudo começa com sentimentos, nada é produzido sem eles. – As pessoas são capazes de reprimir os seus sentimentos e não fazerem nada – voltou a contrapor Kiela. – Onde estaria então a hegemonia deles? – A própria repreensão de um sentimento deve-se a um outro sentimento: o da vergonha, o do não decepcionar, o de não fazer para depois arrepender-se – respondeu Liliana. Seres pensantes são superiores a seres irracionais, mas inferiores a seus sentimentos, sejam eles bons ou maus. Os sentimentos criam ordem, os sentimentos criam caos. – Mas os sentimentos não pensam – pôs em cheque Kiela, recebendo o coelho que Liliana voltava a entregar-lhe. – Como pode algo que não pensa ser superior àquele que pensa? Sentimentos não têm identidade, mas não sabem quem são. Os seres pensantes usam-nos, manuseiam-nos, manipulam-nos. São como ferramentas, não têm iniciativa própria. Maior é quem usa, menor é quem é usado. – Chegámos a interessante questão – disse Liliana, olhando para Derito. – Ferramenta e utilizador, quem é o maior? – O utilizador, logicamente – respondeu Kiela. – O que fale um mecânico sem ferramentas para arranjar um motor? – demandou Liliana. – O que vale uma ferramenta para arranjar um motor sem um mecânico? – contraargumentou Kiela.
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– As respostas estão na resposta a ambas perguntas: nada. E o nada é igual. Nenhum dos dois vale alguma coisa sem o outro. – Com a vossa resposta, entende-se que não há superioridade, hegemonia, dos sentimentos sobre os seres pensantes. – Incorrecto – rematou Derito. – Com a nossa resposta nota-se que um precisa do outro para sua existência, para sua identidade. E, quando coexistem, há então a demonstração evidente da superioridade de um sobre o outro. – Entendo – deixou-se vencer Kiela. – Sentimentos são a base, sentimentos são o sustentáculo do bem e do mal. Se houver algo para ser atacado no Universo, atacaríamos os sentimentos, não os seres que os possuem, para termos uma vitória esmagadora. – Finalmente percebeste! – disse Liliana, abraçando-a. – Passemos então para o ponto de magnificência. O Teorema de Hegemonia, ou de Sentimentos, arrazoa que os sentimentos serão sempre o tendão de Aquiles dos seres pensantes, mesmo que um dia as acções decorrentes deles, os sentimentos, sejam apenas úteis, sadias, boas. – Não falaste do ponto de magnificência, mas da conclusão, do objectivo do teorema, apertadora de crianças e coelhos com abraços. – A Bengui deu-te perigo – recomeçou Derito, sorrindo. – O Bruno e a Gailsa deram-te consequência. Nós damos-te controlo. – Como assim? – Aqueles animais aí fora são o perigo, esse coelho é a consequência, o teu sentimento de desafiar a todos nós é a tua falta de controlo. Se desistires de tentar salvar este coelho, terás controlo sobre tudo. Não deixe a humanidade em ti falar mais alto que os teus instintos. – Como assim? – Ainda não te perguntaste porque estão tantos animais atrás de um coelho só? Aqueles animais poderiam devorar a si mesmos. Um é presa dos outros. Contundo, mancomunaram contra este coelho… – Continuo sem entender o que queres dizer… – Que ferimento é este na tua perna? – cortou Liliana, enquanto o barulho de águas batendo contra as rochas tornava-se mais forte. – Não me lembro – respondeu Kiela. – Não estava aí a pouco… – Não deve ser um ferimento feito aqui – conjecturou Derito. – O lugar está protegido pelos poderes do Homem do Saco… – Então devo-o ter feito quando estava a fugir daqueles cães. Aquelas ruas estão cheias de coisas cortantes… Esperem! Se me cortei e sangrei perto de casa, o Lunga corre perigo… – Porquê? – demandou Liliana. – A personalidade dele tem tentado apoderar-se deste corpo deste que fizemos cinco anos… – Como assim? – inquiriu Derito. – Vocês ainda não entenderam, pois não? O meu pai não cortou o meu cabelo para que eu me parecesse a um rapaz. Eu estou no corpo de um rapaz, no corpo do meu irmão. – E como aconteceu isso? – voltou a demandar Liliana. – O meu pai tentou salvar-nos… Explico-vos mais tarde. Acho que está na hora de eu ir. Mas não se preocupem com o Lunga. Ele está no exterior com a minha mãe. É
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impossível que a personalidade dele seja achada pelo pequeno pedaço de pele que saiu daqui. – 0K – concordou Liliana, fazendo-lhe adeus com Derito. - Agora sustem a respiração. – Porquê? Nenhuma resposta foi dada. Kiela viu apenas uma das paredes rachar-se e um enorme e brutal jacto de água bater contra seu corpo e arrastar-lhe para longe dos gémeos Tchiva. Se não estivesse preocupada em não afogar-se, lembrar-se-ia então que era por trás das paredes que corriam as águas que ouvira quando Derito a transportara até aí.
♣ A mulher algemada era imponente, seu companheiro parcialmente atordoado, idem, seus captores, ibidem. Três mulheres desmaiadas foram colocadas em carros separados. O casal imponente era o culpado. Outras três pessoas – duas mulheres e um homem idoso – entraram para outro carro. Uma das mulheres olhava fixamente para o rosto do homem que liderara a captura do casal imponente. Sua expressão transmitia castigo, retaliação, massacre – o que faria com aqueles dois não seria agradável. Quem os salvaria? Pecadores impenitentes não merecem redenção. O resto dos captores entrou para os carros remanescentes. O desfile para a vingança contra a acção arrogante de Lino Tchiva e Ivone Tchivela teve início. Autos pretos, fatos pretos, capacetes fumados. Céu nocturno, armas escuras, luvas negras. A morte introduzia-se com pompa, o fenecimento insinuava-se com esplendor. Seriam apenas pensamentos da cabeça de M? Seu pai capaz de uma acção daquelas? Até que ponto pode um genitor chegar quando seus filhos são ameaçados? M na chegaria a obter a resposta, porque um telefonema a seu pai interromperia o cortejo. – É para si, General – disse um dos soldados, entregando-lhe o telemóvel. – Sim. – Liberte as duas pessoas que leva agora consigo, caro amigo – disse a voz do outro lado da linha. – Senhora… não posso, eles… – Faça o que eu acabei de dizer, caro amigo, agora. E não toque neles. Nem tu, nem ninguém. Tenha uma boa noite. – Sim, senhora. O mesmo para si, senhora. Parem os carros – ordenou, lançando o telemóvel para baixo de um dos bancos. Saiu do auto. Andou até o carro em que o Tchiva e a Tchivela se encontravam. Abriu a porta. A Tchivela sorriu. Saiu do auto. Ajudou o Tchiva a fazer o mesmo. Tirou um pequeno aparelho de seu bolso. Premiu um dos botões. O roncar do motor de uma enorme motorizada foi ouvido a escassas dezenas metros atrás de si. Estava encostada perto da entrada do esconderijo de onde acabavam de sair. Olhou para C. Entendeu que ela e o homem idoso usaram o motociclo para chegar tão rápido ao local. Sorriu. colocou a mão do Tchiva sobre seu ombro. Interruptor – o líder colocou a mão sobre o ombro dela em detenção. – Tu podes falar… e podes tocar – disse, sorrindo.
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– As coisas que não te fiz ficam para outro dia, quando não tiveres o sol projectando a tua sombra. – Gravei as suas palavras – disse, com maldade visceral. – Mas não me culpe se as suas coisas se tornarem minhas coisas. O líder deixou-a passar. Andou com o Tchiva atordoado até à motorizada. Ajudou-o a subir. Depois montou ela mesma a célere máquina e, sem olhar para o lado, saiu em velocidade alucinante, desaparecendo em segundos do campo de visão dos que lhes assistiam. – Porque lhes deixou ir, General? – perguntou um soldado em murmúrio. – Porque o sol projecta a sombra deles; porque a Presidente da República os protege.
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– CAPÍTULO XI – ●
Transplantação
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Mentes entontecidas, olhares zonzos – erguer sonâmbulo. As seis mulheres levantaram-se, assim como as duas crianças. Sua localização? Casa de Usuku e Braulia. – O que aconteceu? – inquiriu Sande Negage. – Porque estávamos deitadas sobre o chão? – Não sei – respondeu Quela Caála. – Não me lembro de nada. Nem sei como chegamos aqui… – Será que demos uma farra maluca aqui? – gracejou Paula Muhongo, procurando um assento para se acomodar. – A Nazaré e a avó devem ter avacalhado todo mundo! Têm o olhar mais cansado… – Mente perversa! – cortou a Rapariga da Casa 48 em tom gozoso. – Como é que conseguiste imaginar a Nazaré e a avó a se acabarem com toques de kuduru? – Parem com a brincadeira – ordenou calmamente a idosa, sentando-se. – Não entendem a seriedade do que acabou de acontecer aqui? – Sinceramente, não – respondeu Nazaré Canzar, acomodando-se ao lado da outra. – O que achas que aconteceu aqui? – Tive esta sensação há um seis anos – explicou a idosa. – Aconteceu quando tentei ajudar o Usuku. Esta sensação de vazio, de esquecimento, é-me familiar. – Continuo sem entender… – Quando descobri que a Braulia era a Chiange, aconteceu algo fora do usual. As pessoas que falavam comigo desapareciam com um estranho relampaguear. Eu desmaiei e, quando acordei, não me lembrei de nada do que havia falado com elas. Tive voltar a pesquisar por meses até lembrar-me. Tenho agora mesma sensação de esquecimento estranho. Algo devemos ter feito aqui que despoletou uma acção do Homem do Saco. Talvez tenhamos descoberto algo importante. Temos de tentar lembrar-nos. Lunga? Lunga? Onde estás rapaz? – Estou a tentar ligar o rádio, vovó – respondeu, acocorado ao lado do aparelho. – Tenho de saber se a avó ia mesmo ganhar a tia Nazaré num rompimento de kuduru. Onde está aquele CD das músicas que mais batem, Marla? – Concentra-te, criança! – imperou a idosa. – Lembras-te de alguma coisa? Onde está a tua mãe? – A mãe não gosta de kuduru…
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Marla interrompeu-o com beliscão. – Não, não me lembro de nada avó – recomeçou em tom vencido. – Não vejo a mãe desde que fiz cinco anos. – E o teu pai? – inquiriu novamente a idosa. – Também não. Só me lembro que eles viajaram com a Kiela há quase um ano… – Também lembro-me das coisas assim – acrescentou Marla. – A mãe deixou-nos aqui com a avó, para que a avó cuidasse de nós. Ela foi para aquele país cuidar de mais pessoas doentes, e o pai acompanhou-a. Por causa daquele incidente de a personalidade do Lunga querer apoderar-se do corpo que está com a Kiela, ela também foi… – O meu neto não gosta de viajar – interceptou a idosa. – Não seria mais fácil a Braulia levar a Kiela e o Usuku ficar aqui com o Lunga? – O meu pai tem medo de ficar comigo – respondeu Lunga. – Toda a vez que olha para mim, lembra-se que estou no corpo da minha irmã por uma tolice dele. Passa a vida a remoer-se em culpas. Com a Kiela é um pouco diferente; ele consegue lidar com o pesar que sente quando olha para ela. Seria mais fácil ele levá-la do que levar a mim, avó… – Tens razão – assentiu a idosa. – Ás vezes, para o meu neto, lidar com os erros significa distanciar-se deles. Por outro lado, a Braulia nunca te deixaria comigo. Ela não confia tanto assim em mim. Algo não está certo aqui, repito. Temos de descobrir o que é. Temos de descobri o que aconteceu… Um grito interrompeu-a. Lunga foi o seu enunciador. – O que foi? – inquiriu Marla em preocupação. – Uma parte do meu corpo – dizia a criança entre gemidos – uma parte do meu corpo está perto daqui. Acho que se aproxima desta casa… – Como pode ser? – inquiriu a idosa aproximando-se em auxilio. – A Kiela está muito longe daqui. – Não sei – respondeu em dores. – Mas, se este pedaço chegar aqui e transplantarse, a minha personalidade achará o meu corpo em extrema rapidez, e a Kiela vai sofrer.
♣ Cenário calmo. Nuvens pardas, lua escondida, brisa fria. Fora da casa descomunal, no quintal, um homem gigantesco, descamisado, lavava suas roupas. Enterrara um casal memorável há mais de meia hora. As suas vestes haviam ficado manchadas com lama – por isso as lavava. Chuva? Não – já não chovia. Parecia que as nuvens haviam destilado lágrimas apenas no momento fúnebre em que cobrira o corpo do casal naqueles buracos. Casal – a palavra evocava-lhe lembranças sobre a mulher com a qual tivera uma filha. Ivone Tchivela era a mulher, Daniela Canzar era filha, Ndombaxi Canzar era ele. Como podia a mulher pela qual se apaixonara um dia ter tentado matar Daniela? Não teria amor maternal? Como se tornara tão insensível? Lembrou-se que ele mesmo queimara o corpo de Ivone Tchivela quando ela entregara aos seus ouvidos a informação de que havia feito um aborto. Descobriu a falsidade da informação apenas treze anos depois, mas já era tarde, a mulher que a outorgara já estava morta. Correcção – pensava que estava morta, pois, no mesmo período de treze anos, sua família inteira sofreu um atentado. A mulher liderou o intento 72
assassino. Teria ela se tornado insensível porque ele devotara a sua inigualável beleza às chamas? Teria alguém tanto amor-próprio, tanta auto estima, tanto narcisismo, que, se seu corpo resvalasse em aparência, tornar-se-ia num sociopata? Seria ele o culpado pelo actual estado desequilibrado dela? De onde viera tanta insensibilidade, tanta insanidade? Espremeu a roupa com vigor enraivecido. A água precipitada do tecido encontrou pouso desestabilizante na água da bacia. Pensar sobre aquele assunto exasperava-o. Sacudiu a vestimenta com ímpeto colérico. Antes que pudesse estenda-la – ruidoso – uma motorizada rompeu o portão e passou para dentro do quintal. O homem apressou-se em aprontar-se para um ataque – pegou a enorme pá ao lado do tanque. A motorizada parou. Uma mulher parecia ser a sua condutora. Havia alguém de contornos masculinos atrás dela. Algo cobria seus rostos. Desceram da imponente máquina. Deixaram a cegante luz dos faróis acesa. Via-se apenas as suas silhuetas enquanto se aproximavam. Retiraram os capacetes. Ndombaxi deu passos de abordagem intimidadora. Seus músculos estavam retesados – suas mãos transportavam a enorme pá numa posição em que a delapidação de bíceps, tríceps, deltóide e peitoral se evidenciava. – O que quer que seja que pensam que vieram fazer aqui – disse com sua voz pesada – desistam. Voltem para onde saíram. – Nós não pensamos que viemos fazer – disse a mulher, prendendo o cabelo e andando na sua direcção. – Nós faremos. Ndombaxi tremeu ao ouvir a voz. Seus pensamentos foram extraditados quando olhou para o rosto da mulher. Mas não demonstrou esmorecimento. – O que vens fazer aqui, Natércia? – demandou, incrustando a pá no chão à frente deles, para lhes impedir a passagem. O pequeno objecto que ela usava para prender o cabelo precipitou-se de suas mãos no acto. – Não tem nada que ver contigo – respondeu, desviando-se da pá, com a face coberta por seus longos cabelos. – Acalma-te, gorila. Não vim flagelar ninguém. – Não és bem vinda – notificou, colocando seu enorme braço à frente dela. Seus seios acomodaram-se brevemente nos músculos dele. Esmoreceu por instantes. – Já disse que não estou aqui para flagelar ninguém. Não achas estranho eu saber a vossa localização? – Não. Os vultos podem dar-vos isso em instantes. – Não na noite em que crianças são raptadas para se tornarem novos Jacaré Bangão, Kazumbi ou Homem do Saco. Se assim fosse, eles teriam como lutar para que o rapto não acontecesse. Sabes disso muito bem. Queres apenas fazer conversa comigo, não? – Surgem respostas sem perguntas… Quero saber o que fazes aqui? Quem te informou sobre a nossa localização? – Não falaste muito com o maldito escritor, pois não? Deixa-nos passar. Não temos tempo para isso. – Sou eu quem dita o tempo que alguém tem aqui. O que tem o Usuku que ver com isso? – Fizemos uma troca de favores. Nós nos certificaríamos da restrição do assunto da morte dele, e ele se certificaria que eu e o Lino tivéssemos um célebre encontro com quem quiséssemos. – E este encontro envolve alguém que está dentro desta casa? – Creio que já chegaste à resposta – disse, baixando-lhe o enorme braço.
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– Não ouses tocar na Daniela. Sou capaz de voltar a colocar o teu corpo num estado pior do que aquele em que estava antes de a Braulia cuidar de ti. – Sei que já sabes, mas vou lembrar-te – disse andando em direcção à entrada da casa descomunal –: o que o Usuku sabe, o Homem do Saco sabe. Se estou aqui, o Kaculu aprova a minha entrada. Vens, Lino? Ou tens medo de falar com o Júnior? O Tchiva passou pelo gigante em temor. Ndombaxi arrancou a pá do chão. O Tchiva apressou-se em alcançar a Tchivela. Ndombaxi voltou-se. Andou até à bacia de roupas. O casal entrou para casa descomunal. Antes de pegar uma toalha e seguir o mesmo caminho que eles, o Canzar deixou escapar as seguintes palavras em suspiro: – Usuku, Usuku… o que passou pela tua mente?
♣ Debater incessante – luta pela vida; ser arrastada por uma forte correnteza enquanto tentava respirar não era nada fácil. Kiela sentia a agonia do prenúncio de um afogamento. Redenção? Sim. Por plantas trepadeiras? Não. Por uma mão? Não. Por duas mãos? Sim. Suas costas colidiram contra duas mãos. Foi abraçada por trás e levada até à superfície. Saiu da água em tossir aquoso. O coelho continuava em seus braços. Andou para perto de uma árvore. Sentou-se com o animal. Procurou quem a havia salvado. Ondas de água foi a única coisa que viu. Voltou a tossir. Tremia. Voltou a olhar para água. Emocionante – uma majestosa e jovem mulher saía da água. Cabelos longos e louros. Olhos verdes. Pele albina. Vestido branco cujos cortes deixavam transparecer um par de coxas firmes. Busto, cintura – curvas estonteantes. Beleza inigualável (ora, sua beleza era apenas comparável à de sua mãe, pois tinham as mesmas feições e contornos). Vinte anos era sua idade. Era uma mulher sublimemente apaixonante, gigantescamente encantadora. Seu nome? O lindo colar em seu pescoço dizia «Daniela». Seu sobrenome? Kiela conhecia – Canzar. – Pegue uma toalha atrás da árvore em que estás sentada e seca-te, menina – disse Daniela Canzar, aproximando da outra. – Plantas, escuridão, água – disse a outra, após ter encontrado a toalha e começar a secar-se. – O que queres dizer com isso? – Vocês amedrontaram-me com plantas, escuridão e água. O que querem que eu aprenda com isso? – Tu mesma decosbrirás… – Todos dão a mesma resposta. Vá lá, avencemos o blá, blá. Qual é a tua teoria de conspecção? – Teorema de Buracos… – Parece interessante. E o que diz esta teoria? – inquiriu, enquanto a outra tirava uma toalha. – É um pouco esquisita, mas aqui vai. Tudo que a Humanidade faz está envolvido algum tipo de buraco, orifício, abertura, cavidade. Respiramos, comemos, transpiramos, falamos, ouvimos, somos dados à luz, sentimos prazer e muito mais coisas através de aberturas. As coisas que criamos também têm esse carácter. Chaves para ignição de
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muitas máquinas, impressoras, pen drives, geleiras… Furamos papéis para serem arquivados… – Aberturas são importantes – contribuiu Kiela. – Ajudam, guardam, escondem, preservam. – Sim, mas aberturas também são nefastas. Morremos por causa delas. Pense num tiro ou num corte fatal. Pior ainda, vivemos por buracos, morremos em buracos. – Somos enterrados em aberturas. Entendo – disse enquanto enxugava o coelho. – Muitas das nossas necessidades são satisfeitas através de aberturas e muitas das nossas fatalidades vêm através delas. Contudo, o teu teorema não parece relacionar-se com os outros teoremas. Qual o ponto de magnificência? – Conforme disseste, buracos são importantes para vida e buracos contribuem para a morte. Vida é bem, morte é mal, certo? – Certo… – Errado. Vida pode ser bem, morte pode ser mal; vida pode ser mal, morte pode ser bem. A relatividade das coisas tem de estar sempre encaixada na tua mente. – Entendo, mas, se tudo é relativo, então a própria lei da relatividade também é relativa. – A lei da relatividade confirma que tudo é relativo. Dizendo que tudo é relativo, uma excepção confirmaria tal afirmação. A lei da relatividade é esta excepção. – Ainda não ganhaste, mas não podemos perder tempo discutindo. Ainda não me disseste o ponto de magnificência… – É melhor que ouças antes a conclusão. O Teorema de Buracos advoga e auspicia que a Humanidade está condenada a viver num abismo caótico criado por ela mesma. Repito em outras palavras: Por viver e morrer em e por buracos, os humanos têm contruido, ao longo de sua existência, um poço de desordem infinito que, ou o exterminará ou os colocará num estado tumultuoso em que não poderão sair sem ajuda sobrehumana. – É como se falasses da Bíblia… – Sim, contudo, são conclusões que a Humanidade poderia chegar a elas por si mesma. Para isso foi inventado o Homem do Saco. Falando nisso, os teus poderes serão para o Homem no saco, isto é, para a Humanidade rebelde deste país. Saco é um género de buraco, tu terás os poderes para tentar redimi-los, tentar manter uma certa medida de ordem, mas não lutando contra eles, mas contra os vultos, os advogados da corrupção e do caos. – Entendo. Não vai falar nada sobre esse coelho? – Não. O meu teorema é sobre ti, não sobre ele. E o meu desafio contigo será no futuro, quando tiveres os poderes de Homem do Saco. – Ai! – gritou, sentido uma dor lancinante no lugar em que se havia cortado anteriormente. – O que foi? – Precisamos acabar com estes testes rapidamente. O Lunga vem aí…
♣ – Até quando teremos de ficar aqui? – perguntou a mulher de sobrenome Samba. 75
Houve silêncio. Todos os sentados à volta da enorme mesa estavam absortos em outros assuntos – suas mentes estavam ocupadas, vagueando em outras asserções. Doze era o número dos presentes. Metade pertencia ao rol de pessoas que ajudavam o escritor no desenvolvimento das ideias de seus livros, metade pertencia ao rol de pessoas sobre as quais o escritor cantava os seus feitos em seus livros. A mulher de sobrenome Samba pertencia ao primeiro rol. Havia, entre os cinco restantes, uma mulher de sobrenome Vieira Lopes, um homem de sobrenome Gameiro, uma mulher de sobrenome Correia, um homem misterioso dedicado à Medicina e um homem usualmente chamado de Jorge. No outro rol, estavam Bengui Massela, Bruno e Márcia Nassembe, Liliana e Derito Tchiva e Kaculu, o Homem do Saco. – Achas que ainda ficaremos aqui muito tempo? – reformulou a mulher de sobrenome Samba, fazendo um gesto para que o homem ao seu lado, aquele que era usualmente chamado de Jorge, caísse de seus pensamentos. – Como é que eu posso saber? – disse em resmungo. – Por acaso fui eu que te trouxe aqui? – Há necessidade de me responderes assim? – Eu não te respondi. Fiz-te duas perguntas… – Parem de falar – aconselhou a mulher de sobrenome Vieira Lopes em sussurro. – Quanto menos barulho fizermos, maior será a possibilidade de sairmos ilesos deste pesadelo.
– Acreditas mesmo que isso é um sonho? – litigou Jorge. – Ninguém sonha que está sentado numa mesa por quase duas horas. Esses gajos vão matar-nos! Tenho certeza. Minha vida! O que foi que eu lhes fiz? – Pára de falar alto! – imperou a mulher de sobrenome Samba. – Ou ainda dás ideias assassinas a eles…
– Mas eu já sei que… A entrada de uma mulher majestosa emudeceu-o. Roupas pretas e reveladoras era o que usava. Bizarro – seu rosto não podia ser visto porque longos cabelos o cobriam. – Vim observar o cumprimento do combinado – disse a recém-chegada com voz maliciosa. Não houve resposta. Ninguém sabia para quem ela dirigira aquelas palavras – seus olhos estavam cobertos, por isso não mostravam o alvo de sua frase. Um outro homem entrou. Roupas pretas também cobriam seu corpo. Foi rapidamente reconhecido por Liliana e Derito Tchiva. Porquê? Porque o homem era seu pai. – O que fazes aqui?! – inquiriu Derito Tchiva, levantando-se. – Não quero nada contigo, Eduardo – respondeu Lino Tchiva, entregando discretamente à Natércia Tchivela o objecto que ela deixara cair no quintal enquanto conversava com Ndombaxi Canzar. – Vim conversar com outra pessoa. – A minha irmã não tem nada para falar contigo – notificou o outro. – O melhor que tens a fazer é sair daqui. – Ganhaste a personalidade da tua mãe; falas desnecessariamente. Siga o exemplo da Liliana; abaixa a cabeça e finge que não me conheces. Não vim aqui para arranjar confusão… – Então, o que vieste fazer? Pedir desculpas pela cicatriz que deixaste no ombro da minha irmã por teres disparado contra ela quando tínhamos nove anos? – Tens de aprender que há assuntos que não se tratam à mesa, rapaz – cortou Natércia Tchivela. – Tens de ter tento na língua quando te diriges ao teu…
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A entrada de uma jovem mulher à frente de si silenciou-a. A distância entre elas? Cerca de sete metros. O que estava entre elas? A enorme mesa e as doze pessoas ali sentadas. Roupas brancas e reveladoras era o que usava. Seu corpo estava notavelmente molhado. Trazia uma toalha à mão. Seu rosto estava coberto por seus longos e louros cabelos. Tendo em excepção a coloração epidérmica e capilar, os presentes olhavam para as duas como se uma fosse o reflexo, a réplica, o duplicado, da outra. – Adivinhem para quem estou a olhar? – inquiriu a jovem mulher em tom jocoso, desapercebendo a gravidade do cenário. – Vá lá, adivinhem! Ninguém tenta? Não vou usar o nistagmo dos meus olhos como armadilha se alguém acertar… Liliana? Márcia? Bruno? Porque vocês não falam? Nem sequer os amigos do Usuku querem tentar? – inquiriu, prendendo o cabelo. – Uh! Temos dois convidados? Porque estão de pé? Num gesto seco, que camuflava suas emoções, Natércia Tchivela prendeu os longos e negros cabelos, deixando transparecer seu semblante. Choque – Daniela reconheceu aquele rosto, não porque era o mesmo que o dela, mas porque o vira quando tinha treze anos, não face a face, mas por meio de uma fotografia. Ficou petrificada por instantes. Inúmeros pensamentos passaram por sua mente em celeridade alucinante. Seu pai, seus tios, sua avó, a explosão em sua casa, a descoberta que Natércia Tchivela era sua mãe e estava viva, o rapto, a motorizada armadilhada, a operação plástica, Braulia, Usuku, o Homem do Saco. Entendeu tudo. Seu pensamento lógico levara-a a uma conclusão tranquilizadora. Deu passos de aproximação – abordou-a. Levantou o punho direito – esmurrou-a. Natércia Tchivela continuou calma, impávida. Deu a outra face para a jovem mulher. Daniela Canzar cerrou novamente o punho. Ela fechou os olhos. Sentiu algo forte acometer seu corpo. Não – não era outro murro, mas um abraço; Daniela Canzar abraçou-a. Segundos depois, deu passos de afastamento. Voltou as costas para a outra e começou a andar. Não notou que seu pai acabava de se fazer presente. Natércia Tchivela conteve a lágrima que tentava cair de seus olhos. Engoliu em seco. Tentou falar. A frase de Daniela interrompeu-a. – Vens? Ou tens medo que desta vez seja eu a tentar matar-te? Não houve hesitação – Natércia Tchivela seguiu-a; desapareceram dos campos de visão e audição de todos. – Bem – disse Lino Tchiva, após ter-se sentado numa das cadeiras e colocado os pés calçados sobre a mesa – ao menos a minha filha que tentei matar não me dá nenhum soco da cara. Vamos animar essa cena? Derito levantou-se. Retirava-se com ímpeto encolerizado. Kaculu ergueu-se. – Tu tens de ficar, amigo – disse o gigante. – Não há necessidade de te retirares. – Porquê? – vociferou o outro. – É o teu pai assassino que está sentando aqui contigo? Não sabes o que é isso; não sentes isso! Tens dezassete anos. Ainda vais aprender mais sobre a vida quando saíres do teu pedestal de superpoderoso e vires a vida no prisma de humanos normais. Deixa-me passar! – Como quiseres – consentiu o gigante, dando passagem ao outro. – Voltemos à minha pergunta – disse Lino Tchiva, olhando com lascívia fingida para a mulher de sobrenome Correia; tentava camuflar sua tensão – vamos aquecer a cena? Não ouve resposta. O olhar lascivo permaneceu. Ela desviou-se. – Estou com sede – disse a mulher, dirigindo a palavra para Márcia Gailsa. – Há algo aqui que eu possa beber… e me afastar deste anormal?
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– Vem comigo – disse a menina. – Acompanho-te à cozinha. Levantaram-se. A lascívia fingida do olhar do Tchiva intensificou-se. A mulher passou bem ao seu lado, permitindo que todos os detalhes de seu corpo fossem vistos. Altura mediana, pele de ébano e resplandecente, busto esguio, cintura avassaladora, coxas torneadas, pernas asfixiantes. – Cuidado com o que fazes aqui e para onde olhas, homenzinho – interrompeu-o Ndombaxi Canzar, batendo-lhe pesadamente no ombro. Retirou os pés da mesa em brusquidão aturdida. Sentou-se com sumptuosidade. A presença do Canzar assim demandava. – Então, já posso falar com o meu filho? – perguntou o Tchiva, despertando comoção em Liliana. – O rapaz ainda está ocupado – respondeu Kaculu, dando as costas e preparandose para sair. – Dentro de momentos poderás falar-lhe. – Está bem – disse o Tchivela. – Esperarei estes momentos. Mas não posso ficar num local tão calmo. Estas são as pessoas que brincam de deuses com o Usuku, quando, na verdade, são marionetas do Kaculu? Não precisam de responder. Sei que são. Isto fazme lembrar de algo que aconteceu há quase sete anos. Outras pessoas como vocês estavam numa casa como essa, e nós, personagens do livro dele, contamos-lhes uma história. – Não entendi nada do que acabaste de dizer – depreciou a mulher de sobrenome Vieira Lopes. – Queres ser mais específico? – Não acabaste de dizer para não falarmos nada? – cortou Jorge. – Esta é a nossa oportunidade de sabermos o que fazemos aqui – explicou a outra. – Temos de arriscar. Explica-nos o que acabaste de dizer… qual o seu nome? – Tchiva… Lino Tchiva. – Essas pessoas são mesmo malucas! – exclamou Jorge. – Todas têm nomes que constam nos livros do Usuku. Isto aqui é um ensaio para uma peça… ou é o manicómio! – Se essas pessoas estão mesmo a pensar em nos matar – disse a mulher de sobrenome Samba – tu serás a primeira, por causa do barulho que fazes. – Não há muito para explicar – disse Lino Tchiva, reparando na taciturnidade do homem misterioso dedicado à Medicina e o homem de sobrenome Gameiro. – Melhor assim. Mas nada de mal acontecerá com vocês. Não é isso o importante? Continuem com o pensamento de que isso é um ensaio para uma peça de teatro; vai dar-vos algum conforto. Vamos fazer o jogo da vez passada, caro Ndombaxi Canzar, para distrair os nossos convidados. Climas de tensão não ajudam a ninguém. O jogo é o seguinte: alguém começa a contar uma história, a pessoa a seguir segura no fim da mesma e dá continuidade. Simples, rápido e divertido. – Estás a tentar fazer uma boa figura diante da tua filha e reconquistá-la? – demandou a mulher de sobrenome Correia, aparecendo com uma bandeja de jarras de sumo. Márcia Gailsa vinha atrás de si com uma bandeja de copos. Alguém na cozinha a havia confortado e dado-lhe coragem para dar vazão ao que quisesse falar. – Finalmente o gelo começa a quebrar-se aqui – disse o Tchiva. – Pareces o Carlos a falar. Tens algum contacto com psicologia? – Digamos que sim. Respondes à pergunta ou não?
