Algures na imensidão do universo

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Algures na imensidão do Universo, escondido no brilho estelar da Via Láctea, localizado na crosta da Terra, um território secreto permitia-se ser o anfitrião de alguns heróis julgados mortos pela maioria. O lugar tinha o nome de Luia e ficava perto do rio Luembe, na LundaNorte. Ladeado por cubatas e algumas palmeiras, um enorme grupo de pessoas estava em pé dispostas de forma a criar um círculo. Só os mais privilegiados estavam sentados. Eles formavam um género de arena. Estavam aí para assistir a um jogo. Todas as tribos estavam reunidas. Na arena estavam três pessoas imponentes: dois homens e uma mulher. Os homens tinham apenas os quadris cobertos, o resto do corpo estava nu; a roupa da mulher cobria-lhe o busto até a parte superior das coxas. Um dos homens era Ngola Kiluanji, rei do Ndongo, um autêntico gigante dotado de uma força física fora do comum. O outro era Mandume, rei dos cunhamas, um grande guerrilheiro cheio de inteligência. A mulher era Nzinga Mbandi, filha de Ngola Kiluanji, uma autêntica prova que os pacíficos também usam a força para atingir os seus objectivos mais nobres. Os três estavam ansiosos. Dentro de momentos seriam soltos quatro animais perigosos: dois javalis e dois bodes selvagens. As regras eram simples: deviam apenas paralisar os animais, a morte não era permitida. E não podiam ter nada nas mãos, excepto uma corda. A multidão ficou calada. As grades de bambu foram abertas. As bestas estavam livres. Espuma – havia espuma branca em suas bocas. O olhar era demoníaco. Três das feras galopavam ferozmente na direcção deles. A outra ficou a rondá-los, como se quisesse achar um ponto fraco. Com força extremamente bruta, os dois homens domaram os javalis e a mulher deteve um dos bodes pelos chifres. Mas, no mesmo momento, a certa distância, o outro bode preparava-se para atacá-la pelas costas. As mãos dos dois homens estavam ocupadas em amarrar os dois suínos. As mãos dela tentavam proteger-se dos cornos afiados do caprino. Se decidisse lutar com um, o outro atacá-la-ia. O mesmo se daria se os homens largassem os javalis – com certeza seriam atacados, não por uma, mas pelas quatro feras. Os homens apressavam-se em amarrar os javalis. Ela tentava derrubar o animal em suas mãos. O outro bode continuava a galopar na direcção dela. Já estava muito perto. Subitamente, aparecendo de forma misteriosa, uma menina apareceu no meio da arena, bem à frente do bode. O olhar dela era incendiado. O bode sentiu-se intimidado. O animal ficou parado, paralisado. Os dois outros homens correram até ao caprino e o amarraram. A multidão aplaudia de forma eufórica. Antes que continuassem com a diversão, a menina fez um sinal, indicado que precisava da atenção deles. O assunto era sério. Quatro


homens e uma mulher levantaram-se. A multidão abriu caminho para que eles pudessem passar. – O que te trás aqui? – perguntou a mulher que vinha com os quatro homens, ao fazer-lhe uma vénia. – Kimpa Vita – disse a menina, em sinal de reconhecimento. – Ou devo dizer Dona Beatriz? Sei que és muito ligada aos espíritos. Será interessante conversar contigo. O que tenho para vos falar é muito importante… – Por favor – interrompeu Mandume, ao pegar Kimpa Vita pelo braço e começar a andar com ela. – Sigam-me. Vamos conversar num lugar com maior privacidade. – Vocês podem ficar – disse Ngola Kiluanji aos soldados, ao reparar que estes se preparavam para segui-los. Enquanto todos conversavam sobre a estranha aparição daquela menina, os oito andavam de forma pomposa, até desaparecerem do campo de visão da multidão numa das tendas. – Aqui está melhor – disse Mandume, enquanto permaneciam todos em pé e ele corria os panos da tenda. – Podemos saber agora a razão de sua visita? – perguntou Kimpa Vita. – Não é melhor que nos sentemos? – perguntou outro homem imponente. – O assunto é sério demais para que nos sintamos à vontade – explicou a menina. – És Ekukui II, rei do Bailundo – reconheceu, ao observar a vénia que o outro lhe fazia. – Admiro muito o que fizeste. Precisamos de homens como tu. – Só faço o que é necessário – respondeu, ao voltar a fazer uma vénia. – As vossas lutas… – recomeçou a menina, ao andar de forma lenta à volta deles. – Porque que lutaram? Qual foi a razão das vossas lutas? Podes dizer-me, Mutu-ya-Kevela? – Eu lutei contra o trabalho forçado. Nunca reconheci a autoridade portuguesa como autoridade. Ninguém que escraviza merece submissão. – E tu, aristocrata Bula Matadi? Porque lutaste? – Lutei contra a exploração e a dominação portuguesa. – Ngungunhane, ou Reinaldo Frederico Gungunhana, «o leão de Gaza», homem de Moçambique… Porque lutaste? – Pela liberdade, pela expulsão dos portugueses no nosso território. – Em resumo – concluiu a menina, ao fixar o olhar em Nzinga Mbandi –, todos vocês lutaram para sermos homens livres, verdadeiros