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– Estás a tentar analisar-me? O Carlos faz isso há anos, mas tem tido poucos resultados. Falar comigo é um jogo; não sabes quem está a analisar quem e, mais sinistro de tudo, para que fim será a análise. Quem quer começar a contar a história? Silêncio – voluntariedade nula. – Bem, já vi que terei de ser eu mesmo… – Não – cortou Ndombaxi Canzar. – Mas ninguém aqui quer começar – disse o outro. – Querem mesmo continuar com esse clima de enterro? Eu sou uma má pessoa, mas têm de reconhecer que a minha ideia é boa… – Eu começarei a contar – disse Ivone Tchivela, saindo da cozinha com uma bandeja de aperitivos. Não saíra antes por causa do frio que sentira ao ouvir que sua irmã mais velha aparecera naquele local. Fora ela quem confortara a mulher de sobrenome Correia. – Bem, sobre o que falaremos? Já sei. Oiçam… Para admiração de todos, Liliana fez um gesto para a outra parar de falar; pigarreou em melodrama e disse: – Eu começarei…
♣ As dores no tornozelo de Kiela haviam diminuído. Andava entre a selva nocturna. Sua companhia – um coelho – estava entre seus braços. Uma névoa estranha acinzentava o local. Pensava em tudo que já havia acontecido. Apenas três horas se haviam passado desde que pedira a seu pai para lhe contar a história de um livro que lhe era proibido até ao instante em que se encontrava, contudo, pareciam uma eternidade por causa das coisas que aconteceram nesse período: Animais haviam-na atacado a mando de um amigo seu; animais haviam-na salvo a mando de pessoas que conhecia apenas nas páginas dos livros de seu pai; um homem gigantesco a trouxera de carro para a casa descomunal em que se encontrava; uma monstruosa e colossal palanca pareceu atacar-lhe; conversara ao telefone com sua mãe sobre as origens paternas de seu pai; conversara com seis pessoas sobre quatro estranhas teorias de conspecção e descobrira que dentro de momentos seu irmão apareceria para reaver seu corpo. Algo que ela não sabia era que, durante estas mesmas três horas, seus pais morreram, seu avó e um grupo conhecido como Máfia foi atacado por um casal de execrandos a pedido de Usuku, seu irmão, sua irmã, sua avô e cinco mulheres haviam desmaiado num país e sido transferidas misteriosamente para outro e que as monstruosas palancas vigiavam o local em que estavam. Outra coisa que ela ignorava era que as crianças que foram escolhidas como novos Jacaré Bangão e Kazumbi já haviam passado pela transformação num dos cantos isolados da casa descomunal. Ignorava também a informação de que o coelho já não claudicava – a sua perna se havia regenerado. Mais coisas escapavam-lhe ao conhecimento, e muito mais ainda escapariam. Sentou-se sobre uma rocha. Não se apercebeu que, à distância, escondidos entre os arbustos e a vegetação densa, as bestas que andavam atrás do animal em seus braços a haviam cercado. Sentia-se – levemente cansada, sentia-se – levemente ensonada. Seria da estranha névoa? Não cogitou sobre a resposta a esta pergunta. Acariciou a pelagem do
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coelho. Antes de fechar os olhos, lembrou-se da frase de seu pai: «Aqui começa o fim, um fim que é o princípio.» – Dormir não é sinónimo de concentração – disse uma voz feminina, fazendo com que ela despertasse. Três figuras foi o que viu ao abrir os olhos. Sua caracterização? Dois rapazes e uma rapariga. Nomes? Hélder e Raquel Banzaia e Lino Tchiva Júnior. Laços sanguíneos entre o trio? O último era primo dos dois primeiros; os dois primeiros eram irmãos. Repertório etário? O primeiro – catorze anos. Os dois últimos – dezoito anos. – Interromper o descanso dos outros é sinónimo de má-criação, Raquel – disse em tom de piada enquanto os outros se sentavam sobre o chão. – Vocês três têm a mesma teoria de conspecção? Ou estão a fazer isso porque eu disse à Daniela que o Lunga vem aí… – Temos os três a mesma teoria, embora seja preocupante saber da proximidade súbita de teu irmão – respondeu a outra. – Porquê? Porque vocês são familiares? O Derito e a Liliana são vossos primos. Se fosse assim, os cinco teriam a mesma teoria. Respondam com sinceridade: estão preocupados comigo e resolveram juntar as vossas teorias? – Já dissemos que não – respondeu Hélder. – Mas estamos preocupados contigo. Ouvimos o que disseste à Daniela sobre o teu pai ter trocado os vossos corpos. Queres explicar melhor esse assunto? – Curiosos os meninos, hein? A personalidade do meu irmão está no meu corpo e minha personalidade está no corpo dele. Acho que o Homem do Saco devia ter vos contado isso… – Se não contou, sabia que mais cedo ou mais tarde descobriríamos – comentou Lino Tchiva Júnior. – Nem quero pensar na reacção que a Ivone Tchivela terá quando descobrir isso! – disse Raquel Banzaia. – Acho que ela vai fazer alguma coisa violenta contra o teu pai. – Disseste que a personalidade do teu irmão está a tentar reaver o seu corpo – cortou Hélder Banzaia. – Sim. Desde que fizemos cinco anos que isso acontece. Por isso tivemos de viver em países diferentes. – Estranho – reparou Raquel. – Se a personalidade dele está a tentar reaver o seu corpo, não devia também a tua estar a tentar reaver o teu? – Sim. É isso mesmo que acontece. Acho que a vossa pergunta seguinte seria: Porque parece que todos estão preocupados com o sofrimento que o Lunga pode te causar, quando existe também o sofrimento que podes causar a ele? Porque dizem que as meninas são as mais fracas. E o meu irmão tem uma preocupação exagerada por mim. Ele ignora o sofrimento dele e inquietasse excessivamente com o meu. Mas não estamos aqui para falar disso. Digam-me: Qual é a vossa teoria de conspecção? – Teorema de Coexistência – respondeu Lino Tchiva Júnior. – Dê a definição a ela, Hélder… – No Teorema de Coexistência encontramos a arguição de que os humanos evoluem, desenvolvem, graças à convivência com situações inesperadas, improváveis, casuais – explicou o outro. – Uma das frases que mais acentua este conceito é a seguinte: A humanidade evoluiu com prazeres, consciência e vinho – disse Raquel Banzaia. – O que indica que,
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em situações envolvendo coisas como folia, dança, reflexão solitária e alcoolismo, os humanos conseguiram chegar a ideias precursoras de grande impacto evolutivo em suas sociedades. – Estás a tentar dizer que o estudo não é importante? – perguntou Kiela. – Não podes menosprezar o poder da pesquisa… – O que dizemos não é um conselho e está isento de aceitação da parte de outrem – explicou Lino Tchiva Júnior. – Como a Bengui já te disse, uma teoria de conspecção revela a forma de alguém ver o mundo, não como o mundo deve ser visto. Nós vemos assim, tu não és obrigada a concordar. – Contudo – começou Hélder Banzaia em acréscimo – uma teoria de conspecção é formada seguindo a sequência de migalhas formadoras de resultados que a vida deixa. Se prestares atenção, as pessoas estudam umas as outras quando se divertem. Notam as roupas, a maneira de dançar, o que mais consomem, como sorriem, o que parecem precisar. Pessoas atentas usam essas informações para criar produtos que correspondam a estas necessidades. No consumo de álcool despertam-se muitas filosofias de vida, muitas conclusões, muito silogismo. Embora seja estranho, mas é isso que acontece : a convivência com o que parece banal oferece soluções de evolução, oferece dinheiro, oferece desenvolvimento. – Entendi parcialmente – expôs a outra. – Qual o ponto de magnificência? – Não to podemos dizer agora – disse Raquel Banzaia com expressão aflita, levantando-se com os outros dois. – Tens de acordar agora. – Como assim. Eu não estou a sonhar… – Estás sim. Acorda! – ordenou Lino Tchiva Júnior, batendo-lhe levemente na testa. Despertou. Resfolegou como se acabasse de recuperar os sentidos. Sentiu algo felpudo perto de sua mão direita. Concluiu que era o coelho, mas, ao olhar para a sua esquerda, tomou um susto – um animal estava tombado, caído sobre chão. Parecia – que não respirava, parecia – morto. Olhou para onde havia colocado a sua mão direita – repetição do susto. Não era o coelho, mas outro animal que parecia morto. Reconheceuos: faziam parte das bestas que a perseguiam. Sons – barulhos estranhos à frente de si chamaram a sua atenção. O que viu era arrepiante, medonho. Um monstro colossal e desfigurado asfixiava as feras usando sua pelagem. Bizarro – a pelagem parecia ter vida própria, pois seguia as bestas, caçava-as, sufocava-as. Macabro – o monstro, o monstro colossal tinha orelhas compridas como o coelho. Era o coelho, mas metamorfoseado. Todas as bestas tombaram asfixiadas, estranguladas. O monstro colossal e desfigurado voltou a sua atenção para Kiela. Seus olhos brilhavam com vermelhidão assassina. Suas ventas soltavam cólera em fumaça. Sufocante – uma das tiras da pelagem do monstro enroscou-se violentamente no pescoço dela e a suspendeu – Kiela pendia no ar presa por pêlos que a asfixiavam. Desestabilizador – as dores no local onde se havia cortado voltaram; prenúncio da chegada de Lunga. A aberração aproximou-se. Observoua com displicência. Bufou fumaça irritante sobre sua face. Kiela tossiu. A monstruosidade comportou-se de forma caótica por instantes. Parecia que havia uma luta dentro de si. Recuperou o foco. Observou-a novamente. Irreal – o monstro desfigurado articulou palavras. – Qual a resposta ao perigo? – Fuga, sobrevivência – respondeu entre sufocos.
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– E o que achas que produziste? – Fuga, resistência… – Errado – corrigiu mudando abruptamente a cor de seus olhos. Agora brilhavam com fluorescência esverdeada. E, até onde se sabe, fluorescência esverdeada é luz dos das obscuridades, os vultos. – Produziste a tua própria morte. Homicida – todas as tiras da pelagem do monstro colossal e desfigurado convergiram para o corpo dela. Enroscaram-se em seus pulsos, tornozelos, bustos, abdómen, braços, pernas, rosto, e sentido giratório – cobriam-na em asfixia. Redentor – o Homem do Saco apareceu em seu auxílio. Distante daí, Lunga agonizava-se em dores. O pedaço de seu corpo aproximava-se com rapidez. Passou pelo portão da casa, passou pelo quintal, passou pela porta de entrada – apocalíptico – atingiu o braço do rapaz. Gritou, tremeu com violência. As mulheres e Marla tentaram segurá-lo. Foi impossível. Seu corpo foi projectado violentamente para o exterior da casa. As gigantescas e montruosas palancas tentaram impedi-lo. Infrutífero – trespassou-as à velocidade da luz, absorvendo parte de seus poderes. Em segundos, alcançou a casa descomunal. Trespassou Jacaré Bangão, Kazumbi e as duas crianças transformadas e continuava em velocidade alucinante. Aborseveu parte de seus poderes no processo. Entre as tiras de pelagem do monstro colossal e desfigurado, Kiela sofria, tanto pela asfixia como pela dor da proximidade da personalidade do dono do corpo que usava. O Homem do Saco preparava-se para redimi-la, mas – brutal – um corpo trespassou-o e sugou parte de seus poderes. Ganhou a sua forma humana de Kaculu no acto e caiu de forma bruta contra o chão. O corpo no interior das tiras de pelagem tremeu com frenesi cismico. O corpo que acabava de trespassar os sete entes poderosos também. Gritos – Kiela e Lunga gritaram. O rolo de pelagem que cobria a rapariga fendeu-se, libertando-a. Seu corpo era atraído ao corpo de Lunga. O corpo de Lunga era atraído ao seu corpo. Fantasmagórico – seus corpos se juntaram, tornando-se num só. Extraordinário – a fusão de seus corpos em um só ganhou tamanho gigantesco, olhos bizarros e aparência animalesca. Sem qualquer aviso prévio ou debate intimidador, o monstro colossal e desfigurado foi rasgado em dois por suas enormes garras. Kaculu arrastava-se; tentava encontrar um local seguro. Não entendia o que acabava de acontecer. Como os vultos tinham chegado até àquele local? Como haviam corrompido o coelho? Quando o haviam feito? Lino Tchiva e Natéricia Tchivela tinham alguma participação naquilo? O que tinha acontecido com as crianças? De onde viera a capacidade de Lunga de absorver poderes? Não era Kiela que absorvia o conhecimento de quem entrasse em contacto com ela? Pela primeira vez, em sete anos, sentia-se ignorante, desprotegido, vulnerável. Antes que pudesse dar a azo a outras perguntas e sentimentos, o monstro formado pelos corpos de Lunga e Kiela abordou-o, levantou-o em brusquidão e encostou-o contra uma árvore. Depois aproximou a sua boca horrenda numa de suas orelhas e sussurrou: – Aqui começa o fim, um fim que é o princípio.
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– CAPÍTULO XII – ●
Revelações
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Local: sala de pesquisa do grupo denominado Máfia. Pessoas presentes: Braulia, C, D, J, M, N e Usuku. Tempo: Pouco mais de nove meses antes da morte da primeira e do último. Documentos sobre a mesa: relatórios sobre a história do Homem do Saco e dos vultos, dossiers sobre pessoas que apenas o escritor sabia serem personagens de seus livros e duas cartas misteriosas. – Tenho a certeza que tudo o que precisamos está aqui – disse o escritor. – Se eu fosse esse Homem do Saco – dizia C em conjectura – teria um plano maior do que esse… – Porquê? – demandou ele. – Se eu for superpoderosa e souber de antemão que posso perder parte dos meus poderes antes de colocar em prática uma ideia, usaria os meus superpoderes para criar uma solução antes de perdê-los… – Também acho – concordou M. – A inteligência desse Homem do Saco não lhe permitiria agir de forma inconsequente. Antes de ele usar os seu poderes em auxílio dessa humana, ele deve ter ponderado muito. – Mas esses vultos não são de todo estúpidos – arguiu N. – A ideia de corromperem o corpo desse casal poderá resultar em enormes estragos… – E temos de mencionar também que a corrupção passou para o filho primogénito deles – continuou C. – Há muita coisa escondida nisso. O Homem do Saco esconde algo, e os vultos também. – Pensas mesmo em transformar estas informações todas numa obra literária? – cortou D. – Sim – respondeu em divagação. – As pessoas pensam que o Homem do Saco é um raptor e devorador de crianças. Contar-lhes uma história totalmente diferente será interessante e magnético; as pessoas ficarão atraídas pelo teor enigmático e ousado do enredo. – Tenho de te confessar que não me agrada a ideia de colocares vultos nos teus livros – revelou C. – Parece coisa de feitiços e magias. – Não tem nada que ver com feitiços e magia. É algo estranho que criei apenas: sentimentos maus criam obscuridades e sentimentos bons criam redentores. Os vultos são o resultado da destilação dos sentimentos pérfidos das pessoas que já morreram, e a fonte dos poderes do Homem do Saco, do Jacaré Bangão e do Kazumbi são os sentimentos salutares de quem já morreu. Nada de feitiço, nada de magia. Apenas metamorfose.
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– Tu é que sabes, mas que não me agrada, não me agrada. – E não vais abrir estas cartas? – inquiriu J em interrupção. – Ainda não – respondeu ele. – Preciso que alguém me confirme um assunto antes disso. – E esses dossiers todos? – demandou D. – Para que precisas deles? Vais usar essas informações para esta história também? Andamos a habituar-te mal. Os serviços da Máfia não são para regar a tua inspiração. – Não – respondeu premeditanto divagar sobre a verdade. Seu telemóvel começava a tocar. – Estas pessoas fazem parte de outro enredo, não um enredo literário, mas vivido, real. Elas podem providenciar a solução para algo que elas mesmas são o problema. – Começou a filosofar o homem – disse N. – Melhor cortarmos aqui as falácias do angolano mais grego que conhecemos, não? Se não nunca mais sairemos daqui… – Sim – concordou J. – Já estou cansada de ver folhas com caracteres e de dar palpites sobre esta tua história maluca. Acho melhor voltarmos para a festa agora ou os convidados vão começar a fazer perguntas sobre o nosso desaparecimento. – E ninguém, nem de longe, pode desconfiar dos agentes da Máfia – acrescentou D. – Nem sequer pensar que a Máfia existe podem – concluiu M. – Vais atender ou não? O teu toque de chamada começa a irritar-me… – Alô? – disse o escritor, após ter premido um botão em seu telemóvel. – Saudações literárias – cumprimentou uma voz feminina do outro lado da linha carregada de maldade visceral. – Parece que não leu as nossas cartas. O dia é imediato. – Sobre que dia fa… Um som interrompeu-o. Era o som que demonstrava que a chamada havia sido interrompida ou desligada. – Quem era? – inquiriu Braulia, aproximando-se dele. – Não sei, mas a M vai dar-nos a resposta dentro em breve. – Dita o número, senhor chato – disse M, ao ligar o seu computador. O escritor fez o que ela pediu. M enviou o terminal telefónico a fulano por e-mail. Fulano enviou-o por SMS a sicrano. Sicrano imprimiu a informação e deu-a à socapa a beltrano. Beltrano digitou alguns caracteres na máquina à frente de si e apareceram os dados requisitados. Destruiu a folha. Imprimiu a informação e deu-a à socapa a sicrano. Sicrano fez o scan à folha e enviou o ficheiro pelo serviço de mensagens privadas do facebook a fulano. Destruiu a folha. Fulano descarregarou a informação e reencaminhoua para o e-mail de M. M sorriu. Virou a tela da máquina compacta para o escritor em pompa exibicionista. Usuku avizinhou-se. Sobre a filiação, data de nascimento e morada, leu: Lino Diogo Tchiva. Seu íntimo abespinhou-se. A voz ao telefone era feminina. Como podia o proprietário ter um nome masculino? Simples: o homem e a mulher estavam juntos; Lino Tchiva e a mulher estavam mancomonados. Quem seria? Um momento: seria este Lino Tchiva o mesmo de seus livros? Como podia ter certeza? Vira seu rosto há alguns anos. Tinha de ver se a imagem deste condizia com a daquele.
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– Há como conseguires uma foto dele, M? – inquiriu o escritor. – Tens-na aqui – disse J, entregando-lhe uma folha que acabava de imprimir. – «É exactamente o homem» – disse Usuku de si para si. – Como conseguiste a imagem de alguém tão rapidamente, irmãzinha? – demandou M em ciúmes. – Tens as tuas fontes, eu tenho as minhas. Se bem que as minhas são mais rápidas e eficientes – dardejou com aura triunfal. – Seria bom ver uma luta de irmãs a essa hora da noite – disse Usuku, levantandose repentinamente – mas temos de ir embora, Miúda. Temos de ver como está a criança… – Lá está ele a usar o truque dos gémeos para se safar de um assunto quente – anuiu C. – E sempre a chamar os dois filhos como se fossem um – adendou D. – Não é criança, mas crianças. E foste tu quem cursou Letras… – Agradeço a vossa ajuda – verbalizou Braulia, em tom de saída. – Se não fossem vocês, o Usuku teria coragem de me tirar do hospital durante uma operação para que pesquisássemos sobre isso. – Estamos aqui para te dimuniur o fardo de lidar com este louco – gracejou N. – E, falando em louco, já está na hora de o convenceres a cortar o cabelo, ou ainda terão certeza da insanidade do tipo… – Hoje é quinta-feira – redarguiu o escritor enquanto saía. – Só corto o cabelo às sextas. A hora de tomar os meus comprimidos está próxima. A criança fará cinco anos dentro de algumas horas. Quero estar em casa quando isso acontecer. Vens, Miúda? Ou ainda há mais fofoca para se pôr em dia? Escassas palavras foram proferidas antes de se despedirem. O casal saiu. O grupo secreto fechou a porta atrás deles. Entraram para o elevador. Atingiram o chão da parte traseira do edifício. Andaram por alguns minutos para confirmar que não eram seguidos. Curvaram. Um auto esperava-os. Dois homens estavam dentro dele, sentados no banco de trás. Seus nomes? Um atendia pelo sobrenome Alves. O outro era misterioso e dedicado à Medicina; Usuku jamais pronunciara seu nome. Acenaram e aproximaram-se do automóvel. Adentraram. Ocuparam os bancos de frente. Braulia seria a condutora. Preocupante – correcções no número de pessoas presentes foram feitas. Não eram quatro agora, mas seis. – Dê locomoção e direcção ao carro ou ficaremos apenas três para conversar – disse um dos intrusos, ameaçando a vida dos quatro com o estalido de um revólver. Usuku reconheceu a voz. Ouviu-a várias vezes semanas antes de seu casamento. Braulia não se movia. A aura de furto ou assassinato paralisara-a. – Faça o que o homem disse, mulher – recomendou uma voz feminina. Braulia trepidou. Reconheceu o timbre. Era – a voz da maquiavélica, era – a voz da mulher que a apunhalara semanas antes de seu consórcio. Suspirou. Engoliu em seco. Orou brevemente. Obedeceu a ordem. O auto permaneceu em silêncio angustiante enquanto andavam. Distanciaram-se das casas, dos bairros, das luzes. Desceram. – O que vocês querem? – Primeiro temos de vos mostar que falamos sério – disse o homem da vilania, arrastando Ngoma Usuku. Carregava uma pasta às costas e, dentro desta, uma enorme corda.
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O homem misterioso e o de sobrenome Alves tentaram interromper, mas a mulher da vilanagem colocou o cano da arma sobre a jugular de Braulia. Contiveram-se. O homem da vilania arrastou Usuku até a beira do passeio. Macabro – o mar encontrava-se a alguns metros abaixo do passeio. O homem da vilania retirou a enorme corda de sua pasta e usou-a para amarrar as mãos do escritor. Lançou parte dela à mulher da vilanagem e esta obrigou o homem de sobrenome Alves a amarrá-la ao voltante do enorme auto. Após isso – revoltante – o homem da vilania empurrou Usuku para o mar. Braulia gritou. Usuku ouviu a angústia de sua esposa antes de imergir em afogamento. Debateu-se – lutou pela vida. Debateu-se – tentou livrar-se da morte repentina. Luta, água, sufocação. Luta, água, batidas do coração. Sentiu os seus pulmões enchendo-se do líquido asfixiante. Sentiu o fenecimento aproximar-se. Enfraqueceu. Luta, água, medo. Luta, água, perda de sentidos. O homem da vilania puxou-o para si. Corpo inerte foi o que apareceu no campo de visão dos expectantes. Lágrimas banhavam o rosto de Braulia. – Tu estás familiarizado com reanimação – disse a mulher da vilanagem ao homem misterioso. – Vai salvar o maldito escritor. Ele aproximou-se. Colocou as mãos sobre o peito do escritor. Fez pressão. Comprimiu, descomprimiu. Comprimiu, descomprimiu. Água – água saiu da boca do reanimado. Tossiu líquido. Voltou a respirar. – Não gostas mesmo da morte, pois não? – disse o homem da vilania, sorrindo. – Devias ao menos deixar que ele fizesse respiração boca a boca antes de recuperares os sentidos. – O que é que vocês querem? – vociferou Braulia em prantos coléricos. – Um encontro – respondeu a mulher da vilanagem. – Um encontro com quem? – voltou a vociferar a doutora, vendo Usuku enfraquecido sobre o chão. – Com os nossos filhos. – E o que tem o Usuku que ver com os vossos filhos? – inquiriu o homem de sobrenome Alves, puxando Braulia para si. – Não te lembras do nosso primeiro encontro, homem das contestações das ideias desse farrapo de escritor? – inquiriu o homem da vilania, enquanto o homem misterioso libertava Usuku da corda de forma sorrateira. – Não sabes com quem falas, pois não? O Homem do Saco deve ter feito um bom trabalho na tua mente. Não te metas onde não és chamado. O adoçante é apenas para o casal; a tua colher é intrusa, desnecessária e facilmente tragável. – Quanta ousadia – disse um gigante, aparecendo repentinamente do nada. Seu nome? Kaculu. – A equação está pronta para ser resolvida – disse a mulher da vilanagem para o homem da vilania. – Falemos. – Os vultos indignaram-se ao descobrir que já não seguimos o pensamento deles de que somos personagens criadas por esse maldito escritor e que não partilhamos da ideia deles de eliminarem o Homem do Saco. Sem o Homem do Saco haverá apenas caos… – Vocês estão preocupados com caos? – demandou Braulia. – Parece ser o deus que vocês veneram.
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– O caos é uma variável – explicou a mulher da vilanagem. – Contudo, se houver apenas caos, tornar-se-á uma constante. Não haverá sofredores de caos, apenas causadores. Todos serão montros. Não haverá diferença entre mim, Flagelo Desumano e entre Braulia, a doutora mimada. Desordem precisa de diferença, desordem precisa de proeminência. – Não é o raciocínio mais lógico que usaste até agora – disse Kaculu. – Seja directa, conte a verdade de forma explícita. Clarifiquem: qual é a vossa intensão? – Os vultos têm a sua maldade, nós temos a nossa – reconveio o homem da vilania. – Por causa disso, separamo-nos. Por este facto, eles elegeram dois substitutos: os nossos filhos. Queremos impedir isso, mas não temos tal poder. Apenas tu tens. Tu e o maldito escritor. – Como assim? – demandou Braulia. O homem da vilania abriu a camisola do escritor em violência. Rasgou a veste branca que encontrou a seguir, depois convocou: – Venham ver. Olhem para calmamente para as estrias dele. Vêem como brilham com teor abrasivo? O que te faz lembrar Homem do Saco? – O meu corpo. Sou basicamente composto de brasas – disse, acendendo o sangue de suas veias em demontração. – O Usuku é descendente de um dyala ngoma e de uma kazumbi – avançou o homem da vilania. – Estes dois factores tornam-no num receptáculo de informações sobrenaturais. Contudo, ao juntarem ao seu corpo a corrupção, os vultos despoletaram em seu ser o poder de libertar e aprisionar monstruosidades decorrentes dos sentimentos das pessoas, mas um poder com quota limitada; só pode ser usado contra cinco pessoas. Isto é, o Usuku pode agora, por meio de suas palavras, corromper ou purifricar cinco humanos. – Enquanto o maldito escritor estiver corrompido, os vultos usarão isso para atingir os nossos filhos – adendou a mulher da vilanagem. – Não posso negar que ficaria orgulhosa se a minha filha pudesse entender e participar da minha filosofia de vida de que sofrimento indescrtivel é o único bem que podemos dar aos outros. Contudo, se o poder for usado contra a minha filha, o Homem do Saco poderá exterminá-la. – Porquê? – demandou o homem de sobrenome Alvez em alvoroço de incredibilidade. – Acreditas mesmo nesta história de Homem do Saco? Acreditas mesmo que um rapaz poderoso com corpo de homem existe e que elimina seres do mal com poderes sobrenaturais. Andaste a ler muitos livros do Usuku. Deixem-nos em paz! Deixem-nos ir! – Lembra-te que és uma colher tragável, homem das contestações – relembrou a mulher da vilanagem. – É o último aviso para ti. Continuando, o Homem do saco não interfere em assuntos de humanos, apenas de sobrehumanos. Se os vultos conseguirem fazer o Usuku usar esse poder contra os nossos filhos, decerto que ele morrerão às tuas mãos, Kaculu. – Eu tenho uma proposta para vocês – disse Braulia, com olhar incendiado. – Eu e o meu marido morreremos, e vocês se certificarão que apenas certas pessoas saibam da nossa morte. Houve um tumulto de emoções, mas ninguém verbalizou a sua contestação. A razão? Kaculu imobilizara todos, menos a enunciadora da frase. – O que queres dizer com isso? – inquiriu o gigante em transtorno.
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– O que é que fizeste? Porque eles estão todos parados como estátuas? – A resposta não é relevante. O que importa é que não sofrem. Responda: O que queres dizer isso? – Tens mesmo poderes como o Usukun diz; acabaste de confirmar a pesquisa que ele fez com a Máfia. Isso não é possível… – Não ofereça contra argumentos quando factos são apresentados. Responda à pergunta… – Pelo que li e descobri desta história absurda, a solução está em o meu marido e eu morrermos… – Tu não podes morrer! Tenho poderes para te proteger… – Não! Tens poderes para proteger a criança, ao Usuku e a mim! – Não te lembras mesmo, pois não? – inquiriu, aproximando-se como romântico padecido. – Tu não podes morrer. Eu não deixarei, Chiange… – Quem é Chiange? – Eu mostro-te – disse, pousando levemente a mão sobre a sua testa. O tempo pareceu correr para trás. Imagens céleres e confusas passaram pela mente de Braulia. Entre elas, estava um menino que se apaixonara por uma mulher colossal que também se apaixonara por ele, mas tinha medo de revelá-lo, um menino transformado em monstro e uma aberração que levou um menino ao cair da noite num saco de pele de animal. Viu mais: um homem dedicado às letras – um escritor – a quem a mulher colossal designara para cantar os seus feitos sobrehumanos e usualmente secretos. Kaculu retirou a mão de sua testa. Braulia sentiu-se entontecer. Seus olhos voltaram a precipitar lágrimas. – Lembras-te? – perguntou Kaculu em tom taciturno. – Sim, lembro-me… – Então já sabes porque não posso deixar que morras. Não podes morrer, não podes morrer porque te amo, Chiange… – Como pode ser verdade? Eu sou o monstro, eu sou a aberração que te transformou no que és hoje. Tudo isso acontece por minha culpa… – Não te preocupes com isso agora. Eu nem sequer te culpo. Vim aqui para te proteger. Deixa que eu faça isso; não ponhas barreiras desnecessárias… – Tu não entendes. Sou uma mulher casada agora… – Casaste-te comigo, não com ele. Era eu quem ocupava o corpo do Usuku quando o anel foi colocado em tua mão… – Deus! E a criança? Também…? – Não! Claro que não! Senão não haveria corrupção… Contudo, seriam sobrehumanos… – Não consigo acreditar nisso, mas é um facto: nada é normal desde as vésperas do meu casamento… Sei que devo ter feito alguma coisa contigo. Perdoa-me por isso. Mas sou do Usuku agora. Se o erro é meu… Deus! E fui eu quem o escolheu como escritor! – Exactamente! Ele é apenas um escritor, uma marioneta. É como uma criação tua. Não é suposto o criador apaixonar-se pela criatura… – Não insiras lógica apenas para ganhar a minha atenção. Não te servirá de nada… – Tenho de lutar por aquilo que amo…
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– O que amas não te ama. Ouve a minha a minha ideia – disse, tocando-lhe o braço em tom maternal. – Eu e o Usuku morremos, esses dois assassinos salvam seus filhos e, enquanto isso, tu tomas conta da criança. O desejo destes vultos é causar a nossa morte, então dar-lhe-emos isso. Consegues transplantar personalidades. Faça isso para o corpo de algo que eles jamais pensariam. Os nossos corpos ficarão mortos durante um tempo, depois voltaremos, limpos, purificados, livres da manipulação dessas obscuridades. – Acho que o Usuku não concordará com um plano em que envolva a tua morte… – Concordará, se tu fizeres com que ele pense que a ideia partiu da cabeça dele. Os vultos conseguem ouvir o que falamos neste momento? – Não. Estamos dentro de um recurso sobrehumano que nos coloca fora do alcance de qualquer ser. Foste tu quem me ensinou a usá-lo. Chamaste-o de… – Cárcere esferal. Lembro-me. Contudo, não podemos arriscar. Pense sobre o meu plano, veja-o de todos os ângulos, preveja tudo, para que nada saia errado, depois faça o Usuku contar-to como se fosse ele mesmo o seu autor. E faça-me esquecer de tudo isso que acabei de falar contigo. Tenho de continuar ignorante quanto a este assunto… Uma pergunta, porque não me pareces tão inteligente quanto ao Homem do Saco que li naqueles documentos? – Porque tenho usado parte dos meus poderes para ajudar a tua família… – Pára de fazer isso. Quanto mais fraco te tornares, maior será a tua vulnerabilidade, e os vultos conseguirão o que querem. Agora podes voltar a pôr tudo como estava antes, contudo, faça com que seja o Usuku a proferir a frase sobre a nossa morte… Regressão efectuada. Momento presente? Objecção do homem do sobrenome Alves. – Porquê? – demandou o homem ele em alvoroço de incredibilidade. – Acreditas mesmo nesta história de Homem do Saco? Acreditas mesmo que um rapaz poderoso com corpo de homem existe e que elimina seres do mal com poderes sobrenaturais. Andaste a ler muitos livros do Usuku. Deixem-nos em paz! Deixem-nos ir! – Lembra-te que és uma colher tragável, homem das contestações – relembrou a mulher da vilanagem. – É o último aviso para ti. Continuando, o Homem do saco não interfere em assuntos de humanos, apenas de sobrehumanos. Se os vultos conseguirem fazer o Usuku usar esse poder contra os nossos filhos, decerto que ele morrerão às tuas mãos, Kaculu. – Eu tenho uma proposta para vocês – disse Usuku, levantando-se parcialmente zonzo. Continuava posicionado entre o homem da vilania e o homem misterioso. – Eu e a Braulia morreremos, e vocês se certificarão que apenas certas pessoas saibam da nossa morte. – O que estás a dizer, Usuku? – demandou Braulia, notavelmente aturdida. – Poque temos de morrer? – Confia em mim, Miúda. Sei o que faço. Eles querem proteger os seus filhos, nós queremos proteger a nossa criança. As duas coisas serão feitas. Deixarei orientações para a Máfia antes de morrer. Para o meu pai também. Eles saberão fazer as pessoas acreditar que ainda estamos vivos. Contudo, sei também que eles tentarão encontrar-me. Estes dois loucos entrarão em cena para os impedir. Notem bem, apenas para os impedir; não lhes façam mal.
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– Quem é a Máfia? – demandou a mulher da vilanagem. – Como a encontraremos? – Não tentes ser astuta comigo – respondeu o escritor. – Sei bem o que pensas. Eu consegui saber que vocês os dois estavam juntos e imprimir a foto deste anormal porque vocês assim o queriam. O vosso desejo era serem achados e com isso, achar quem vos acharia. Jamais poderão encontrar a Máfia pelos vossos meios. Sigam o meu pai no dia em que ele for à praia. Ele vos conduzirá até ela. – Interessante – disse o homem da vilania. – Se vocês dois morrem, não haverá perigo para os nossos filhos. O que ganharás com isso, maldito escritor? – Façam apenas o que vos digo…. – Eu não concordo com isso, Usuku – disse Braulia, beirando o choro. – Quem cuidará da criança e da Marla? – Não interrompas, mulher! – vociferou a mulher da vilanagem. – O nosso pedido foi feito, e o teu homem parece ter criado uma solução. Faremos conforme falamos… – E se nos recusarmos a fazer o que vocês pedem? – demandou Braulia. – É simples: ou ajudas os nossos filhos ou os teus filhos morrem – disse o homem da vilania. Apocalíptico – a palavra filhos ainda estava em sua boca quando Usuku o derrubou, amarrando fortemente a corda em seu pescoço. – O que é que pensas fazer? – inquiriu o homem da vilanagem, beirando a rouquidão causada pela asfixia. – Mostrar-te o quão corrompido estou – respondeu Usuku com olhar homicida, debruçado sobre o outro. – Não sabes o que tenho suportado por tua causa, pois não? Não sabes que este fardo devia ser teu? Deixa-me elucidar-te. Para vejas que não minto, não serei eu a oferecer-te as informações básicas. Responde para ele, Alves, qual é o primeiro livro que escrevi? – A Três Degraus do Quarto – respondeu o inquirido em assombro. – E, neste mesmo livro – confinou Usuku – que informação é dada no fim sobre o escritor. – Acho que… se bem me lembro… diz-se que o escritor é o vilão da história, o Lino Tchiva. – Percebeste, rascunho miserável? – demandou Usuku em vileza. Seus olhos brilhavam com o verde fluorescente das obscuridades. – Tu foste o primeiro a ser escolhido como escritor do Homem do Saco. Seria a ti que estas coisas deviam acontecer. Deves ter parecido alguém com personalidade perfeita para que fosses seleccionado entre muitos, mas a tua forma estúpida de agir fez com que fosses renegado. Sem que eu soubesse, tornei-me teu substituto. O Homem do Saco passou a ideia do A Três Degraus do Quarto para mim; melhorei-a, aprimorei-a. O teu fardo foi passado para mim. Seriam o Derito e a Liliana que terias de perder, ou outro dos teus cinco filhos. Descobri tudo isso e carrego o teu peso sem sequer pensar em trocar de lugar contigo, porque ainda existe moral em mim, ainda existe empatia. Então, não voltes a falar da criança com ameaças, porque a morte pode vir a ser a bilionésima coisa nefanda na lista das coisas amargas que te farei. – O homem sabe falar como um assassino – disse a mulher da vilanagem, enquanto Usuku libertava o outro. – A corrupção em ti está a libertar sentimentos que
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antes inibias, escritor. Contudo, toma cuidado para não usares isso contra a minha filha. Ao contrário do Lino, não hesitarei em usar a minha arma para acabar contigo. – Chega de ameaças – disse Usuku. – Vamos embora, Braulia. O assunto aqui está resolvido. Temos de chegar à casa… Entraram para o carro. Livraram-se da corda amarrada ao volante. O homem da vilania e a mulher da vilanagem perceberam que alcançaram seu objectivo. Sorriram. Voltaram-se para ver Kaculu, mas este já emergira em ausência. – Acho melhor que seja eu a conduzir – disse o homem misterioso. Usuku consentiu. Ignição – locomoção e direcção foi dada ao automóvel. O tempo passava. Pneus, asfalto, velocidade. Pneus, asfalto, ansiedade. Sem se aperceberem, as informações do que acontecera desparecia da mente do condutor e do homem de sobrenome Alves. O tempo passava. Pneus, asfalto, velocidade. Pneus, asfalto, ansiedade. Chegaram a casa; despediram-se dos dois. Adentraram. Era quase meia-noite. Estavam estafados. As revelações naquele local haviam sido devastadoras. O que mais deviam pensar? Precisavam de descanso. Braulia entrou para o quarto de seus filhos. Usuku foi purificar seu corpo com um banho gelado. Temia que seus pesadelos continuassem a revelar-se. Segundo o que havia pesquisado, passaralhe pelo espírito aflito a ideia de que seus filhos seriam raptados, não quando tivesse dez anos, mas cinco. Preocupava-se em demasia, contudo era apenas uma ideia, uma desconfiança. Porque continuar a cogitar sobre ela? O cansaço não lhe permitia pensar por muito tempo. Os minutos passavam. Lágrimas nos olhos dela, lágrimas no corpo dele. Os minutos continuavam a passar. Ela secou o rosto; saiu. Ele secou o corpo, saiu. Encontraram-se. Voltaram para o quarto de seus filhos. Beijaram suas faces. Saíram. Entraram para os aposentos de Marla. Beijaram sua face. Saíram. Confluíram para seu próprio quarto – dormiram. A madrugada chegou mais fria e amarga que a noite. Gritos – gritos angustiantes despertaram o casal. Seus encunciadores? Os gémeos – seus filhos, Lunga e Kiela, gritavam. Usuku e Braulia levantaram-se em desespero e correram para o seu quarto. Macabro – os corpos das crianças atraíam-se; algo tentava sair-lhes da pele e apoderar-se do corpo do outro. Usuku abraçou Kiela em protecção. Braulia abraçou Lunga em remição. Perturbador – a atracção dos corpos era mais forte; o corpo de Usuku e Braulia era arrastado para a colisão; Lunga e Kiela aproximavam-se um do outro em chocante tormento. Remidor – um gigantesco monstro apareceu no seu meio em posição de auxílio. Homem do Saco era o seu nome sobrehumano. Conflitante – a atracção tornou-se mais forte com a presença da aberração. O monstro rugiu em dores. Parecia que seu corpo também era sugado para o embate. Sua vasta e eriçada pelagem ganhou o brilho causticante de brasas. Os gritos infantis tornaram-se mais fortes. Marla despertou; confluiu para os aposentos de seus irmãos. Entrou em choque – a imagem que via era chocante. Algo com aparência apavorante agigantava-se para fora do corpo de seus irmãos. Era – como se houvesse um outro ser tentando rasgar a pele de seus corpos, era – como se houvesse alguém lutando para sair brutalmente do corpo de Lunga e Kiela. Viu o sofrimento de seus pais, abraçando fortemente os meninos. Viu o enorme monstro em ardência abrasiva. Ficou imóvel em êxtase. O sofrimento dos gémeos aumentava. A angústia de seus pais crescia. As dores do monstro pioravam. O estado atónito de Marla permanecia. Entre o sofrimento, a angústia, as dores e o estado atónito, uma voz gritou:
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– Separa-nos agora! Seu enunciador? Usuku. Para que receptor? Kaculu. – O que queres dizer com isso? – interceptou Braulia entre choros. – A criança tem de ser separada, Braulia, senão isso vai piorar! E o Kaculu não está aqui para nos ajudar unicamente, mas também para levá-la! – Como assim? – Não temos tempo para explicações por enquanto! Acredita em mim. Será melhor assim! Leva-as, Kaculu! Separa-nos agora! Leve também a Marla. O monstro consentiu. Em sobrenaturalidade, entre os resmungos e as negações de sua amada, levou Lunga, Marla e Braulia para longe do escritor e Kiela. Tudo que se ligava biologicamente a Lunga desapareceu; nem um resquício dérmico, capilar ou sanguíneo foi deixado. Em celeridade incomum, chegaram a um lugar estranho, descomunal. O monstro fez com que caíssem em sono profundo. Dormiram sem que se apercebessem. A aberração ausentou-se. Sentimentos confusos apoderam-se de sua mente. Sua amada estava em seu território. O que fazer? Seria aquilo prenúncio de que podiam ficar juntos? Não – ela pertencia a outro homem. Não se podia deixar levar por leviandades. Respirou fundo. Os pensamentos não pararam. Irritou-se. Com o corpo faiscando calor abrasivo, lançou-se para o rio à sua frente. Uma grande extensão de vapor separou-se da água no acto. Ouvia-se o som de brasas apagando em crepitação. Cenário de suspense. Vapor denso, crepitação. Vapor denso, encolerização. Fúria aquosa. A aberração nadava impetuosamente para o fundo do rio. Atingiu o leito; alcançou solo lamacento. Nadou para cima em frenesi furibundo. Vapor denso, crepitação. Vapor denso, comoção. Saiu da água. Andou entre a névoa acinzentada. O vapor dissipava-se. A lua reluziu sobre corpo. Um humano – saiu da água em forma de gigantesco humano. Aproximou-se de uma tenda. Adentrou. – Jamais sairemos daqui se continuares a sair repentinamente – disse uma mulher. Seu nome? Ivone Tchivela. – Já é madrugada. Algumas pessoas aqui têm filhos para cuidar. – És a única com filho aqui – disse uma jovem mulher em jocosidade. Daniela Canzar era seu nome. – Mantém a calma. O Kaculu deve estar a resolver assuntos demasiadamente sérios para sair assim pela segunda vez. Ouve silêncio. Kaculu olhou para os presentes. Não era sua intenção, mas seu olhar transmitia frieza, fúria e fereza. Intimidados, os presentes calaram-se. Seu olhar horripilante percorreu cada um deles. Depois, com sua voz monstruosamente ferina, falou em nomeações: – Hélder e Raquel Banzaia, Bruno e Márcia Nassembe, Bengui Massela, Lino Tchiva Júnior, Liliana e Eduardo Tchiva, Daniela Canzar e Ivone Tchivela. O que precisáveis saber, já os vossos pais ou alguém perto de vós vos contou. Decidam-se: querem ajudar Kiela e Lunga com os vossos conhecimentos? – Sim! – responderam em uníssono. – Eis a vossa resposta. Contudo, saibam que, nesta vossa entrega de auxílio, pessoas que odiais poderão aparecer, colocando-vos em situações aflitivas. Coisas que não entendeis ou que vos criam revolta sucederão. Estais preparados para tal? – Sim! – Eis o decidido: ajudareis por voluntariedade. Pensem sobre os temas que vos foram entregues por mim. Criem problemas, criem cenários. Tendes o meu poder à vossa
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disposição. Não pensem apenas no humanamente possível; extravasem a realidade. Aquele casal de gémeos não lidará com humanos, mas poderosos seres dedicados ao caos. Tendes dois anos para tecer, arquitectar e produzir aquilo que quiserdes. A ti, Natércia Tchivela, será outorgado o poder de identificação de corrupção. Dispenso-vos agora. O Kitexi e a Wanga encarregar-se-ão de que chegueis seguramente às vossas moradas agora. Ide! Pensem, trabalhem. A ordem e a estabilidade têm porção dependente nas vossas mãos.
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– CAPÍTULO XIII – ●
Analogias
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Local: casa descomunal criada pelos poderes do Homem do Saco. Pessoas presentes: os irmãos Nassembe, a jovem Massela, a mulher Tchivela, a jovem Tchiva, o homem chamado Jorge por Ngoma Usuku, a mulher de sobrenome Correia, a mulher de sobrenome Vieira Lopes, a mulher de sobrenome Samba, o homem misterioso dedicado à Medicina e o homem de sobrenome Gameiro. Tempo: dia da morte de Ngoma Usuku e Braulia. Ideia a ser executada à mesa: o contar de uma história sequenciada aleatoriamente por qualquer um dos cinco primeiros. – Nas terras do romance – começou Liliana Tchiva a contar – as teias da paixão aprisionaram hermeticamente um dos homens que acabara de pisar as suas pastagens. Fizeram-no inspirar bem-querer, expirar ternura e suspirar amor quando os encantos de uma mulher angelical desaguaram em sua visão. Contudo, ela parecia distante de corresponder aos seus sentimentos. Por isso, por algum tempo, decidiu agir como se ela fosse a mais banal das donzelas: dirigia-lhe a palavra com escassez, dava-lhe respostas resumidas, não lhe fixava o olhar; era frio, indiferente. A mulher intrigava-se. Como podia ela, uma das mulheres mais agraciadas pela formosura daquelas terras, não ser cobiçada nem notada por aquele homem, quando todos que vieram consigo se jogavam aos seus pés, fazendo incontáveis juras de amor? Secretamente, o homem seguiu-a por meses e viu que ela era caoticamente confusa, desordenadamente dividida, incoerentemente instável – havia anos que outros dois homens lutavam por ela, mas não conseguia escolher um. Ele era um peregrino, não pertencia àquelas terras, mas conhecia a arte da sedução como ninguém nascido aí; conhecia os desejos e as fraquezas do delicado vaso feminino, sabia o que encantava as damas, tinha noção perita do que roubava o coração de uma mulher. Entre tudo o que sabia, duas coisas escolheu para cativar eternamente a dona de seus apaixonados queixumes: atenção e tempo. Atenção – estava sempre disponível para ela: acompanhava-a sempre que fosse requisitado, ajudava-a quando lhe fosse pedido, presenteava-a com aquilo que ela mais desejava. Tempo – uma semana deu a si mesmo para que ela se jogasse aos seus braços; quatro dias foram necessários – a mulher rendeu-se à sua cortesia antes do prazo estipulado por si mesmo. Cantou vitória, gabou-se de sua conquista. Contudo, não sabia que acabava de se tornar escravo dos desejos dela. Sua vitória – sua conquista – não significava que agora era o seu rei, o seu dono, o seu possuidor, mas sim uma entrega à servidão de todos os seus caprichos. (Homem é servo de mulher, e luta para isso, só que pensando que será o amo.) Meses se passaram, o peregrino continuava apaixonado, a mulher também o demonstrava estar. Todavia, poucas semanas depois, ela acabou a relação, tendo como pretexto a proximidade de seu casamento. Casamento? A mulher casar-se-ia? Como podia ser? O homem nada fez. Não lutou, não questionou, não revidou. Aceitou a
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situação como se fosse a mais banal das coisas. No entanto, antes de deixar aquelas terras, desaguou um juramento na audição dela: «Casarei contigo». – A mulher recebeu aquele juramento com expressão de indiferença – continuou Ivone Tchivela. – Porém, a indiferença maquiava sua aflição, sombreava seu desgosto, perfumava sua amargura. Ficou assustada com a determinação com que aquelas palavras soaram. Seriam prenúncio de rapto? Vaticínio de assassinato? O tempo responderia, mas não respondeu. Nada aconteceu. Casou-se. Julgou ver o peregrino durante a festa de seu casamento. Alucinação? Seria melhor julgar assim. E se não fosse? O homem com quem se casara poderia defendê-la. O homem com quem se casara – quem era? Um daqueles dois que lutavam por ela durante anos? Não – era um outro, um terceiro, desconhecido pelo peregrino e até mesmo pelos outros dois. Era um homem de sua adolescência; um macho garboso com o qual cortara, por muito tempo, a convivência. O acaso os havia ajuntado novamente quando viajara por algumas semanas para outras terras. Conversaram, combinaram, passearam; namoraram. Voltaram juntos para as terras do romance. Foi no dia de sua chegada que o peregrino ouviu a cruel notícia do casamento de sua amada com outro homem. Agora estava casada. Feliz? A maquilhagem, as sombras e o perfume assim a exibiam. Suas roupas e seu sorriso cooperavam em tal exibição. Os dias foram passando. Um homem mudou-se para aquelas terras com uma anciã. Era discreto, reservado. Não frequentava os locais mais frequentados, com ninguém comentava os assuntos mais comentados. Limitava-se a ver o pôr-do-sol pela janela de sua casa, seu olhar vagueava quando as aves fluíam graciosamente para o céu, suas mãos acariciavam apenas a erva húmida que crescia à frente de sua casa, sua voz era ouvida apenas quando falava com os seus animais. Foi assim durante dias, semanas, meses. Apenas o padeiro e o merceeiro tinham algum contacto com ele. Fazia compras com gestos, agradecia com sinais, despedia-se com acenos – nada de palavras. Seria mudo? Tartamudo? Não – os coscuvilheiros que o observavam sabiam que ele falava sem dificuldades. As mulheres solteiras jogavam suas curvas ao seu olhar – ignorava. Jogavam conversas e insinuações libidinosas aos seus ouvidos – ignorava. Ofereciam bebidas e comidas afrodisíacas ao seu paladar – rejeitava. Um pequeno rapaz tornou-se seu amigo no passar de extensos meses. O homem reservado convidou-o à sua casa. Almoçaram. Um assunto urgente fez com que ele saísse às pressas, deixando o rapaz com a anciã. Ela também era de poucas palavras e, com o pouco que disse, assustou o menino: «Não te ligues muito a ele, filho. Ele tem um passado terrível.» – O rapaz ouviu e saiu – sequenciou Bruno Nassembe. – Não quis acreditar no que acabara de escutar. Como podia aquela anciã dizer tamanha barbaridade contra seu amigo? O homem era reservado – isso era verdade. Passado terrível? Mentira! Havia alegria em seus gestos, empatia em seu olhar, afeição em sua voz. Homens com passado terrível não eram assim. Eram calculistas, dissimulados, traiçoeiros, maliciosos. Não, não podia ser; aquela anciã não falara a verdade. Queria apenas que o rapaz abandonasse o único amigo que conseguira ter naquelas terras. Aquelas terras estavam cheias de homens e mulheres. Crianças? Poucas, muito poucas. Contando com a filha que a mulher pela qual o peregrino se apaixonara teve três anos depois de seu casamento, dois era o número de rapazes e o de raparigas, cinco. Total? Sete. Porque não brincava com os outros seis? Porque viajavam sempre com seus pais. Diferentes dele, eram ricos, mimados, patrícios. Achavam-se superiores a ele; ignoravam-no, desprezavam-no. E, nas terras do romance, a paixão parecia diminuir quando a mulher ficasse grávida. Por isso, ou o casal viajava
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absurdas vezes com seus filhos ou os filhos eram enviados para viver em outras terras. Por anos, o rapaz sentira-se isolado, renegado. Agora que encontrara uma companhia para partilhar e aumentar seus conhecimentos, uma estranha anciã dizia-lhe para se afastar? Não – nunca! Amigos são amigos. Amigos acreditam na inocência um do outro. Decidiu acreditar que o que ela dissera era inacreditável, inconcebível. No entanto, as sementes da desconfiança já haviam sido lançadas, e os olhos dos humanos não conseguem ver quando elas brotam, criam raízes e se expandem. Apenas os resultados – os frutos – são vistos. E os frutos – os resultados – demoram, mas chegam. O rapaz aproximou-se da cidade. (O homem vivia no campo, afastado de todos. Os outros habitantes levavam os seus animais para aquele local para que pastassem.) Viu um tumulto. Ouviu um lamentar. Lágrimas, choro, sofrimento. Alguém jazia em agonia, alguém gemia em forte pranto. Uma multidão estava reunida desordenadamente à porta da mulher que magoara o peregrino. O rapaz correu, aproximou-se rapidamente. Perguntou a razão do tumulto. Morte foi a resposta. De quem? Do homem com o qual a mulher se casara. Entristeceu-se largamente. Viu a lamentação da mulher, as lágrimas, o soluçar. Anteviu o sofrimento da filha; a orfandade, o desamparo. Odiou-se por, minutos antes, estar a manjar e a rir, enquanto uma das habitantes de sua terra era visitada pelo luto. Como poderia aquilo ter acontecido? Abandonou o local às pressas quando pensou que o homem reservado poderia estar envolvido naquilo. – A notícia funesta chegou aos ouvidos da filha ao anoitecer – avançou Bengui Massela. – Amargura inconsolável caiu de seus olhos e saiu de sua garganta. Seu pai… Um momento! Porque tinhas de matar o pai dela, Bruno? – Eu já iria perguntar a mesma coisa? – adendou a mulher de sobrenome Vieira Lopes. – A história estava a correr tão bem sem mortes… Até pareces o Usuku, pondo sempre uma coisa triste quando o enredo está a desenrolar-se lindamente… – Se morreu, morreu – cortou o homem chamado Jorge. – Continua a contar a história! – Homens são tão insensíveis – adjectivou a mulher de sobrenome Samba. – Gostam de violência e morte em qualquer coisa. – Enredos de suma felicidade são enredos vácuos, entediantes – comentou o homem de sobrenome Gameiro, tornando-se finalmente audível. Seu tom era afinado, refinado. Tinha pele branca e era idoso. – Vocês precisam de ler mais para ganhar verdadeiro arcaboiço literário. O menino contou a sua parte de forma sublime. Sou a auspiciar que ele será um excelente contador de histórias se continuar nesta senda. Não se pode criticar o extraordinário; tece-se apenas elogios à sua volta. – O senhor foi professor do Usuku? – demandou a mulher de sobrenome Correia. – Sim, fui. Contudo, esta informação é dispensável no momento… – Muito dispensável, yá? – voltou a cortar o homem chamado Jorge. – Continua a contar a história, rapariga. Ou perdeste o fio? Estás a ganhar tempo para pensares melhor, né? – Não sejas inconveniente! – disse a mulher de sobrenome Samba entre dentes. – É o que eu acho que ela está a fazer – continuou o outro. – Está a ganhar tempo para pensar bem no que vai contar. Ela podia inventar qualquer coisa sobre a morte do pai da menina. Podia até dizer que ele não morreu, que a notícia era falsa… O rapaz… Qual é o teu nome? – Bruno – respondeu o inquerido.
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– O Bruno não disse que o marido dela morreu em casa ou nas terras do romance. Nem sequer disse que ela viu o cadáver. Ela está a aproveitar para pensar! Ponham alguém melhor a contar. A coisa está quente demais para intervalos. – Queres ser tu a contar? – brandiu a mulher de sobrenome Correia. – Só se for agora! – respondeu ele em audácia. – O que é que só pode ser feito agora? Pintar o cabelo do Ndombaxi de vermelho? – interceptou Hélder Banzaia, entrando para a sala descomunal com sua irmã. – Ou querem ver quem lhe veste mais rapidamente umas skiny jeans – acrescentou Raquel Banzaia. – Vão precisar de muito tecido… – Estás a falar isso porque a filha dele não está aqui – congraçou Bruno Nassembe. – Se visses o soco que ela deu à uma senhora há uns minutos… – A Daniela? Não acredito! – disse Hélder Banzaia. – Depois da Bengui, ela é a mulher mais serena nesta casa. E a quem ela deu o soco? Não vejo nenhum rosto inchado aqui… – As duas foram para sei lá onde – continuou Bruno. – Devem estar a conversar. Tinhas de ver. As duas pareciam gémeas… – Onde está o vosso primo? – interrompeu Lino Tchiva. – O boa noite ainda não foi extinto – retrucou Raquel Banzaia. – Quem é o senhor? Não o deixamos aqui quando fomos falar com a Kiela… – Os encontrados são saudados, os que encontram saúdam – revidou o Tchiva. – Pensei que o vosso pai vos tivesse dado alguma civilidade. – Conhece o nosso pai? – demandou a outra em admiração. – De onde? Desde quando? – Desde que vocês não passavam de simples fantasia de adolescente apaixonado. – Lembro-me de seu rosto – interceptou Hélder Banzaia. – Desculpe a minha irmã. Ela detesta contestações, principalmente de pessoas adultas. Boa noite, meu senhor. – Boa noite, rapaz. Dizias que te lembravas do meu rosto… – O senhor esteve no consultório do nosso pai há alguns anos. Foi um encontro rápido que tivemos, demorou apenas alguns segundos. Gravei o seu rosto porque o meu pai disse que… tu és da família. Tu és o homem que escreveu aquele livro e o distribuiu a todos os familiares do pai e aos amigos dele. – Sim, mas ainda não terminaste. Lembras-te mais de alguma coisa? – inquiriu, levantando-se e aproximando-se do outro em vilania. – Lembro-me que a minha tia tem uma grande aversão por ti. Lembro-me que és assunto proibido na casa dela. Lembro-me… que representas perigo para toda a nossa família e que tentaste raptar um dos meus primos. – O nome, tens de dizer o nome do teu primo que tentei raptar. Dizendo o nome dele, dirás o meu… – Lino Tchiva Júnior. – Certo – disse, batendo palmas de vileza. – Vim ter com ele. Onde está o vosso primo? Onde está o meu filho? – Vá sempre em frente e curve duas vezes à direita. – O que estás a fazer, louco? – reprimiu Raquel Banzaia. – Estás a entregar o Júnior, o teu primo, ao perturbado do pai dele?! Não tens sentimentos? Sabes o que ele pode fazer ao Júnior?
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– Estamos numa casa sustentada pelos poderes do Homem do Saco – disse calmamente. – Nenhum mal pode acontecer aqui. – Vais deixar ele passar, Ndombaxi? – redireccionou Raquel Banzaia, vendo Lino Tchiva a avançar para o caminho indicado por seu irmão. – O Hélder tem razão – respondeu o gigante. – Nenhum mal pode acontecer aqui. Mas, se te servir de quietação, a mulher que a minha filha esmurrou é a mãe dela, uma das pessoas mais cruéis e perigosas que conheço. Enquanto falavam, Lino Tchiva desapareceu de seu campo de visão. Ninguém havia notado, mas duas enormes e monstruosas palancas haviam entrado para a casa descomunal e se dirigido em fúria para o local onde se encontravam Kaculu e uma colossal aberração que o aprisionara.
♣ – O que queres dizer com isso? – inquiriu Kaculu, tentando libertar-se. – Sobre que fim falas? E sobre que começo? – O fim do Homem do Saco – respondeu a aberração com voz cavernosa. – O teu fim e o começo de outra coisa. – Lamento desapontar-te, mas não posso morrer. Não há morte em mim; sou indestrutível. – Isso julgas tu. Deixam-me mostrar-te um outro tipo de morte, uma morte preparada apenas para ti. A aberração lançou o gigante contra as arvores à sua frente em extrema ferocidade. Kaculu gritou amargores ao sentir o forte embate. Alcançou o chão em tormentosa colisão. Gemeu dor e furor – enraiveceu-se. Levantou o rosto. Bizarro – a aberração desaparecera. Ergueu seu corpo. Afrontador – sentiu a projecção de uma sombra colossal atrás de si. Colocou-se em posição de batalha. Seu corpo agigantou-se de forma sobre-humana. Ganhou pêlos e feições de fera. Voltou-se – visionou o detentor da sombra. Sim – era a colossal aberração. Seus punhos ganharam a ardência de brasas. Os da aberração também, contudo sobrepujavam a sua. Antes que um pudesse desferir um golpe contra o outro – estremecimentos – a terra começou a tremer. Algo – se aproximava rapidamente, algo enorme, algo – monstruoso vinha na sua direcção. Feras – quatro feras apareceram e colocaram-se ao lado do Homem do Saco. Sua descrição? Um tinha forma de jacaré, outro de espectro e as outras duas de antílopes. Cinco contra quatro. Feras contra fera. Monstros contra monstro. Quem desferiria o primeiro golpe? A aberração deu passos de aproximação. Estranho – ficava menor enquanto andava. Fantasmagórico – dividiu-se em duas. Continuou a andar e a minguar. Ganhou forma humana. Crianças – a aberração dividida ganhou a forma de um casal crianças. Pareciam – enfraquecidas, pareciam – tombar. Os punhos do Homem do Saco apagaram-se. Correu até elas e apanhou-as em auxílio. As enormes palancas aproximaram-se. Respiraram sobre elas. Pareciam inofensivas agora. Fracas e inocentes eram as palavras mais acertadas para descrever o seu estado. Kaculu transportou-as em seus braços. Antes que pudesse acontecer qualquer outra coisa, uma delas, o rapaz, disse: – O meu pai… Onde está o meu pai? Tenho de falar com ele.