homens livres. O que me trás aqui é a realidade de que, infelizmente, as vossas lutas foram em vão… – Como assim? – perguntou Mandume, parcialmente exaltado. – O nosso povo continua preso – respondeu Kimpa Vita, com o olhar em transe. – Eles continuam a ser escravizados… – Não pode ser! – exclamou Ngola Kiluanji. – Os portugueses foram expulsosdaqui há décadas – lembrou, ao olhar fixamente para Kimpa Vita. – Estamos a evoluir… O nosso povo está a evoluir. O que vês é falso, feiticeira. – Parte do que dizes é verdadeiro – disse Kimpa Vita. – Mas não me chames de feiticeira. É o que vejo. As nossas lutas não nos libertaram… Somos escravos – disse, ao cruzar as mãos como se estivessem acorrentadas. – Continuamos escravos… – Como é isso possível? – perguntou Ekuikui II, ao olhar para a rapariga. – Mesmo quando éramos escravos, já éramos mais livres que os colonos aqui. Estávamos em todos os sítios: nos campos, nas casas deles, nos caminhos-de-ferro. Eles temiam-nos… Viviam com medo de nós. O opressor nunca é mais livre que o oprimido. Ele tem de trabalhar muito em prol da opressão deste. Tem de escravizar-se… Tem de passar a noite a pensar em como usar a força do oprimido para proveito próprio. Tem de estar sempre alerta. Uma revolução apavora-o. Nunca está em paz. Dia e noite é perseguido pelos problemas que causam maior ansiedade ao ser humano. O escravo tem apenas uma preocupação: liberdade, logo, é mais livre. Nós nos vimos livres dos colonos, agora somos mais livres do quando éramos escravos. – Sábias palavras – disse a menina. – O que me dirás quando souberes que o teu povo luta contra si mesmo? O teu povo livre é preconceituoso, bêbado, imoral, assassino, corrupto… O teu povo, o teu povo é escravo, detentor da pior escravidão possível. Muitos deles me odeiam… – Porquê? – perguntou Mandume, ao beirar a arrogância. – És como os colonos? – Não – respondeu ela com calma. – Apenas por causa da minha pele. A minha pele é um problema para a maioria deles. Na verdade, para a maioria das pessoas neste planeta. Quantos heróis albinos aparecem nos livros? Nenhum… Quantos albinos lutaram ao vosso lado? Não se fala sobre isso… Vais a Internet e só lês sobre porque temos essa coloração. Não há nenhuma figura de destaque… Será que não lutámos? Até nas bandas desenhadas… há heróis cegos, coxos… nenhum albino. Se houver algum, é uma excepção, e uma excepção pouco conhecida ou mencionada. Somos discriminados, excluídos… E não são só os


albinos, qualquer pessoa que seja diferente da área em que esteja. O teu povo… O vosso povo é disfuncional… O mundo é disfuncional. – Entendo muito bem os teus sentimentos – disse Kimpa Vita, ao dar um gole de sua bebida peculiar. – Fui queimada viva com o meu filho por causa do preconceito… – Aquele Manuel Cerveira Pereira prendeu-me e mandou que eu fosse decapitado na Fortaleza de São Miguel para mostrar o seu poder – disse Ngola Kiluanji. – O orgulho também é um veneno… Mesmo se tentarmos mudar essas pessoas, talvez elas não aceitem por simples soberba. – Embora os meus irmãos Kambi e Fuxi não tivessem chegado a extremos, Ngola Mbandi, o meu outro… irmão… mostrou-me como a ganância pode mudar as pessoas. Ele recebeu-me o trono… A ganância é peçonha. – Muito interessante, Ana Sousa – disse a menina, ao referir-se a Nzinga Mbandi. – É como fumar, beber, ter muitos homens ou muitas mulheres – disse Bula Matadi. – Não é viver… é morrer. Mas as pessoas fazem isso por lhes ser conveniente… ou lhes dar prazer. Mudar a mente das pessoas está entre as coisas mais difíceis deste mundo. – O que propões? – perguntou Nzinga Mbandi, ao olhar para a menina. – É esta a razão que me trouxe até vocês… Vocês têm o poder de mudar o sistema. Provaram-no… E gostam de desafios. O que farão? Vão lutar? Ficar com os braços cruzados? – inquiriu, ao olhar para Mandume. As oito pessoas ficaram caladas por alguns instantes. Reflectiam. Depois uma a uma passavam pela menina e beijavam sua mão enquanto lhe diziam sua decisão individual. – Lutaremos – disse Ngungunhane. – Detestamos a escravidão. O preconceito é irmão dela. – As minhas mãos estão ao dispor desta luta – disse Mandume. – Se for preciso a força para mudar a mente deles... assim será. – A abordagem é uma solução viável – disse Ekuikui II. – Farei os possíveis para convencê-los com lógica irrefutável. – Ninguém se sente bem ao ser discriminado – disse Mutu-yaKevela. – Talvez a solução seja lhes fazer provar um pouco do próprio veneno. Estou nesta luta. – Os portugueses não me impediram... nem chegaram a vencer-me – disse Ngola


Kiluanji. – Lutar contra a mentalidade de meu próprio povo será difícil, mas não impossível. Lutarei. – O espírito do raciocínio existe em qualquer humano – disse Kimpa Vita. – Só precisaremos de evocá-lo com fervor. Eu me responsabilizarei disso. Lutarei. – No passado – disse Bula Matadi –, consegui mobilizar todo o meu o povo para obrigar um rei a expulsar os portugueses com o intuito de pôr fim às intrigas que enfraqueciam o reino a que eu pertencia. Será interessante repetir esta façanha… Lutarei. – É meu dever salvar o meu povo de qualquer ameaça – concluiu Nzinga Mbandi. – Lutarei. E a luta começa agora. Estamos dispostos a ir contigo. Os preconceituosos que estejam bem preparados.


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