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♣ Dentro da casa descomunal, afastado de todos, uma silhueta masculina andava com delineamento de vileza. Suas roupas escuras transmitiam maldade. Seu semblante parcialmente barbeado exibia insensibilidade. Era – conhecido como apontador de armas, era – comummente descrito como homem da vilania. Andava para se encontrar com seu filho. Há anos que tentava falar-lhe. Finalmente a oportunidade chegara. Virou à esquerda. Andou por alguns instantes e encontrou uma porta entreaberta. Nenhum feixe de luz vinha do outro lado. Escuridão explícita. Respirou fundo. Expirou ansiedade. Empurrou a porta. Adentrou. Alarmante – sentiu algo a crivar a pele de sua testa. Petrificou-se. O local estava escuro, não conseguia ver. O que seria? A ponta de uma faca? – Parece um déjà vu, não? – disse uma voz feminina. O homem reconheceu o timbre rapidamente. – Eu onde estou, tu onde estás e o nosso filho em meus braços. No teu livro… como descreveste aquele momento? Lembro-me de cada palavra: «A cena parecia fílmica, como diria Carlos: Ela apenas de roupas interiores, pegando o bebé com a mão esquerda e apontando firmemente o revólver contra o marido com a outra.» – Estás novamente a apontar-me um revólver? – Estou aqui para te mostrar que, se fizeres algo ao meu filho, não deixarei a morte como inquilina para ti, mas como senhorio. Não será como da vez passada, desta vez deixarás de respirar. – Ameaças e mais ameaças. Porque todos vocês querem me entregar aos braços da morte? Ela contou-vos que está perdidamente apaixonada por mim? – Não. Contou-nos que quer que um de seus adjectivos venha expresso no teu estado civil. – No meu bilhete de identidade? – inquiriu entre gargalhadas vilãs. – Seria interessante. Nome: Lino Diogo Tchiva. Estado civil: morto. Realmente, o adjectivo poderia até identificar o meu estado, mas não a minha civilidade. – Não há civilidade em ti. O aviso foi dado – disse, retirando o que crivara na pele da testa do outro. – Toma cuidado para o teu próprio bem. Não faça nada contra o meu menino. – Vais-te embora? – Não, vou continuar aqui. – E onde está o menino? Onde está o meu filho? – Continua a andar e o encontrarás. – Oiço e obedeço, senhora da identificação – gracejou secamente, começando a andar. – Diz-me: Como soubeste que viria falar com o Júnior. – Da mesma forma como as pessoas ficam a saber das coisas: obtendo a informação. – A tua resposta faz-me pensar no Usuku. O maldito escritor não é tão despreocupado com os sentimentos dos outros como pensei. É fraco, debilmente fraco. Pensou em ti, pensou no que sentirias se soubesses que ele patrocinou um encontro que tentas evitar com todo frenesi há anos. A consciência é uma fraqueza; o maldito escritor é uma bola de sentimentalismo. – Não fales mal do que não entendes.
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– Queres então que eu fale do que entendo? – demandou, impedindo a sua própria locomoção. – Sabes o que se passa aqui? Os filhos do maldito escritor serão arrancados dos seus braços, por uma década, enfrentado perigos que só a morte pode outorgar. – Não estou disposta a ouvir repetições. Exceptuando os amigos do Usuku, o assunto sobre essas crianças é sobejamente sabido por qualquer um aqui. – Mas poucos sabem que quem devia ser raptado é um dos teus filhos, não os dele. – O que queres dizer? – Nada, nada. Não posso falar sobre o que não entendo e não estás disposta a ouvir repetições – disse, abrindo a porta à frente de si. Um enorme feixe de luz desaguou lentamente sobre o local. Lino Tchiva voltouse e conseguiu ver a imagem da detentora da voz. Cabelo curto, olhos gigantescos, pele negra e sedosa, feições esbeltas, estatura alta, contornos femininos estonteantes. Eduarda Tchiva era seu nome de casada, mas devia estar a usar apenas o sobrenome de solteira no momento: Banzaia. Sim, como em Carlos Banzaia, o pai de Hélder e Raquel. – Faça como quiseres – disse a mulher em desinteresse. – Onde está a faca? – demandou, momentos antes de passar para o outro lado da porta. – Que faca? – A faca que apontaste contra mim… A mulher estendeu a mão direita, mostrou-lhe o dedo indicador, sorriu em menosprezo e disse: – O segredo do sucesso está na manicure.
♣ – O que foi isso que acabou de acontecer, Kaculu? – inquiriu Jacaré Bangão em sua forma humana. Também era colossal. Wanga era seu nome naquele estado. Era uma mulher, uma jovem e gigantesca mulher. – Precisamos de tempo para chegar à resposta – respondeu o inquerido. – O que sabemos é que os ilembeketa conseguiram invadir este lugar sem que nos apercebêssemos e que os filhos da Chiange têm agora os nossos poderes mesmo antes de serem raptados. – Como é que os ilembeketas conseguiram isso? – demandou Kazumbi com corpo de homem. Partilhava do gigantismo dos outros. Kitexi era sua nominação humana. – Este local está a ser sustentado pelo teu poder, o da Wanga e o meu. – As minhas intromissões nos assuntos dos seres normais enfraqueceu-me… – Enfraqueceu a ti, não a nós – recobrou Wanga. – Eu e o meu irmão continuamos com a mesma quota de poder. – Temos de parar e pensar com calma – redisse Kaculu. – O Lunga e a Kiela disseram: «Aqui começa o fim, um fim que é o princípio.» Precisamos descobrir o significado destas palavras. Discussão não resolverá o problema. Não sinto a presença de ilembeketa aqui, o que quer dizer que eles abandonaram o local ou o intento deles de invadi-lo fracassou. Os filhos da Chiange expulsaram-nos, derrotaram-nos. Podemos entender que as crianças são contra eles. – Mas isto não significa que estão do nosso lado – depreendeu Wanga. – Os meninos atacaram-te. Temos de pensar neles como possíveis rivais. 100
– Não podemos pensar no pior – refez Kaculu. – Vamos manter a calma e pensar criteriosamente. – Não podemos minimizar as coisas – contra-argumentou Kitexi. – Se o Lunga e a Kiela forem contra os ilembeketas e contra nós, não poderás transformá-los em Sambu Mayala, não poderás passar os teus poderes para eles, senão tudo estará perdido. Nada e nem ninguém estará seguro. Não haverá então um Sambu Mayala protector, mas uma forma híbrida de Nguma Tubhya, uma monstruosidade destruidora. – Não é possível criar uma forma híbrida de um Nguma Tubhya. Nem eu, que sou o Nguma Tubhya original atinjo este nível de poder com facilidade. Sambu Mayala é um só, e os seus poderes pertencem apenas a eles. Nenhum outro ser é capaz de comportar tal força. – Não fales como gente orgulhosa, Kaculu – disse Wanga. – Tu és Sambu Mayala, o descobridor, Athu Nyanga, o extractor e Nguma Tubhya, o destruidor. Mas os teus poderes podem ser passados para outrem. Isso acontece de dez em dez anos. Dependendo do que os poderes encontrarão no corpo do teu substituto, o herói, o salvador, pode ser transformado em vilão, em aniquilador. – Sabes bem que isto não é possível. O rapto acontece que quando o substituto tem dez anos, quando ainda é puro. E, mesmo que não fosse, seu corpo passa por uma purificação quando há o ritual de iniciação para a transmissão de poderes. Não pode haver corrupção em um Sambu Mayala. Nunca haverá! – Essas crianças são diferentes – expôs Wanga. – São descendentes de um dyala ngoma e de alguém que já foi Sambu Mayala. E a mãe do dyala ngoma é descendente de alguém que já foi kazumbi. Elas não são crianças normais. – Aqueles que já foram Sambu Mayala, Kazumbi ou Jacaré Bangão perdem completamente os poderes quando deixam de o ser. Não há influências dos poderes do passado com a constituição física do presente. – Não te enganes! Os poderes não são eliminados totalmente, mas inibidos. Com a essência certa, eles podem ser despoletados. – Chega de conversa! – imperou com ferocidade. – Vamos cuidar primeiro dos meninos. A noite chegará ao fim dentro de poucas horas. A madrugada vem aí. Vocês têm de falar com as duas crianças que serão vossas substitutas e eu tenho que falar com as que serão as minhas substitutas. Cuidem do que é vosso. Eu cuidarei do que é meu. Nenhum Nguma Tubhya híbrido será criado! Eu cuidarei que isso não aconteça. Vamos, ainda temos muito por fazer.
♣ O encontro entre Lino Tchiva e seu filho teve início. Primeiros segundos: silêncio, olhares tensos, respiração entrecortada. Segundos segundos: saudação temerosa, emudecimento. Terceiros segundos: perguntas interrompidas, respostas desconcertadas. Quartos segundos: parcial relaxamento. A tensão começava a baixar. A conversa que levara o homem da vilania até àquele local precisava acontecer sem mais delongas. Era urgente, emergente. Contudo, o que saiu de sua boca pareceu sem nexo. – Sabes onde está a Daniela? – Ela passou por aqui com uma senhora há meia hora – respondeu o rapaz. – Provavelmente foram para o rio. 101
– Podes levar-me até elas? – Sim – respondeu, andando. Lino Tchiva seguiu-o. Passaram por grandes árvores, arbustos, rochedos, rochas. A noite e a lua dramatizavam o cenário. A leve e parda neblina outorgavam-lhe melodrama. O olhar escondido de inúmeros animais selvagens concedia-lhe suspense. Chegaram ao rio. Onde estavam a aventura e a acção? Filhos de assassinos aceitando conversar com seus pais; descendentes de psicopatas não hesitando em encontrar-se com seus progenitores. Avançaram para próximo das mulheres; abordaram-nas. – Parecia que nunca mais chegavas – disse Natércia Tchivela. – Mas cheguei – disse Lino Tchiva. – Comecemos… – Começar com o quê? – indagou Daniela Canzar. – Ainda há mais algo na tua história de separação com o meu pai? – O assunto não é sobre mim e o teu pai, menina. É sobre algo mais sério. – Então mentiste sobre tudo o que me disseste desde que chegamos aqui? Ou estavas apenas a usar verdades despropositadas para ganhar tempo? – Aceita a segunda opção como verdade. Falei o que te interessava ouvir. Tirei as tuas dúvidas. Mas não é este o assunto da minha vinda. – Agradeço-te por te importares com os meus sentimentos – disse em sarcasmo. – Qual é o assunto? Qual é a razão de estares aqui. – Pode parecer uma invenção – recomeçou Lino Tchiva. – Mas aquele a quem vocês chamam de Usuku é agora uma ameaça para nós. – Só pode ser mesmo invenção – disse o Tchiva Júnior. – Mas, suponhamos que não o seja. Quem é o «nós» nesta tua frase. – Tu, esta menina, a Natércia e eu. – Porque o Usuku faria mal a nós? – perguntou a jovem Canzar. – Mesmo a vós seria impossível! – Ele não o fará propositadamente – explicou a Tchivela. – O corpo dele corrompido tem agora o poder de libertar ou aprisionar monstruosidades decorrentes dos sentimentos de cinco pessoas. – Porque cinco pessoas? – demandou o Tchiva Júnior. – Porque não três, uma ou mil? – Porque depende do nível de corrupção – respondeu a Tchivela. – Os vultos corromperam-no a um nível que propicia apenas a libertação ou o aprisionamento deste número fixado de monstruosidades. – E porque nós? – interrogou a Canzar. – Porque não qualquer outra pessoa? – Porque eu e a tua mãe temos crueldade suficiente para criar monstruosidades que os beneficiariam na expansão do caos e da desordem. Vocês foram escolhidos para nos castigar. Nós desistimos de estar do lado deles. Esta é a nossa punição. – Não há nada que possa impedir isso? – inquiriu o Tchiva Júnior. – O Homem do Saco não pode purificar o corpo do Usuku? – Ainda que o fizesse – conjecturou a Tchivela – o poder está arraigado no corpo dele agora. Apenas a morte eliminaria esta possibilidade. – Vocês estão a pensar em matar o Usuku? – arrojou a Canzar. – O Homem do Saco não nos permitiria – explicou o Lino Tchiva – nem os vultos. Este plano foi traçado com perfeição, não há como fugir. Temos apenas de nos preparar para enfrentar este dia.
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– Libertação ou aprisionamento – divagou o Tchiva Júnior, enquanto um gigante se aproximava sem ser percebido. – Não há como o Usuku usar o poder apenas para aprisionar em vez de libertar? – A probabilidade é remota – disse a Tchivela. – Como já disse, o plano dos vultos é perfeito. Nada pode ser mudado naquele dia. Estaremos os cinco juntos em local. Algo despoletará o poder nele e as monstruosidades serão libertadas. Estamos aqui para vos pedir que fiquem atrás de nós quando virem os olhos do Usuku a ganhar uma coloração verde. – Se ficarmos à vossa trás, o poder do Usuku vos atingirá duas vezes, não? – voltou a demandar o Tchiva Júnior. – Sim – concordou a Tchivela. – Onde queres chegar com essa pergunta? – Parece-me mais que vocês querem ganhar poderes em vez de nos proteger. – Tu não estás a entender – disse a Tchivela. – O poder liberta a crueldade das pessoas, transformando este sentimento num monstro. A pessoa não ganha poderes, mas sim os sentimentos. E a pessoa não pode controlar o monstro liberto. Ao contrário, pode até ser morta por ele. – Então vocês contam com a ajuda do Homem do Saco para não sermos todos mortos – prognosticou a Canzar. – Sim – assentiu Lino Tchiva. – Acreditem no dizemos, façam o que pedimos. Será melhor assim. Não sabemos se o poder liberta e depois mata o possuidor de sentimentos. Se isso for verdade, vocês ainda terão alguns momentos para acreditar que o Homem do Saco poderá salvar-vos. Sabemos que é muito arriscado, sabemos que parece invenção, mas é isso que acontecerá. – E quando será este dia? – demandou o Tchiva Júnior. – A conversa termina aqui – disse um gigante, aparecendo repentinamente com duas crianças em seus braços. Kaculu era seu nome. – Venham. Vamos voltar todos para a sala.
♣ – Está certo que o Kaculu controla esta casa com seus poderes – dizia Raquel Banzaia em afronta. – Sei que tudo o que falamos aqui ou em qualquer outro canto dessas paredes ele ouve, mesmo não estando presente. Também está certo que nada de mal pode acontecer ao físico do meu primo. Mas já pensaram na mente… Já pensaram no que a influência maquiavélica e bandida daquele traste pode causar à mente do Júnior? Aquele pai desnaturado pode fazer com que ele enverede para um caminho mau! O Lino Tchiva pode transformá-lo em um Lino Tchiva Júnior do banditismo! – O nosso primo tem dezoito anos – intentou demover Hélder Banzaia. – Já tem idade suficiente para não seguir qualquer palavra que lhe caia aos ouvidos. – Ouvir pensamentos pútridos pode gerar podridão em quem… – Vamos parar com o barulho! – imperou Ivone Tchivela. – Pelo peneirar da fuba, nunca mais ouviremos a história se a comadre Raquel e a comadre Hélder continuarem a discutir. O enxoval e o marido são das duas; pronto! Assunto resolvido! Continua a contar Bengui…
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– Tem confiança no que os outros dizem, Raquel – disse Bengui Massela em afeição. – A tua preocupação é boa, mas só te servirá de aflição se não te acalmares. Achas que posso contar agora? Calo-me se ainda tiveres algo a dizer… – Contar o quê? – inquiriu, tentando beirar a mansidão da voz da outra. – Estamos num género de duelo de contadores de história. Cada um conta uma parte e, excepto o que deu início ao enredo, aquilo que contou tem de estar em harmonia com o que outro acabou de contar. – Parece interessante… – E é! A Liliana é que começou. Contou sobre uma mulher indecisa que tem três homens atrás de si, mas que casa com um quarto. Um dos três primeiros, antes de mudar de terra, promete casar com ela mesmo ouvindo essa notícia. A Ivone contou que chegou outro homem às terras da mulher que é totalmente sínico e que tem um passado terrível. E agora, o mauzinho do Bruno matou o marido da mulher indecisa depois de contar que eles tiveram uma filha. – Homens – depreciou. – E agora é a tua vez de contar. Bem, sou toda ouvidos… – Ainda bem! – sussurrou o homem chamado Jorge. – Já não aguentava ouvir o cacarejar.
– Os ouvidos da filha receberam a notícia fúnebre ao cair da noite – recomeçou a Massela. – Chorou amargura de seus olhos e angústia de sua garganta. Preparou as suas malas ao amanhecer; foi juntar a sua orfandade com a viuvez de sua mãe. Chegou às terras do romance após dois dias. Encontraram-se: orfandade e viuvez derramaram oceanos de lágrimas entre abraços e soluços. O enterro aconteceu. O rapaz ouviu a notícia da chegada da menina. Compadeceu-se. Pensou em confortá-la com pêsames, mas teve medo de sua reacção. Um dia passou, dois dias passaram – o receio de ser tratado com rispidez continuou a impedi-lo de aproximar-se dela. Durante as horas da manhã do terceiro dia, o acaso fez com que se encontrassem nos campos. Ele – tímido, receoso. Ela – apressada, indiferente. Ele – criou coragem; foi ter com ela, apresentou-lhe as condolências. Ela – parou, reparou nele, aparou os pêsames. Houve um convite para se sentarem sobre as refrescantes pastagens durante algum tempo por parte dele. Entre quatro insistências, ela aceitou. Sentiram o viço do capim e o embalar da brisa em sua pele. O canto reconfortante dos pássaros atacou simpaticamente sua audição e despertou aconchego em seu espírito. Beiraram a serenidade. Uma pergunta saiu da boca dela: «Conhecias bem o meu pai?» Uma resposta ele deu: «Sim, conhecia. Era um bom homem.» Outra pergunta saiu da boca dela: «Se era um bom homem, porque morreu?» Ele não deu resposta; calou-se. O pensamento de que seu amigo poderia estar envolvido na morte daquele homem apavorava-o. Nenhum dos dois conhecia bem a vida. Eram jovens, muito jovens; crianças. Não sabiam que a morte fazia parte da peça teatral de Deus, do filme épico do Tentador e da tragédia do Homem. Vida é outorgada a quem a desconhece; nenhum feto ou recém-nascido faz um requerimento para ser gerado e dado à luz. Morte não precisa ser comissionada; aparece sem solicitação. O rapaz e a rapariga desconheciam tais verdades; ainda pensavam que tudo tinha de possuir um plano, um propósito. Um comentário saiu da boca dela: «O meu pai não estava doente, não devia a ninguém, não tinha inimigos. A morte dele não parece ter sentido.» Chorava enquanto falava. O rapaz condoeu-se. Devotou-se ao choro também, mas só em seu íntimo. (Homem não pode demonstrar fraqueza por derramar lágrimas à frente de uma mulher. Era isso que lhe haviam ensinado.) Tentou confortá-la, contudo, foi nesta tentativa de amparar que fez nascer uma forte comoção naquelas terras: «Temos um estrangeiro muito 104
esquisito aqui. Se ele tiver alguma coisa ligada à morte do teu pai, prometo-te que descobrirei.» – A rapariga não recebeu aquela promessa com sobriedade de espírito – perdurou Márcia Gailsa. – Levantou-se às pressas e dirigiu-se à casa de sua mãe. O rapaz seguiu-a. Ela entrou. Ele deteve-se à porta. A rapariga contou à mãe o sucedido. Outras pessoas estavam presentes quando ela repetiu as palavras do rapaz. Houve um alvoroço de ideias. Pensaram na estranheza do homem cínico, na sua indiferença. Concluíram: ele era mau, obscuro, assassino. Saíram com furor vingativo. Mais pessoas se juntaram a elas na rua. Chegaram às pastagens da morada do homem. Imperaram sua saída com vociferações. O homem saiu. Estava calmo, imperturbado. Uma pedra foi lançada contra ele. Apanhou-a num gesto mirrado. Demandou explicações. Outras pedras foram lançadas contra si. Uma atingiu-lhe a testa. Sangrou. Mais pedras estavam a ser preparadas, porém, os gritos de uma mulher impediram a multidão de continuar com o linchamento. A mulher era a mãe da rapariga, a viúva. A multidão ficou perplexa. Não percebiam porque ela tentava defender aquele que lhe presenteara com o fado da viuvez. Ela trazia folhas, papéis, documentos. Mostrou-os a alguns deles. Viram prescrições médicas, análises; estavam todas no nome daquele que falecera. A mulher explicou que seu marido bebera um estranho veneno após receber aqueles documentos, pois estes contavam que ele tinha pouco tempo de vida. A multidão não acreditou. «Nenhum homem se mataria tendo uma mulher por sustentar e uma filha por criar!», gritou um. Voltaram ao seu intento de apedrejamento. A mulher dirigiu-se para frente do homem cínico. «Sai daí! Não podemos deixar um assassino viver entre nós!», gritou outro. «Não posso deixar um inocente ser morto por vós», disse ela. «O meu marido não se suicidou apenas por descobrir que padecia de uma doença terminal, mas também porque, minutos antes, tivemos uma discussão por ele ter descoberto que a minha filha… a minha filha não é dele.» Houve outro alvoroço. Duas dentre as mulheres na multidão intentaram apedrejar a viúva, mas a chegada do presidente daquelas terras deteve-as. Os homens do presidente dispersaram a multidão. Os linchadores entraram em debandada, fugiram. O presidente apanhou os documentos. Leu-os. A mulher ofereceu explicações. Ele pediu a ela que entrasse para seu carro. Ela pediu desculpas ao homem cínico antes de entrar. O presidente aproximouse dele. Viu a anciã parada à porta com a mão cobrindo sua boca e derramando algumas lágrimas. Abordou-a; confortou-a. Depois andou até ao homem cínico e disse: «Não vá para muito longe. Voltarei para conversarmos sobre o seu passado.» – Os anos passaram – continuou Derito Tchiva, despertando admiração nos presentes com sua reentrada. – O presidente não voltou para ter a conversa com o homem frio, mas a mulher – oh! a mulher teve inúmeras conversas ele. Contou-lhe tudo sobre o dia em que seu marido morrera. A informação sobre a filha não ser dele era enganosa; saíra de sua boca apenas num momento em que a frustração causada pela tensão conjugal se tornara… – A vossa diversão literária tem de parar agora – interrompeu Kaculu, entrando com as crianças em seus braços. Lino Tchiva e Natércia Tchivela vinham atrás de si. Talvez o gigante tivesse interrompido a história porque, desde que a começara a ouvir na voz de Liliana Tchiva, sentira que aquele enredo era uma analogia ao que se passava entre si, Braulia e Usuku. Parecia que aquela história contava o seu amor por uma mulher que ele permitira entregar-se aos braços de outro por causa da distância, mas que, ainda assim, prometera casar com ela. E a morte do marido da mulher insegura? Não se parecia
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à morte inexplicável do escritor? E o assunto sobre a verdadeira paternidade da filha? Não se parecia ao assunto sobre quem era o verdadeiro pai de Lunga e Kiela? A história era aflitiva para Kaculu, contudo, o talvez da interrupção era um talvez inverosímil. As palavras a seguir deram a verdadeira e tenebrosa razão. – A família do Usuku será atacada dentro em breve… – O que aconteceu com a Kiela? – demandou Bengui Massela. – Está apenas cansada – respondeu o gigante em rispidez. – Temos agora de… – E esta outra menina no teu colo? – interrompeu Márcia Gaílsa. – Quem é? – Essa é a Kiela em seu próprio corpo – voltou a responder o gigante. – O rapaz é o Lunga. – Já voltaram para os seus corpos?! – inquiriu Natércia Tchivela. – Como aconteceu isso? Quando? – Falaste alguma coisa sobre a família do Usuku – desviou a mulher de sobrenome Correia. – O que se passa? E onde está o Usuku? – O Usuku não está aqui – respondeu o inquerido. – Não é sobre ele que falei, mas sobre a família dele e algumas mulheres em sua casa. As minhas palancas estavam a protegê-las, mas tiveram que voltar para aqui. As pessoas que estão prestes a atacá-las não são ilembeketas, por isso, não posso usar os meus poderes para as salvar. Ivone e Ndombaxi, fica na vossa mão a protecção das senhoras… – Não mande ovelhas fazer o trabalho de lobos – motejou Natércia Tchivela. – Eu e o Lino estamos aqui. Salvaremos aquelas senhoras num abrir e fechar de olhos. – Não podemos mandar Judas em pele de Cristo fazer isso! – cortou Ivone Tchivela. – Ninguém sabe quais são as reais intenções desse casal de cangaceiros! Eu e o Ndombaxi faremos isso. – Tu tens um filho para cuidar, menina – disse a outra Tchivela. – Deixa o casal de cangaceiros trabalhar; deixa-me mostrar-te que o mal serve para boas coisas também. – O que dizes, Kaculu? – perguntou Derito. – Vais deixá-los ir? – Acham que conseguem fazê-lo? – demandou o gigante. Lino Tchiva fez uma vénia em concordância. – Ide! Tragam-nas incólumes. O homem da vilania e a mulher da vilanagem sorriram com malícia. Deram as costas aos presentes e começaram a andar em direcção à saída. Seus passos exalavam pompa assassina. Sua locomoção parecia auspiciar a morte. Ivone Tchivela e Derito Tchiva remoíam-se em incredulidade. Como podia um ser tão poderoso ter sido ludibriado? Como podia o Homem do Saco aceitar que trevas salvassem luz? – Lino e Natércia – chamou Ndombaxi Canzar com sua voz pesada, fazendo o casal da vileza parar. – Contem com auxílio; enviarei alguém para vos ajudar.
♣ Num dos recantos da casa descomunal, duas crianças estavam agasalhadas dentro de uma tenda. Tremiam. Seus corpos haviam sido reduzidos a um desnudado conjunto de ossos recentemente, mas agora ganhavam tecido muscular, capilar e dérmico de forma anómala. Olhavam um para o outro assustados. Não entendiam o que acabava de acontecer com eles. Tinham dúvidas, medos. Após alguns momentos, olharam novamente 106
para seus corpos e viram que estavam com aparência de humanos novamente. Levantarase. Saíram da tenda. Visionaram o cenário nocturno e pardacento. Viram o contorno de árvores enormes, capim, montanhas. O barulho de água corrente lembrou-lhes que tinham sede. Seguiram o barulho aquoso. Enquanto andavam, olharam para o seu e viram à lua. Continuaram a locomover-se e, curioso, a lua agora aparecia à frente deles, brilhando sobre uma superfície tacitamente ondulante. Deduziram rapidamente: o astro estava a ser reflectido pelas águas de um rio. Aproximaram-se. Tenebroso – um gigantesco jacaré saltou do rio e andava de forma célere em sua direcção. Antes que pudessem gritar, sentiram uma luz cegante atrás de si. Cobriram os olhos em arrepios. Quando retiraram as mãos, viram-se entre dois gigantes com feições humanas. – Eu sou Kitexi, o Kazumbi – disse um dos gigantes. – Eu sou Wanga, o Jacaré Bangão – disse o outro. – E vocês? Como se chamam? – Muntu – respondeu temerosamente o rapaz. – Hoji-ia-Muhatu – acompanhou a rapariga. – Muntu… Pessoa é o significado do teu nome – disse o que se apresentara como Kitexi. – E Hoji-ia-Muhatu significa leoa. Interessante, uma junção entre animais e pessoas. É como se os vossos pais pensassem numa união entre a fera animal e a fera humana. – O que vocês querem connosco? – perguntou o rapaz. – Porque nos trouxeram até aqui? – Não ouviram o que dissemos? – rebuscou Wanga. – Somos o Jacaré Bangão e o Kazumbi. – Não sabia que Kingandu e Kazumbi fossem pessoas – sussurrou a rapariga. – Ngandu… Há anos que não sou chamada assim. Sim, sou Kingandu, o Jacaré Bangão, e este é o Kazumbi, o meu irmão. Somos gémeos, assim como vocês são. O Sambu Mayala, o Homem do Saco, também está neste local. Vocês estão aqui para descobrir que todas as histórias que vos foram contadas sobre o Jacaré Bangão e o Kazumbi são mentira. Não somos raptores, não comemos pessoas, não aterrorizamos aldeias inteiras e nem estamos ligados a qualquer arte mágica. Somos protectores deste país, os vigias, os guardiães. – E o que somos nos agora? – demandou Muntu. – Vocês são nossos substitutos – respondeu Kitexi. – A substituição acontece de sete em sete anos. Mas os escolhidos para receber os poderes de Ngandu e Kazumbi têm três anos de treino. E é isso que vocês terão agora. Começaremos pelo agnição teorética. – Começaremos a falar sobre os rituais – perdurou Wanga. – Vocês ouviram falar de Nkudia Mutue, o ritual de outorgamento de forças por meio da essência de pequenos animais e de Nguece Kassamba Muvu, ritual que ocorre depois de sete anos, quando o iniciado recebe seu cargo definitivo, sendo elevado ao grau de Tata Nkisi, para o homem ou Mametu Nkisi, para a mulher. Comparem esses dois rituais ao que está e vai acontecer convosco. – Vocês ouviram falar sobre Nkosi, o devotado à guerra – mudou Wanga. – Ngunzu, aquele que detém a energias dos caçadores de animais. Nzazi, o próprio raio. Nsumbu, o devotado à terra. Kindembu, o chamado Rei de Angola, devotado ao tempo e às estações. Kayango, o devotado ao fogo e Nzambi Mpungu, o Causador. O que vos foi ensinado é isto, mas apresentamo-vos hoje uma outra perspectiva. Aqui vocês aprenderão, não a vê-los como divinos, mas como diferentes exteriorizações dos poderes
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que vos serão concedidos. Nós possuímos os quatro primeiros. O Sambu Mayla possui o de Kindembu e do Kayango. Todos temos o poder de Nzambi Mpungu, mas ele o tem em imensurável grau. Venham. Agora terão de ver com os vossos próprios os olhos que vocês são capazes de fazer.
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– CAPÍTULO XIV – ●
Resgate
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– O que foi isso? Para onde foi o Lunga, avó? Onde está o meu irmão? – inquiriu Marla em insistência. – Ele deve ter ido para o mesmo local onde estão o Usuku, a Braulia e a Kiela – respondeu a idosa. – E, se for mesmo assim, o Homem do Saco deve estar com eles. – Ele estava a gritar por causa das dores que sentia – relembrou a rapariga. – Acha que ele está bem? – Tenho certeza de apenas uma coisa: mudanças drásticas se aproximam. Quanto a se são boas ou más, nada posso garantir. Mas podes estar certa de que o teu irmão está bem. O Homem do Saco ama a tua mãe, logo terá de proteger aquilo que ela ama, embora permita que o meu neto sofra várias vezes. – Está a dizer que o Homem do Saco deixa o Usuku sofrer por ciúmes? – intrometeu-se Paula Muhongo. – É a coisa mais lógica a ser deduzida. – Sabem o que acabei de pensar? – continuou a outra em intromissão. – Saberemos assim que o disseres – depreciou Quela Caála. – Se o seu neto escreve apenas o que o Homem do Saco lhe diz, então Usuku não é nada mais do que uma caneta movida por estudante. Não tem sentimentos, desejos nem planos. – Estamos preocupadas com o bem-estar do Lunga, e tu fazes um comentário destes? – alvitrou Sande Negage. – A Dona Luísa acabou de falar que eles estão a ser protegidos pelo Homem do Saco. Além do mais, o nosso objectivo é entender esta história e tentar prever a sua conclusão. O que falei não é despropositado. Também envolve o bem-estar do Lunga, também envolve o bem-estar de todas nós. – Pode estar boas intenções – catalogou a idosa. – Contudo, enganas-te. O meu neto é muito mais do que uma caneta movida ao bel-prazer de um ser poderoso. O Homem do Saco dá-lhe a história, mas o Usuku conta o enredo à sua maneira; expõe os factos com os seus próprios pensamentos, com o seu próprio repertório discursivo, com os seus próprios sentimentos. – É aí onde quero chegar – revelou Paula Muhongo. – Se o que dizes é verdade, o teu neto, no íntimo, é um monstro. – Porque dizes tal barbaridade? – demandou a Rapariga da Casa 48. – Pensa no que ele escreveu no livro O Pior Filho. Aquelas descrições macabras pareciam de alguém invadido pelo mal, de alguém sádico, um eterno e inveterado amante da dor e do sofrimento. O mesmo acontece no livro O Sonho dos Meus Homens. A raiva, o assassinato e a dor governaram aquelas páginas. Os protagonistas de todas as histórias dele têm um sentimento que declara que amam a dor, que desejam causar sofrimento indescritível aos outros. E ele sublima isso com palavras fortes, como se
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sentisse as mesmas coisas. É como um homem que por não poder cometer crimes na vida real, torna-se um escritor para que pudesse cometê-los em seus livros – disse Paula Muhongo. Ora fora da casa, homens maquiavélicos aproximavam-se da casa com intentos homicidas. – Ele sublima a ira, o Usuku enleva a fúria de psicopatas. Acredite em mim, Dona Luísa, se houvesse algum tipo de poder que transformasse os sentimentos das pessoas em bestas destruidoras, a besta que seria criada a partir dos sentimentos do teu neto seria uma das mais terríveis. – Vamos voltar ao que eu dizia sobre o Homem do Saco e os seus ciúmes – desviou a idosa. – Eu acho que ele planeia a morte do meu neto. Se não for a morte directa, é a morte indirecta com certeza. – Importas-te de nos explicar melhor. – Rapariga da Casa 48, podes ler agora o poema que te entreguei: A mulher com o pseudónimo enunciado retirou um papel de sua pasta, desdobrouo e começou a ler: Deixa-me… Deixa-me dizer que te odeio Porque não posso dizer a verdade Deixa-me dizer que tudo em ti é feio Porque não consigo expor a tua beldade Deixa-me dizer que não gosto de teu olhar E que tua fragrância me causa náuseas Porque minha admiração por ti não posso confessar E nem posso admitir que teu perfume é melhor que o de mil rosas Deixa-me dizer que detesto o som de tua voz Porque não posso te revelar que é incrivelmente encantadora Deixa-me dizer que a tua forma de agir é atroz Porque não posso declarar que até a tua pele é sedutora Deixa-me dizer que quero ser teu inimigo E que jamais pensarei em te visitar aos domingos Porque não posso divulgar o que realmente quero contigo Nem falar que desejo muito que passeies comigo Deixa-me terminar esse poema com rancor Porque não posso te deixar saber mais coisas Deixa-me parar de escrever com imensa dor Porque não sei se dessas denunciadoras palavras gostas – Quela Caála – chamou a idosa. – Conseguiste fazer a tradução em umbundu que te pedi? – Não perfeitamente, mas pode ser lida e entendida. – O importante é que possamos todas entender. O que não conseguimos entender em português, talvez entendamos na língua materna de algumas das mulheres aqui. Leia para nós…
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Quela Caála pegou a folha, pigarreou, leu: Linga hu Linga hu sapuile siti ndukukuetele ukuse Mekonda si pondola okupopia ocili Linga hu sapuile siti cosi vokuove civĩ Momo si pondola okuvangula eposo liove Linga hu sapuile siti si sole okuvanja kuove Elemba liove li ndi selula kutima Mekonda si pondola okulekisa ocikomo ndukuetele Kuenda si pondola okutava okuti elemba liove liavelapo ohulukãi yo loneleho Linga hu sapuile siti si sole elaka liove Mekonda si pondola okulekisa eposo liove lialua Linga hu sapuile siti ove wa tuwa lãvi Mekonda si pondola okupopia hati ekova liove li ndikokela onjongole Linga hu sapuile siti ndiyongola okulinga unyali wove Kuenda lacimue eteke ndikupasula vo ca lumingu Mekonda si pondola okuvangula komanu vosi onjongole ndikikuetele Ndanõ okuvangula hati ndikuete onjongole yo ku tunda love Linga ndilembuke ocisonehea cilo Mekonda si yongola okuti okulihã ovisimilo viange Ndi lembuka okusonehã levalo lialua Mekonda sai kulihile nda osole okuliyeya kuange – Se vocês entenderam bem essas palavras, notaram que elas são uma declaração oculta de amor – disse a idosa. – E só se declara ocultamente um amor quando há impedimento de revelá-lo claramente. E este impedimento é o casamento do meu neto com a amada do Homem do Saco. Vou ser directa convosco, o Homem do Saco pensa em livrar-se do meu neto para ter a Chiange em seus braços. E falta pouco tempo para que tal aconteça. Uma trovoada foi ouvido. Depois – um relâmpago rasgou violentamente o céu. O pânico apoderou-se de seus sentimentos. Marla fugiu desconcertada para um dos compartimentos da casa. A idosa sentiu que havia chegado a uma conclusão verosímil. Começou então a contar com a perda de sua memória ou o desaparecimento misterioso de cada uma das presentes, mas nada de extraordinário aconteceu. Uma garrafa – as mulheres viram entrar para dentro da casa uma garrafa incendiada e farta de combustível. Fogo! Tentaram apagar, mas o líquido espalhava-se, o fogo espalhava-se. Mais duas garrafas foram lançadas. Gritaram. Tentaram sair, todavia as portas estavam fortemente trancadas. Correram até à janela. Susto – viram mais fogo e o grupo de homens maquiavélicos que as aprisionaram dentro daquela casa. Um outro barulho foi ouvido. Explosão? Não – era o cantar dos pneus de dois camiões. O condutor do primeiro? Lino
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Tchiva. Quem conduzia o segundo? O nome de quem conduzia o segundo era sobejamente sabido. Os camiões aproximavam-se com pujança assustadora. Passavam o asfalto com rapidez esmagadora. Uma arriscada derrapagem foi feita pelo condutor do primeiro camião; parou. O outro ficou estacionado a algumas dezenas de metros de distância. Os homens maquiavélicos engoliram em seco. Estavam parados distantes da casa, pois sabiam que, dentro em breve, algo destruidor aconteceria dentro dela. Um homem desceu da primeira máquina enorme. Da segunda, uma mulher. A multidão de desprezíveis sorriu em mofo – o que podiam um homem e uma mulher fazer contra duas dúzias de homens? O casal aproximou-se deles. Sem dizer qualquer palavra, Lino Tchiva e sua companheira passaram pela multidão de desprezíveis. Iam em direcção à casa onde se encontravam as mulheres. Uma espécie de esferas estava em suas mãos e delas um estranho pó caía. O casal chegou à entrada da casa. Voltou-se. Um dentre a multidão de desprezíveis disse: – Vieram para a boda de pinchos e franguité? Fiquem aqui fora. Daqui a pouco vai chover churrasco de carne de pessoa por todo lado. A mulher sorriu com maldade visceral. O homem acendeu um isqueiro e largou-o sobre o pó. O pó – era uma mistura inflamável e explosiva de carvão, enxofre e salitreo, o pó – tinha pólvora como nome comum. A pequena chama atingiu a mistura inflamável. Seguiu seu rastro e, num ápice, explodiu com o primeiro camião. Os homens desprezíveis tentaram fugir antes da deflagração, mas a forte explosão derrubou-os sobre o asfalto. O casal retirou o que trancava a porta e impedia a saída das mulheres. Elas saíram em agitação, procurando ar para respirar, por causa do fumo que invadia seu olfacto. Lino Tchiva e sua companheira levavam as mulheres para o segundo camião quando a mais idosa entre elas gritou: – Marla! Onde está a Marla? Sim, uma pessoa havia sido deixada – Marla foi deixada para trás. Uma explosão aconteceu no interior da casa. Inacreditável – ao propagar da explosão, um homem enorme saltou de uma das janelas com um corpo abraçado a si. Caiu sobre o chão em posição de patinador exímio. Patinador exímio? Sim, calçava patins e distanciava-se da explosão deslizando ferozmente sobre o asfalto. O homem enorme aproximou-se do casal e das mulheres. Entregou Marla ao colo de Nazaré Canzar e, serpenteando sobre o asfalto, desapareceu do seu campo de visão. Seu nome era desconhecido, mas Lino Tchiva e Natércia Tchivela reconheceram suas feições. Era – o mais temível dos homens cujos actos atrozes eram cantados nos livros de Usuku; era – aquele a quem haviam atribuído o pseudónimo de Cazenga, o Pior Filho.
♣ Andando calmamente com as crianças em seus braços, Kaculu dirigiu-se para um dos quartos da casa descomunal. Colocou-as tacitamente em camas separadas. Olhou para elas com temor, reverência e desconfiança, depois saiu. Temor? Temia que elas pudessem tornar-se em algo terrífico, absurdamente hórrido e destrutivo. Reverência? Reverenciou sua força, sua coragem e seu remanso ao lidar com problemas tão anormais, 112
tão extraordinariamente sobrenaturais, naquela idade. Desconfiança? Desconfiou do que Usuku lhes havia ensinado e para que propósito. Vagueava por lugares sombrios, enevoados. Cogitava no futuro, pensava no passado, meditava no presente. Como seriam as coisas quando se tornasse humano? Teria ainda alguma oportunidade de ficar com Chiange? O que faria com o escritor? Seus sentimentos acerca daquela mulher aumentavam a cada segundo que passava. Sua paixão avermelhava-lhe o olhar; seu amor incendiava-lhe o coração. Porque permitira a si mesmo passar por tal tormento? Porque entregara seu amor às mãos de outro homem? Não teria sido mais fácil usar seus poderes de Homem do Saco para transformá-la em sua companheira por toda a década em que seria superpoderoso e, depois de voltar a ser um humano normal, casar com ela? A ideia de entregá-la aos cuidados de outro era absurda! E, desde o momento que o fizera, perdera parte de seus poderes por algo que o penitenciava, castigava, amargurava. O que fazia no momento ajudava a garantir Chiange como sua eterna companheira ou como inconquistável mulher de Usuku? Porque protegia o homem que desfrutava da afabilidade de sua amada? Porque continuava a inspirá-lo a escrever história sobres si e sobre pessoas que lhe interessavam? Que propósito tinha o facto de possuir momentos épicos gravados indelevelmente em folhas, se a verdadeira história que queria viver parecia impossível de ser realizada? E todo o mundo pensava que O Homem do Saco era um vilão, um raptor, enquanto o escritor ficava com os louros da escrita excepcional, com os aplausos, com os elogios, da criatividade excentricamente peculiar. Homem do Saco – mito para alguns, verdade para outros, mistério para os restantes dos alguns e dos outros. Usuku – humano pertencente à vida real; existia, respirava, amava, escrevia. Ninguém sabia a verdade sobre o primeiro, e as excepções que chegavam a sabê-lo pensavam não se passar de pura criatividade literária. Todos desconheciam o fantochismo do segundo, e as exclusões que chegavam a conhecê-lo perdiam a lembrança daquele momento. Ridículo – o animador da marioneta era tido como produto da imaginação da marioneta. Contudo, marionetas obliteram-se, deterioram-se. Sim – a existência de Usuku deixara de ter propósito; tornara-se descartável. A idosa, aquela a quem pertencia o sobrenome Costa, tornava tudo mais difícil por imiscuir-se em qualquer coisa que ele fizesse. Lia e relia todos os livros de Usuku, procurando qualquer resquício do amor de Kaculu por Chiange, analisando qualquer intento do Homem do Saco contra seu neto. A idosa era – coscuvilheira, intrometida, era – um alvo a abater. Andou por mais algum tempo e viu aproximar-se um camião. Escondeu-se entre as moitas. Passados instantes, o veículo parou. Lino Tchiva e Ivone Tchivela desceram da enorme máquina. Ajudaram seis mulheres e uma rapariga a fazerem o mesmo em seguida. Seis mulheres – entre elas estava uma idosa. Idosa? Sim, o alvo a abater. Kaculu transformou-se em Homem do Saco – ganhou enormidade física e feições animalescas. Ninguém o via por causa da densidade da flora e do véu nocturno no local. Abrasou um de seus braços. Lino Tchiva, Ivone Tchivela, as seis mulheres e a rapariga começaram a andar. O Homem do Saco agravou a incandescência de sua mão de besta. Disparou; flagelou seu alvo. Nenhuma dentre as pessoas que andavam sentiu ou viu o feixe de luz destruidor. Continuaram a jornadear e entraram para um quarto reservado previamente para a sua segurança. O número de mulheres que desceu do veículo era o mesmo que entrou para o quarto. O quarto – era um lugar sossegado, balsâmico, tranquilizante, mas o
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quarto – era um lugar onde jamais se aperceberiam que Lunga e Kiela ou qualquer outra das pessoas na casa descomunal estivessem aí. O Homem do Saco aproximou-se do camião. Olhou para o ser que tinha atingido. Era – um ser disforme, negro esverdeado; era – um vulto. Não se movia, estava morto. Exalava um cheiro nauseabundo, o fedor da essência das sombras, a fetidez da natureza das obscuridades. O monstro de olhar horripilante deixou seu olfacto vaguear por aquele odor. Sentiu a irritante fragrância da ganância, da ira e da inveja – era um vulto forte; tais sentimentos eram os principais para a criação de sombras de egrégia notoriedade poderosa. Admirou-se. Era a primeira vez que exterminara um vulto e, se o havia feito, significava que, sem se aperceber, sua mão alcançara o poder de Nguma Thubya, o Destruidor. Sorriu com maquiavelismo. Lembrou-se de que dia era aquele. Era o dia em que as costumeiras doze horas de escuridão terrestre não podiam passar sem que os vultos fossem definitivamente destruídos. Era o dia em que usaria finalmente todo o poder destruído encerrado em seu corpo colossalmente projectado. Porém, outros Homem do Saco tentaram eliminar os vultos num dia como aquele, mas fracassaram. Ele não podia ser como eles. Tinha de ser diferente, sagaz, homérico. Pensou em levar consigo reforços. Jacaré Bangão e Kazumbi? Não! Eles não podiam fazer parte daquela cruzada. Aquelas horas eram reservadas apenas para o Homem do Saco, por isso, só laquem com os poderes de Sambu Mayla podia acompanhá-lo. Voltou-se e foi procurar Lunga e Kiela.
♣ Os contadores da história que se revelava uma analogia à história de Kaculu, Braulia e Usuku voltaram a sentar-se. Seus ouvintes fizeram o mesmo. Ndombaxi Canzar estava entre eles. Lino Tchiva e Ivone Tchivela acabavam de chegar. Houve perguntas sobre o resgate efectuado pelo casal da vileza. A resposta satisfez a maioria, embora se tenha levantado um debate rubro sobre a explosão do camião em plena rua. Entre cochichos, Liliana Tchiva explicou o jogo dos contadores de história a seu irmão, Lino Tchiva Júnior. Os ânimos foram acalmados. As mulheres estavam bem – era o que importava. Ivone Tchivela voltou a chamar a atenção para o desenrolar da história sobre os habitantes das terras do romance em rispidez. – Passaram-se anos. – perdurou Derito Tchiva, após estarem todos calados. – A conversa entre o homem frio e o presidente não aconteceu, mas houve inúmeras conversas entre a mulher e o último. Revelou-lhe o labiríntico rol de acontecimentos que precederam a morte de seu marido. Traíra-o? Mentira! Era fraudulenta a informação sobre a filha não ser dele; dissera aquilo num momento em que a frustração provocada pela tensão conjugal atrofiara seu amor e dilatara seu desejo de retaliação. Desconfiança e ciúmes estavam na génese do enervamento do casal. A tensão arrastara-se por meses. Ele mexia nas coisas dela, segui-a, questionava-a. Ela respondia com evasivas, cortava a conversa, saia de casa sem dar justificações. Após compridos meses de puro clima de consumição conjugal, ela decidiu responder-lhe, mas com mentiras que fizessem ele sentir a mesma dor e angústia advinda de sua desconfiança despropositada. Retaliação – sim, ele provaria da poção de ser esmigalhado por informações devastadoras. E nada mais humilhante, que retirar o manto de paternidade a quem julga ter uma filha por mais 114
de sete anos. Ela serviu a poção com esmero: «Ó meu querido, é isso que achas? Que vagueio por outros leitos enquanto não estás em casa? Então tenho uma coisa muito agradável para te contar», mas lançou-a contra a face dele com a displicência das mulheres insubmissas: «O teu orgulho de macho pertence a outro; fiz a menina que chamas de filha com outro homem». Palavras cruas, cruéis. Ela saiu de casa para sentir o sabor da vitória e deixá-lo num interminável remoer de dores de adultério. Ele pensou em segui-la, mas a chegada do carteiro parou-lhe a locomoção furibunda. Respirou, suspirou. Recebeu a correspondência. Viu o remetente. Um doutor, seu amigo. Reparou na data – já devia ter chegado a mais de uma semana. Requereu explicações do carteiro. Este contou-lhe a razão do atraso – chuvas, jornadas medianas transformadas em jornadas longas. Ele fingiu acreditar na desculpa. Despediu-se e voltou para o interior da casa. Abriu o envelope. Retirou o primeiro papel, desfraldou-o. O que leu tinha peso símil ao da descoberta de que não era o pai da menina que criara com aquela mulher. Pensou na vida, repensou numa saída, dispensou a sua existência – entrou para o seu quarto, deslocou uma tábua sobre o chão, retirou o frasco de veneno que usava para eliminar animais ferozes que de vez em vez apareciam por aquelas terras, abriu-o, bebeu, voltou a colocar o frasco em seu lugar, recolocou a tábua, saiu do quarto, sentou-se à mesa, entrou em convulsões, morreu. O presidente deixou-a ir depois de tais explanações. Ela voltou para a casa tendo um pensamento em mente: voltar a pedir desculpas ao homem frio. – A mulher foi ter com o homem reservado no dia seguinte – perdurou Lino Tchiva Júnior em aplausos. – Apresentou mil perdões. Perguntou-lhe sobre a laceração na testa. Ele amenizou a tensão dela, dizendo que precisava de uma leve pancada na cabeça para ter uma ideia brilhante. Continuaram a encontrar-se durante dias, semanas, meses. A mulher abriu-lhe seu coração: contou-lhe a história de sua vida. Após isso, atreveu-se a perguntar sobre o passado terrível dele. O homem reservado não deu resposta. Retirou-se. A mulher foi procurá-lo no dia seguinte. Encontrou apenas a anciã em casa. Sem que lhe fosse perguntado qualquer coisa, a anciã começou a contar a história do passado do homem frio: «Ele cresceu vendo o pai espancando a mãe dia após dia. Era uma criança; nada podia fazer. Cresceu; tornou-se policial. Ganhou uma arma. A corrupção grassava dentro e fora das esquadras. Seu pai parecia intocável, inatingível. Era rico, subornava. E tinha um mulheril para rechear seu cadastro de adúltero. Ele voltou para casa e olhou para sua mãe com rubescência nos olhos. Minutos depois, a vizinhança ouviu um disparo. Seguidamente – chamas saindo da casa. Quando o fogo foi apagado, o corpo morto e carbonizado de uma mulher foi encontrado. Seu pai chegou. Olhou para as roupas queimadas que trajavam o cadáver e o anel na mão esquerda. Identificou-o: era a sua mulher. Encontram uma bala nas têmporas da defunta. Examinaram-na. Descobriram: o projéctil pertencia à arma de seu filho. Deduziram – ele matou a mãe e tentou camuflar o seu crime queimando o corpo. Ele teve então de fugir daquelas terras para sempre.» Enquanto a anciã falava, o homem reservado apareceu transportando algo na mão. Era uma fotografia. Entregou-a a mulher. Ela viu a imagem estática. Três pessoas estavam nela. Um homem, uma mulher e um menino. O homem e a mulher tinham anéis na mão esquerda. Eram casados. Reconheceu as feições do menino. Era ele, o homem reservado. Curioso – reconheceu as feições da mulher. Era ela, a anciã. Ficou confusa. Depois entendeu. A anciã era a mãe do homem reservado. Ele não matara nem queimara a sua mãe, antes simulara tudo para que pudesse fugir com ela para uma terra distante sem que ninguém os perseguisse. Triste – repentinamente, uma menina, a filha da mulher, entrou
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para a casa dele naquele momento entre lágrimas. Abraçou a mulher. Contou o infausto acontecimento: chegara a notícia de que os pais do menino, aquele que era amigo do homem reservado, morreram numa viagem enquanto tentavam livrar-se dos perigos que o carteiro tinha dito anos atrás para seu pai. – O tempo continuou a passar – avançou Raquel Banzaia em conclusão. – A mulher e o homem frio continuaram a encontrar-se. Ele adoptou o menino. Não guardara qualquer ressentimento por o menino ter deixado transpirar o assunto sobre seu passado. Tornou-se seu pai; o menino tornou-se seu filho – ambos continuaram sendo amigos. Revolveram-se anos. A mulher apaixonou-se pelo homem. Viveram o romance durante dias, semanas, meses. Ele levou-a a um lugar belo, especial. Pediu-a em casamento. Ela aceitou entre sorrisos desconcertados. Marcaram a data: dentro de três meses se casariam. No dia seguinte, quando ela foi levar-lhe um requintado café da manhã, encontrou a casa vazia, não de móveis, mas de pessoas. O homem, a anciã (sua mãe) e o menino não estavam. Procurou-os por todos os cantos. Vasculhou os quartos. Basculhou todas as terras do romance por dias. Nenhum dos três foi encontrado. Voltou para a casa. Encontrou uma carta nas mãos de sua filha. Recebeu-a, após ter reconhecido que a letra naquela folha era sem dúvida a letra de seu amado. Leu com ânsia desesperada. As palavras acalmaram-na. Ele dizia que havia voltado para emendar o seu passado e fazer com que seu pai pagasse pelos horrendos males que fizera à sua mãe. E o menino? Porque levara o menino? Porque era o único naquelas terras que não tivera a oportunidade de viajar em passeio com seus pais. As semanas passaram. Ele continuou a enviar-lhe cartas, contando-lhe tudo o que se passava e prometendo que chegaria a horas para o consórcio. Contudo, ela pressentia que ele jamais voltaria. O dia do casamento chegou. Todos os preparativos para a festa foram executados. Os convidados estavam sentados; a noiva e a conservadora também. A tensão reinava. O noivo viria? Alguém elegantemente vestido entrou para aquela sala. A mulher conhecia-o. Era o forasteiro, aquele que se apaixonara por ela, mas que deixara as terras do romance após ela ter dito que se casaria com outro. A anciã e o menino vinham atrás de si. Aproximou-se da noiva. Explicou-lhe que ele era o filho da anciã, mas que mudara seu rosto por meio de uma operação plástica para que não pudesse ser achado pelas pessoas que pensavam que ele havia assassinado sua mãe. No princípio, ele se mudara para as terras do romance em busca de um local em que podia esconder-se, após simular o crime contra sua mãe. Quando saiu daquelas terras, no tempo em que ela lhe dissera que se casaria com outro, fora executar o plano de salvar sua mãe e mudar seu rosto. Na segunda vez, após ter recuperado seu rosto original, voltou com sua mãe para fazer justiça contra seu pai, que se encontrava agora vestindo o traje do presídio, graças à declaração de inúmeras mulheres que sofreram da mesma violência em suas mãos bravias. A anciã foi para mostrar que estava viva e que um filho só poderia ter executado um plano tão arriscado por causa das abomináveis e repugnantes acções de seu pai contra sua mãe desprotegida pelos executores da lei. A mulher emocionou-se. Os presentes seguiram-na em suas lágrimas de felicidade. A conservadora tornou-os marido e mulher, cumprindo assim a promessa que ele fizera de se casar com ela.
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– CAPÍTULO XV – ●
Enigmático
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A fumaça subia, não de uma casa em chamas ou de um corpo queimado, mas de um cigarro. Atrás do cigarro, uma boca, atrás da boca, um rosto severo, sustentando o rosto severo, um corpo masculino vestido por uma farda de policial. Identificação generalizada? Era o homem por trás das pessoas que atacaram as mulheres na casa de Ngoma Usuku. Identificação pormenorizada? Era o mesmo homem que repetida vezes expelira fumaça para o rosto de um casal de crianças que padecia de problemas respiratórios, tendo a mãe de ambos como testemunha angustiada. Nome? Freitas ZoziPó, aquele que patrocinara uma violenta surra contra o escritor nas vésperas de seu casamento com Braulia, aquele que prendera Lino Tchiva apenas por embuste, aquele que fizera Hélder e Raquel Banzaia passar por horrores à frente de sua mãe, Susana Banzaia, aquele que admirava Carlos Banzaia em sua mente mas odiava-o em seu coração, por causa da morte por suicídio de seu filho. Era um homem complexo, complexado. Não se entendiam suas acções. Dirigia uma esquadra policial, mas, ao mesmo tempo, chefiava homens maquiavélicos que tinham com intento causar sofrimento indescritível a Usuku, sua família e a todos aqueles a quem ele cantava os feitos em seus livros. Porque o fazia? Porque os perseguia? Seria guiado pelas obscuridades? Ou era puro maquiavelismo inexplicável? Se fosse guiado pelas obscuridades, O Homem do Saco poderia intrometer-se em todas as suas vis acções de eliminar o grupo de pessoas já citado. Suas acções beneficiavam os vultos, mas não eram direccionadas por eles. Facto: o que fazia era inexplicável. Talvez apenas ele mesmo o entendesse. Embora agisse de modo agregado, congregado aos propósitos das obscuridades, o que fazia era desagregado, segregado de um ideal seu. Deu o último trago. Apagou a beata no cinzeiro. Ao expelir a baforada, o toque de seu telemóvel requereu sua atenção. Atendeu a chamada. O que ouviu do outro da linha fez-lhe pegar em seu casaco e sair às pressas de sua sala. – Acabei de ouvir um dos homens da presidente a dizer que estão a planejar o rapto de dois cadáveres. O nome Ngoma Usuku foi mencionado.
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– CAPÍTULO XVI – ●
Reminiscência
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Usuku, receptáculo de informações sobrenaturais por ser descendente de um dyala ngoma (sua descendência era directa, vinha de seu pai) e de uma kazumbi (sua descendência era secundária, vinha da mãe de sua mãe), foi escolhido como escritor de Chiange, o Homem do Saco. Esta mesma Chiange, com vinte anos de idade, escolheu Kaculu, com dez anos de idade, para ser seu substituto no cargo de Homem do Saco. Kaculu apaixonou-se por sua seleccionadora, e parecia que o mesmo havia acontecido com ela. Chiange voltou a ser uma humana normal com este mesmo repertório etário. Contudo, seu corpo gigantesco e majestosamente feminil atraiu a atenção de homens sórdidos. Tentativas de estupros e assassinatos decorrentes não faltaram. Kaculu usou seu poder cujo objectivo único era o de proteger seu país das forças sediosas e caóticas das obscuridades para transformar o corpo dela numa mulher mais comum de vinte e nove anos de idade. Fez com que ela se juntasse a Usuku, o escritor escolhido, e continuou a inspirar o mesmo a assentar por escrito a sagacidade de suas digladiações. No entanto, havia outro objectivo naquela união: tornar o descendente do casal em seu substituto para que outra mãe não passasse pela angustiante ventura do desaparecimento em década de seu filho. As obscuridades caóticas, além de procurarem manter secreta a sua existência para o resto da humanidade, desejavam também exterminar ou enfraquecer ao máximo o Homem do Saco. E nada parecia melhor do que a dupla cajadada de eliminar o escritor e corromper o substituto escolhido por Kaculu. Por isso, corromperam misteriosamente os corpos de Usuku e Chiange antes de ambos se casarem, despoletando no corpo do primeiro o poder de libertar e aprisionar cinco monstruosidades resultantes dos sentimentos do mesmo número de pessoas. Dois foi o número de filhos que o casal teve; gémeos era a sua designação de nascença. Inconvenientemente, para diminuir a corrupção no corpo de seu primogénito, sem saber que os gémeos eram um casal, Usuku e Kaculu usaram os poderes do Homem do Saco para transplantar as personalidades dos filhos quando estes ainda estavam no ventre de Chiange, ficando assim a personalidade do rapaz no corpo da rapariga e a personalidade da rapariga no corpo do rapaz. Ao descobrir os intentos de Kaculu para seus filhos e os ignóbeis intuitos, Usuku e Chiange fizeram preparativos mirabolantes para assegurar o bem-estar de suas crias. Envolveram ao grupo secreto chamado Máfia numa pesquisa exacerbada sobre as obscuridades e o Homem do Saco. Com o que descobriram, traçaram inúmeros planos adjacentes, mas esconderam o plano original. Certificaram-se da protecção do Homem do Saco. Aproveitaram-se da necessidade de Lino Tchiva e Ivone Tchivela de salvar seus filhos para juntar a Máfia e o pai de Usuku para um propósito que apenas ambos conheciam. Uma vez que Kaculu não poderia proteger o casal da vileza das mãos de humanos armados, certificaram-se que a Presidente da República demovesse um dos homens mais influentes do país, caso este tivesse a intenção de exterminá-los. Havia a questão do dia em que a maior parte de tais aconteceriam. Como descobririam? A Máfia entregou-lhes a informação de que, de hebdómada a hebdómada, isto é, de sete em sete anos, o Homem do Saco saía para uma cruzada para a eliminação do maior número possível de 118
obscuridades, visto que era maior o número de pessoas que morriam tendo em voga sentimentos pérfidos produtores de vultos que o número de pessoas que feneciam tendo em fidalguia sentimentos límpidos produtores dos poderes do Homem do Saco. Mesmo tendo se separado e cada um estar a viver em num pais mui distante do outro, por causa do macabro acontecimento de a personalidade de cada filho querer apoderar-se de su próprio corpo, calcularam a próxima hebdómada: a partir do dia em que estavam, nove meses passariam para a chegada da cruzada. Incidentalmente, a hebdómada do Homem do Saco coincidia sempre com a hebdómada de Kazumbi e Jacaré, porém, a hebdómada dos últimos não era para uma cruzada de exterminação mas de uma jornada para escolherem os seus substitutos. O casal tornou esta data na mais provável para o decorrer da maioria dos acontecimentos, inclusivamente sua morte indiscriminada. O dia em que sua filha Kiela pediu insistentemente para que Usuku lesse para si a tão angustiante história do nascimento dos gémeos e de uma parte de sua infância e a visita de sua avó e as cinco mulheres à Braulia, Lunga e Marla coincidiu com a data, confirmando parcialmente suas suspeitas. O escritor ligou para C, agente da Máfia, pedindo-lhe para que viesse para sua casa o mais rápido que pudesse para apossar-se de cruciais informações digitalizadas, formando assim o círculo de pessoas que os ajudariam em seus inusitados objectivos. Os ajudadores seriam então o Homem do Saco, os agentes da Máfia, a Presidente da República, sua avó e seu pai. Durante nove meses, viram, reviram, previram suas inquietações e seus planos: Dúvidas – expostas. Soluções – compostas. Pessoas resgatadoras – dispostas. Personalidade de seus filhos – repostas. Suas próprias personalidades – recompostas. Ideias dos vultos – decompostas. Para a protecção de muitos, Kaculu apagou da mente de Usuku a informação de que ele era tinha em seu corpo o estranho poder de libertar e aprisionar cinco montruosidades para que tais aberrações não grassassem pelo país, desatadas por acidente ou por curiosdade mórbida do escritor. Cinco monstruosidades: dos sentimentos nefandos de Lino Tchiva, uma; dos sentimentos obnóxios de Ivone Tchivela, uma; dos sentimentos insólitos de Lino Tchiva Júnior, uma; dos sentimentos contrafeitos de Daniela Canzar, uma. Quatro montruosidades era o total? De onde sairia a quinta? Dos sentimentos cáusticos de Usuku? Dos sentimentos homicidas de Ndombaxi Canzar? Dos sentimentos indiferentes de Ivone Tchivela? De outra pessoa com sentimentos iguais ou piores que os deles? O decorrer dos acontecimentos levantavam as perguntas. O tempo trazia as respostas.
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– CAPÍTULO XVII – ●
Cooperadores
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Enquanto as pessoas à volta da mesa conversavam alegremente sobre a história que acabava de ser contada, Kaculu fez-se presente na sala descomunal. Olhou para os três homens e as três mulheres que usava para redireccionar os pensamentos de Usuku em seus livros. Visionou o homem de sobrenome Gameiro; seu objectivo era direccionar Usuku para a literariedade em seus textos, fazendo uso da Estilística e de qualquer outro recurso literário para enlevar os seus escritos. Olhou para a mulher de sobrenome Vieira Lopes e lembrou-se que usava o medo do escritor de decepcioná-la em seus livros para fazê-lo escrever com sublimação, audácia e excentricidade. Observou o homem misterioso da Medina; usava-o para o diagnóstico das doenças das personagens e à sua somatognosia, para que as descrevesse com maior propriedade e semelhança a si mesmo. Apreciou a mulher de sobrenome Correia; seu propósito era fazer a caracterização psicológica das personagens e desafiá-lo a atingir novos horizontes anímicos na descrição das mesmas. Mirou o homem chamado Jorge; usava o desejo de Usuku de impressioná-lo com escrita arrebatoramente atractiva para que o escritor superasse a si mesmo a cada livro redigido. Contemplou a mulher de sobrenome Samba e veio-lhe à mente que seu objectivo era outorgar maior sentimentalismo às personagens femeninas em seus textos. Sorriu. Tinha escolhido bem os cooperadores que ajudavam a perpetuar com maior conhecimento e naturalidade as suas histórias e as histórias das pessoas que lhe interessavam. Com seu olhar arrepiante e seu corpo gigantesco, aproximou-se da mesa. Todos calaram-se, apesar do tumulto que causou com o que disse a seguir, deu as costas e continuou a andar em direcção ao lugar em que deixara Lunga e Kiela: – Ndombaxi e Ivone está na hora de levar cada um dos senhores e cada uma das senhoras para a sua própria casa.
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– CAPÍTULO XVIII – ●
Entre pais e filhos
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– Kiela. Acorda, Kiela… – Oh! Para quê? Hoje não é meu dia de chatear a mãe… – Acorda, rainha do sono. Acho que já está tudo normal. Eu já estou no meu corpo, e tu, no teu. A rapariga levantou-se ensonadamente. Olhou para o rosto daquele que acabava de despertá-la. O rosto – seu despertador humano tinha o rosto que por cinco anos e nove meses ela vira no espelho quando olhava para si mesma. Seria uma imagem onírica? – Estou a sonhar? – perguntou ela. – Faz chichi na cama para comprovar – gracejou ele. – Levanta-te. Vem, vamos falar com o pai e a mãe. A rapariga levantou-se e começou a segui-lo em hesitações. Pegou em seu próprio cabelo. Tranças – tinha tranças. Não se recordava de ter pegado em sua cabeça e encontrar tal enrolado volume de cabelo. Assustou-se. Correu. Abraçou o outro. – Não te preocupes – aconselhou ele. – Não vou contar a ninguém que ficaste com medo do eu próprio corpo. Também te abracei enquanto dormias quando vi que estava no meu. – Para onde vamos? Essa não parece ser a nossa casa? – Não é. Estamos numa casa criada pelo Homem do Saco. Já te esqueceste? Ou achaste que aquilo tudo foi um sonho? – Parecia um sonho. O pai fez-me pensar assim. E fez o mesmo contigo. Por cinco meses ele nos contou que coisas assim aconteceriam nos nossos sonhos. Coisas incríveis, impossíveis, como nos desenhos animados. – Aquilo foi animado! Mas não teve nada de desenho! Acho que o pai nos disse isso para nos ajudar a lidar com o medo. Chegámos. O pai e a mãe estão aqui. – Mas não vejo ninguém. – Mas sentes, não? – Sim, sinto. – É o mais importante. Temos de ter uma conversa entre pais e filhos. – E como é que eles vão responder, génio? Se a mãe comprou um telefone para ti sem eu saber, saiba que o chip está comigo… – Louca! – disse sorrindo. – Não é hora para brincadeiras… – E para cócegas? – Só depois de falarmos o que temos a falar – disse, sentando-se. – E posso colocar a cabeça sobre o teu colo? – Sim – respondeu, enquanto a outra fazia o que acabava de perguntar. – Lembras-te de ouvir o pai a dizer «Tudo o que se escreve se torna mentira e tudo o que se diz se torna verdade» e «Aqui começa o fim, um fim que é o princípio»?
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– Sim… Ele repetiu tanto que até quando ele não falava as minhas orelhas ouviam isso. A repetição é a mãe do tédio… Então ele era o cunhado dela… – Não tenho certeza do que vou dizer, mas acho que agora entendo essas frases. – Eu também, mas não quero ocupar os meus pensamentos com coisas sérias agora. Hoje é o dia em que voltamos para os nossos corpos; hoje é o dia em que voltamos a nos ver. Não queres gozar com alguém? Onde está a Marla? – Não sei, mas sinto que ela está bem. – Estás a sentir muitas coisas. Ficaste menina por viveres no meu corpo esse tempo todo! Mãe, pai, apresento-vos a vossa nova filha, a Lunguinha. Ela vai usar os sapatos da Marla e os brincos da mãe dentro de dez anos. Pai, não te rias; ela é uma maria-rapaz, então não penses que ela vai deixar as tuas gravatas em paz! – Ei! Porque tenho essa cicatriz no braço esquerdo? – Estava a tentar ver a diferença entre um corte de lâmina e um corte de faca há duas semanas. Não te preocupes, o pai impediu-me quando eu quis pegar na faca… – Xé! Então como é que o braço direito também tem uma? – Porque ele só chegou quando eu já tinha usado a primeira faca, a outra era serrada. Que querias que eu fizesse? Também tinha de ver a diferença… E qual a razão de eu ter esses pequenos inchaços nas mãos? – Estava a dar moscas para as formigas comerem, depois quis ver se elas tinham força suficiente para levar os dedos de uma pessoa. Elas não gostaram nada. Mas descobri: as formigas não são tão fortes quanto parecem. – Louco! Nem sequer sabe cuidar do corpo da sua própria irmã? Já não gosto mais de ti! – É recíproco, cortadora de braços de irmãos. Ainda bem que a mãe levou a tesoura naquela dia, senão essas tuas tranças já não existiriam. Mas eu não iria cortar tudo. Ainda poderias fazer um pequenino puxinho… Não, acho que não conseguirias; o corte de galo que eu tinha em mente não deixaria muito cabelo na parte de trás… – Até das nossas discussões sem sentido eu tinha saudades – disse entre sorrisos. – Gosta de mim de novo, yá? Prometo ser menos má se um dia eu voltar a ficar no teu corpo. – Yá. Está bom. E eu prometo ser menos pestinha se isso voltar a acontecer. Se tivesses algo importante a dizer a pai e à mãe agora, o que seria? – Quero ver-vos, quero muito! Estamos a menos de duas horas distantes e já acho que é uma eternidade. Achas que conseguiremos ficar longe deles quando formos o Homem do Saco? – Não sei, mas não deixarei de atazanar a vida da Marla com insectos… – Mauzinho! E tu? O que dirias ao pai e à mãe agora? – Vocês são os melhores pais do mundo. Sei que só vos chateio e parto copos e pratos sem necessidade, mas sei que vocês conseguem suportar-me. Tenho os vossos genes, então a culpa não é só minha – gracejou. – Eu e a Kiela sabemos que vocês são capazes de fazer tudo por nós, até mesmo morrer para nos proteger… – … mas se vocês morrerem? Quem nos protegerá? Sabemos que nem mesmo a morte não conseguiria eliminar a vossa protecção. – Vocês fazem muito por nós. Embora crianças, chegou a nossa vez de fazer coisas por vocês. Fiquem descansados. Nenhum perigo será suficiente para nos fazer mal. Somos vossos filhos. O mal para nós é apenas uma versão desafiante do bem. Pai, sei que
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te sentes culpado por termos vivido um no corpo do outro durante este tempo, mas o que fizeste apenas pensando no nosso bem. E ajudou-nos a ver coisas que jamais veríamos… – Aprendemos grandes coisas. Ganhamos madureza e sabedoria com isso. O mal é uma versão desafiante do mal; o jogo foi bom e vencemos, temos agora o necessário para usar bem os poderes que teremos dentro em breve. – Prometo cuidar da Kiela da mesma forma que vocês cuidaram de mim… e fazer ela lavar os dentes antes de dormir. – Prometo cuidar do Lunga assim como vocês cuidaram de mim… e obrigá-lo a lavar os pés sempre que usar meias. – Tinhas que estragar o momento sério com essa piada? – Foste tu quem começou… – Mas eu… O aproximar de passos entre as grandes árvores emudeceu-o. O que seria? Animais selvagens? Não – as silhuetas que apareceram a seguir demonstraram o contrário. Eram um homem e uma mulher. Vinham de mãos dadas. O casal de crianças levantou-se. Lunga colocou Kiela atrás de si. O casal continuava a aproximar-se. Ainda eram duas silhuetas – as suas feições não podiam ser vistas. O tempo passava. Passos, silhuetas. Passos, enervamento à espreita. A tensão no corpo das crianças aumentava. Engoliam em seco. O tempo não parava. Passos, configurações. Passos, feições. Reconhecimento – o casal tinha a forma de seus pais; o casal tinha a aparência de Usuku e Braulia. Kiela intentou correr para eles. Lunga colocou a sua mão em impedimento. Sem que ninguém os pudesse ver, por causa da distância em que estavam, os cães da frota de jovens, cães selvagens, cães medonhos, aproximavam-se em impetuoso galope. O casal sorriu estranhamente. Bizarro – o corpo da mulher juntou-se ao corpo do homem a partir de suas mãos entrelaçadas; transformou-se num gigante, metamorfoseou-se em Kaculu, o Homem do Saco. O gigante tinha o olhar rubro, brilhante e arrepiante como o olhar da mais temível das bestas. – Porque proteges a tua irmã? – demandou o colossal. – Ela é mais perigosa que tu. O vosso poder é o mesmo, é igualmente extraordinário, mas a tua irmã tem mais audácia para usá-lo. Tu és mais brando, mais ponderado. Ela é impetuosa, age com a veemência do momento. – Quem és tu? – inquiriu Lunga. – Porque tentaste passar-te pelos nossos pais? – Tu sabes exactamente quem eu sou, por isso é que não acreditaste que eu era o teu pai e a tua mãe… – Não respondeste à pergunta… – Sou o vosso segundo pai, o vosso raptor, o vosso transformador. E tentei passarme pelos vossos pais para mostrar-vos que vocês estão a desenvolver habilidades extraordinárias mesmo antes de me substituírem. Lunga absorve poderes. Kiela absorve conhecimentos. Lunga e Kiela sentem a presença de qualquer personalidade, ainda que não as vejam. – Estás a confirmar que os nossos pais estão aqui? – perguntou Kiela. – Onde estão eles? Porque não se aproximam para que falemos com eles? – Tu sabes a respostas, tu sentes a resposta. Eles não podem, contudo, é para o vosso bem que o fazem. – Sentir não basta – reconveio Lunga. – Precisamos deles perto de nós, precisamos de seu afecto…
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– Sentir não basta? Sim. Mas é o mais importante. Pode parecer ilógico alguém sem poderes como eles protegerem alguém agora com poderes extraordinários como vocês, mas, entendam, eles são vossos pais, proteger-vos é a sua missão, ainda que dispensável. – Sobre que poderes extraordinários falas? – verberou Lunga. – Deixa-me fazer-te uma demonstração. Nomeie os municípios do distrito do vosso bisavô paterno em ordem alfabética, Kiela. – Cacuso, Cambundi-Catembo, Cangandala, Caombo, Kuaba Nzoji, Cunda-DiaBaze, Kalandula, Luquembo, Malanje, Marimba, Massango, Mucari, Quela e Quirima. – A minha irmã é inteligente. Ela pode ter lido isso num dos livros do nosso pai ou em qualquer outro livro. – Então deixa-me mostrar-te algo que nem o teu pai sabe. O que são mitos cosmogónicos, Kiela? E o que sabes sobre os mitos cosmogónicos deste país? – São mitos que historiam a formação do mundo e dos seres nele. Na visão de uma das culturas deste país, antes de o homem ser criado por Kalunga, aquele que não foi criado, este criou um enorme saco, um futu, cheio de nguzu, colocando nele o planeta terra com seus rios, montanhas, mares e árvores. Depois encheu o planeta com os animais, plantas e, finalmente, o homem. Seguidamente, amarrou fortemente a boca do futu e guardou para si o segredo da vida e do que há futu. Quem se ensoberbece ao ponto de achar que pode descobrir o segredo do futu, ganha fenecimento como recompensa. Ninguém pode tentar representa aquele que não foi criado sem cometer sacrilégio, visto que este não tem representação física. O homem deve então viver em harmonia com os animais e tudo à sua volta porque todos pertencem à criação de Kalunga. – Entendeste? Ou queres que eu pergunte a ela sobre o genocídio dos hereros e dos namaquas? A tua irmã está com a minha erudição e com a erudição de todos com os quais ela entrou em contacto nesta casa. Ela responde a qualquer pergunta que pareça desafiar seus conhecimentos. Sei que estais com uma leve perda de memória; não vos lembrais bem de tudo o que aconteceu, mas senti-lo. Não sois as mesmas crianças que eram há momentos. Sois incríveis agora, sois extraordinárias. E estou aqui para vos fazer um convite. – Não espere pela nossa pergunta, porque não a faremos. Se tens algo a dizer sobre este convite, di-lo sem demora… – Hoje eu tenho uma cruzada contra as ilembeketa, contra todos os seres que fizeram com que o vosso pai fosse espancado e que a vossa mãe fosse esfaqueada, contra os seres nefandos que corromperam os corpos deles e levaram o vosso pai a trocar as vossas personalidades. – Estás a incitar-nos à vingança? – Não! Estou a incitar-vos ao extermínio do mal. Vocês também terão a vossa cruzada quando se transformarem em Homem do Saco. Não querem ganhar experiência? – Se teremos a nossa própria cruzada, quer dizer que não eliminarás por definitivo esses seres nefandos. – Talvez, provavelmente. Mas com o vosso poder extraordinário, há uma grande possibilidade de o conseguirmos, ou de diminuirmos em grande parte o seu número. – Esses seres nascem dos sentimentos das pessoas. Enquanto existirem pessoas, existirão vultos e Homem do Saco.
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– Menos ilembeketa, menos caos. Elas planejam algo grande, algo terrível quando vocês se apossarem deste cargo. Não queres ter o prazer de impedi-lo ou atrasá-lo? Ajudarão muitas pessoas, inclusivamente os vossos pais. – Se pensarmos em ir contigo, nada acontecerá à minha irmã? – Se aceitarmos ir contigo, nenhum mal acontecerá ao meu irmão? – Não conseguem sentir o vosso corpo a clamar por extermínio? Vede! O Lunga tem o meu poder sobre os animais, atraiu-os até aqui por sentir a proximidade de um combate. Além do mais, vós conseguistes combater contra mim, aquele que detém o poder extremo. – Como posso ter certeza que não foste tu que atraíste os animais? – demandou Lunga, estendo a mão em acordo. – Vem comigo – disse o colossal, apertando-lhe a mão em contentamento. – Confirmá-lo-ás e presenciaremos juntos o fim dos ilembeketa. Ora, as palancas acompanhavam os movimentos de todos à distância, longe do campo de visão de todos eles.
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҃– CAPÍTULO XIX –҃҃ ●
Descoberta ●
O homem estava de pé perante uma sala de torturas. Batia vagarosamente uma chave de fendas contra sua mão áspera. Seu olhar fixava três homens amarrados, acorrentados. O som do metal contra a sua palma era seco. A batida cardíaca do trio aprisionado descompassava com sua percussão mirrada. Suavam, tinham fatos e gravatas como trajes. Pareciam – eram – homens importantes. A audição do batedor de chaves de fenda aguçou-se. Ouviu o aproximar de saltos – era uma mulher, a mulher aguardada por si. Batida metálica, batida cardíaca, pisar dos saltos. Descompasso; tensão. Um som humano rasgou a percussão. – Sim, ele está aqui – disse uma voz masculina do outro lado da porta que encerrava o batedor de chaves de fendas com o trio de homens aprisionados. Correram a porta. Era pesada e barulhenta. A mulher adentrou. Batida metálica, batida cardíaca, pisar dos saltos. A porta voltou a ser fechada. Batedor de chaves de fenda aproximou-se dela. Fez um gesto de continência. Ela levantou apenas sobrancelha esquerda. Apontando a cada um dos homens com o instrumento em sua mão, disse euforicamente a ela: – Passados três anos de incansável procura por todos os países do globo, encontrei-os, senhora presidente. Este é o apelidado de Caneta, o outro é o último dos ves Caggio, e este é o homem incomum de sobrenome Straut.
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҃– CAPÍTULO XX –҃҃ ●
Progenitor ●
A Máfia acabava de se despedir do pai de Usuku. O acenado recentemente colocou o batuque para dentro do carro e alcançou o asfalto em poucos minutos. Alguns dos soldados acompanhavam-no. Ao chegar ao seu lugar de pousada, despediu-se deles e adentrou. Sentou-se sobre o chão frio do quintal. Angustiou-se. Suas forças exauriam-se agora que estava sozinho. Era o momento de lamentar a morte de seu filho. Chorou em amargores, mas as lágrimas faltaram-lhe. Passado alguns minutos, conteve-se. Só havia uma forma de um dyala ngoma expressar correctamente os seus sentimentos. Andou até ao seu auto e retirou o instrumento de percussão. Pegou um pequeno banco e sentou-se. Assentou o chapéu de dois bicos de soba que herdara de seu pai sobre a cabeça. (Ora, tal chapéu era símbolo de autoridade entre as tribos da região a que seu pai pertencia.). Colocou pó branco na superfície do batuque com suas mãos desnudas, depois batucou com frenesi enlevado. Enquanto suas mãos surravam a pele do instrumento em transe rítmico – gotas – gotas espessas e salgadas espreitaram de seus olhos. Não escorreram, não caíram, apenas espreitaram. Continuou com seu lutuoso batucar. Avocou suas tristezas. Evocou seus sofrimentos. Convocou seus desgostos. Chorou – lágrimas caíram, desaguaram – amargamente enquanto percutia em êxtase cadenciada. Subitamente – uma aberração – uma monstruosidade gigantesca em forma de antílope passou em absurda celeridade perto de si. O homem e seu instrumento de percussão tombaram com o impetuoso vento deixando pelo colossal animal. Ainda no chão, levantou o rosto e conseguiu ver os contornos da besta desaparecendo ao longe. Levantou-se com feições admiradas, alegres. Suas lágrimas de emoção obituária transformaram-se em lágrimas de comoção bem-aventurada. Com suas mãos esbranquiçadas, limpou uma de suas faces e disse para a infinita escuridão nocturna: – E pensaram vocês que podiam controlar a mente de um dyala ngoma! Um dyala ngoma, mesmo que não saiba que o é, age como um. Sou seu pai, seu progenitor. Sei muito bem do que ele é capaz. Conheço a sua astúcia desde criança. Sei como ele pensa, percebo bem os seus passos. Usuku, meu filho, onde quer que estejas, o pai está contigo e sabe que te sairás bem. Esses seres obscuros pensaram mesmo que poderiam controlarte? Triste! Pensaram, pensaram…
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҃– CAPÍTULO XXI –҃҃ ●
Cruzada ●
A madrugada aproximava-se de sua raia – a aurora tinha pouco menos de uma hora para aparecer. O dia substituiria a noite, a claridade comutaria a escuridão. Trevas lutando contra luz – não foi sempre essa a batalha mais famosa e comum do Universo? Brilho contra negrume, clareza contra sombra, luminosidade contra obscuridade. Obscuridade? Sim – obscuridades; encontravam-se todas reunidas para um confronto titânico. Aguardavam seu aniquilamento, esperavam por seu extermínio. Seus oponentes chegaram em corpos humanos. Eram – um homem e duas crianças; eram – o trio exterminador. Formando um círculo protector à volta das crianças, estavam os cães da frota de jovens e as bestas indomáveis. Os olhos das obscuridades acendiam e apagavam em sinal de incitação, emanavam seu verde infame em sinal de brutal ofensiva. Os animais bravateavam em desafio, rangiam em prenúncio de agressiva defensiva. As obscuridades lançaram-se contra eles. As bestas atacaram-nas com garras e dentes preparados para ferir vultos. Sombras contra feras; sentimentos hediondos contra pujança animalesca. Era uma batalha de feras caoticamente racionais contra feras ordenadamente instintivas. O número de obscuridades era absurdamente superior ao de seus oponentes. Enquanto algumas lutavam contra as bestas, outras tentavam alcançar o homem e as crianças. Consideravam o negrume das paredes como trunfo para um ataque sorrateiro. Por isso, algumas estavam furtivamente coladas acima do trio. Deslizaram para baixo em ímpeto opressivo. Kaculu transformou-se em Sambu Mayala; metamorfoseou-se em Homem do Saco. Suas mãos ganharam rapidamente a incandescência de brasas. Atordoou as obscuridades com frenesi fustigador. Outras continuaram a cair – apossavam-se de seu físico colossal. O gigante com feições animalescas alastrou a incandescência por todo seu corpo. Rugiu com brio ígneo. Afastou-as com veemência causticante. Caíram em atordoamento e afastaram-se em enfraquecimento. – Será fácil demais acabar com eles – disse Lunga, sorrindo. – Não dão luta que mereça consideração. – Não estejas tão confiante, rapaz – disse a aberração superpoderosa com sua voz leonina. – Este foi apenas um ensaio do combate. As ilembeketa que os animais e eu acabámos de derrubar são as mais fracas. São as criadas por sentimentos de mesquinhez, como repugnância e indignação. O ensaio acabou. Agora vêem as mais fortes, as criadas por raiva, rancor, ira amarga, inveja, ciúme e egoísmo. Só são formadas ilembeketa desta rasoura quando a pessoa demonstra doentia e quotidianamente tais sentimentos. São poucas as ilembeketa desta rasoura, mas são perigosas. Uma vale o dez das que acabamos de derrotar. Preparem-se. A luta tomará agora contornos mais violentos. Obscuridades com contornos mais fortes apareceram. Sua escuridão era mais notável que a das outras. Era pura opacidade, pura negrura. O verde de seus olhos era mais abjecto, mais infame. As obscuridades derrubadas levantaram-se. Voltaram a formar um pelotão de contenção terrífica. As obscuridades recém chegadas misturam-se entre
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elas. Houve confusão de distinção para o trio exterminador. Ataque – o tórax do Homem do Saco foi ferozmente atacado por três delas. Desapareceram em seguida. O atacado tentou encontrá-las. Em vão, suas costas foram violentamente atacadas por outras três. Contra-atacou – em vão – atingiu apenas as obscuridades menores. Percebeu a estratégia – a obscuridades menores davam cobertura às obscuridades superiores. Rasante – duas obscuridades superiores passaram muito perto do pescoço de Lunga e Kiela. O olhar atento de três dos animais fez com que as percebessem e as atacassem e escorraço antes disso. O Homem do Saco transformou-se em Athu Nyanga, assim poderia localizar cada uma das obscuridades superiores e atacá-las com precisão. Seu corpo ganhou maior monstruosidade. Suas feições de fera ampliaram-se. Era um monstro sublime, um monstro vastíssimo. À velocidade relâmpago, descobriu cada canto onde seus novos alvos estavam. Usou seu olfacto para tal. Descobriu-os a partir da asquerosidade emanada pela hediondez dos sentimentos que as criaram. Contou-as. Pouco mais de duas centenas era seu número. Novamente, à velocidade relâmpago, lançou-se contra cada uma delas, desferindo ataques pesadamente mortais. Suas mãos estavam com a incandescência letal de Nguma Tubhya. Exterminou-as com sagacidade colérica em celeridade alucinante. Após isso, reposicionou-se ao lado de Kiela e Lunga que continuavam a comandar as bestas para derrubar as outras obscuridades. Outras obscuridades apareceram. Tinham a mesma génese, a mesma característica, daquelas que acabara de exterminar. Contou-as, recontou-as – admirou-se: dezena de milhares era o número. – Porque não chamas as tuas palancas? – inquiriu Kiela. – Poderíamos exterminálos mais rapidamente! – Não posso chamá-las, por enquanto… – Porquê? O tempo escasseia-se – vogou Lunga. – A madrugada vem aí. A cruzada terá o mesmo fim que a dos outros Homem do Saco se… – Temos algo tão poderoso quanto as minhas palancas aqui. Eis a razão de virdes comigo… – Como podes ter tanta certeza que… Um feixe de luz atingiu Kiela e lançou-a para longe. Seu disparador? A obscuridade mentora. A menina bateu contra as rochas de negrume em queda. Levantouse. Viu-se rodeada por obscuridades. Lunga correu para salvá-la, abandonando o círculo protector das bestas. As obscuridades superiores atacaram impetuosamente Athu Nyanga, impedindo-o de prestar ajuda às crianças. As sombras agarram Kiela – levavam-na para longe. Outras obscuridades cobriram Lunga. Apenas a mão estendida do rapaz para salvar sua irmã podia ser vista. Metafísico – a mão de Lunga tremia em atracção. Na verdade, era seu membro superior esquerdo, metade de seu tórax – precisão: metade de seu corpo tremia em frenesi magnético. Absurdo – as obscuridades que levavam Kiela eram atraídas para o rapaz. Metade do corpo dela também tremia, por isso, as obscuridades que impediam Lunga também eram atraídas para ela. Apenas as mãos do casal meninil podia ser visto entre os dois aglomerados de vultos. As obscuridades não conseguiam reprimir a descomunal força do magnetismo. O grupo de obscuridades repressoras do rapaz aproximava-se do grupo de sombras ratoneiras da rapariga. Choque – encontro! – as suas mãos encontraram-se, colidiram-se. As obscuridades foram afastadas brutalmente em repulsa. Os corpos das crianças acoplaram-se. Um monstro nasceu – uma aberração eclodiu de sua junção. As obscuridades foram obliteradas em celeridade estonteante. A
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monstruosidade era sagaz, concisa em seus golpes exterminadores. Desferia-os com a brutalidade aniquiladora. Seus olhos tinham a cor impassível de raios. Sua pele era áspera e impenetrável como a de crocodilos. Seu tamanho era extraordinário. Suas garras tinham a aparência de ectoplasma, mas eram selvagemmente ceifadoras. Suas feições eram absurdamente medonhas. Seus dentes eram terrivelmente gigantescos e afiados. Repetição: eliminou as obscuridades com rapidez alucinante. Ora, todo este tempo, uma obscuridade imperceptível aos sentidos de Athu Nyanga e do monstro formado por Lunga e Kiela assistia a tudo nos bastidores, aguardando uma oportunidade para atacar. Os inimigos estavam prostrados, caídos sobre o chão, mortos sobre o fétido odor dos sentimentos hediondos que os criaram. Enquanto o trio exterminador andava com brio triunfante entre os cadáveres – azagaias – fulminantes azagaias perfuraram o peito do Athu Nyanga. A aberração rugiu em animosidade amarga. Fixou seus olhos avermelhados em quem desferira tal golpe. Eram duas obscuridades diferentes, distintas. Havia sumptuosidade em sua presença e malevolência descomunal em sua abordagem. Uma brilhava com sombreado avermelhado, outra, com sombreado arroxeado. O centro do tórax do Athu Nyanga foi novamente atingido por um feixe de luz devastador. A obscuridade mentora brandira tal golpe. A dupla de obscuridades descomunais forjou outras azagaias fulminantes. Lançaram-nas contra o mesmo alvo. O monstro criado por Lunga e Kiela colocou seus punhos à frente. As azagaias penetraram seus membros superiores, mas não causaram qualquer estrago. – Sois vós inimigos à altura? – demandou o monstro, transformando as hastas em cinza. – Sinto que sois. Teremos agora um confronto mais interessante. – Cuidado – aconselhou o Athu Nyanga, obliterando as três azagaias. – Essas são as obscuridades mais perigosas. Cada uma contém o poder de centenas das últimas obscuridades. Elas são duas em uma. Portanto, é como lutasses com duzentas quando lutas contra uma delas, e com quatrocentas quando lutas com duas. Elas são criadas pelos piores sentimentos de todos: cobiça, ganância, inveja e egoísmo, por isso brilham de forma diferente. – Interessante – disse o monstro. – Venham. Dêem-me uma amostra da vossa sagacidade. Antes que pudesse articular a última palavra em sua boca desconforme – queda – as obscuridades sumptuosas fustigaram brutalmente seus joelhos, fazendo-o cair em prostração. Desumano – à velocidade fulgurante a dupla avermelhada e arroxeada trespassou suas costas com azagaias assombrosas; perfuraram seu coração. Os cães e as bestas indomáveis aproximaram-se do monstro. As obscuridades sumptuosas afastaram-se. Uma das bestas passou o seu nariz sobre os enormes dedos monstro. Continuava prostrado, inerte, inactivo. À distância, Athu Nyanga contendia epicamente contra a obscuridade mentora. Feixes de luz obscura e golpes de incandescência eram desferidos com frenesi aniquilador. Enquanto o monstro permanecia em repouso, os animais entravam em movimento. Uns devoravam os outros, engoliam-se, ganhavam enormidade carniceira no acto. O carcomer levou apenas alguns segundos. Quando terminou, sobraram apenas duas bestas, restaram somente duas gigantescas e sanguinárias feras. – O meu poder de acoplar e sentir a presença de qualquer humano é sem medida – disse o monstro, levantando-se em brio heróico. – Posso acoplar qualquer ser que eu
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quiser e usá-lo conforme a minha tenção. Posso transformar sentimentos, enfraquecê-los. Este dueto de bestas é agora incomummente bárbaro, incrivelmente pujante e carrasco. Pelo que sinto de teus poderes, elas podem destruir-te em apenas um ataque. Visto que sois puramente constituídas por sentimentos, posso enfraquecer-vos ao ponto de seres suprimidos. Por isso, o que faço? Abato-vos com as bestas carrascas? Ou enfraqueço-te até à extinção? Decidi-me…Vou acoplar-vos, vou tornar-vos em uma só. Assim se tornarão mais fortes e terão a possibilidade de me vencer. Acoplou-os; singularizou o plural de obscuridades sumptuosas. O acoplamento gerou uma obscureza poderosa, poderosíssima. Fado displicente – o dueto de bestas lançou-se contra ela e arrancou-lhe os braços com suas presas exageradamente afiadas. Rapidamente, outros braços cresceram no lugar. Consubstanciou duas belígeras azagaias em cada mão e, à velocidade absurda, atacou o monstro no rosto, no pescoço e no estômago. Ainda em velocidade absurda, fez tombar o dueto de bestas. Vendo que seus ataques não haviam tido a consequência homicida que desejara, escondeu-se no extenso breu das paredes. – Não consegues entender que as tuas azagaias não podem penetrar em meu corpo e causar-me ferimento? – demandou o monstro, enquanto o dueto de bestas se levantava e se colocava uma à sua esquerda e outra, à sua direita. O poder ectoplasmático de meu corpo faz com que estes teus ataques se pareçam a lanças tentado flagelar o vento. Eu posso tocar, mas não posso ser tocado. Firo, mas não posso ser ferido. Sois agora dois em um. Os braços arrancados por estas bestas foram os braços de um. Os que cresceram são os do outro. Se as minhas bestas voltarem a atacar-vos, nenhum outro braço aparecerá. Contudo, eu sinto os sentimentos; consigo saber exactamente onde estás – disse aparecendo de rompante onde a obscureza sumptuosa se encontrava. Apertou seu pescoço com ímpeto colérico. – Não fiques tão surpreso, também estou a descobrir estes meus poderes agora. Quanto caos causaste durante a tua vida? Quantas pessoas envenenaste em semente e lavoura para a desordem? Não vês que a vossa existência é despropositada? A partir do momento que fui criado que fostes designados à aniquilação. Vim criar uma nova era. Uma era sem vultos, uma era sem sombras, uma era em que sentimentos hediondos não façam parte do rol de sentimentos hegemónicos do Universo. Sim, os sentimentos continuarão a governar. Contudo, os sentimentos macabros que dão origem a vós serão reduzidos ao ponto de já não mais poderem vos gerar. Será entediante? Não, claro que não. Desafios continuarão a existir. Quem não se sentiria bem se ratos e baratas fossem todos exterminados? Males devem ser extirpados. O equilíbrio da vida não depende do mal e do bem, mas do bem e do desafio. Nada de tédio, nada de aborrecimento. Mas… desejas profundamente salvar-te, não? Queres muito que eu não te destrua? Fá-lo-ei – sentenciou, libertando-a. – Vai! Foge! Transforma-te em um opositor à altura e depois volte para ajustar as contas comigo. A obscureza sumptuosa afastou-se rapidamente. Inconveniente – o dueto de bestas seguiu-a em frenesim carniceiro. Os olhos do monstro ganharam coloração glacial. Subtil – ao afastar-se, a obscureza sumptuosa perdia celeridade, ganhava lentidão. O que se passava? O monstro actuava em sua natureza, agia em sua constituição – enfraquecia-a. Enfraqueceu-a ao ponto de o dueto de bestas apanhá-la com facilidade. A última coisa que viu foram os enormes dentes das bestas apoderarem-se de si em carcomer morticínio. O monstro voltou-se. Olhou para o lugar em que Athu Nyanga digladiava com a obscuridade mentora. Majestoso – Athu Nyanga já não era Athu Nyanga, mas Nguma
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Thubya, o Destruidor. Sua aparência era imponentemente soberba. Brilhava com causticidade solar. Ao seu redor – cinzas – cinzas orbitavam por causa do poder destrutivo que seu corpo emanava. Duas espadas com teor incandescente gravitavam em torno de cada membro superior seu. As espadas começavam em seu pulso, estendiam-se por seu antebraço e terminavam um pouco acima de seu cotovelo. A obscuridade mentora estava prostrada sobre seus pés, tombada em derrota. Nguma Tubhya preparava-se para desferir o golpe final. Sorrateiramente, a obscuridade imperceptível atacou o monstro. Penetrou em seu corpo, apoderou-se de seu ser. Nguma Tubhya largou a obscuridade mentora e, à celeridade absurda, bateu ferozmente seu punho contra o peito do monstro. Surreal – as espadas acompanharam o movimento do embate e trespassaram-no. O monstro rugiu em agonia. Seu olhar glacial ganhou a fluorescência do verde dos vultos por momentos, depois – explosão – a obscuridade imperceptível abandonou o seu corpo em dores. O monstro fendeu-se em dois. Enfraqueceu, perdeu suas proporções colossais e ganhou feições e físicos humanos. Agonizante – Lunga e Kiela gritavam por causa do poder causticante que a presença de Nguma Tubhya emanava. O Destruidor passou rapidamente para Athu Nyanga para que pudesse ampará-las. – O que aconteceu? – perguntou Lunga. – O que este vulto fez a mim e à minha irmã? – É uma kilembeta copiadora de poderes. Ele fez o mesmo comigo há anos. O que significa que ele tem agora os meus poderes e os teus. – E porque razão enfraqueci? – Por causa do meu poder de Nguma Tubhya. É um poder extraordinariamente destrutivo… – Podemos agora começar com o combate a sério? – inquiriu a obscuridade mentora, soerguendo-se ao lado da obscuridade imperceptível. – Apresento-vos Umbate, o mais temível dos meus servos. Foi ele quem fingiu ser o Sambu Mayala nas semanas que precederam o casamento do escritor. Foi ele quem criou a essência que corrompeu o corpo dos vossos pais e, sim, foi ele que os matou também. – O que está ele a dizer? – inquiriu Kiela. – Os nossos pais estão mortos? – Não dês ouvidos à maldade – aconselhou Athu Nyanga. – O que ele diz é sem nexo. O Umbate não é uma kilembeketa de batalha, mas de observação, de correio, de correspondência, de transposição. Ele não lutará contra nós. Quanto ao que ele disse sobre os vossos pais, lembra-te que tu e o teu irmão sentiram a presença deles na casa controlada por mim. Portanto, eles estão vivos. O tempo da cruzada acabou. Retiremonos! – Mas ainda há duas delas – reconveio Lunga, notando o dueto de bestas ao seu lado. – Porque não completamos a exterminação? – Estás fraco demais para voltar a lutar. Correrás perigo se eu me afastar de ti para combater contra uma delas. – Estas duas feras podem proteger-nos – disse Kiela. – Olha bem para elas. Começaram a desfazer-se. Dentro de momentos voltarão a ser os animais que antes eram. A permanência do acoplamento depende de ti. No estado em que te encontras, o acoplamento desfaz-se. É perigoso ficares aqui. Não sabemos quantas ilembeketa podem estar escondidas, à espera de uma oportunidade para eliminara a ti e ao teu irmão. E prometi aos teus pais que nada de mal vos aconteceria. – Tu mesmo disseste que o nosso poder é extraordinário – rememorou Kiela.
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– Sim, mas não neste momento. Acabo de perceber que as ilembeketa planejaram tirar partido desta cruzada. Seu objectivo era conseguir os teus poderes. E já o têm. Contudo, não têm ainda como usá-lo. Vamos. Demorará muito para que haja ilembeketa suficientes para causar qualquer estrago neste país. E, quando tal acontecer, sereis mais fortes ainda, pois tereis todo o meu poder. O trio exterminador começou a andar em retirada. Os cães da frota de jovens e as bestas indomáveis seguiam-nos. Antes que pudessem desaparecer do campo de visão das duas obscuridades e das outras que só agora apareciam, aquela a quem haviam atribuído o nome de Umbate, tornou-se audível articulando uma pergunta que ecoou profusamente no íntimo de Athu Nyanga. – Como raptando raptarás tu estas duas crianças com poderes capazes de te destruir?
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– CAPÍTULO XXII – ●
Ressurreição
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O tempo conjugou o seu verbo característico nas suas forma e pessoa respectivas: passou. Uma semana era o tempo que faltava para se completarem três anos desde a morte do escritor e da doutora. Os cooperadores do Homem do Saco estavam em suas casas, extasiando-se em esquecimento daquele dia insólito e nos seus quefazeres diários. A Máfia entregou para edição seis livros de Usuku, a saber: A Conservadora e a Noiva, Se Acontecesse com Humanos…, Desafio ao Amor, À Sombra de Oito Vidas, Promessa Inquebrantável e O Homem que Não Podia Morrer. A avó do escritor continuou a esquadrinhar as páginas daqueles livros, tentando prever e demover quaisquer supostas acções assassinas de Kaculu. As fotos do casal eram enviadas mensalmente a seus entes queridos. O rooming dava credibilidade as mensagens que escassas vezes recebiam do exterior a partir dos números de Usuku e Braulia. Graças à C, D, L, M e N, pareciam – estavam! – vivos. No entanto, longe do embuste da vivência e da convivência do casal com seus filhos, pais e amigos, o fulgor das personalidades do escritor e da doutora grassava em outros corpos. Corpos – que corpos? As acções que se aproximavam traziam as respostas. As sementes colocadas por Ndombaxi Canzar sobre o local onde Usuku e Braulia foram enterrados por si haviam brotado e se transformado em flora rasa. Tais sementes e seus rebentos protegiam os cadáveres – vultos não podiam apoderar-se deles desta forma. Contudo, outra pessoa partilhava da ideia das obscuridades. Keta era seu nome. Presidente da Republica era seu cargo. Enquanto Kaculu fazia os seus preparativos para o rapto de Lunga e Kiela, um enorme bulldozer riscou o asfalto em velocidade alucinante e raspou a flora rasa das campas. Dois homens com pás desceram da colossal máquina. Seu intento? Desenterrar o tão procurado casal. Aproximaram-se das campas. Perturbador – o chão tremeu. Rosnares abafados de animais medonhos foram ouvidos. Braços – um braço foi visto eclodir em cada campa. Depois – cabeças. Os corpos desfizeram-se da areia e saíram… a correr? Não! A galope, como antílopes em frenesim de corrida. Os homens tentaram pará-los. Doloroso – foram facilmente derrubados em violência frenética. As personalidades animalescas dentro dos corpos continuaram a fazê-los galopar. Iam – à procura de algo; iam – à procura de seus próprios corpos. Sua velocidade era descomunal, sua locomoção, extraordinária. Raspavam o asfalto a cada vez que o tocavam em celeridade absurda. Contudo – impedimento - uma frota de carros precedida por uma gigantesca muralha fez com que parecem em posição de aninmal encurralado. Rosnaram em busca de saída; olharam para seus interruptores com fulguração de ataque. Despique – lançaram contra os carros, galoparam sobre eles até se lançarem contra a muralha. Trágico – uma rede foi projectada por um helicóptero contra o corpo feminino. Desequlibrou-se, tombou em aprisionamento. Feroz – o corpo masculino lançou-se contra o helicóptero. Descontrolou seu piloto em tormento. A máquina rodopiou e caiu sobre alguns carros. O corpo feminino desfez-se da rede e voltou a subir a muralha em
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velocidade absurda. Contudo, deteve-se ao meio do caminho quando sentiu que o piloto do helicóptero sobrevivera e saia da pequena máquina apontando uma arma para o doroso do corpo masculino que se afastava dele à mesma velocidade. Como um relâmpago direccionado, o corpo feminino abordou o piloto em ataque derrubador. O piloto gemeu em queda. Novas redes foram lançadas contra o corpo feminino. Duas, três, quatro – aprisonaram-na. Rugiu em frenesi de escape. Impossível. Permaneceu prostrada, aprisionada. Olhou para o corpo masculino e viu-o em situação parecida – tamem hacia sido derrubado, aprisionado. Homens armados saíram do carro e electrocutaram em voltagem absurda seus corpos. Rugiram em dores – desmairam. Sem que se apercebessem, foram levados para um esconderijo no subsolo. Ora, os enormes antílopes ao lado de Kaculu sentiram o que acontecia e dirigiramse para a sagaz encruzilhada. Ele fez o mesmo – abandonou seus preparativos para o rapto e seguiu o selvagem embalar galopante. Os corpos não permaneceram desmaidados por muito tempo, mas, quando recuperam os sentidos, viram-se na posição vertical com suas mãos e seus pés acorrentados contra uma parede. Rugiram em evasão. As correntes eram fortes. Não conseguiam quebrá-las. Uma mulher observava-as. Estava sozinha. Parecia não ter medo de qualquer desfecho funesto. Insistente – os corpos continuavam a querer libertar-se. Puxavam ao máximo suas mãos para fraccionar o que as apreendia. Descomunal – puxavam com tamanho brio ferino que seus pulsos, começaram a sangrar. Sua carne rasgava. Seus ossos fragmentavam-se. Paralisante – a chegada sobrenatural dos antílopes colossais deteve-os. A mulher levantou-se. Engoliu em seco. As bestas dirigiram-se para os corpos. Apocalíptico – algo com aparência de humanos saiu de seus corpos e apodereu-se dos corpos aprisionados. Repetição do apocalíptico – algo com aparência de antílopes gigantescos saiu dos corpos aprisionados e apoderou-se de seus corpos. Restituição de personalidades – transplantação inversa. Kaculu apareceu e curou num gesto os ferimentos dos corpos. Libertou-os. Restituiu-lhes sanidade e decoro. Colocou um em cada palanca e intentou voltar a sair. Disparo – um projéctil disparado contra seu ombro esquerdo deteve-o. A mulher era a atiradora. Voltou-se – olhou para ela com menoscabo. A mulher largou o revólver. Ele seguiu o cair do arsenal metálico com o olhar. Disparos – três projécteis disparados contra seu ombro direito fizeram-lhe olhar novamente para a mulher. – Então és real – disse ela de si para si. – O que és? – Sabes exactamente a resposta a esta pergunta. É por este facto que providenciaste este aparato para que nos encontrássemos. – Se não me impediste, é porque querias encontrar-te comigo também. – Não te impedi porque és simplesmente uma humana, e estou proibido de de imiscuir nos vossos assuntos. Resolvo o sobrenatural, o impossível. O resto é convosco. – Sou a presidente deste país, não uma simples humana. Podes ter poderes sobrenaturais, mas sou eu quem manda nestas terras. Deves-me vassalagem. – Devo-te protecção quando morreres, mais nada. – Então os presidentes que me antecederam estão aos teus cuidados. Tinha as minhas dúvidas, mas certificas as minhas desconfianças com estas palavras. Preciso agora de respostas. Como foste criado? Há alguém superior a ti? O que é a Lenda de Tesouro e Tesoura? Porque razão preservas vivas pessoas importantes? O que é que elas fazem neste local em que as proteges? Se elas morrerem, o que acontecerá a este país?
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– Saberás as respostas quando estiveres lá. Há perguntas que não podem ser respondidas a quem ainda não provou ser digno para tal. Tens muito trabalho pela frente. Preocupa-te com o que te foi encarregado. Eu me preocuparei com o que me foi designado. Tu cuidas dos homens, eu cuido do que os corrompe. – Então responda-me algo mais simples: O que tens que ver com este escritor? Que relação há entre ti e ele? É por causa dele que acontecem coisas inexplicáveis neste país? – Vou-me embora agora, mulher – disse o gigante, antes de desaparecer, deixando-a em esquecimento do que havia ocorrido naquele local. – Tenho coisas emergentes a efectuar.
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– CAPÍTULO XXIII – ●
Rapto
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Cenário alegre – prenúncio de desfecho macabro – Kiela e Lunga brincavam com Marla na cozinha. Sujavam um ao outro com farinha; desordenavam o local. Após a liberação de inúmeras risadas e pintalgadas esbranquiçadas, Marla ordenou o fim da diversão infantil e inconsequente. Limparam, reordenaram o lugar. Ela foi a primeira a dirigir-se para o choveiro. Recebeu com satisfação a água fria que lhe lavava a pele sedosa. Pensou nas pessoas em seu país. Entristeceu-se por estar a passar por momentos tão alegres enquanto muitos naquelas terras sofriam. Terminou o seu banho. Dirigiu-se para a sala. Ouviu um barulho à sua direita. Seguiu o estalido. Chegou à cozinha. Viu – Lunga e Kiela estavam novamente sujando o local com farinha. Interrompeu-os em ralhete. Imperou que efectuassem a limpeza do local enquanto se vestia. Os gémeos obedeceram. Quando saiu de seu quarto e encontrou o local limpo, ordenou que tomassem banho em quartos de banho separados. Eles foram. Contudo, confluíram para as traseiras da casa e continuaram a brincadeira. Antes que pudesse descobrir que seus irmãos não cumpriam com sua ordem e que se afastavam de casa pelas traseiras, aproximou-se de uma das janelas da sala e visionou – oh! que emoção! – seus pais se aproximando. Eram – o escritor e a doutora; eram – Usuku e Braulia. Correu para eles e abraçou-os em lágrimas de felicidade. Após quase três anos de distância, podia finalmente vê-los. Gritou por Lunga e Kiela para que soubessem da tão alegre nova. Todavia, o casal de gémeos já estava longe daí, dentro de um saco especial feito de pele de cabra, o saco inibidor de poderes do raptor que jamais pediu resgate para seus reféns.
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– CAPÍTULO XIV – ●
Treinamento
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Impercetivel – alguém com corpo de homem de tamanho invulgar e outrem com corpo de mulher de tamanho espantoso corriam atrás de bestas indomáveis. Encontravam-se ladeados por uma densa floresta. Trovejava, chovia, relampagueava. Os animais corriam em escape ágil. Eles corriam em perseguição metódica. Caçavam-nos. Apanhavam-nos um a um. Alguns dos animais esquivos foram apanhados e colocados em jaulas de madeira. Outros foram direccionados a cair em armadilhas. Dois foi o número dos restantes. Eram mais vigorosos e ariscos que o restante ora aprisionado. O duo de animais dividiu-se; deixaram de correr em bando reduzido. O alguém com corpo de mulher seguiu um. O outrem com corpo de homem seguiu o outro. O animal perseguido pela mulher correu em fuga majestosa entre os arvoredos e o capim ofuscante. Ela não desistia – vinha atrás dele em ímpeto sagaz. O animal fartou-se de correr. Voltou-se contra ela; atacou-a com seus chifres sanguinários. Ela esquivou-se em agilidade. O animal voltou a aproximar-se em desferimento de marrada esmagadora. Ela sorriu. Agarrou-o ferozmente pelos cornos, tranformou-se em raio trovejante e desapareceu, levando-o consigo. O homem seguia a outra besta. Encurralou-a num precipício. O animal viu-se sem saída. Revoltou-se; atacou-o. Rolaram sobre o chão. A besta mordia avidamente o braço do homem. Caíram numa enorme lagoa. Aflitivo – o pântano era o território de crocodilos e estes acabavam de lançar-se à água. Houve uma grande luta. Homem contra besta. Besta contra crocodilos. Crocodilos contra homem. O aparecer de uma enorme cauda derrubou muitos dos crocodilos. Foram projectados para fora da lagoa. Voltaram para à água pantanosa mais fugazes, mais ferozes. O homem lançou a besta para fora do pântano. Esta correu em escape logo que atingiu o chão. O homem transformou-se num réptil parecido aos crocodilos. No entanto, diferenciava-se por causa de seu tamanho extraordinário. Os crocodilos afastaram-se de si em deferência. Saiu da água em extrema velocidade. Transformou-se novamente em homem ao alcançau a besta, derrubou-a e lançou-a para dentro de uma jaula de madeira. – Muito bem – disse uma gigantesca mulher, aproximando-se dele na companhia de um homem com o mesmo tamanho. – Estás a usar os teus poderes com maior perícia a cada treino, Muntu. Tens agora de aprender a resolver as coisas sem usá-los. – Se tivesses dito que o treinamento era para ser feito sem poderes, fá-lo-ia de olhos fechados, Wanga – pavoneu-se em vénia. – És Bangão até na língua – disse o gigantesco homem. – Talvez não resistises mais de meio minuto sem os teus poderes. – Porque razão treinaríamos sem os nossos poderes, Kitexi? – inquiriu aquela que se transforma em raio. – Apenas por diversão? O nosso trabalho envolve lutar contr o sobrehumano. Quanto mais dominarmos os nossos poderes, maior desenvoltura ganharemos em combate.
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– Tens de entender que treinar sem poderes sobrehumanos resulta em ganhar outros poderes, Hoji-ia-Muhatu – disse Wanga. – O que queres dizer com isso? – perguntou a outra. – Responderei a isto mais tarde – continuou ela. – Agora eu e o meu irmão temos de ir auxiliar o Kaculu. Ele acaba de raptar o Lunga e a Kiela. – Wasaluka! – exclamou Muntu. – Não é cedo demais? O rapto não devia ser feito dentro de três semanas ou duas? Como é que ele conseguiu raptar aquelas crianças que têm os poderes de todos nós, inclusivamente os do Homem do Saco e das palancas dele? – O Kaculu achou por bem antecipar-se. Não podemos arriscar-nos quanto as acções dos vultos. Agora que aquele a quem eles chamam de Umbate tem os poderes extraordinários daquelas crianças, não sabemos o que pode acontecer. E a volta do Usuku pode significar forte impecilho para os nossos propósitos. O Homem do Saco e nós temos uma saca que é inibidora de poderes sobrehumanos. A saca é usada expecialmente para o rapto das crianças que nos substituem e, em caso de pura necessidade, pode tornar-se numa arma contra os nossos inimigos. – O Usuku é apenas um simples humano. Como pode ser um impecilho para pessoas como nós? – Não sabemos o que ele e a Chiange andam a cogitar sobre a defesa de seus filhos. Além do mais, ele tem agora o poder de libertar monstruosidades dos sentimentos das pessoas. Se ele libertar monstruosidades a partir dos sentimentos daquelas crianças, algo muito parecido ao Nguma Tubhya será criado. – Nguma Tubhya? O Destruidor? Não é uma lenda a existência desta aberração? – Não, não é. O Homem do Saco é o Nguma Tubhya original. Vocês não têm de se preocupar em lutar contra ele. É um ser do bem, mas o seu poder é estrondosamente destrutivo. Mesmo que ele não te ataque, estar diante da presença dele pode causar morte instantânea. Ele tem quatro espadas afogueadas, duas em cada braço. São as espadas da execução. Nada resiste ao seu corte. Mas isto é apenas um milésimo de seu poder. Pouco se sabe sobre as capacidades destrutivas de Nguma Tubhya. O que se tem certeza é que ele é imparável, imbatível, exageradamente aniquilador. E um monstro híbrido criando a partir dele poderia causar o caos em poucas horas neste país sem que nós mesmos pudéssemos detê-lo. – A solução mais sabia não seria acabar com o escritor para que tal não acontecesse? – dardejou Muntu. – Ou poderiam retirar de seu corpo tal poder – suavizou Hoji-ia-Muhatu. – O Kaculu convenceu-se que tal não acontecerá – explicou Kitexi. – Por isso, não tocamos mais no assunto. – Algo que ameaça a segurança de todos nós… Como podem vocês ficar de braços cruzados num assunto tão fulgurante? – verberou Muntu. – Somos arautos dele, devemos-lhes vassalagem – disse Wanga. – E, além do mais, ele tem o poder de saber de tudo. Portanto, devemos crer que ele tem razão. Ou que tem uma solução preparada se tal acontecer. – Wasaluka! – continuou o outro em depreciação. – Mas vocês são sábios. Se estão tão calmos quanto a este assunto é porque também devemos ficar calmos. – Não há alguém a quem o Homem do Saco presta contas? – divagou Hoji-iaMuhatu. – Não há ninguém maior que ele? Um género de supervisor? – Há, mas falaremos sobre assunto mais tarde. Agora temos de ir.
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– Nós vamos convosco… – Não! Nós, como seus arautos, temos de prestar vassalagem ao novo Homem do Saco e auxiliar o antigo no ritual de transformação deste.Vocês ficam aqui. Nós vamos ter com o eles. Como já vos dissemos há alguns meses, isto é algo que apenas eu e o meu irmão podemos participar.
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– CAPÍTULO XXV – ●
Génesis – eclosão
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– Kiela e Lunga – chamou Marla, entrando para a casa com Usuku e Braulia. – Venham ver a surpresa que tenho para vocês! – Devem estar ocupados com qualquer coisa – sussurrou Braulia. – Devem estar a destruir qualquer coisa – refez a outra. – Kiela? Lunga? – Deixa que nós mesmos façamos a surpresa a eles – disse Braulia. – O Lunga não está no quarto dele… – Nem a Kiela no dela… – Não oiço água escorrer do quarto de banho… A procura pelas crianças no interior da casa demorou alguns minutos. Usuku teve a ideia de procurá-las no exterior. Saiu pelas traseiras. Alcançou a rua. Escuridão era o que mais se via. Pouca iluminação, pouca sonorização, nenhuma presença humana. Parecia o dia em que teve de correr em salvamento de sua filha por causa de dois selváticos cachorros que a perseguiam. Andava no meio do asfalto. Novamente aquela sensação de vazio, novamente aquela sensação de perda. Andou em preocupação. Pela primeira vez, chamou o nome de seus filhos. – Lunga! Kiela! A mãe e o pai estão aqui. Não têm de se esconder. O chamado trazia agonia, acarretava temor. Apressou o passo. Vasculhava cada canto escuro, basculhava entre o intangível véu nocturno. Não se apercebia que sua esposa vinha atrás de si. Continuou a andar. Ouviu o aproximar de um carro. Tentou arredar seus pés da estrada, mas o passar acelerado e desestabilizador da máquina fê-lo cair sobre o asfalto. Sua esposa gritou seu nome. Aproximou-se dele correndo. O auto parou. Um homem fardado desceu dele. Freitas Zozi-Pó era seu nome. Acertou Usuku e Braulia com um projéctil que os fez perder os sentidos. Andou até a parte traseira do auto. Abriu as portas do mesmo. Com a ajuda de alguns homens, retirou de dentro dele cinco corpos e seis cadeiras. Entre os corpos estavam – inimaginável! – Natércia Tchivela, Lino Tchiva, o homem com pseudónimo Cazenga, Daniela Canzar e Lino Tchiva Júnior. Formou um círculo com as cadeiras e colocou os corpos sentados sobre elas. Ora, Usuku também fora colado numa das cadeiras, ao passo que Braulia fora colocada no interior do auto. Passou uma substância sob seus narizes. Despertaram. – Caros compatriotas – começou Zozi-Pó a discursar. – Estamos aqui reunidos para revelar algumas verdades ao nosso digníssimo escritor. Quem quer ser o primeiro? Ninguém? Onde está o espírito de voluntariedade dos jovens? Onde está a disposição imbatível dos adultos? Vamos a voto? Abstêm-se todos? Lamento, não há abstenções neste caso. Natércia Tchivela, porque não contas a ele que pretendes terminar o trabalho que começaste com a Braulia? – O que está este ser sem sentido a falar? – zombou Lino Tchiva. – Meus ouvidos não têm tempo para encher-se de asneiras. Como viemos parar aqui?
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– Ó tu, Tchiva das armas! Pretenso assassino de Usuku e exterminador de sua família! Porque te aquietaste por tanto tempo? Porque não constas ao Usuku que conseguiste matar duas mulheres da Máfia? – Este homem não está a fazer qualquer sentido no que diz – vogou Natércia Tchivela. – Temos de fazer-lhe um favor. Vamos acabar com sua insanidade entregandolhe À morte. – Matar-me? A mim? Olhem para a vossa situação, pretensos assassinos! Consegui ter-vos sob as minhas mãos em três tempos. Fáceis de pegar, fáceis de derrubar. Vocês não são nada perto de mim. Nem este Cazenga, o aclamado como mais temível dos temíveis nas histórias destes trastes. – Tiveste a ajuda dos vultos para nos apanhares – disse Daniela Canzar. Eles usaram a maldade em nós para nos conduzir a uma cilada, à tua cilada. Apanhaste-nos assim. És reles, biltre, insignificante. Jamais apanharias alguém como a minha mãe. Quanto mais o Cazenga! – Sabias palavras, rapariga! Sábias até demais. Acertaste. Apanhei-vos por causa dos sentimentos maus em vocês. Ao entrarem em contacto com os vossos pais naquele dia, os vultos puderam introduzir corrupção indecifrável pelo Homem do Saco. Quem está corrompido pode facilmente ser comandado pelos vultos. Aproveitei-me disso e apanhei-vos. Agora estão aqui, para que o escritor faça vingança. Ele ficou longe por quase três anos. Não sabe das coisas que realmente aconteceram. Cazenga, declara-te culpado pela morte da avó dele! Não podes falar, pois não? Atei-te a boca porque tens a fama de matar pessoas à dentada, mesmo estando acorrentado. Mexa a cabeça em sinal de concordância. Mataste a avó do Usuku. Sim? Não? O olhar fulminante de Cazenga auspiciava terror, não concordância ou desconformidade. – Porque não dizes nada Usuku? – disse, apertando o pescoço do escritor com veemência. – Não sentes uma vontade animal de te vingares destes vagabundos? Tenho a arma aqui. Basta que digas que a queres usar e eu solto-te e entrego-ta. – Gente estúpida projecta planos estúpidos – disse o escritor em displicência. – Não penses que estive morto este tempo todo. Sei de tudo que aconteceu durante estes anos. Acompanhei tudo de perto. Nada aconteceu à minha avó ou à Máfia. O que estás a tentar fazer? Desperdiças teu tempo com isso. Liberta-os. A tua guerra é comigo. – Oh! O pretenso redentor falou – disse, atacando violentamente o rosto de Usuku. Não queres matá-los? Então preferes que eu entregue o revólver ao Tchiva das armas e ele te faça mais alguns buracos no corpo. Não te lembras que ele tentou te matar por afogamento? Não te lembras que ele ameaçou a segurança dos teus filhos? – Não lhe dês ouvidos, Usuku – avisou Daniela Canzar. – Ele está a tentar criar fortes emoções em ti para que libertes cinco monstruosidades a partir dos nossos sentimentos. Se o fizeres, será o fim de tudo! Nem os teus filhos estarão seguros. – Vamos ver se o insensível permanece intacto com esta surpresa – disse, tirando Braulia do carro. – Olha bem para a tua esposa, diz boa noite. Agora diz adeus. Disparo. Ouviu-se um disparo. Viu-se uma extensa fumaça e Braulia caindo sobre o chão. Houve uma comoção nos sentimentos de Usuku. Seus filhos não apareciam e agora sua esposa acabava de ser morta. Suas batidas cardíacas aceleram-se. Era como seu coração batesse fortemente contra suas costelas. Sentiu dor. Seus olhos esverdearam-se. O verde dos vultos. Com a cabeça abaixada e olhando para si mesmo, Usuku libertou
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uma monstruosidade de seus sentimentos. O despertar da monstruosidade fez com que levantasse o rosto e olhasse para as outras pessoas. – Acalma-te Usuku, pediu, Daniela Canzar. Olha bem para a Braulia. Ela não está morta! Não há sangue. E ela está a respirar… Conjectura tardia. A monstruosidade dos sentimentos do corpo de Lino Tchiva e de Usuku já haviam sido libertadas. Usuku tentou conter-se. Enquanto isso, Canzega libertou-se. Freitas Zozi-Pó e os homens com ele fugiram. A monstruosidade no corpo de Natércia Tchivela foi libertada. Cazenga colocou seu corpo gigantesco à frente dos corpos de Lino Tchiva Júnior e Daniela Canzar. A monstruosidade do corpo do gigante foi libertada. Quatro era o total de monstruosidades. Braulia despertou. Viu seu marido transtornado. Correu para ele. Usuku desviou o olhar. Não quis libertar uma monstruosidade dos sentimentos de sua esposa. Sabendo que ela fora um Homem do Saco, não se sabia que poder poderia ter tal aberração. Usuku concentrou-se. Atraiu as monstruosidades para si, para seu peito. Tentava aprisioná-las. Elas estavam a ser sugadas para seu peito. Entravam em seu tórax. Apocalíptico – as monstruosidades romperam o peito de Usuku, não como quatro ou cinco, mais como uma apenas, cinco vezes maior que cada uma delas. O poder de aprisionar era, na verdade, de aglutinar, de tornar o plural destruidor em singular. A besta era horrível, macabra. Passou rasante, deixando leves queimaduras na pele de todos e desapareceu.
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– CAPÍTULO XXVI – ●
O raiar de conjecturas
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A Presidente da República estava atordoada, zonza. Não se lembrava – do que acontecera naquela sala; não se lembrava – porque razão estava aí. Dirigiu-se até a porta e premiu um botão para que pudesse sair. Ora, enquanto o enorme portão metálico deixava aparecer a saída e seu corpo de soldados adentrava, todos os ecrãs no local foram ligados. Voltou-se para ver que imagens ocupariam seu campo de visão. Ridículo – as imagens mostravam a si mesma conversando com as paredes e disparando quatro vezes contra elas. Não conseguia lembrar-se que aprisionara os corpos de Ngoma Usuku e sua esposa naquele lugar. Não se lembrava dos monstruosos antílopes que apareceram a seguir e esquecera-se que falara com o ser lendário que procurava por anos. – Volta a passar as imagens – ordenou friamente, sem proferir qualquer nome. Um dos soldados correu para os teclados e cumpriu com a ordem em celeridade. As mesmas imagens quixotescas foram passadas. Monólogo, quatro disparos, monólogo. – Passa-as lentamente – voltou a imperar. O caricato continuou a parecer caricato nas imagens: Presidente falando sozinha, disparando uma vez contra as paredes em seguida, largando o revólver depois, disparando três vezes com outro revólver em sucessão e voltando a conversar sozinha. – Passo-as mais lentamente agora? – inquiriu o soldado, olhando para a mulher. Seu olhar sério demonstrou consentimento. O passar das imagens foi repetido, mas, desta vez, houve algo suspeito no ridículo. Foi notado que os projécteis disparados não atingiram as paredes, mas ricochetearam no ar. Absurdo! Nada ricocheteia no ar. Não há elementos suficientes no vácuo para que matéria em movimento colida contra eles e não avance. Contudo, tal pode acontecer se o que parece ser vácuo não for realmente vácuo, mas um objecto imperceptível à visão a olho nu. – Tragam-me o «Caneta», o «ves Caggio» e o «Straut»! – ordenou com veemência. Sua ordem foi cumprida com celeridade. Os três homens foram trazidos à sua presença. Continuavam acorrentados e trajando fato e gravata. – Sei que um de vós consegue fazer impossibilidades com informática. Quem sabe ser o tal, avança e mostra-me o que impediu essas balas de alcançarem as paredes. Realizar este meu pedido significará apenas bem para os três. Os três homens entenderam a ameaça implícita. Entreolharam-se. Um deles, aquele que era incomum e chamado de Straut, avançou para os teclados, pediu ao soldado que retirasse um pequeno dispositivo escondido nas costuras de sua gravata e o conectasse a uma das entradas da máquina. O soldado fê-lo. O homem incomum mexeu nas teclas por extensos minutos. Quando terminou, a imagem que construíra a partir dos reflexos dos projécteis embatendo contra o suposto vácuo criaram temor à expectante assistência. Antes de sair carregando um sorriso de satisfação nos lábios e ordenar que se desse tratamento hospitaleiro aos homens aprisionados, a mulher disse calmamente:
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– O Homem do Saco existe, e poderemos encontrá-lo através do escritor Usuku. Contudo, agiremos como mortos por enquanto, pois penso ser provável que ele tenha o poder de causar amnésia a quem o aborda.
♣ O covil de obscuridades estava em alvoroço. Era como se festejassem. Sentiam que seus objectivos obnóxios seriam finalmente atingidos; o desejo de outorgar caos às pessoas do país a que pertenciam seria finalmente alcançado. Todos os que lutaram contra si quando eram ainda humanos pagariam com sua própria vida. O Mal demonstraria ao Bem que as vitórias deste foram apenas etapas para que aquele pudesse triunfar opressivamente na batalha final. – Chegou o momento de eu vos presentear com a realização do vosso desejo mais latejante – disse a obscuridade mentora. – Eis a nossa guerra! Eis a nossa causa! O nosso aliado mais forte vem aí. A nossa criação mais poderosa aproxima-se deste local. Contudo, embora ele seja muito poderoso, precisaremos auxiliá-lo na luta contra o Sambu Mayala. Por isso, pedirei ao Umbate que transforme duas de vocês em uma. Assim ficarão mais fortes. Desta forma, seremos reduzidos a metade do que já somos, mas seremos mais extraordinários em poder. Além do mais, a metade das centenas de milhares que somos agora também corresponde a centena de milhares. Portanto, continuaremos em número elevado! Umbate, fortifique o nosso exército! A obscuridade convocada realizou o desejo da obscuridade mentora num gesto mirrado. Singularizou o extenso plural de obscuridades militantes – uma juntou-se a outra, tornando-se numa obscuridade de maior magnificência Houve novamente um alvoroço. Sentiam-se preparadas para o decisivo combate que se aproximava. A espera por seu aliado mais forte logo acabaria, pois este se aproximava em celeridade absurda do local. Ora, as obscuridades militantes sabiam que o plano da obscuridade mentora envolvia um aniquilamento em massa, só não sabiam que elas mesmas seriam a massa aniquilada.
♣ O corpo de Lunga e Kiela já havia passado pelo tortuoso ritual de perder todo o tecido dérmico, muscular. Voltavam agora a ganhar feições humanas. Levantaram os olhos e viram três seres gigantescos discutindo à distância. Não se percebia totalmente o que falavam, mas as palavras «Nguma Tubhya híbrido» e «caos iminente» foram percebidas. Minutos depois, o trio contundente desapareceu. O casal de crianças levantou-se. Retiraram o pesado manto que as cobria enquanto andavam e inspeccionavam o local. O aparecimento repentino de um casal de adultos surpreendeu-os.
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– Vocês devem ser o novo Homem do Saco – disse a mulher. Hoji-ia-Muhatu era seu nome. – Contudo, achei que já estivessem corpo de adultos. – Vai levar algum tempo para a metamorfose acontecer – avocou o homem. Muntu era o que lhe chamavam. – Será que com estes corpos de criança conseguirão participar da grande pugna? – Sobre que pugna falam? – demandou Lunga. – Vocês deviam saber a resposta melhor que nós – rotulou a Hoji-ia-Muhatu. – Como novo Homem do Saco, deviam saber de tudo que acontece. – Eles foram transformados recentemente. Dá-lhes algum tempo, irmã. Os poderes aparecem aos poucos, assim como aconteceu connosco. Mas sei que eles conseguem sentir qualquer presença. Não devem ter entendido que a presença macabra que sentem à distância é do Nguma Tubhya anómalo. Algo totalmente destrutivo foi criado, caro Homem do Saco. Eu e a minha irmã achamos que Homem do Saco, o Kazumbi e o Jacaré Bangão não estão não conseguirão parar esta ameaça… – Por isso vieram ter connosco – continuou Kiela – achando que a historias que houve sobre os nossos poderes extraordinários são reais. – O que disseste é parte da verdade, não toda a verdade – respondeu Hoji-iaMuhatu. – Há ainda a informação de que o monstro foi criado pelas ilembeketa através dos sentimentos do vosso pai e de outras três pessoas. O Nguma Tubhya híbrido, como já foi dito, é unicamente feito de sentimentos e, temos a desconfiança que vocês, filhos de parte daquilo que o criou, possam ter alguma influência nele. – É apenas uma desconfiança mesmo – disse Lunga. – O monstro é realmente poderoso e impiedoso. Consigo sentir isso daqui. E pelo que sinto dos poderes do Homem do Saco, do Kazumbi e do Jacaré Bangão, ele tem uma ténue oportunidade de os vencer. Por isso, vamos! Só teremos o que perder se não participarmos desta luta.
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– CAPÍTULO XXVII – ●
Confronto
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Cenário assombroso: escuridão absurda, luar inexistente, densa névoa, olhares fluorescentemente esverdeados amotinados. Emanando luz própria de seu corpo, um ser apareceu à frente do que parecia ser a entrada daquele lugar medonho. Tinha as feições de Usuku e sorria com maldade visceral enquanto andava. – Seja bem-vindo! – saudou o anfitrião, situado a extensos metros da entrada. – Vejo que até os poderes de nos localizar possuis. És uma excelente criatura, uma magnífica criação! O ser não pronunciou som em resposta. Continuou andando entre os olhares fluorescentemente esverdeados com maldade visceral em seu sorriso. O número de olhares era de centenas de milhares. Estavam todos dispostos em grupos repartidos, como batalhões de guerra. Sentia a excitação dos entes que o ladeavam, pressentia o caos que poderiam causar. Ora, o anfitrião era a obscuridade mentora e o local em voga era o covil dos vultos. – Tenho tudo preparado para ti – continuou o anfitrião. – O que tens tu para mim? O ser parou. Tornou-se audível, não com palavras articuladas, mas com o bater lento de suas palmas. Bateu-as cinco. A cada vez que uma palma encontrava a outra em colisão, o ser trocava de feições. Primeira colisão, Ivone Tchivela. Segunda colisão, Lino Tchiva. Terceira colisão, homem de pseudónimo Cazenga. Quarta colisão, Ngoma Usuku. Quinta colisão – oh! terrível visão! Repetição: Quinta visão – Nguma Tubhya híbrido. Era um ser astronómico. Tinha o rosto pior que o de todas as bestas conhecidas. Seu olhar brilhava com um escarlate de chacina. Enormes catanas efervescentes gravitavam à distância milimétrica de seus antebraços e pernas de tamanho fabuloso. Oito era o número das catanas; duas em cada antebraço, duas em cada perna. Todo o seu corpo de medida sobre-humana era incandescente e malhado com negrume. O ser fabuloso estendeu a mão em apontamento. Seu dedo descomunal tinha a obscuridade mentora como alvo. Uma das catanas efervescentes desprendeu-se de seu antebraço e atingiu ferozmente o marco desejado. O teor incandescente da lâmina ganhou tons de negror, enquanto a obscuridade mentora ganhava tons de epiderme humana. Quando a catana voltou para seu possuidor totalmente enegrecida, o alvo atingido tinha já corpo e feições de homem. A lâmina voltou a gravitar sobre seu antebraço lendário. Os tons de negror passaram para a sua pele incandescente e malhada de negrume. Seu olhar demonstrou prazer alimentício por momentos, depois brilhou em ardor esfomeado. – Tudo está à tua disposição – disse a obscuridade mentora transformada em homem. – Sirva-te a teu bel-prazer. O ser fabuloso voltou a sorrir com maldade visceral. E, apontando para os três maiores batalhões entre a tropa de obscuridades, disse em tom sussurrante: – Mbolo… mbolo… menha!
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– Fomos traídos! – gritou uma das obscuridades. Ora, seu nome era Ngamba, a mesma obscuridade que chamara Umbate minutos antes de este ter recebido a ordem de levar a cabo o plano de execução contra Usuku e Braulia. Seu grito de aviso foi tardio. O ser fabuloso já tinha libertado as suas oito catanas e estas sugavam o negror dos batalhões, não para transformação humana, mas para servirem de alimento para seu possuidor. Houve um tremendo alvoroço entre o pelotão de obscuridades. Pânico, agonia – aquele que devia ser o seu aliado mais potente era na verdade, seu predador, seu devorador, seu aniquilador mais causticante. As lâminas das catanas voltaram ao seu possuidor absurdamente carregadas de negror. Repousaram à distância milimétrica de seus antebraços de pernas e gravitaram em brio alimentício. Seus olhos se fecharam em êxtase por instantes, depois reabriram-se em teor atacante. Suas pupilas disformes estavam fixadas em Umbate e nas obscuridades sumptuosas. – Não! – disse a obscuridade transformada em homem. Tchimba era seu nome. – Não podes comer a estes. O Umbate é poderoso demais para que eu o perca agora, e estes dois são necessários para resolver problemas futuros. – Não entendendo entendes? – demandou Umbate. – Deve ser porque agora és apenas humano. Ele olha para nós, mas não para nos ver. Ele olha para nós porque o Nguma Tubhya original acaba de chegar. Tchimba levantou os olhos e visionou estarrecido um trio de gigantes extraordinários. Eram monstros, aberrações, e cada uma parecia estar no auge de seus poderes. Um tinha uma presença ígnea majestosa. Outro tinha feições e corpo extraordinariamente hiperbolizados de jacaré. O último tinha presença ainda mais atemorizante – tinha a característica dos piores pesadelos que a mente humana pode conceber e seus olhos soltavam raios dissipadores. O ser fabuloso encarou-os. Em velocidade alucinante, lançou suas catanas contra a trilogia de monstros. Em celeridade absurda, o óctuplo de lâminas voltou para si, três dentre elas transportando uma ténue linha da essência dos subtilmente atingidos. Com pompa examinadora, preparou-se para passar lentamente as catanas sobre seus antebraços e oferecer um diagnóstico com sua voz destoante. Passou a que atingiu Nguma Tubhya. Diagnosticou: – Kimbolo… Passou a que atingiu Kazumbi. Diagnosticou: – Kimbolo… Passou a que atingiu Jacaré Bangão. Diagnosticou: – Kimenha… Sorriu com maldade visceral. Lançou-se contra eles em ávido frenesim. Confronto épico. À visão de alguns, aquela era a pugna entre um predador e suas mais apetecíveis presas. À visão de outros, aquele era o combate entre exterminadores e uma imponente praga. Incandescência sublime, raios dissipadores e força bruta contra fabulosa incandescência malhada de negrume. Havia intenção ceifeira nos ataques; existia vigor esmagador no desferimento dos golpes. Incendiaram-se, electrocutaram-se, colidiram-se. As espadas ígneas de Nguma Tubhya, os relâmpagos aniquiladores de Kazumbi e os golpes pesados de Jacaré Bangão acometeram o ser fabuloso. Ele, por sua vez, acometeuos com seu conjunto de catanas subtis.
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A trilogia de monstros não se apercebia que seus poderes eram absorvidos a cada ataque seu e a cada contra ataque dele. Os poderes do ser fabuloso eram astronómicos, incalculáveis e capciosos. Conseguia enganar seus adversários, fazendo-os sentir que digladiavam com o máximo de suas forças, quando, na verdade, as perdiam. O combate delongou-se. As lâminas das catanas continuavam a absorver os poderes do trio de exterminadores de forma imperceptível. Os poderes do ser fabuloso ganhavam maior indeterminação de cômputo. A trilogia de monstros exauria-se imperceptivelmente. O combate teve uma pausa. Derribamento – seis das catanas conseguiram derrubar os exterminadores. Cada um do trio ficou prostrado sobre o chão, tendo duas lâminas apontadas contra si individualmente; uma direccionada para sua jugular, outra ameaçando seu coração. O ser fabuloso pegou o dueto de catanas restantes e partiu para o decepamento. Espantoso – as seis catanas afastaram-se da trilogia de monstros, transformaram-se em uma só e bateram ruidosamente contra o tórax do ser fabuloso. Tombou em displicência. Seu tórax deixou esvair um pouco de sua essência em dores – sangrou incandescência malhada com negrume. Retirou o enorme sêxtuplo de catanas singularizado de seu peito. Regenerou-se em brevidade e levantou-se atordoado. Olhou para quem havia enviado suas próprias lâminas para o lacerar. Visionou duas crianças em posição de diferimento de golpe e um casal de gigantes ao seu lado. Reconheceu as crianças: eram filhas do homem cujas feições usara para entrar para aquele local medonho. Desfez o sêxtuplo de catanas singularizado e posicionou uma lâmina em sua perna esquerda, uma lâmina em sua perna direita e duas lâminas em seu antebraço esquerdo. As quatro restantes orbitavam em seu braço direito que agora estava estendido com o dedo apontando para o quarteto de resgatadores. – Kota dyame, kota dyame – disse, chamando individualmente Lunga e Kiela de seus irmãos mais velhos. Kiela correu para ver o estado da trilogia de monstros. O ser fabuloso entendeu tal acção como um provável ataque contra si. Em calmaria assassina, projectou uma de suas catanas na direcção da rapariga. A lâmina vinha em velocidade furiosa e subtil na sua direcção. Lunga visionou o aproximar do objecto efervescente de sua irmã com furor. Como a salvaria? O objecto avizinhava-se com celeridade alucinante. Extraordinário – Lunga gerou magnetismo em metade de seu corpo. Tal acção fez o magnetismo no corpo de Kiela eclodir. Seu físico foi atraído para o físico de seu irmão, afastando-a desta forma da lâmina efervescente. A catana bateu contra o chão e o rachou absurdamente. Fantasmagórico – houve colisão estrondosa entre os corpos das crianças. Um monstro irrompeu daquela colisão. Um monstro sagaz, uma aberração com caris imparável, uma fera com características imbatíveis. O casal de gigantes também ganhou características colossais e assombrosas. O homem ficou com corpo e feições extraordinariamente hiperbolizados de jacaré. A mulher adquiriu configurações dos piores pesadelos da mente humana, emanando raios dissipadores de seus olhos. O quarteto transformou-se em terceto. O ser fabuloso sorriu com maldade visceral. Três parecia ser o seu número preferido para combate ou alimentação. Lançou o seu trio de catanas subtis em velocidade absurda e estas voltaram a si com a mesma celeridade. Novamente, com pompa examinadora, preparou-se para passar lentamente as catanas sobre seus antebraços e oferecer um diagnóstico com sua voz destoante. Passou a que atingiu o novo Homem do Saco formado por Lunga e Kiela. Diagnosticou: – Kimbolo…
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Passou a que atingiu o novo Kazumbi. Diagnosticou: – Kimbolo… Passou a que atingiu o novo Jacaré Bangão. Diagnosticou: – Kimbolo… Voltou a sorrir com maldade visceral. Seus novos adversários eram extraordinariamente poderosos; tinham os três um nível absurdo de poder. A refeição seria aprazível. Lançou-se contra o trio resgatador em ímpeto devorador. Saga titânica – o ser fabuloso foi atacado com fereza opressiva. Contra-atacou com o mesmo furor. Digladiavam com cólera descontrolada. Atingiam-se esmagadoramente, mas não se cansavam. O poder enfraquecedor do ser fabuloso começava a agir no novo Kazumbi e no novo Jacaré Bangão. Contudo, tal não acontecia com o novo Homem do Saco, por causa de sua natureza enérgica amalgamada. Entrementes, a primeira trilogia de monstros começava a regenerar-se e a recuperar os seus poderes. O ser fabuloso conseguiu crivar o novo Homem do Saco numa parede de negrume com quatro de suas espadas. Continuou a digladiar contra o novo Jacaré Bangão e o novo Kazumbi até os poderes destes estarem absurdamente exauridos. Crivou-os sobre o chão com duas de suas lâminas, enquanto preparava para desferir o golpe mortal com o dueto restante. Em extremas dores, o novo Homem do Saco conseguiu atrair para si a saca inibidora poderes de Nguma Tubhya e acoplá-la à sua. O resultado foi uma saca de tamanho descomunal. Tudo a seguir aconteceu com indefinida rapidez: O novo Homem do Saco atraiu para si as oito catanas do ser fabuloso e acoplou-as. Nguma Tubhya levantou-se e apanhou suas quatro espadas contra o seu sósia híbrido. À velocidade relâmpago, o novo Homem do Saco lançou a saca acoplada contra o ser fabuloso. Este desviou-se em celeridade alucinante do objecto projectado. No entanto, por míseros milésimos a saca havia tocado em seu tórax e foi neste local onde as quatro espadas de Nguma Tubhya e óctuplo de catanas singularizado pelo novo Homem do Saco atingiram. O ser fabuloso gritou em agonia. Seu corpo criou uma luz cegante e desapareceu. Kazumbi olhou para o local onde deviam estar as obscuridades sumptuosas e a obscuridade imperceptível e notou sua ausência. – Acabou? – perguntou o novo Jacaré Bangão. – Sim – respondeu Nguma Tubhya. – Triunfamos graças à vossa impetuosidade. – O que se passou? – inquiriu o novo Kazumbi. – Porque vocês mesmos não venceram aquele Nguma Tubhya irregular? – O Kazumbi e o Jacaré Bangão estão a passar os seus poderes para vós há três anos – continuou o outro. – Eu estou a passar os meus para o Lunga e a Kiela há quase duas horas. Estamos a perder impetuosidade. E aquele Nguma Tubhya anómalo tem o poder de enfraquecer os seus adversários. – E como pode ele ser tão poderoso? São os sentimentos de pessoas normais que os criaram, não os de seres superpoderosos... – Tendes o dom das perguntas – anuiu calmamente o insistentemente inquirido. – Nunca subestimes o poder da primogenitura. Um primogénito que ganhava os poderes que ganhastes é assoberbado em força. O Lunga e a Kiela são raridades. Ambos são primogénitos. Imaginem o poder que resulta disso! Tendo como excepção o Usuku, aquele Nguma Tubhya é o resultado dos sentimentos hediondos de primogénitos.
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Somando esta particularidade à corrupção gerada pelos ilembeketa e sua essência criadora, o resultado é este presenciado por vós. – Pensamos que o Nguma Tubhya híbrido seria formado pelo Lunga e a Kiela – revelou Kazumbi. – Quão tolos fomos! O desastre veio de uma fonte impensável. – Os ilembeketa estão cada vez mais algozes, mais astutos – classificou Jacaré Bangão. – Ainda bem que a maioria foi dizimada pelo monstro que eles mesmos criaram, pensando que seria o seu salvador. – Agora entendo as vossas palavras. «Aqui começa o fim, um fim que é o princípio». Começou o fim da era dos ilembeketa, um fim que principia com a era de um Homem do Saco e seus arautos mais poderosos e inabalavelmente determinados a reduzir todos os sentimentos hediondos capazes de criá-los. Na vez que me atacaste, querias mostrar-me apenas quão extraordinário é o teu poder e quão inapto estou para lutar numa era como esta. Por causa dos meus erros, quase designei este país à devastação em massa. Dentro de três semanas vou-me embora, tornar-me-ei novamente humano, deixarei todos os meus poderes contigo e me esquecerei de tudo isso. Prometo-te que nestes vinte e um dias restantes farei de tudo para arranjar o que estraguei. Seja melhor do que eu. Não siga a hegemonia dos sentimentos, mas a superioridade da razão. O monstro criado por Lunga e Kiela afastou-se um pouco, fendeu-se em dois e ganhou aparência de um casal de crianças. – Podes ficar humano também, Nguma Tubhya? – inquiriram os dois em coro. – Para quê? – demandou o inquerido, sabendo a resposta. – Para que possas levar-nos ao colo como sempre fazes quando voltamos ao nosso tamanho. – Claro que sim – disse transformando-se em humano e abaixando-se. Kiela e Lunga correram para si e lançaram-se em seu regaço. Andavam todos triunfantemente em direcção a saída quando ele voltou a tornar-se audível – Bem, acho que esta é a vossa última viagem em meus braços, porque dentro em breve ganharão corpos de adultos e gigantescos e na acho que terei força suficiente para vos carregar. Ora, o que eles não haviam percebido, por causa da celeridade dos acontecimentos, era que Umbate salvara o ser fabuloso e o levara consigo em desaparecimento, aguardando, num futuro distante, uma oportunidade propícia para atacar.
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– EPÍLOGO – Panorama de puro romance: O casal estava sentado à beira da praia. Não havia outra presença humana. O pôr-do-sol evidenciava-se com o pintalgar balsâmico de suas cores ígneas e apaixonantes. As ondas vinham tocar seus pés com chama afrodisíaca e voltavam levando resquícios de sua conversa enamorada. Ele – Usuku era seu nome – jurava-lhe amor. Ela – Braulia era seu nome – prometia amá-lo para sempre. Duas semanas haviam passado desde o dia em que seus filhos foram raptados. O conhecimento que tinham sobre os poderes que eles ganharam lhes dava paz parcial. No entanto, nos bastidores, uma leve apreensão ainda tomava seu coração. Ele levantou-se; estendeu a mão para que ela pudesse fazer o mesmo. Puxou-a para si com pompa viril. Ela suspirou ao abraçá-lo em gala feminil. – Queres ter uma surpresa? – perguntou Usuku bem perto da orelha de Braulia. – Sobre o quê? – ciciou ela. – Sobre a tua paixão interminável por mim ou sobre o meu bem-querer infinito por ti? – Sobre ambos – respondeu, afastando-a calmamente para apanhar uma das canas de pesca sobre a areia molhada. – O que vais fazer? Não há peixes nesta zona e, mesmo que houvesse, não estariam à beira do mar a esta hora. Outra coisa, o nome Gardénia vem de garden, não de jardim, mas de Alexander Garden, um botânico famoso. – Disseste isso só para me mostrar que estava errado quando te pedi um nome para história que eu contaria à Kiela? Nem vou revidar! – Achas que eles estão bem a esta hora? – Não. Tenho certeza que o Lunga e a Kiela estão bem a esta hora, Miúda. Teremos problemas em convencer os nossos familiares que eles viajaram para muito longe apara estudar algo maravilhoso. Mas a Máfia saberá cuidar disso. Fotos e outras coisas conviventes não faltarão. – Durante dez anos? – Pega na tua cana. O futuro que fique com o futuro. Agora é só entre mim e ti. Deixa-me mostrar-te como se concebe o inconcebível. – Estás com poderes de atrair peixes? – gracejou, realizando o pedido dele. – Vamos ficar ricos assim, e a peixeira da rua vai perder a clientela para nós! – Vamos lançar a linha e o anzol quando eu disser três, dona comediante. Lançaos com o máximo da tua força. Aqui vai… Três! – Ei! Porque lançaste antes de mim? Não tinhas de contar até três? – Eu disse «quando eu disser três», não quando eu contar até três. – Está bem, senhor batoteiro. Diga três e eu lanço os meus. – Três! Lançou-os com graciosidade. Parte de seus cabelos negros cobriram seu rosto no acto. Usuku afastou-os em ternura encantada. Ela encabulou-se; sorriu em desconcerto. – E agora? – inquiriu ela. – Esperamos até ficarmos velhinhos para que um peixe fique preso num dos anzóis. Seu discurso ainda não tinha terminado quando sentiu algo puxando a linha de sua cana de pesca. 152
– O que está a acontecer? – perguntou intrigada. – Não te posso responder. Algo também ficou preso ao meu anzol. Puxa a linha e poderás ver o que é. Ela fê-lo sem demora. Ele também. Quando o anzol chegou até suas mãos, visionou um anel preso a ele. Olhou para Usuku e viu que o anzol dele trouxera a mesma coisa que o seu. Reparou nos anzóis e viu que eram feitos de material magnético – era esta a razão dos anéis não terem caído para o fundo do mar enquanto eles puxavam a linha de pesca para si. Olhou para as ondas e viu alguém trajado de fato de mergulho acenando para eles. Acenou em resposta embaraçada. O alguém desapareceu imergindo para o mar em seguida. – Quem era? – perguntou ela. – Um dos homens que vivem nesta zona. Contratei-o apenas para isso… – E para que são os anéis? Ele tirou a antiga aliança que tinha em seu dedo, ajudou-a a fazer o mesmo e colocou-as sobre uma das cadeiras antes de responder. – Não fui eu que casei contigo naquele dia e a surpresa que recebeste não foi minha. Então eu quero casar contigo aqui e agora? Aceitas? – Sem ninguém para presenciar? Sem ninguém para registar num livro? – Os nossos nomes já foram registados naquele dia. Ninguém acreditaria que te casaste com alguém que eles julgam ser um ente mitológico. Repito-te: Braulia, Miúda de meus sonhos e Princesa de minha vida, aceitas casar comigo. – Um milhão de nãos... multiplicado por nenhum não… somando a um sim! Ele sorriu apaixonadamente enquanto a colocava em seu colo. Ela soltou um grito alegre por causa de sua acção inusitada. Usuku colocou a nova aliança no dedo dela. Braulia colocou a nova aliança no dedo dele. Após seus lábios se encontrarem em delírio arrebatador, a voz arrepiante de Umbate soou na mente do escritor: – Dizendo disseste: «Tudo o que se escreve se torna mentira e tudo o que se diz se torna verdade.» Desvendei o enigma. «Tudo o que se escreve se torna mentira»: Todas as histórias que o Sambu Mayala te inspira a escrever são encaradas como pura ficção por quem as lê. «Tudo o que se diz se torna verdade»: Ninguém pode contar ao mundo que as histórias são verdade, principalmente a do Sambu Mayala, para que não haja um caos pior que o causado pelas ilembeketa; um caos causado por humanos, um caos causado por investigadores, por gente com arsenal bélico estrondoso e por hediondos caçadores de prémio. Eis a razão de todos os cooperadores ou qualquer outra pessoa que não faça parte do rol das figuras sobre as quais escreves esquecerem que já entrarem em contacto com Sambu Mayala. Entretanto, Sambu Mayla deixará de ser Sambu Mayala dentro de três dias e, antes disso, as tuas mãos serão destruídas para que não tenhas como escrever a catástrofe que ocorrerá neste período. Fim
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